O Imperialismo Ateniense, Tucidides e a historiografia ...

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O Imperialismo Ateniense, Tucidides e a historiografia contemporânea ou "Do uso de um historiador antigo pelos historiadores contemporâneos " JOSÉ ANTÔNIO DABDAB TRABULSI SUMARIO: 1. Introdução: justificação do tema e limites do trabalho. 2. A imagem do imperialismo ateniense em alguns historiadores contemporâneos. 3. Critica desta Imagem e novas perspectivas. 4. Bibliografia. 1. "DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES" Tucidides está fora de moda. Depois de ter sido entronizado pela nascente historiografia científica do século XLX como o "ver dadeiro pai da história", aquele que tornou o conhecimento do passado uma ciência, com o mesmo rigor das ciências naturais, e de ter assim atravessado triunfantemente a primeira metade deste século, Tucidides foi em seguida impiedosamente acusado de ter uma visão que não ia mais longe que um campo de batalha, sendo assim combatido como o inspirador da "histoire événementíelle". Itinerário inverso seguiu Heródoto. De simples contador de historietas inverossímeis ou simplesmente absurdas, fonte tão sus peita que era preciso mil observações críticas antes de ser citado por historiador sério em pé de página, Heródoto goza hoje de gran de prestígio, que acompanhou passo a passo a abertura da "nou- velle histoire" para a sociologia e a antropologia. Assim, enquanto

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O Imperialismo Ateniense, Tucidides e ahistoriografia contemporânea

ou

"Do uso de um historiador antigo peloshistoriadores contemporâneos "

JOSÉ ANTÔNIO DABDAB TRABULSI

SUMARIO: 1. Introdução: justificação do tema e limites dotrabalho. 2. A imagem do imperialismo ateniense em algunshistoriadores contemporâneos. 3. Critica desta Imagem enovas perspectivas. 4. Bibliografia.

1. "DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES"

Tucidides está fora de moda. Depois de ter sido entronizadopela nascente historiografia científica do século XLX como o "verdadeiro pai da história", aquele que tornou o conhecimento dopassado uma ciência, com o mesmo rigor das ciências naturais, ede ter assim atravessado triunfantemente a primeira metade desteséculo, Tucidides foi em seguida impiedosamente acusado de teruma visão que não ia mais longe que um campo de batalha, sendoassim combatido como o inspirador da "histoire événementíelle".

Itinerário inverso seguiu Heródoto. De simples contador dehistorietas inverossímeis ou simplesmente absurdas, fonte tão suspeita que era preciso mil observações críticas antes de ser citadopor historiador sério em pé de página, Heródoto goza hoje de grande prestígio, que acompanhou passo a passo a abertura da "nou-velle histoire" para a sociologia e a antropologia. Assim, enquanto

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Heródoto inspirou recentemente trabalhos tão estimulantes quantoo livro de F. Hartog,1 os grandes livros sobre Tucidides, como osde Cornford, Gomme ou J. de Romilly, são já bem antigos.

Depois que uma vasta, e tão fecunda, revisão historiográficafoi feita sobre o arcaísmo grego nos últímos anos, por Finley, mastambém pela "Escola de Paris", por P. Lévêque ou Yvon Garlan,cumpre agora rever os problemas relativos ao fim do classicismo.Como Heródoto foi fundamental para a primeira, esta nova revisãonão poderá ser feita sem uma renovação e aumento dos trabalhossobre Tucidides. Ê hora dos historiadores deixarem de "escolher",

entre os dois, o que mais se aproxima da sua concepção de históriae começarem a utilizar as duas fontes diferentes de acordo com asua especificidade.

Quanto a esta revisão, um dos problemas-chave é a visão deque o imperialismo levou à guerra, que levou ao declínio irremediável do mundo clássico. Uma modesta contribuição — a que euproponho neste trabalho — seria mostrar como o testemunho deTucidides foi utilizado pelos historiadores na construção de umaimagem do imperialismo. Mostrar também os pressupostos, asmotivações e os resultados dos seus trabalhos. Como não possuoa competência lingüística para julgar obras específicas de especialistas sobre pontos controvertidos de interpretação de texto, tomeicomo objeto algo que me é mais familiar. Examinarei como aimagem clássica do imperialismo ateniense foi criada e veiculadapor historiadores que, pela sua estatura acadêmica ou editorialdifundiram a imagem predominante, acrescentado também um casoespecial brasileiro.

2. A IMAGEM DO IMPERIALISMO ATENIENSE EM ALGUNS

HISTORIADORES CONTEMPORÂNEOS

2.1 Se tomamos como ponto de partida da nossa análise historiográfica a obra de G. Glotz não é certamente por ser esta dasmais fáceis de serem criticadas. Glotz foi com certeza o maior

historiador francês da Grécia antiga do início do século XX. A sua"Cidade Grega", publicada na coleção "L'évolution de l'Humanité",

1. HARTOG, F. Le miroir d'Hérodote. Paris, GalUmard, 1980.

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traduzida e reeditada em vários idiomas, é ainda hoje um pontode referência obrigatório para os estudiosos. A sua "HistoireGrecque",2 que tomamos aqui para análise, apesar de menos difundida, é certamente mais importante ainda, pois nela o autor dáuma interpretação mais clara e pessoal do movimento da históriagrega.

Glotz representa um grande avanço metodológico, levando aomáximo o esforço positivista de levantamento minucioso e críticaexaustiva das fontes. Além disso, tomar Glotz como ponto inicialencontra uma justificativa nas palavras do próprio historiador.Falando da ambição de Tucidides em deixar um tesouro válido parasempre, ele afirma:

"H a réussi, puisque tout récit de Ia Guerre du Peloponnèsen'est jamais qu'une paraphrase ou un résumé de son livre."3

Sabemos que para o nosso tema, mais estritamente delimitado,o imperialismo, temos outras fontes, mas ainda assim a afirmaçãode Glotz guarda validade e mostra a lucidez de um historiador queafirma categoricamente o que alguns, com preocupações críticasmuito mais limitadas, omitem.4

Isto tudo não quer dizer que o trabalho de Glotz não sejapassível de críticas. A nossa, aqui, vai se limitar ao único aspectoque nos interessa, ou seja, o tratamento do imperialismo.

Uma observação de caráter geral, inicial, é que Glotz incorporaparcialmente a noção da "motivação psicológica em última instância" quando afirma que

"Après Ia victoire de Mycale, Lacédémone préfera temporiser,selon son habitude, et perdit 1'hégémonie; Athènes se decidapour l'action et y gagna un empire."6

Este império, segundo Glotz, se desenvolveu a partir da ligade Delos, considerada benéfica para todos.

2. GLOTZ, G. Histoire Grecque. Paris, P.U.F., 1948 (1926), 2 v.

3. GLOTZ, G. op. cit., v. 2, p. 604.4. TOYNBEE, A. Helenismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1963.

5. GLOTZ, G. op. cit., p. 107.

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"Et les alliés n'y perdaient rien: ils dévaient avoir Ia sécuritésans être obligés de se battre."6

O montante do tributo foi fixado e repartido por Aristidescom proverbial justiça,7 e como o número de aliados aumentouenquanto a soma total permaneceu fixa, o peso do tributo foi cadavez menor, na fase inicial da Liga.

"Ni maitres, ni sujets, rien que des collaborateurs unis pourune même oeuvre d'intérêt general. Durant de longues années,Ia ferme hégémonie d'Athènes fút acceptée librement, joyeuse-ment, par tous ceux à qui elle assurait le repôs."8

A imagem de igualdade na Liga, em Glotz, só é negada nosentido inverso ao que poderíamos esperar hoje, quando ele afirma:

"mais les coalisés contribuèrent, plus qu'Athènes elle-même, àforger les chaínes dont ils se plaignirent ensuite si fort. Cha-que année, l'un d'entre eux, par paresse, par amour de Ia paix,renonçait à équiper sa trière et Ia remplaçait par une contribu-tion pécuniaire (...)"9

e fala em seguida de "nonchalance des alliés".

Até na arquitetura da sua obra os seus pressupostos se manifestam, pois é só depois de falar isto que ele passa a descrever ooutro componente da transformação da Liga em Império: a políticade Címon.

"II encouragea systématiquement les confédérés à retourner àleurs champs et à leurs boutiques. Avec Targent qu'ils versai-ent pour ne pas servir, il armait une flotte qu'il aguerrissaitpar des expéditions freqüentes."10

Creio que já é hora de juntar um pouco mais de crítica à exposição. Que eu não seja aqui acusado de criticar Glotz nas suas

6. ibid., p. 116.

7. ibid., p. 116.8. ibid., p. 117.

9. ibid., p. 117.10. ibid., p. 128.

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passagens mais generalizantes e retóricas, sem mostrar qualquerfalha no seu método crítico. O que pretendo mostrar é que justamente na "visão geral" sobre o imperialismo é que podemos encontrar brechas na análise de Glotz, e não num erro de cronologia,avaliação do tributo, má interpretação dos textos antigos, etc.

"Le privilège historique d'Athènes, c'est d'avoir été Ia terredes grandes expériences politiques. Elle inaugura non pas seu-lement le gouvernement direct du peuple par le pauple, maisencore le gouvernement d'un Empire par le peuple. Là tout étaità créer: Ia méthode et le personnel. Qu'Athènes ait commisdes erreurs dans une situation sans précédent, c'était fatal;1'étonnant, c'est qu'elle les ait si promptement réparées." u

Glotz apresenta uma visão exageradamente pró-ateniense dofato imperial e, através de passagens como esta, justifica o imperialismo e a conduta de Atenas, quando a tarefa de compreensãodos mecanismos do processo é que deveria ser a preocupação predominante.

Ele fala em seguida das ambições de conquista de Atenas e dizque em conseqüência

"surviennent les desastres, châtiment de sa témérité." u ondeele incorpora pura e simplesmente o esquema de pensamento antígoda hybris levando ao castigo, parcialmente presente em alguns trechos de Tucidides, sobretudo na campanha da Sicília.

"Sagement, elle remet sa destinée aux mains de Périclès, 1'aris-tocrate de grande allure, rAlcméonide riche de 1'expérienceaccumulée dans sa maison depuis deux siècles." u

Fica clara aqui a sua predileção, acompanhando Tucidides, porum regime democrático moderado e "iluminado" pela inteligênciado líder aristocrata.

11. ibid., p. 143; sem falar de uma imprecisão de detalhe: a primeirademocracia de que temos noticia 6 a de Quios.

12. ibid., p. 144.

13. ibid., p. 144.

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Assim, segundo Glotz, abre-se uma nova fase do imperialismo,que ele qualifica de "defensivo" (454-446). Glotz não nega o alcance de nenhum dos grandes acontecimentos relatívos ao império,como a transferência do tesouro,14 assim como o aumento do tríbutopara 560 talentos, a percepção, para Atena, de prímicias de 1/60,a substituição do Synédrion pela Ecclcsia como órgão deliberativo,mas afirma:

"Bien mieux, Athènes fút amenée par Ia force des choses às'immiscer dans les affaires intérieures des villes."15

Chegamos quase à impressão de uma Atenas forçada, apesardela, a assumir o comando.

"Ainsi, de 454 à 449, Athènes dut, à maintes reprises, interve-nir dans Ia politique des villes que les aristocrates voulaientfaire sortir de Ia confédération." 16

A pedra angular da visão de Glotz sobre a história grega, oimperialismo e sua interpretação de Tucidides talvez nos seja dadapela sua opinião extremamente favorável a Péricles. Sob a liderança deste

"Son regime démocratíque se montre à Ia fois capable de pro-grès à 1'intérieur, ou il tend à 1'équilibre des classes sociales,et d'énergie à 1'extérieur, ou 1'empire, source de toute prospé-rité, s'organise, se centralise et s'affermit. Si Ia Grèce y con-sent, une ère nouvelle va s'ouvrir pour elle: elle pourra, sous1'égide d'une grande cite, réaliser enfin 1'unité nationale.Mais Ia Grèce demeure sourde aux appels de Péricles (...)""

O imperialismo moderado poderia então levar à unificação,encarada por tantos historiadoresM como o ponto final, e perdido,da civilização grega.

14. Ibid., p. 155.15. ibid., p. 156.16. ibid,, p. 157.17. ibid., p. 167.18. por exemplo, Victor Ehremberg

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Mas já que nos permitimos tantas críticas de caráter geral aum historiador tão importante quanto Glotz, vale a pena ressaltara lucidez de um historiador que, já na sua época, reconhecia todasas implicações mútuas entre democracia e imperialismo.

"Péricles vit clairement les difficultés de Ia paix. D compritque Ia conduite des affaires extérieures et celle des affairesintérieures ne se séparent pas. Sa doctrine sociale et sa doc-trine impérialiste se donnèrent un mutuei appui."19

Nós não podemos nos alongar muito mais sobre Glotz, masvale a pena observar ainda algumas de suas visões sobre a organização do império. A transição da symmachia à arkhé é muito valorizada, superestimando talvez transformações puramente legais oude vocabulário20 (o que não quer dizer que estas não sejam significativas) .

"Un fait caractérise avec une clarté parfaite 1'état de sujétionou sont tombées maintenant les villes fédérées: c'est le chan-

gement introduit dans Ia formule du serment qu'elles prêtentpour s'engager à ne pas faire défection. Vers 465, elles seliaient encore envers "les athéniens et ses alliés"; à partir de450, elles ne promettent plus fidélité et obéissance qu'au peupleathénien."21

Sobre o tributo, ele afirma:

"Le tribut imposé par les athéniens n'a donc jamais étéexcessif .',22

Depois de ter falado longamente sobre o sistema das cleru-quias — onde ele se mostra severo com relação a Atenas — eleconclui esta parte fazendo um balanço do tipo "les bienfaits" e "lesméfaits de 1'impérialisme athénien". Neste balanço, os "bienfaits"são todos os elementos que conduzem à unidade e os "méfaits", tudoo que atinge a autonomia das cidades, resultando uma impressãode muita contradição.

19. GLOTZ, G. op. cit., p. 177.20. ibid., p. 188.21. ibid., p. 190.

22. ibid., p. 194.

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Penso que não seria excessivo ver nesta preocupação com oproblema da unidade um reflexo das teorias nacionalistas em vogana virada do século, que fazia com que a história grega fosse vistacomo a tentativa fracassada de dar aos gregos a unidade que italianos e alemães tinham conseguido. Ê o que aparece ainda maisclaramente quando Glotz fala sobre a importância do conflito, introduzindo um longo estudo sobre a guerra (que não podemos seguir nos limites deste trabalho e onde ele desenvolve o programa,inelutável segundo ele próprio, de parafrasear e resumir Tucidides):

"Athènes será vaincue, son rêve brisé, son Empire mais enlambeaux, mais à quel prix pour Ia Grèce entière! La duresujétion au Lacédémonien, 1'humiliante intervention du Perse,1'épuisement general, tout cela ne será rien encore au regardde ceei: 1'unité du monde grec ne se fera que long temps après,par le fer et dans Ia servitude. Et c'est ainsi qu'à Ia périodeIa plus brillante de 1'histoire grecque suecédera Ia plustriste."23

2.2 O segundo momento da nossa revisão da historiografiatoma como objeto H.D.F. Kitto. Depois da visão francesa, o mundoanglo-saxônico. O referencial da escolha é diferente, mas coerentecom o nosso programa: a influência da obra sobre a formação dasrepresentações dos fatos da história grega antiga. Deste ponto devista nada melhor que o seu The Greeks,M publicado em inúmerosidiomas e tendo vendido o incrível número de 1.400.000 exemplares, referencial mais que obrigatório em todas as universidadesinglesas e norte-americanas.

No que se refere à guerra do Peloponeso seu relato é, aindamais que o de Glotz, uma paráfrase-resumo de Tucidides, de quemele cita trechos muito longos. Quanto ao imperialismo ateniense,sua visão se aproxima da de Glotz sob certos aspectos. Acompanhemos Kitto, sublinhando o que nos parece revelador de suaposição.

23. ibid., p. 603. Um outro trabalho, interessante mas longo, seria comparar passo a passo o relato da guerra em Tucidides e em Glotz.

24. KITTO, H. The Greeks. London, Penguin Booke, 1981 (1951).

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"Operations against Pérsia continued for some years. Thenarose the insoluble problem of the right of secession. Theimportant island of Naxos refused to be a member of theLeague any longer: the threat from Pérsia was now at an end;why then should Naxos contribute forces to a League whichwas only Athens in disguise? To which Athens could reaso-nably reply that if there was no League the Persian menacewould very soon revive. She treated the secession as a revolt,crushed it, and imposed a money-payment on the Naxians.Other such "revólts" were treated in the same way. ThenAegean states which had held aloof were compelled to joinagain, with some reason, for why should any Aegean stateenjoy the security which others provided, without contributingto it?

Two other things were done, both sensible, but both helpingto transform the League into an Empire. The headquartersof the League were moved from Delos to Athens — from asmall island to which people went mainly for religious purposesto the city to which people were glad to go for any purpose.That suspicious thing "administrative convinience" could becited, and it could be represented that the League's treasurywas safer in Athens — as indeed it was, for Athens had justlost two fleets in an Egygtian adventure: but for ali that, itstrenthened the impression, in Athens and out of it, that what

was in name a League was in fact an Empire. The commercialdisputes between members were made referable to Atheniancourts. This was in fact a great simplification of procedure.In the absence of any system of international law, legal procedure between members of different cities were possible onlyif the two cities had a treaty expressily providing for them;if not, direct reprisal — a sort of official piracy — was theonly way of ensuring that complaints shoud be listened to.The athenian courts were reasonably honest, and they weredisinterested. Great care was taken to ensure that no advan-

tage was enjoyed by an athenian in litigation with a memberof an allied city. Nevertheless, it looked bad.

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The general efficiency and honesty which Athens managed theLeague are shown by the fact that the cities continued to joinvoluntarily, and that when the war with Sparta carne themembers of the whole remained surprisingly loyal to Athens,even though they were called subjects of a imperial city."25

Todos os trechos grifados mostram, não uma suposta "parcialidade" de Kitto, mas um julgamento que aceita e incorpora, parcialmente em alguns casos, totalmente em outros, os argumentosdas próprias "partes envolvidas". O "aspecto favorável" que existeem cada argumento só existe se recolocado no jogo de forças domomento, neste caso favorável a Atenas. Todos os momentos da"transformação da Liga em Império" (aceita por Kitto) poderiamnão ter acontecido, ou ter acontecido de outra maneira. Não afirmoque o historiador possa ficar completamente imune a este problema,mas exercitar inconscientemente este tipo de julgamento "pró econtra" pode levar a outro tipo de exercício historiográfico estéril:a busca do "culpado" e das tentativas de solução não tentadas.

Este tipo de abordagem pretensamente objetivo, imparcial,mostra-se neste aspecto inferior até ao do próprio Tucidides quepelo menos buscava o motor das transformações da história, aindaque o situasse no campo psicológico da natureza humana. Isto tudosem falar que a mesma acusação de julgamento pró-ateniense possa tranqüilamente ser imputada a Kitto.

Não tenho condições de estabelecer aqui o paralelo com a historiografia alemã, mas é fato conhecido que os estudiosos do mundo clássico até pouco tempo atrás se repartiam entre simpatizantesdo modelo ateniense e do modelo espartano. A rivalidade que atémeados do século XX opôs o liberalismo republicano francês e oparlamentarismo inglês ao modelo de uma Prússia, depois Alemanha, militarizada, não deixou de encarnar mais uma vez a oposiçãoAtenas X Esparta. Apesar de serem grandes historiadores, pensoque nem Glotz nem Kitto escaparam desta influência de políticacontemporânea.

25. KITTO, H. op. cit., p. 118-119.

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Ora, a opinião favorável de Tucidides a uma democracia moderada de tipo perícleano tornava muito fácil a aceitação pura esimples do testemunho da fonte antiga. Mais ainda, como estademocracia moderada ("escola da Grécia") era indissociável de umimperialismo civilizador, esclarecido, protetor dos povos, o testemunho de Tucidides sobre o imperialismo se tornava "evidente","cheio de verdade", para historiadores como Kitto, por exemplo,que foram criados numa Inglaterra vitoriana onde o fato imperial(e o conservantismo político) recebia as mesmas explicações. Queo seu livro tenha obtido um sucesso tão retumbante nos Estados

Unidos não é surpresa pois a exportação de sua reputação do outrolado do Atlântico acompanha o processo de transferência do centrodo capitalismo imperialista, com todas as suas pretensões civiliza-doras (o que não exclui, e sim complementa, outros elementos deexplicação, como afinidades culturais, intelectuais, editoriais, etc.).

Algumas passagens completam esta análise, como por exemploo elogio da energia dos povos novos e conquistadores:

"It can not be said of the Athenians that they exploited unEmpire gained by the energies and sacrifice of the others." M

A esta "necessidade" de dar uma visão pró-ateniense nestesautores não é estranha a explicação tirada sobre a escravidão. Êsabido o lugar insignificante da explicação da escravidão na "Cidade Grega" de Glotz; tomemos aqui o exemplo de Kitto.

"There is very little similarity between Greek slavery in thefifth and fourth centuries and the roman latifundia, largestates worked by slaves, which were created by depopulationof the countryside." ^

"There was slavery, and it helped, like an auxiliairy engine:but to suggest that it was the mainstay of athenian economyis a serious exaggeration, and to say that it set the tone ofsociety and estranged the ordinary citízen from hard work isludicrous. What it did do was to keep down the levei ofwages(...)"a

26. ibid., p. 122.27. ibid., p. 131.28. ibid., p. 133.

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Contra este tipo de interpretação se volta toda a historiografiarecente.29 Outro aspecto interessante em Kitto, onde ele segueTucidides, é a idéia de que depois de Péricles, e sobretudo comCleon, há uma degenerescência moral em Atenas.80 Tocaremos neste ponto mais adiante.

2.3 Resolvemos incluir na nossa revisão historiográfica umterceiro exemplo, este brasileiro. Sabemos como é difícil publicarlivros de história antiga no Brasil; sobretudo de autores nacionais. Neste sentído é um absurdo completo ver reedições de Jaegere Jardé, quando quase toda a obra de Finley, Vidal-Naquet, De-tienne, Vernant permanece inédita no Brasil. Tenho certeza de quepelo seu preço e distribuição, A democracia grega organizada porH. Jaguaribe31 está destinada a uma grande difusão. Seria interessante então ver qual a imagem do imperialismo ateniense queaí aparece.32

Ouçamos H. Jaguaribe:

"Herdeiro de um processo democrático que vinha de Clístenese que fora reforçado por Ephialtes, consolida este processoinstítucionalmente, através de medidas que ampliam a soberania popular e asseguram seu efetivo exercício. Ao mesmo tempo, graças ao seu sentído de medida e a sua incontrastávelautoridade moral, logra manter o processo democrático dentrode uma confortável margem de viabilidade social, econômica epolítica.O líder democrático e popular, entretanto, é ao mesmo tempoo artífice de um grande projeto imperíalista, que converte aLiga de Delos no Império ateniense."33

29. Sobre este ponto especifico cf. FINLEY, M. «Was greek clvillsatlonbased on slave labour?» In Econmny and society in aneient Greece. London,Chatto & Wlndus, 1981 e também VIDAL-NAQUET, P. «Les esclaves grecsétalent-ils une classe» In La Chasseur Noir. Paris, Maspero, 1981.

30. KITTO, H. op. cit., p. 147.31. JAGUARIBE, H. (org.) A democracia grega. Brasília, UNB/Fund.

Roberto Marinho, 1981.

32. A maior parte dos trechos apresentados e criticados se encontramno capitulo redigido pelo próprio organizador.

33. JAGUARIBE, H. op. cit., p. 24.

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Ora, pode parecer insignificante, mas não é. Inserir o "entretanto" nesta frase é um gravíssimo erro pois representa opor (equase pedir desculpas por Péricles) o que deveria estar ligado deforma orgânica e inextricável, no caso do imperialismo ateniense.

Um pouco antes, outra afirmação insustentável; falando sobreo patriotismo grego:

"E instigava, ao mesmo tempo, a uma reivindicação de autonomia absoluta para a cidade, incompatível com formas estáveis de cooperação e, o que com estas ainda é mais incompatível, ao desígnio de hegemonia da própria cidade sobre asdemais, em um afã de supremacia menos orientado para aobtenção de vantagens materiais, embora também por elasmotivado, do que para manifestar a própria superioridade." **

Também aqui a nuance, entre vírgulas, "mas também por elasmotivado", é incluída no sentido errado. De nuance equivocada emnuance equivocada se constrói uma imagem falsa do imperialismoateniense.

Mais adiante, s5 o império aparece como uma criação dos líderes do partido popular, o que contém dois erros ao mesmo tempo.

Para H. Jaguaribe, o imperialismo ateniense é devido à necessidade de abastecimento de Atenas, de manutenção da frota, emprego para a população e formação de cleruquias. Isto ninguémnega, mas ele simplesmente ignora o enorme ingresso de recursosem dinheiro, o tributo pago anualmente. No final do volume, numamesa-redonda36 ele dirá que o imposto apenas sustentava a máquina administrativa do império. Aqui, ao contrário do que fiz comGlotz e Kitto, é simplesmente impossível tentar apresentar o pensamento do autor. H. Jaguaribe negligencia dados concretos, comoo de Tucidides (2.13.3) que avalia em 600 talentos anuais a contribuição para o império no início da Guerra do Peloponeso. Poroutro lado, Xenofonte (Anab. 7.1.27) nos informa que era de

34. ibid., p. 24.

35. ibid., p. 28-29.36. ibid., p. 137.

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1.000 talentos o total das rendas atenienses. Quaisquer que sejamas variações possíveis nestes dados, os rendimentos em dinheiroeram muitíssimo importantes.

Além disso, dentro dos quadros do império, o autor superestima a importância do comércio ateniense, como a exportação devasos. C. Mossé mostrou37 que o maior desenvolvimento do imperialismo ateniense coincide com o início do declínio da cerâmicaática, constituindo-se esta, antes, mais num produto de troca qúede exportação.

Não posso entrar aqui na análise de uma série de problemasconexos ao império, como a democracia e a escravidão,37" mas avisão de H. Jaguaribe sobre Péricles não pode passar sem comentário. Sobre Péricles H. Jaguaribe fala de "gênio político", "suainsuperável identificação com os interesses de Atenas",38 "sábialiderança", "inexcedível condutor da paz social". E ainda:

"Tal fato, indubitavelmente, também atesta o bom nível político do povo ateniense e sua capacidade, quando exposto a umagrande liderança, de discernir os verdadeiros interesses públicos dos artifícios reacionários e das falácias populistas."39

O que é aqui elogiado é o caráter aristocrático de uma certademocracia, onde a visão é de que a democracia foi brilhante,próspera e vitoriosa enquanto o povo se deixou conduzir pelos"aristoi". Isto representa a aceitação sem qualquer crítica, e aindaexagerada, de uma opinião (preconceito?) de Tucidides.

Ao fim desta parte cabe perguntar: qual a representatividadede obras tão diversas quanto um grande trabalho erudito como ode Glotz, uma obra de divulgação como a de Kitto, e o exercíciode alguns letrados como Jaguaribe? O critério me parece consis-

37. MOSSE, C. La colonisation dans Vantiquité. Paris, Fernand Nathan,

1970, p. 74.37a. Para isto remeto ao meu «Democracia grega antiga e ideologia

brasileira contemporânea» a ser publicado no segundo número da nova sérieda Revista de Hiatária.

38. JAGUARIBE, H. op. cit., p. 39.

39. ibid., p. 39.

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tente. O primeiro é uma das maiores autoridades do início doséculo XX; o livro do segundo vendeu mais de um milhão de cópiase o terceiro estará sendo usado certamente como manual em mui

tas universidades brasileiras, pois "é o que há no mercado". Muitomais do que Cornford, J. de Romilly, Gomme ou qualquer outroespecialista, são autores como estes que difundiram e em algunscasos continuam a difundir a imagem predominante do imperialismo ateniense. Mas a escolha, se foi mais ou menos arbitrária, nãofoi gratuita. Se a amostragem tomasse Buckhardt, Hatzfeld, Ros-tovtzeff e Toynbee por exemplo, o resultado teria sido quase o mesmo. Eu aliás hesitei entre estes autores no momento da escolha e

poderia fazer outro trabalho com estes últimos historiadores. Todos, obviamente, acreditam piamente nas suas interpretações.Penso ter mostrado algumas das condicionantes que podem termoldado algumas das suas opiniões. Todos, igualmente, acham quesuas análises estão rigorosamente apoiadas nas fontes antigas, e,principalmente, em Tucidides.

Cumpre-nos agora mostrar como pode sair de Tucidides (e apartir de uma crítica de Tucidides) outra interpretação do imperialismo .

3. POR UMA NOVA ABORDAGEM DO IMPERIALISMO

O problema inicial que se nos apresenta, se pretendemos seguireste tipo de pesquisa, é mostrar qual a natureza da fonte. Sabemos, como os estudos de J. de Romilly, que a obra de Tucidides éextremamente seletiva. Em Histoire et raison chez Thucydide40ela fala de "fermeté dépouillée" e de "éclat de théorème".41 A construção quase matemática que ele dá à sua obra impõe ao historiador uma tarefa de "desmontagem" do seu texto, para, só então,tomá-lo como fonte segura. Ê o que fazia já Cornford,42 mostrandoo que é histórico e o que é mítico em Tucidides. Ê o que a mesma

40. ROMILLY, J. Histoire et raison chez Thucydide. Paris, les Belles

Lettres, 1967.41. ROMILLY, J. op. cit., p. 9.42. CORNFORD, F. Thueydides mythiatoricus. London, Routledge &

Kegan Paul Ltd, 1965 (1907).

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Jacqueline faz no seu livro sobre Tucidides e o imperialismo ateniense.43 Ê justamente o que muitos historíadores como Kitto, nãofazem, ao pensar que basta citar longamente (ou parafrasear)Tucidides. Ê o que outros, como Glotz, não conseguem muitasvezes fazer, ao atribuir uma autoridade exagerada a Tucidides.E é o que outros nem tentam, como Jaguaribe, que ignora dadosseguros que podem ser tirados de Tucidides.

O primeiro cuidado que se deve tomar é quanto ao fato de queTucidides não estuda nem o princípio nem a obra do imperialismoateniense; ele apenas relata uma série de momentos que marcamo seu desenrolar.44 Em Tucidides tudo se funde numa unidade,

como se só houvesse uma vontade em jogo, como se Atenas inteirafosse imperialista (o que pode até ser verdadeira), e tambémcomo se o fosse sempre da mesma maneira. J. de Romilly explicacomo os atenienses se organizavam em três tendências quanto aoimperialismo, e como o reconhecimento das oposições, que Tucidides não nos oferece, tornaria muito mais clara a segunda parteda Pentecontaetia.46

As oposições entre Címon e Temístocles, ou entre Címon e Péricles, ou ainda entre Nícias e Alcibíades não são explicadas porTucidides nas suas implicações sócio-políticas. J. de Romilly resume esta idéia, falando:

"En laissant entièrement dans 1'ombre les luttes de partis quiprésident aux destinées de Timpérialisme pour en attribuer Iaresponsabilité à Athènes, en éliminant toutes les variationsque subit son orientation pour y voir le développement contínud'une seule et même pensée, il parvient à se dégager du parti-culier et du multiple pour arriver à cette forme une et géné-rale qu'illustre Pexpression oi 'AOTnjatoi."46

A primeira observação é, pois, que as oposições internas nãosão suficientemente explicadas por Tucidides.

43. ROMILLY, J. Thucydide et 1'impérialisme athénien. Paris, Les Belles

Lettres, 1951.

44. ROMILLY, J. Thttc. et Vimp..., p. 56.45. ibid., p. 60.46. ibid., p. 61.

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Outra questão seria o lugar do "econômico" no relato de Tucidides. Seria exagero acompanhar historiadores que, como Grundy,afirmavam uma origem puramente econômica da Guerra. Entretanto, reconhecer que não devemos aplicar ao imperialismo ateniense as mesmas necessidades do imperialismo inglês do século XXnão quer dizer que a questão se encerra aí. Em especial, uma questão essencial levantada por L. Gernet, o abastecimento de Atenasem grãos, é negligenciada por Tucidides. Para ele, o trigo é tãoimportante quanto qualquer outro produto. Em relação à Sicília,o objetivo seria mais privar os Lacedemônios que garantir o abastecimento de Atenas. Na Pentecontaetia ele não considera sequera possibilidade de que na expedição ao Egito se buscasse o acessoa um dos maiores celeiros do mediterrâneo.

J. de Romilly diz:

"On vient de voir que selon M. Gernet c'était-là 1'objectifessentiel d'Athènes: "régner" écrit-il, "c*est vivre sur 1'étran-ger, lui prendre ses blés, le tracasser de toutes les façons dansson commerce et percevoir Ia dime de ce qu'on voulait bienlui laisser." S'il en était ainsi, on comprend un des rapportséconomiques qui liaient entre eux 1'impérialisme et Ia démo-cratíe. Cétait en effet Ia classe pauvre qui pouvait profiterdes conquêtes.

Or Thucydide ne le marque guère devantage. En dehors de1'allusion assez vague de IV. 61.3, dans laquelle Hermocratedeclare (pour soulever les peuples de Sicile) que les athénienssont venus tójv lv xfí SixeWçt 'ayaOfjv ècpiéuevoi, Thucydide ne men-tíonne qu'une fois cet aspect économique de rimpérialisme:encore est-ce à propôs d'une démarche precise — ici encore,1'expédition de Sicile — et comme un motif annexe qui n'ad'influence que sur Ia foule."47

A segunda observação é, portanto, a pequena importância atribuída por Tucidides aos aspectos econômicos.

47. ibid., p. 69-70.

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Sobre este ponto ainda, F. Châlet48 pensa diferente; reconheceque Tucidides é muito discreto sobre este ponto e, se perguntandose em Tucídide a "vontade" imperialista seria superior à "necessidade", responde que mesmo no porta-voz mais espiritualizado doimperialismo, Péricles, poder e opulencia, glória e riqueza aparecemjuntos. Afirmando que cabe ao historiador contemporâneo julgarsobre as verdadeiras causas da guerra,49 ele reconhece implicitamente que Tucidides só pode ser tomado como fonte depois decuidadosamente criticado. Ao contrário de J. de Romilly, ele pensaque na explicação do conflito os aspectos materiais e espirituais doimperialismo são inseparáveis.

"Le fait que Thucydide definisse celles-ci surtout dans uneperspective financière prouve. non pas qu'il se desinteresse dePéconomie proprement dite, mais qu'il met en évidence le pro-blème économique déterminant de 1'État athénien."80

Quer aceitemos uma opinião ou outra, fica claro que nenhumadelas autoriza a interpretação de Jaguaribe, por exemplo.

Há ainda outros problemas relativos ao testemunho de Tucidides . Se não podemos acusá-lo de erro positivo, há certamenteafirmações incompletas, pois ele tende sempre a se estender sobreos recursos de Atenas, mas analisa pouco a evolução e os mecanismos da sua dominação. Por exemplo, ele fala muito sobre Cleone a repressão a Mitílene, mas não menciona que Cleon tinha aumentado muito os tributos em 425 (o que sabemos através da inscrição IG J? 63) .*

Finalmente, se Tucidides reconhece a responsabilidade de Atenas, ele se desinteressa da dominação em si, e é, em conseqüência,pouco sensível aos seus erros.62

48. CHATELET, F. La naissance de Vhistoire. Paris, Ed. de Minuit,

1962, p. 130-131.

49. CHATELET, F. op. cit, p. 132.

50. ibid., p. 131.

51. Para outras observações no mesmo sentido, ver ROMILLY, J. Tuc.et I'itnp..., p. 79 sq.

52. ibid., p. 89.

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Na minha opinião, é a aceitação acrítica do texto de Tucididesque leva historiadores como Kitto a ter a mesma atitude.

Por outro lado, nas raras vezes em que Tucidides emite claramente opiniões sobre política interna, elas vão no sentido do elogioà democracia moderada. Péricles é aprovado sem reservas, assimcomo Teramenes. Cleon é o protótipo do mau líder, do mau governo. Alcibiades é a irresponsabilidade personalizada. Dizer que Tucidides é "reacionário" é exagero. Mas conservador, em políticainterna e externa, ele certamente o é.

Penso que também esta circunstância favoreceu a aceitaçãoacrítica do testemunho tucidideano por historiadores como Glotz.

Para fechar o quadro que muitos historiadores fazem da vidagrega com base no testemunho de Tucidides resta ainda um elemento. Notamos um grande pessimismo na "História da Guerrado Peloponeso"; Para F. Châtelet,

"L'oeuvre pourrait être définie comme Ia descríption systéma-tique de Ia faillite d'une solution. L'échec de Tambition athé-nienne est le symbole de l'échec nécessaire de toute volontéunifiante. La faillite est double: elle se manifste à Ia fois dans

le domainc moral et sur le plan historique." ra

Assim, o esquema do imperialismo levando à guerra se completa com o outro, da guerra levando ao declínio (do mundo grego) . Isto, na minha opinião, é aceitar o testemunho de alguns autores antigos e desconhecer muitas das realidades do IV século porexemplo, para não falar do período helenístico. É eleger os parâmetros do V século, da Atenas perícleana mais precisamente, comoum ideal de cultura e medir a partir dai os graus de desvio. Nãoé esta, na minha opinião, a tarefa do historiador.

O historiador, isto sim, precisa mostrar, (através de Tucidides, mas porque não também contra ele?) como, após Péricles háum aprofundamento da política democrática64 e a atitude aristocrática é dupla: ou o desgosto pela política ou a tentativa de solu-

53. CHATELET, F. op. cit., p. 145.54. Oa limites do exercício da soberania pelo demos sob Péricles em

MOSSE, C. Histoire d'une démocratie: Athènes. Paris, Seuil, 1971, p. 48.

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ções desesperadas, como os golpes oligárquicos. Cria-se a idéia deque houve uma transformação moral do cidadão de espírito públicono cidadão de consciência de classe, egoísta e materialista.65 Aceitar esta interpretação é esconder a evidência de que se tratavaapenas de dois interesses de classe diferentes, mais um julgamentode valor que considera preferível a simples vigilância dos liderespelo povo à participação efetiva deste nas mais altas magistraturas.

Outro erro crasso é tentar "entrar nas negociações diplomáticas", "corrigir o pessimismo de Tucidides" e tentar "evitar" aguerra do Peloponeso, "salvando" a cultura clássica. É o que Jaguaribe tentou fazer56 e é o que leva ao exagero na analogia como mundo bipolarizado do após-segunda guerra mundial, como notrabalho de P. Fliess67 que resume todos esses erros.

Eu não pretendo afirmar que uma interpretação revolucionária sobre o imperialismo ateniense pode surgir fácil e rapidamentese tomarmos as precauções acima listadas. G.E.M. de Ste Croixpretende que sim,68 dando uma nova interpretação do decreto deMégara e fazendo uma vasta retomada do método histórico deTucidides e da atitude deste diante do mundo da sua época. Mas,por exemplo, num livro tão recente quando competente, C. Mossé anão consegue escapar a muitas das interpretações consagradas. Eupenso que o melhor caminho é o que tem seguido Moses Finley,em várias obras,60 como por exemplo no artigo importante "Thefifth century athenian empire: a balance-sheet",a onde Finley

55. Critica desta visão em WOOD, E. e WOOD, N. Claaa ideology andancient politlcal tlieory. Oxford, 1978, p. 64-67.

56. JAGUARIBE, H. op. cit., p. 45 sq.57. FLIESS, P. Thucydidea and the política of bipolarity. Loulsiana,

1966; o que pode ser visto por alguns subtítulos do seu trabalho, como «Couldbipolarism have been prevented?», «the inevitablllty of the war»; «desintegra Uon of the ethos»; mas não podemos nos deter neste ponto.

58. STE CROIX, G. The origina of tlie Péloponneakm toar. London,Duckworth, 1972.

59. MOSSE, C. op. cit,60. notadamente Les anciens grecs. Parla Maspero, 1981; Démocratie

antique et démocratie moderne. Paris, Payot, a.d. para este assunto.61. in GARNSEY, P. e WHITAKER, C. Imperialiam in the ancient vsorld.

Cambrldge, C.U.P., 1978, p. 103-126.

O IMPERIALISMO ATENIENSE 71

mostra a validade da noção de imperialismo, por oposição a hegemonia e desmistífica a busca do ponto inicial do império, relatívi-zando a passagem da symachia à arkhé.

Mostra também como é falso afirmar que o império é umaconstrução do partido popular (contra H. Jaguaribe); neste artigoele examina os benefícios, inclusive materiais, que a dominaçãotrazia — e para quem, dentro de Atenas — e as implicações financeiras do império, assim como os ganhos indiretos.

Que não se pense que a imagem do imperialismo ateniense emFinley vá sistematicamente no sentído de "denegrir" o papel deAtenas. Ele mostrou em especial que duas formas modernas deexploração colonial (mão-de-obra mais barata das colônias; matérias-primas abaixo do preço do mercado) e uma antiga (romana,o empréstimo a juros extorsivos para pagamento de tributos ematraso ou excessivos) não foram utilizadas por Atenas. Mostroutambém o porquê da "fidelidade" de muitas cidades dominadas,quando do endurecimento da guerra.

Como ele mesmo afirma, numa perspectiva que também é válida para o problema da escravidão, as discussões sobre a exploração, sobre a opressão imperial, são muitas vezes mal colocadas. Oimperialismo ateniense, afirma Finley, usou de todas as formasdisponíveis e necessárias de exploração que a mentalidade gregareconhecia.

Finley, quando aponta todos esses novos caminhos de interpretação, não está sendo menos rigoroso na interpretação das fontes do que Glotz, para usar o parâmetro comparativo máximo. Asua interpretação do imperialismo ateniense se completa com anossa exposição dos métodos, resultados e pressupostos de algunshistoriadores. O nosso objetivo não pode ser o de testar se a interpretação de Finley, Ste Croix e outros renovadores é correta ounão; seria um trabalho de história. O objetivo deste trabalho dehistoriografia foi o enunciado anteriormente.

Aqui surge uma questão "em última instância". Porque nãoestender a Finley a nossa revisão? Será que a visão dele sobre oimperialismo não é a de um anglo-saxão de esquerda (?) que viua passagem do centro hegemônico da Inglaterra para os EstadosUnidos, que sofreu as pressões do Macartísmo e que sentiu na

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própria pele as ambigüidades e contradições do imperialismo e dademocracia contemporâneas? Creio que colocar esta questão já élevar a revisão até Finley. Não consigo ir mais longe, porque nãoencontro um referencial político ou historiográfico que me pareçamais avançado, que eu considere mais atual, ou melhor. Esperoter mostrado como o condicionamento social e político da produçãodo conhecimento histórico influenciou diretamente a informação,relativa ao imperialismo, que os historiadores tiraram de Tucidides,acreditando que a fonte antiga dava às suas afirmações o peso daautoridade dos séculos.

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