O inédito de Márcio de Lima Dantas
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O inédito de Márcio de Lima Dantas*
Por Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Mestre em Letras e professor da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte
na surdina, o fogo
permanece aceso, calado,
assim como se fosse
ódio, desgosto, luto ou
ressentimento,
nunca apagando de vez
Márcio de Lima Dantas, xerófilo
Márcio é desses sujeitos que, apesar de viver numa Academia –
afinal é professor na cadeira de Literatura Portuguesa na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – ainda não se deixou contaminar pelos
bolores institucionais. E chego mesmo a duvidar que um dia faça isso.
Não tenho muito contato com ele, mas dos momentos em que pude
conversar pessoalmente, deixou-me claro que é um sujeito de posições
muito acabadas, justas e, sobretudo, lúcidas acerca do seu trabalho e
da sua função enquanto homem de letras. E é ainda de uma
simplicidade boa. Eis aí, talvez sua qualidade maior, frente ao
pedantismo, que é apenas um dos desvalores cultivados às pampas no
meio em que ele vive.
Tanto no universo acadêmico quanto no literário, Márcio é
bastante profícuo. Basta que se olhe a leva de textos seus que vão
aparecendo em mídias diversas. Diria que não para um instante. Da
sua proficuidade, basta que se cite ainda os títulos já publicados que
constituem já numa importante amostra do seu fazer escritor na
literatura do estado. Foram três títulos de poesia – Metáfrase (1999), O
sétimo livro de elegias e Para sair do dia (2006) – e dois títulos de
ensaios – Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e
Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Nesse rol de produções,
não é possível esquecer os dois tomos da poesia de Orides Fontela que
verteu para o francês em conjunto com Emmanuel Jaffelin – Trèfle
(1998) e Rosace (1999).
Já contei em algures que, o primeiro contato que tive com sua
obra foi através do Metáfrase – título garimpado na Biblioteca Setorial
Padre Sátiro Cavalcanti, na minha época de Graduação em Letras. De lá
para cá, o tempo e as circunstâncias encarregaram-se de nos aproximar
o que resultou nos encontros pessoais sobre os quais comecei falando
neste texto. Dos materiais, dos muitos que me envia constantemente,
havia dois conjuntos de textos que tomei, de imediato, após sua leitura,
o interesse em publicá-los na edição do caderno-revista 7faces que sai
agora no próximo dia 30 de setembro. Um, era um conjunto de poemas
selecionados especificamente para a edição em questão; e outro, era um
conjunto de poemas, em formato já de livro pronto para edição,
intitulado Rol da feira. Este título é ainda inédito e poderá fazer parte
em breve da bibliografia do poeta. Ao ler este último, imediatamente
entrei em contato com Márcio a título de que eu pudesse publicá-lo sob
a forma de encarte para a edição do caderno-revista 7faces em que eu
trabalhava. Acontece que alguns dos poemas do material em questão já
haviam sido encaminhados sob a custódia de inédito para a Revista
Preá. É então que Márcio me apresenta outros originais seus. Trata-se
do inédito xerófilo, um conjunto de textos que tomei contato e que agora
publico encartado na terceira edição do caderno-revista 7faces.
Nesse conjunto de textos, o poeta transmuta-se no signo
linguístico – faz-se metamorfose-palavra ou palavra-metamorfose e
engendra um mundo extraído, claro está, desde seu título, do sertão
nordestino. As raízes de Márcio não o deixam ser apenas um encantado
pelo sertão, mas um sertanejo nato. Mas, quando digo que o poeta
transmuta-se no signo linguístico é porque os versos de xerófilo não são
para serem lidos inocentemente como se apetecesse ao leitor apenas a
memória e o recorte de imagens dispersas do espaço sertanejo. Não. Em
xerófilo, nada é inocente. E tudo é milimetricamente pensado, seja a
composição dos poemas, sejam os temas aí tratados, seja o extenso jogo
metafórico que o poeta engendra ao longo do livro. Diria que xerófilo é
um livro alegórico, no sentido proposto de que o poeta diz uma coisa
para significar outra.
Já disseram alguma vez que as epígrafes servem para dizer o todo
da obra. Pois bem, tomo dos três recortes que Márcio incorpora incorpor
à entrada do seu livro para ler as observações que venho fazendo sobre
esse livro. O primeiro deles é de um escritor mossoroense, Guimarães
Duque; espécie de definição para o vocábulo “xerófila”, que, como
sabemos é o nome dado àquelas plantas que toleram a escassez de
água, típicas do sertão e das zonas desérticas. Ao trazer essa epígrafe, o
poeta apresenta a fonte de onde extrai o termo xerófilo para nomear seu
livro. Sim, porque xerófilo é visitação ao termo de origem e vem,
inclusive, com os mesmos traços de significado, mas não se finda aí.
Inaugura-se palavra. Extrai um sentido novo para o termo que tem a
ver com o sentido que esse livro ocupará. Ao xerófilo, então, são
incorporadas as decências do sujeito apontando direções para aquilo
que é o poeta no meio em que vive: aquele que tolera a escassez de
alguma coisa, que foge aos efeitos dessa deficiência não mais natural,
mas, humana, que resiste no espaço em que se firma. Por isso, Xerófilo
recobra, no mínino, uma dobra de sentido – está aí o poeta, mas, não
há como fugir do contexto, também seu autor.
E tudo se justifica, imediatamente pela segunda epígrafe posta
logo depois da citação de Guimarães Duque: “Atravessou a mocidade
numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido
criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da
infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência
pela sua face tormentosa. É um condenado à vida.” A citação é de
Euclides da Cunha. Na fronteira imprecisa em que se situa a relação
pessoal com a palavra, abre-se um espaço, para que as memórias
coletiva e pessoal ecoem. Não que estejamos diante de um magma
autobiográfico. Não. Xerófilo vai se firmando como um espaço de
experimentação privilegiado pelo encontro entre o status ficcional da
palavra e o status real da existência do autor. Autorrepresentando-se
num fingimento poético que é o lugar privilegiado, não só do fazer
poesia, mas do próprio fazer literário. Fingir, aqui, toma a dimensão de
um estágio necessário para suportar a aridez, a escassez, para encarar
o ambiente hostil, transformando-se o poeta em materialidade verbal,
esse lance de dois gumes, no mesmo instante que personagem visceral,
que se autotrajeta com as cores vivas da capacidade triunfante da
palavra.
“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando
conta dele a dentro. [...] Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante!”
Eis o estágio triunfante do poeta. Não é ele mais um dos que afligem a
já tormentosa face da existência. É, sim, aquele que está para além
desse espaço que o circunda. Sair do sertão, mas pelo sertão, tomando
conta dele. Márcio de Lima Dantas vai, catando essas nuances do
sertão como quem cata feijão, retirando os grãos perdidos, e
recuperando a exuberância daquilo que se aproveita e vai dando a eles
outra forma que, no instante em que recupera o sertão, também o põe
para adiante, porque seu interesse aqui, já disse antes, está em dizer
uma coisa para significar outra.
Isso é de um labor poético maduro. Xerófilo toma um viés que dá
contas de um procedimento técnico-formal da escrita poética complexo
de se elucidar. Tem na simplicidade com a qual o poeta confecciona
seus versos um estágio de encimesmamento. Ao transmutar-se na fala
do outro, que é a fala do sertão, o poeta reconhece-se num espaço e
ergue uma consciência acerca dele como espaço marcadamente
dominado e repressivo. Funda, para subverter essa ordem, um espaço
mancomunado com uma escassez, que é a do abandono de uma razão
humana em favor de uma selvageria animal, e estabelece-se como voz
emergente. A voz do poeta ainda não é essa? Nutrir-se da ilusão alheia a
fim de desfazê-la? Importa, logo, o modo como essa operação é feita. De
pés no chão em que pisa, o poeta celebra seu espaço, a beleza, a
peculiaridade. Eleva seu corpo para ser movimento retido nesse solo em
que se fez homem. Comunga com ele seu destino. E o que vinga desse
instante de ir e vir de memória, de inspira e expira, do sobe e desce do
pulso, é um sopro, uma vibração que tem por interesse fecundar o
silêncio da palavra, fazê-la chama, navalha, para refazer um cenário
para si, onde o eu-poético (e por que não o eu-autor) possa triunfar,
reinar e quiçá sobrepor-se ao trivial.
* Este texto foi publicado inicialmente sob outro título no caderno Expressão,
do Jornal Gazeta do Oeste, em 25 de setembro de 2011. A versão aqui
apresentada é sem cortes.