O inédito de Márcio de Lima Dantas

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O inédito de Márcio de Lima Dantas* Por Pedro Fernandes de Oliveira Neto Mestre em Letras e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte na surdina, o fogo permanece aceso, calado, assim como se fosse ódio, desgosto, luto ou ressentimento, nunca apagando de vez Márcio de Lima Dantas, xerófilo Márcio é desses sujeitos que, apesar de viver numa Academia afinal é professor na cadeira de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte ainda não se deixou contaminar pelos bolores institucionais. E chego mesmo a duvidar que um dia faça isso. Não tenho muito contato com ele, mas dos momentos em que pude conversar pessoalmente, deixou-me claro que é um sujeito de posições muito acabadas, justas e, sobretudo, lúcidas acerca do seu trabalho e da sua função enquanto homem de letras. E é ainda de uma simplicidade boa. Eis aí, talvez sua qualidade maior, frente ao pedantismo, que é apenas um dos desvalores cultivados às pampas no meio em que ele vive.

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Artigo que apresenta o livro Xerófilo de Márcio de Lima Dantas.

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O inédito de Márcio de Lima Dantas*

Por Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Mestre em Letras e professor da Universidade do Estado do Rio Grande

do Norte

na surdina, o fogo

permanece aceso, calado,

assim como se fosse

ódio, desgosto, luto ou

ressentimento,

nunca apagando de vez

Márcio de Lima Dantas, xerófilo

Márcio é desses sujeitos que, apesar de viver numa Academia –

afinal é professor na cadeira de Literatura Portuguesa na Universidade

Federal do Rio Grande do Norte – ainda não se deixou contaminar pelos

bolores institucionais. E chego mesmo a duvidar que um dia faça isso.

Não tenho muito contato com ele, mas dos momentos em que pude

conversar pessoalmente, deixou-me claro que é um sujeito de posições

muito acabadas, justas e, sobretudo, lúcidas acerca do seu trabalho e

da sua função enquanto homem de letras. E é ainda de uma

simplicidade boa. Eis aí, talvez sua qualidade maior, frente ao

pedantismo, que é apenas um dos desvalores cultivados às pampas no

meio em que ele vive.

Tanto no universo acadêmico quanto no literário, Márcio é

bastante profícuo. Basta que se olhe a leva de textos seus que vão

aparecendo em mídias diversas. Diria que não para um instante. Da

sua proficuidade, basta que se cite ainda os títulos já publicados que

constituem já numa importante amostra do seu fazer escritor na

literatura do estado. Foram três títulos de poesia – Metáfrase (1999), O

sétimo livro de elegias e Para sair do dia (2006) – e dois títulos de

ensaios – Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e

Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Nesse rol de produções,

não é possível esquecer os dois tomos da poesia de Orides Fontela que

verteu para o francês em conjunto com Emmanuel Jaffelin – Trèfle

(1998) e Rosace (1999).

Já contei em algures que, o primeiro contato que tive com sua

obra foi através do Metáfrase – título garimpado na Biblioteca Setorial

Padre Sátiro Cavalcanti, na minha época de Graduação em Letras. De lá

para cá, o tempo e as circunstâncias encarregaram-se de nos aproximar

o que resultou nos encontros pessoais sobre os quais comecei falando

neste texto. Dos materiais, dos muitos que me envia constantemente,

havia dois conjuntos de textos que tomei, de imediato, após sua leitura,

o interesse em publicá-los na edição do caderno-revista 7faces que sai

agora no próximo dia 30 de setembro. Um, era um conjunto de poemas

selecionados especificamente para a edição em questão; e outro, era um

conjunto de poemas, em formato já de livro pronto para edição,

intitulado Rol da feira. Este título é ainda inédito e poderá fazer parte

em breve da bibliografia do poeta. Ao ler este último, imediatamente

entrei em contato com Márcio a título de que eu pudesse publicá-lo sob

a forma de encarte para a edição do caderno-revista 7faces em que eu

trabalhava. Acontece que alguns dos poemas do material em questão já

haviam sido encaminhados sob a custódia de inédito para a Revista

Preá. É então que Márcio me apresenta outros originais seus. Trata-se

do inédito xerófilo, um conjunto de textos que tomei contato e que agora

publico encartado na terceira edição do caderno-revista 7faces.

Nesse conjunto de textos, o poeta transmuta-se no signo

linguístico – faz-se metamorfose-palavra ou palavra-metamorfose e

engendra um mundo extraído, claro está, desde seu título, do sertão

nordestino. As raízes de Márcio não o deixam ser apenas um encantado

pelo sertão, mas um sertanejo nato. Mas, quando digo que o poeta

transmuta-se no signo linguístico é porque os versos de xerófilo não são

para serem lidos inocentemente como se apetecesse ao leitor apenas a

memória e o recorte de imagens dispersas do espaço sertanejo. Não. Em

xerófilo, nada é inocente. E tudo é milimetricamente pensado, seja a

composição dos poemas, sejam os temas aí tratados, seja o extenso jogo

metafórico que o poeta engendra ao longo do livro. Diria que xerófilo é

um livro alegórico, no sentido proposto de que o poeta diz uma coisa

para significar outra.

Já disseram alguma vez que as epígrafes servem para dizer o todo

da obra. Pois bem, tomo dos três recortes que Márcio incorpora incorpor

à entrada do seu livro para ler as observações que venho fazendo sobre

esse livro. O primeiro deles é de um escritor mossoroense, Guimarães

Duque; espécie de definição para o vocábulo “xerófila”, que, como

sabemos é o nome dado àquelas plantas que toleram a escassez de

água, típicas do sertão e das zonas desérticas. Ao trazer essa epígrafe, o

poeta apresenta a fonte de onde extrai o termo xerófilo para nomear seu

livro. Sim, porque xerófilo é visitação ao termo de origem e vem,

inclusive, com os mesmos traços de significado, mas não se finda aí.

Inaugura-se palavra. Extrai um sentido novo para o termo que tem a

ver com o sentido que esse livro ocupará. Ao xerófilo, então, são

incorporadas as decências do sujeito apontando direções para aquilo

que é o poeta no meio em que vive: aquele que tolera a escassez de

alguma coisa, que foge aos efeitos dessa deficiência não mais natural,

mas, humana, que resiste no espaço em que se firma. Por isso, Xerófilo

recobra, no mínino, uma dobra de sentido – está aí o poeta, mas, não

há como fugir do contexto, também seu autor.

E tudo se justifica, imediatamente pela segunda epígrafe posta

logo depois da citação de Guimarães Duque: “Atravessou a mocidade

numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido

criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da

infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência

pela sua face tormentosa. É um condenado à vida.” A citação é de

Euclides da Cunha. Na fronteira imprecisa em que se situa a relação

pessoal com a palavra, abre-se um espaço, para que as memórias

coletiva e pessoal ecoem. Não que estejamos diante de um magma

autobiográfico. Não. Xerófilo vai se firmando como um espaço de

experimentação privilegiado pelo encontro entre o status ficcional da

palavra e o status real da existência do autor. Autorrepresentando-se

num fingimento poético que é o lugar privilegiado, não só do fazer

poesia, mas do próprio fazer literário. Fingir, aqui, toma a dimensão de

um estágio necessário para suportar a aridez, a escassez, para encarar

o ambiente hostil, transformando-se o poeta em materialidade verbal,

esse lance de dois gumes, no mesmo instante que personagem visceral,

que se autotrajeta com as cores vivas da capacidade triunfante da

palavra.

“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando

conta dele a dentro. [...] Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante!”

Eis o estágio triunfante do poeta. Não é ele mais um dos que afligem a

já tormentosa face da existência. É, sim, aquele que está para além

desse espaço que o circunda. Sair do sertão, mas pelo sertão, tomando

conta dele. Márcio de Lima Dantas vai, catando essas nuances do

sertão como quem cata feijão, retirando os grãos perdidos, e

recuperando a exuberância daquilo que se aproveita e vai dando a eles

outra forma que, no instante em que recupera o sertão, também o põe

para adiante, porque seu interesse aqui, já disse antes, está em dizer

uma coisa para significar outra.

Isso é de um labor poético maduro. Xerófilo toma um viés que dá

contas de um procedimento técnico-formal da escrita poética complexo

de se elucidar. Tem na simplicidade com a qual o poeta confecciona

seus versos um estágio de encimesmamento. Ao transmutar-se na fala

do outro, que é a fala do sertão, o poeta reconhece-se num espaço e

ergue uma consciência acerca dele como espaço marcadamente

dominado e repressivo. Funda, para subverter essa ordem, um espaço

mancomunado com uma escassez, que é a do abandono de uma razão

humana em favor de uma selvageria animal, e estabelece-se como voz

emergente. A voz do poeta ainda não é essa? Nutrir-se da ilusão alheia a

fim de desfazê-la? Importa, logo, o modo como essa operação é feita. De

pés no chão em que pisa, o poeta celebra seu espaço, a beleza, a

peculiaridade. Eleva seu corpo para ser movimento retido nesse solo em

que se fez homem. Comunga com ele seu destino. E o que vinga desse

instante de ir e vir de memória, de inspira e expira, do sobe e desce do

pulso, é um sopro, uma vibração que tem por interesse fecundar o

silêncio da palavra, fazê-la chama, navalha, para refazer um cenário

para si, onde o eu-poético (e por que não o eu-autor) possa triunfar,

reinar e quiçá sobrepor-se ao trivial.

* Este texto foi publicado inicialmente sob outro título no caderno Expressão,

do Jornal Gazeta do Oeste, em 25 de setembro de 2011. A versão aqui

apresentada é sem cortes.