O inferno
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VERITATIS SPLENDOR6 DE NOVEMBRO DE 2015
DOUTRINA
O inferno existe mesmo? Quase ninguémmais acredita nele…
A razão por que muitos em nossos tempos não acreditam no inferno é que nunca
tiveram explicação exata do que ele significa
A razão por que muitos em nossos tempos não acreditam no inferno, é que nunca tiveram explicação exatado que ele significa: é frequente conceber-se o inferno como castigo que Deus inflige de maneira mais oumenos arbitrária, como se desejasse impor-se vingativamente como Soberano Senhor; o réprobo seriaatormentado maldosamente por demônios de chifres horrendos, em meio a um incêndio de chamas, etc.— Não admira que muitos julguem tais concepções inventadas apenas para incutir medo ; não seriamcompatíveis com a noção de um Deus Bom.
Na verdade, o inferno não é mais do que a consequência lógica de um ato que o homem realiza de maneiraconsciente e deliberada aqui na terra; é o indivíduo quem se coloca no inferno (este vem a serprimariamente um estado de alma; vão seria preocupar-se com a sua topografia) ; não é Deus quem, porefeito de um decreto arbitrário, para lá manda a criatura, É o que passamos a ver.
Admitamos que um homem nesta vida conceba ódio a Deus (ou ao Bem que ele julgue ser o Fim último,Deus) e O ofenda em matéria grave, empenhando toda a sua personalidade (pleno conhecimento de causae liberdade de arbítrio); essa criatura se coloca num estado de habitual aversão ao Senhor. Caso morranessas condições, sem retratar, nem mesmo no seu íntimo, o ódio ao Sumo Bem, que sorte lhe há de tocar?
A morte confirmará definitivamente nessa alma o ódio de Deus, pois a separará do corpo, que é oinstrumento mediante o qual ela, segundo a sua natureza, concebe ou muda suas disposições. Depois damorte, tal criatura de modo nenhum poderá desejar permanecer na presença de Deus; antesespontaneamente pedirá afastar-se d’Ele. Não será necessário que, para isto, .o Juiz supremo pronunciealguma sentença; o Senhor apenas reconhecerá, da sua parte, a opção tomada pela criatura ; Ele a fezlivre e respeitará esta dignidade, em hipótese nenhuma forçando ou mutilando o seu alvitre.
Eis, porém, que desejar afastar-se de Deus e permanecer de fato afastada, vem a ser, para a almahumana, o mais cruciante dos tormentos. Com efeito, toda criatura é essencialmente dependente doCriador, do qual reflete uma imagem ou semelhança ; por conseguinte, ela tende por sua própria essênciaa se conformar ao seu Exemplar (é a natureza quem o pede, antecedentemente a qualquer opção davontade livre); caso o homem siga esta propensão, ele obtém a sua perfeição e felicidade. Dado, porém,que se recuse, a fim de servir a si mesmo, não pode deixar de experimentar os protestos espontâneos eveementíssimos da natureza violentada. A existência humana torna-se então dilacerada : o pecador sente,até nas mais recônditas profundezas do seu ser, o brado para Deus ; esse brado, porém, ele o sufocou esufoca, para aderir a um fim inadequado, fim que, em absoluto, ele não quer largar apesar do terríveltormento que a sua atitude lhe causa. — Na vida presente, a dor que o ódio ao Sumo Bem acarreta, podeser temperada pela conversão a bens aparentes, mas precários…, pela auto-ilusão ; na vida futura, porém,não haverá possibilidade de engano!
É nisto que consiste primariamente o inferno. Vê-se que se trata de uma pena infligida pela ordem mesma
das coisas, não de uma punição especialmente escolhida , entre muitas outras por um Deus que sequisesse “vingar” da criatura. Em última análise, dir-se-á que no inferno só há indivíduos que nele querempermanecer. — A este tormento espiritual se acrescenta no inferno uma pena física, geralmente designadapelo nome de fogo; certamente não se trata de fogo material, como o da terra, mas de um sofrimento queas demais criaturas acarretam para o réprobo, e acarretam muito naturalmente. Sim; quem seincompatibiliza com o Criador não pode deixar de se incompatibilizar com as criaturas, mesmo com asque igualmente se afastaram de Deus (o pecador é essencialmente egocêntrico), de sorte que os outrosseres criados postos na presença do réprobo vêm a constituir para este uma autêntica tortura (não sepoderia, porém, precisar em que consiste tal tormento).
Por último, entende-se que o inferno não tenha fim ; há de ser tão duradouro quanto a alma humana, aqual por sua natureza é imortal; Deus não lhe retira a existência que lhe deu e que, em si considerada, égrande perfeição. Embora infeliz, o réprobo não destoa no conjunto da criação, pois por sua dor mesmaele proclama que Deus é a Suma Perfeição, da qual ele se alheou (é preciso, nos lembremos bem de queDeus, e não o homem, é o centro do mundo).
Não se pense em nova “chance” ou reencarnação neste mundo. Esta, de certo modo, suporia que Deus nãoleva a sério as decisões que o homem toma, empenhando toda a sua personalidade; o Senhor não trata ohomem como criança que não merece respeito. De resto, a reencarnação é explicitamente excluída portextos da Sagrada Escritura como os que se acham citados sob o no 8 deste fascículo.
Eis a autêntica noção do inferno, que às vezes é encoberta por descrições demasiado infantis e fantasistas.
Veja a propósito E. Bettencourt, A vida que começa com a morte (ed. AGIR) Cap. VI.
Fonte: Revista Pergunte e Responderemos. No. 03, Julho de 1957. Pág. 10-12.
(Veritatis)