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O INSPETOR GERAL Texto de Nicolai Gógol Tradução de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri

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O

INSPETOR

GERAL Texto de Nicolai Gógol

Tradução de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri

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PERSONAGENS

Anton Antonovitch Skovznik-Dmudhanovski – Governador

Anna Andreievna - Sua Esposa

Maria Antonovna – Sua Filha

Luka Lukitch – Inspetor das Escolas

Esposa de Luka Lukitch

Ammoss Fiedorovitch Liapkin-Tiapkin – Juiz local

Artêmy Philippovitch Zemlianika – Diretor do Hospital

Ivan Kuzmitch Chpekin – Chefe dos Correios

Piotr Ivanovitch Dobtchinski – Fazendeiro

Piotr Ivanovitch Bobtchinski – Fazendeiro

Ivan Aleksandrovitch Khlestakov – Funcionário de São

Petersburgo

Óssip – Seu Criado

Christian Ivanovitch Gibner – Médico local

Fédor Andreievitch Liuliukov – Funcionário da Cidade

Ivan Lazarevitch Rastakovski – Funcionário da Cidade

Stepan Ivanovitch Korobkin – Funcionário da Cidade

Stepan Ilitch – Chefe de Polícia

Svistunov - Soldado

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Pugovitzin – Soldado

Dierjimorda – Soldado

Abdulin – Comerciante

Fevrônia Petrovna Pochlepkina – Mulher do Carpinteiro

A Viúva do Subtenente

Mitchka – Criado do Governador

O Criado do Hotel

Um Guarda

Convidados, comerciantes, burgueses.

ATO I

Cena I

Sala da casa do Governador. Em cena está o Governador; o

Diretor do hospital, Artêmy Philippovitch; o Diretor da

escola, Luka Lukictch; o Juiz Ammoss Fiedorovitch; o

Chefe de Polícia; o Médico e dois soldados.

GOVERNADOR – Meus senhores: chamei-os aqui para lhes dar

uma notícia muito desagradável – é iminente a chegada de um

inspetor.

AMMOSS – O quê? Um inspetor?

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ARTÊMY – Como é que é: um inspetor?

GOVERNADOR – Exatamente. Um inspetor de São

Petersburgo, que viaja incógnito e, para o cúmulo dos males, em

missão secreta.

AMMOSS – Ai, ai, ai, ai, ai, ai!...

ARTÊMY – De fato, uma notícia muito desagradável.

LUKA – Meu Deus! E o que é pior: em missão secreta!

GOVERNADOR – Eu já pressentia isso. Durante toda a noite

sonhei com ratazanas enormes; palavra de honra que nunca vi

bichos tão descomunais. Elas se aproximavam de mim, me

cheiravam estranhamente e se afastavam cautelosas, pretas,

grandes... Vou ler para os senhores uma carta que recebi de

Andrei Ivanovitch. Ouçam bem: “Querido amigo, compadre e

benfeitor...” (Pula alguns trechos murmurando qualquer

coisa.) Ah, está aqui: “Apresso-me a informá-lo da chegada de

um funcionário especializado, que leva instruções para

inspecionar toda a província e especialmente o nosso Distrito”.

(Levanta o dedo com um gesto significativo.) “Essa

informação me veio de fonte segura, embora esse inspetor

esteja viajando incógnito. Como sei que você, meu caro

Governador, é um homem inteligente que não gosta de deixar

escapar o que lhe cai nas mãos...” (Interrompendo.) Bem, aqui

vêm coisas sem importância: tá, tá, tá, tá, tá... “O meu conselho

é que se deve tomar todas as precauções porque esse

funcionário poderá chegar a qualquer momento, se é que já não

chegou aí e se encontra escondido. Ontem eu...”. Bem, aqui

vêm assuntos de família... “Minha irmã Anna veio visitar-nos

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ontem com seu marido. Ivan Kirilitch engordou muito e continua

tocando violino...”, etc. Por aí vejam vocês como estão as

coisas.

AMMOSS – Na verdade o caso é excepcional, excepcional,

realmente excepcional!

LUKA – Mas por que será que isso aconteceu? O que é que um

inspetor vem fazer aqui?

GOVERNADOR – É o destino! Até agora, graças a Deus, essa

gente só metia no nariz no distrito dos outros, hoje, chegou a

nossa vez!

AMMOSS – Eu creio - Senhor Governador, que para isso deve

existir um motivo mais sutil e de índole política. Eu me explico: a

Rússia... isto é... a Rússia deseja a guerra e o Ministério manda

um funcionário para averiguar se por aqui existe algum traidor.

GOVERNADOR – Mas que absurdo! Traidores numa

aldeiazinha como a nossa? Muito me admira que o senhor, um

homem tão inteligente, diga uma tolice dessas. Estamos tão

longe de qualquer povoado que, mesmo viajando três anos a

cavalo, não chegaríamos a lugar nenhum.

AMMOSS – Posso garantir - Senhor Governador, que o senhor

está equivocado no seu raciocínio. O Ministério é muito astuto e

não escapam ao seu olhar nem os povoados mais distantes das

fronteiras.

GOVERNADOR – Escapando ou não escapando, os senhores

já estão avisados. Da minha parte, já tomei algumas

providências e eu os aconselho a fazer o mesmo. Sobretudo o

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senhor Artêmy Philippovitch. Sem dúvida o inspetor vai querer

inspecionar em primeiro lugar o hospital. De modo que não

custa torná-lo um pouco mais decente: fornecer roupa limpa aos

doentes, trocar os gorros de dormir para que não fiquem

parecendo limpadores de chaminés, como habitualmente.

ARTÉMY – Bom: isso é fácil, roupa é para ser lavada de vez em

quando...

GOVERNADOR – Claro. E, além disso, seria conveniente, ao pé

de cada cama, uma ficha com o nome da doença e a data de

entrada do paciente, tudo escrito em latim ou em outro idioma

sério qualquer. O Doutor Christian que tome providências. Não é

bom que os doentes usem um fumo tão forte. Mal a gente entra

numa enfermaria tem logo vontade de espirrar. E depois há

doentes demais. Dá até uma má impressão ver tantos doentes

assim no seu hospital. Podíamos dispensar alguns.

ARTÊMY – Quanto a isso, eu e o Doutor Christian pensamos da

mesma forma. Quanto mais deixarmos a natureza trabalhar

sozinha, melhor. Não usamos remédios caros. O homem é um

ser simples. Quando tem de morrer, morre mesmo. E quanto

tem de ficar bom, não há Cristo que o impeça. E seria mesmo

muito penoso para o Doutor Christian dar-se ao trabalho de

ouvir o que os doentes reclamam. Ele não fala uma palavra de

russo... mas é muito competente. (O Doutor Christian emite

um som que flutua entre o “i” e o “e”.).

GOVERNADOR – E ao Senhor, Juiz Ammoss Fiedorovitch, eu

aconselharia a ter mais cuidado com o seu Tribunal. Na sala de

espera, onde ficam os litigantes, os contínuos vivem criando

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gansos e gansinhos que sujam tudo e fazem com que as

pessoas tropecem. Naturalmente, a avicultura é digna de todos

os elogios. E por que um contínuo não poderia criar aves? Claro

que pode. Mas nesse lugar é indecoroso fazê-lo. Eu sempre

queria chamar a sua atenção sobre isso. Mas, não sei por que,

sempre me esquecia.

AMMOSS – Hoje mesmo darei ordens para que apreendam os

gansos e que sejam levados para a cozinha. Se quiser, venha

almoçar comigo.

GOVERNADOR – Obrigado. O senhor há de convir que é

lamentável que em plena sala de audiências se pendurem

roupas para secar. E que sobre a mesa do juiz se veja um

chicote de caça. Eu compreendo perfeitamente que o senhor

goste de caçar, mas não é necessário que use esporas durante

os julgamentos. É preciso tirar tudo dali. Quando o inspetor tiver

ido embora, que volte tudo ao seu estado normal. Também devo

dizer que o seu secretário... Claro que ele é um homem muito

capaz, mas cheira tão mal como se tivesse acabado de sair de

um alambique. Isso não chega a ser digno de elogios. Se for

verdade, como ele diz que o mau cheiro é de nascença, ainda

assim há um recurso: ele que coma alho, cebola, ou qualquer

outra coisa. Neste caso o Doutor Christian poderia ajudá-lo com

diversos medicamentos. (O Doutor Christian novamente emite

o ruído.).

AMMOSS – Meu secretário diz que caiu do colo da mãe quando

era muito pequeno e desde então adquiriu esse cheiro de vodka.

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GOVERNADOR – Bem, eu disse por dizer. Quanto às medidas

de ordem interna e àquilo que Andrei Ivanovitch chama em sua

carta de “pecadilho”, eu nada posso dizer. E afinal de contas,

existe por acaso algum homem no mundo que não tenha algum

“pecadilho”? O próprio Deus Todo-Poderoso quis que assim

fosse, e é em vão que vociferam contra isso os voltairianos.

AMMOSS – Pecadilhos, quem não os tem? Eu, por exemplo, eu

digo abertamente a todo mundo que sou subornável, recebo

propinas. Mas, que classe de propinas? Cães Perdigueiros! Ah,

isso já é outra coisa!

GOVERNADOR – Cães Perdigueiros ou qualquer outra coisa,

tudo é suborno.

AMMOSS – Não, meu caro Anton Antonovitch. Quando alguém

possui um sobretudo que custa, por exemplo, quinhentos rublos,

e sua mulher um xale de...

GOVERNADOR – O fato de alguém se vender por um cãozinho

de caça ou se vender por qualquer outra coisa não tem

importância. O importante é que o senhor não acredita em Deus

e nunca vai à igreja. Eu, pelo menos, sou um homem de fé

inquebrantável e vou à igreja todos os domingos. O senhor não.

Conheço-o muito bem. Quando começa a falar da criação do

mundo, meus cabelos ficam todos de pé.

AMMOSS – Veja bem que tudo o que eu digo é produto da

minha própria inteligência.

GOVERNADOR – Muitas vezes a inteligência em excesso é pior

do que a ignorância. E depois, falei no Tribunal, por falar. Para

ser franco, creio que não passará pela cabeça de ninguém

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meter-se com o Tribunal. Afinal de contas, ele está guardado por

Deus! Quanto ao Senhor Luka, como Diretor da Escola, seria

conveniente que se preocupasse um pouco com os professores.

Bem sei que se trata de gente culta que estudou em diversos

colégios. Mas têm hábitos muito esquisitos que certamente se

devem à sua condição de pedagogos. Um deles, por exemplo,

um que tem a cara larga - não me lembro bem o nome dele,

toda a vez que começa a aula, faz uma careta assim. (Imita.)

Claro que se a careta é feita diante dos alunos este fato não tem

nada de extraordinário. Talvez deva ser assim mesmo. Isso eu

não posso julgar porque não tenho conhecimentos pedagógicos.

Mas pense bem, se o professor fizer uma cara dessas diante de

um visitante ilustre, a coisa poderia ficar mal parada. O inspetor

poderia pensar que a careta fosse dirigida a ele, e as

complicações seriam verdadeiramente terríveis.

LUKA – Mas o que é que eu posso fazer? Já falei com ele

tantas vezes. Ainda no outro dia, quando o padre visitou a

escola, o tal professor fez uma das tais caretas. Mais espantosa

do que nunca. É certo que ele foi impelido a isso por sua

bondade inata, mas eu é que acabei levando o maior sermão,

por permitir que se implantem na juventude idéias tão

avançadas.

GOVERNADOR – A mesma coisa eu devo dizer em relação ao

professor de história. É um sábio – isso é evidente – sabe muito.

Mas se expressa com tanta veemência que se esquece do

resto. Outro dia eu mesmo vi. Enquanto falava dos assírios e

dos babilônios ia tudo muito bem, mas, quando chegou a vez de

Alexandre, o Grande, o que ali se passou naquela sala de aula

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foi indescritível. Eu juro que pensei que a escola tivesse

pegando fogo. Desceu correndo de sua mesa e começou a

bater furiosamente com as carteiras no chão e na cabeça dos

alunos. É certo que Alexandre, o Grande, foi um herói. Mas por

que quebrar as carteiras? Só se for para dar prejuízos ao

Estado!

LUKA – De fato é um homem muito impulsivo. Eu já lhe fiz essa

observação e ele me respondeu: “que quer que eu faça? Eu

seria capaz de dar a minha própria vida pela ciência!”

GOVERNADOR – É! Assim é a misteriosa lei do destino. O

homem inteligente, quando não é um bêbado, é um louco.

LUKA – Triste fatalidade servir no setor do ensino. Todos se

metem. Todos querem mostrar que também são inteligentes.

GOVERNADOR – Isso não é nada. O pior é esse maldito

inspetor incógnito! Imaginem se, de repente, ele aparece aqui?

“Ah, ah: pois então estão todos aqui comigo, hein?... Quem dos

senhores é o juiz?” – Liapkin-Tiapkin, senhor! – “Pois que venha

à minha presença! Quem é o Diretor do Hospital?” – Zemlianika,

senhor! – “Que venha Zemlianika!” Isso é que é mau! Muito

mau!

Cena II

Entra o Chefe dos Correios.

CHEFE DOS CORREIOS – Que foi que aconteceu: que

funcionário é esse que vem aí?

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GOVERNADOR – O que já ouviu a respeito?

CHEFE DOS CORREIOS – Piotr Ivanovitch Bobtchinski foi me

visitar lá nos Correios e me contou!

GOVERNADOR – E qual é a sua opinião?

CHEFE DOS CORREIOS – Estamos em guerra com os turcos.

AMMOSS – Exatamente. A minha tese.

GOVERNADOR – Exatamente. Os dois tiveram a mesma idéia

idiota.

CHEFE DOS CORREIOS – Pois garanto que vai haver guerra

com os turcos. São intrigas dos franceses.

GOVERNADOR – Que guerra com os turcos, coisa nenhuma!

Nós é que vamos passar mal, não os turcos. Recebi uma carta...

CHEFE DOS CORREIOS – Ah, quer dizer que não vai mais

haver guerra com os turcos?

GOVERNADOR – Não, Ivan Kuzmitch. Mas, diga-me lá, como

vão as coisas para o seu lado?

CHEFE DOS CORREIOS – O que interessa isso? E para o seu

lado como é que vão, Senhor Governador?

GOVERNADOR – Bem, eu não direi que sinta terror, mas um

pouco de medo... Os comerciantes me causam algumas

dificuldades. Dizem que eu lhes tiro muito dinheiro!... E eu, só

Deus sabe, quando aceitava alguma coisa de algum deles, era

sem ódio nem maldade. Eu até pensei... (Leva-o para um

canto, conduzindo-o pelo braço.) Eu acho que... Olha, será

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que houve uma denúncia contra mim? Por que mandariam para

cá um inspetor? Ouça Ivan, para o bem de todos, não poderia

abrir as cartinhas que entram e saem de sua repartição? Assim,

só para passar os olhos, ver se há uma denunciazinha e depois,

então, se não houver, pode-se fechar a cartinha novamente, ou

entregar assim mesmo, aberta...

CHEFE DOS CORREIOS – Não me dê lições. Há muito tempo

que eu faço isso. Não por cautela, mas por simples curiosidade.

Gosto muito de saber o que se passa pelo mundo. E essa leitura

é interessantíssima. Há cartas que se lêem com deleite; contam

histórias muito bonitas, mais instrutivas que as do jornal.

GOVENADOR – Então me diga: não leu nada sobre o inspetor?

CHEFE DOS CORREIOS – Não. Mas é uma pena que o senhor

não leia essas cartas. Há passagens preciosas. Ainda há pouco,

para não ir além, um suboficial escreveu a um amigo,

descrevendo um baile e usando a linguagem mais florida: “aqui

a vida flui no sétimo céu, meu querido amigo. Jovens formosas,

soa a música e se baila com entusiasmo”... E com que emoção

escreveu isso. Até guardei a carta comigo. Quer que a leia?

GOVERNADOR – Não. Agora não estou pensando em bailes.

Mas me faça um favor. Se, por casualidade, cair nas mãos

alguma queixazinha, ou delaçãozinha, rasgue sem a menor

consideração.

CHEFE DOS CORREIOS – Com muitíssimo gosto.

AMMOSS – Lembre-se de que algum dia isso lhe pode custar

caro...

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CHEFE DOS CORREIOS – É verdade! Você acredita que...

GOVERNADOR – Qual o quê! Isso não é nada, não é nada.

Não se vai rasgar a carta em público. Esta conversa vai ficar em

família...

AMMOSS – Ih!... Esse assunto não está me cheirando nada

bem. Eu vinha calmamente para cá, para lhe oferecer um

cachorrinho... irmão de sangue daquele Perdigueiro que o

senhor conhece. Como o senhor sabe, Tcheptovitch iniciou um

processo contra Verkhovinski, e agora estou na glória. Caço

coelhos nas terras de um e de outro.

GOVERNADOR – Deus do céu, os coelhos já não conseguem

me divertir! Esse maldito inspetor incógnito não sai dos meus

pensamentos. Estou sempre esperando que a porta se abra e...

Cena III

Entram ofegantes, Bobtchinski e Dobtchinski.

BOBTCHINSKI – Um acontecimento extraordinário!

DOBTCHINSKI – Uma novidade inesperada!

TODOS – Que foi? Que aconteceu?

DOBTCHINSKI – Um caso imprevisto. Estamos chegando do

hotel...

BOBTCHINSKI – Eu estou chegando do hotel com Piotr

Ivanovitch.

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DOBTCHINSKI – Por favor, Piotr Ivanovitch, permita que eu

conte tudo.

BOBTCHINSKI – Ah, não, Piotr Ivanovitch, deixe que eu conte

tudo...

DOBTCHINSKI – Não! O senhor vai se confundir e vai esquecer

alguma coisa importante.

BOBTCHINSKI – Não! Eu vou me lembrar de tudo. Eu juro. Vou

me lembrar de tudo. Não me atrapalhe, deixe-me contar, não me

atrapalhe. Senhores: digam a Piotr Ivanovitch que não

atrapalhe!

GOVERNADOR – Mas falem logo pelo amor de Deus, o que foi

que aconteceu? Sentem-se! Piotr Ivanovitch: sente-se. E o

senhor, Piotr Ivanovitch, sente-se também. (Sentam-se todos.)

Bem, o que foi que aconteceu?

BOBTCHINSKI – Por favor, por favor! Contarei tudo pela ordem.

Eu mal tinha acabado de ter o prazer de sair de sua casa,

depois que o senhor houve por bem perturbar-se por ter

recebido aquela carta, quando imediatamente... Por favor, não

me interrompa, Piotr Ivanovitch. Eu sei todos os detalhes, todos,

todos, todos. Portanto, tenha a gentileza de me permitir contar.

Fui correndo à casa de Korobkin e como não encontrei Korobkin

em casa, fui visitar Rastakovski, que também não estava. Então

fui procurar Ivan Kuzmitch para lhe contar as notícias que o

senhor tinha acabado de receber.

DOBTCHINSKI (Interrompendo) – Ali perto daquele quiosque

onde se vendem pastéis.

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BOBTCHINSKI – Perto do quiosque onde se vendem pastéis.

Certo. Encontrei-me com Piotr Ivanovitch e disse: “por acaso já

soube da notícia que o Senhor Governador recebeu através de

uma carta fidedigna?” Piotr Ivanovitch já tinha ouvido falar disso

pela sua criada que, não se sabe por que, havia sido mandada à

casa de Philippe Antonovitch Potchetchuiev...

DOBTCHINSKI (Interrompendo) – Era para buscar um

barrilzinho de vodka francesa.

BOBTCHINSKI – Buscar um barrilzinho de vodka francesa.

Então eu fui com Piotr Ivanovitch à casa de Potchetchuiev. Não,

não, por favor, Piotr Ivanovitch, não me interrompa! Fomos à

casa de Potchetchuiev, mas, no caminho, Piotr Ivanovitch me

disse: “vamos entrar no hotel, sinto um grande vazio no

estômago. Ainda não comi nada hoje”. – Sim, Piotr Ivanovitch

não tinha comido nada. – “Lá no hotel está servindo peixe

fresco” – disse ele. – “Vamos matar a fome”. Mal tínhamos

entrado no hotel quando, de repente, um homem jovem...

DOBTCHINSKI (Interrompendo) – Bem apessoado, com trajes

civis...

BOBTCHINSKI – Bem apessoado, com trajes civis, estava

passeando pela sala com um ar profundo... E uma fisionomia!

(Apontando a testa.) E aqui... muitas coisas. Parecia saber de

tudo. Tive logo um pressentimento e disse a Piotr Ivanovitch:

“aqui há dente de coelho”. Assim foi. Então Piotr Ivanovitch

chamou com o dedo o dono do hotel, o Vlass, os senhores

conhecem. A mulher dele deu à luz há três semanas a um

menino lindo, lindo, precioso. Quando crescer vai ser hoteleiro

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como o pai, nem há dúvida. Piotr Ivanovitch chamou Vlass com

o dedo e perguntou baixinho: “quem é aquele moço?” Vlass

respondeu: “aquele?...” Por favor, Piotr Ivanovitch, não

interrompa. O senhor não pode contar, está com uma falha de

dente e, quando fala, assobia, não vai contar direito. “Aquele é

um jovem funcionário” – disse Vlass. – “Sim! Um jovem

funcionário que vem de São Petersburgo... Sim! De São

Petersburgo e que se chama... Ivan Aleksandrovitch Khlestakov.

E viaja a caminho de Saratov... É. E age de forma muito

estranha. Há duas semanas que mora aqui e não sai do hotel,

compra tudo a crédito e não paga um centavo”. Assim que ouvi

isso, Deus me iluminou, e eu disse a Piotr Ivanovitch: “hmmm!”

DOBTCHINSKI – Não, Piotr Ivanovitch, quem disse “hmmm” fui

eu.

BOBTCHINSKI – Primeiro foi o senhor, mas eu imediatamente

respondi. “Hmmm, hmmm!”, dissemos Piotr Ivanovitch e eu...

“Por que terá ele ficado aqui quando seu destino é Saratov?” E

concluímos que só pode ser aquele funcionário...

GOVERNADOR – Que funcionário?

BOBTCHINSKI – O inspetor.

GOVERNADOR – Que é que o senhor está dizendo? Não, não,

não pode ser ele!

DOBTCHINSKI – É ele sim, é ele!... Não paga e não segue

viagem, só pode ser.

BOBTCHINSKI – É ele sim. Aposto que é. Ele vê tudo. É tão

observador que ficou olhando. Viu que Piotr Ivanovitch e eu

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estávamos comendo um salmão. Só porque Piotr Ivanovitch

tinha um vazio no estômago; e sabe o que foi que ele fez? Muito

bem. Olhou um dos pratos. Eu senti um calafrio no corpo inteiro.

GOVERNADOR – Meu Deus: tende piedade de nós, pecadores.

Em que quarto está hospedado?

DOBTCHINSKI – No número cinco, debaixo da escada.

BOBTCHINSKI – No mesmo quarto onde brigaram aqueles

oficiais no ano passado...

GOVERNADOR – Há quanto tempo ele está aqui?

DOBTCHINSKI – Há duas semanas. Chegou no dia de São

Basílio.

GOVERNADOR (Á parte) – Duas semanas. Santo Deus! Me

salva, eu te imploro! Nessas duas semanas espancamos a viúva

do subtenente, não demos comida aos presos e as ruas estão

piores do que um chiqueiro, uma imundície, uma sujeira. Que

vergonha! Que desastre!

ARTÊMY – Senhor Governador: não seria conveniente que nós

fôssemos ao hotel, em procissão?

AMMOSS – Não, não, seria melhor que o grupo fosse

encabeçado pelo clero e pelos comerciantes...

GOVERNADOR – Não, não, permitam-me. Eu já me vi em

apuros mais de uma vez e me saí bem de todos os transes.

Talvez Deus me ajude a escapar ainda esta vez desse atoleiro.

(Para Bobtchinski.) O senhor disse que o forasteiro é jovem?

BOBTCHINSKI – De vinte e três para vinte e quatro anos.

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GOVERNADOR – Melhor assim, será mais fácil iludi-lo. O

perigoso é tratar com uma raposa velha. Um jovem tem tudo à

flor da pele. Os senhores se preparem para enfrentar a situação

do seu lado. Eu irei sozinho com Piotr Ivanovitch, digamos,

como quem dá um passeio sem caráter oficial, para verificar se

atendem devidamente aos hóspedes do hotel. Svistunov!

SVISTUNOV – Que foi?

GOVERNADOR – Vá buscar depressa o chefe de polícia, ou

melhor: espere que eu preciso de você. Mande buscar o chefe

de polícia e volte logo. (O soldado sai rapidamente.).

ARTÊMY – Vamos, vamos, Ammoss Fiedorovitch. Ainda pode

acontecer uma desgraça.

AMMOSS – Do que é que o senhor tem medo? De sua parte é

suficiente colocar uma touca limpa na cabeça dos doentes e

está tudo arranjado.

ARTÊMY – Que touca, qual nada! O problema é que receitaram

para os doentes, sopa de aveia e nos corredores se sente um

cheiro de repolho que é de se tapar o nariz.

AMMOSS – Até certo ponto, estou tranqüilo. Afinal de contas

quem se atreveria a se meter com um Tribunal de província? E

quem metesse o nariz no expediente ia lamentar isso para o

resto da vida. Há quinze anos que sou juiz e, quando me ocorre

dar uma espiadela em alguns dos processos, prefiro desistir.

Nem o próprio Rei Salomão seria capaz de descobrir onde

começa a verdade e acaba a mentira.

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Cena IV

O Juiz, o Diretor do hospital, o Diretor da escola e o Chefe

dos Correios saem e chocam-se, na porta, com o soldado

que retorna.

GOVERNADOR – O carro está pronto?

SOLDADO – Está sim.

GOVERNADOR – Então vá pra rua... não, é melhor que você

fique aqui. Vá e me traga... mas onde é que estão os outros? E

Prokhorov, onde é que está? Já mandei que ele também viesse

aqui. Onde está?

SOLDADO – Está numa casa particular e não pode ser útil no

momento.

GOVERNADOR – Por quê?

SOLDADO – É que o trouxeram de madrugada, muito

embriagado, jogaram dois baldes d’água em cima dele, mas não

adiantou nada.

GOVERNADOR (Pondo as mãos na cabeça) - Ai, meu Deus,

meu Deus! Saia depressa... ou, não. Vá correndo até o meu

quarto, está ouvindo? E me traga depressa a minha espada e o

meu chapéu novo! Vamos, Piotr Ivanovitch, a caminho!

BOBTCHINSKI – E eu? E eu? Permita que eu vá também,

Governador!

GOVERNADOR – Não, não, Piotr Ivanovitch, é impossível!... Ele

ficará assustado se chegarmos lá em comitiva e, além disso, o

carro é muito estreito. Não cabem três pessoas...

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BOBTCHINSKI – Mas não se preocupe Excelência, não se

preocupe... Eu vou correndo atrás do carro, como um

cachorrinho. E depois eu me conformo em dar só uma espiadela

pelo buraco da fechadura, para ver como o forasteiro se

comporta.

GOVERNADOR (Recebendo a espada, ao Sargento) – Vá

correndo e reúna os guardas e que cada um deles... Oh, vejam

só como está a espada, vejam só! Esse maldito comerciante

Abdulin sabe muito bem que o Governador está usando uma

espada velha e torta e não é capaz de lhe mandar uma nova!

Gente sovina, esses comerciantes! E aposto que cada um deles

já está com sua denunciazinha debaixo do braço!... Que cada

guarda pegue uma vassoura e varra conscienciosamente a rua

que leva ao hotel, está ouvindo? E tome cuidado... Eu o

conheço bem... Você costuma andar com os bolsos cheios de

talheres de prata roubados. Não pense que me engana. A mim

ninguém engana. O que você fez com o comerciante

Tchernaiev, hein? Tchernaiev lhe deu alguns metros de pano

para que você fizesse um uniforme e você lhe roubou a peça

toda, desgraçado! Você se cuide! Não vai querer mais do que é

permitido à sua hierarquia. Vai!

Cena V

Entra o Chefe de polícia.

GOVERNADOR – Ah!... Graças a Deus, Stepan Ilitch, onde

andou metido?

CHEFE DE POLÍCIA – Pertinho daqui.

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GOVERNADOR – Ouça Stepan Ilitch: o inspetor de São

Petersburgo já chegou. Está na cidade. Que medidas foram

tomadas?

CHEFE DE POLÍCIA – As que o senhor indicou. Mandei o

Sargento Pugovitzin com um grupo de guardas varrerem as

ruas.

GOVERNADOR – E Dierjimorda onde está?

CHEFE DE POLÍCIA – Saiu para apagar um incêndio.

GOVERNADOR – E Prokhorov está bêbado?

CHEFE DE POLÍCIA – Bêbado.

GOVERNADOR – E quem permitiu isso?

CHEFE DE POLÍCIA – Sabe-se lá! Ontem houve uma briga fora

da cidade. Prokhorov foi para o local a fim de restabelecer a

ordem. Voltou bêbado.

GOVERNADOR – Pois então, veja o que tem a fazer: chame o

Sargento Pugovitzin e mande-o ficar bem no meio da ponte. Ele

é bastante alto e causará uma ótima impressão. Mande

imediatamente derrubar aquela cerca velha da casa do

sapateiro e ponham lá algumas vigas, pedras, para dar a

impressão que se está construindo. Quanto mais obras públicas

existam, mais se nota a atividade do Governador. Ai, meu Deus:

agora me lembro! Junto à cerca há um montão de lixo que daria

para encher quarenta carroças. Cidade desgraçada! É bastante

levantar um monumento ou uma simples cerca para que

imediatamente joguem um monte de lixo em volta! (Suspira) E

se o inspetor que acaba de chegar perguntar aos funcionários

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públicos se estão contentes, todos deverão responder:

“contentíssimos: Excelência”. E aquele que não estiver contente,

vai ter razões de sobra depois para não estar. Ai, pobre de mim,

pecador, pecador! (Em lugar de chapéu, pega uma caixa de

papelão.) Fazei com que tudo isso termine logo, Deus meu, e

vos oferecerei uma vela tão grande como ninguém jamais viu. E

obrigarei que cada um desses estúpidos comerciantes me

mande dez quilos de cera. Ah, meu Deus, meu Deus. A

caminho, Piotr Ivanovitch. (Em lugar do chapéu quer colocar

na cabeça a caixa de papelão.).

CHEFE DE POLÍCIA – Anton Antonovitch, isso é uma caixa,

não é um chapéu.

GOVERNADOR (Olhando a caixa) – Uma caixa? Diabo! Ah, e

se perguntarem por que não reconstruímos a capela do hospital

com a subscrição das caixas de caridade feita alguns anos

atrás, não se esqueçam de dizer que começamos a

reconstrução, mas que a capela pegou fogo. Sobre isso eu já

apresentei um relatório. Não se esqueça, porque, senão, pode

aparecer por aí algum imbecil que irrefletidamente afirme que as

obras nem mesmo começaram. E diga a Dierjimorda que

contenha um pouco os punhos: para pôr ordem ele costuma

esmurrar o olho de todo mundo, culpado ou inocente. Vamos,

vamos Piotr Ivanovitch. (Finge que sai, mas não sai.) Ah, e não

deixe que os soldados saiam de cuecas para a rua como eles

costumam fazer. Às vezes esses marotos põem a túnica em

cima do corpo e saem sem nada por baixo. (Todos saem.).

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Cena VI

Entram Anna Andreievna e Maria Antonovna.

ANNA – Onde é que eles estão, onde é que eles estão?

(Abrindo a porta.) Meu marido! Antoninho, Antoninho! Antocha!

(Falando com rapidez.) Você é que é culpada, a culpada de

tudo! “Um alfinete, um lencinho!” Não havia jeito de terminar de

se arrumar. (Vai até a janela e grita.) Anton, onde é que você

vai? Onde é que você vai? O quê? Já chegou? Que inspetor?

Tem bigodes? Que bigodes?

GOVERNADOR (Fora) – Agora não posso responder!... Mais

tarde, meu bem, mais tarde!

ANNA – Mais tarde?... Olha só como é que você está vestido!

Não quero saber dessa história de ficar esperando. Basta que

você responda isso: quem é o forasteiro? Coronel, hein? (Com

raiva.) Foi embora. Eu nunca hei de me esquecer dessa

cachorrada que ele me fez! E você é a culpada de tudo:

“mamãezinha! Espera mamãezinha, eu preciso arrumar o

cabelo!...” Tudo por causa da sua maldita coqueteria!... Bastou

ouvir dizer que tinha chegado o Chefe dos Correios para

começar a fazer dengues na frente do espelho. Você está crente

que ele corre atrás de você, mas ele lhe faz caretas quando

você vira as costas...

MARIA – Que se há de fazer, mamãezinha? De qualquer forma,

dentro de duas horas ficaremos sabendo de tudo.

ANNA – Daqui a duas horas. Muitíssimo obrigada. Só estranho

que não tenha passado pela sua cabeça dizer que daqui a um

mês saberemos de tudo muito melhor. (Curva-se na janela.) Ei,

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Avdótia! Você já sabe se chegou alguém? Não? Estúpida! O

Governador lhe acenou, e daí? Você podia ter perguntado, não

é, burra? Não ter a iniciativa de descobrir uma coisa tão simples.

É que você anda com a cabeça cheia de besteiras, só pensa em

namorados, noivos! Que é que você disse? Eles foram

depressa? Por que é que você não foi atrás, besta? Corra, corra

imediatamente! Pergunte que forasteiro é esse. Se é elegante,

entende? Olhe pelo buraco da fechadura e verifique tudo: que

olhos tem, se são pretos ou não, e volte correndo. Agora, vá

depressa, vá! Vá! Depressa, depressa, depressa... (Continua

gritando, enquanto cai o pano.).

ATO II

Cena I

Pequeno quarto no hotel. Uma cama, mesa, maleta, um par

de botas, escova, etc.

ÓSSIP (Estirado na cama do seu patrão) – Diabo! Que fome

que eu tenho! Meu estômago está todo alvoroçado. Parece que

há uma banda militar tocando trombone aqui dentro. Se

continuar desse jeito, nunca vamos voltar para casa. Que é que

vamos fazer? Há dois meses que saímos de São Petersburgo.

Pelo caminho o pobre diabo do meu patrãozinho perdeu todo o

dinheiro jogando baralho. E agora fica sentado por aqui,

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quietinho, com o rabo entre as pernas, com a maior cara-de-

pau. Bem que a gente já podia ter chegado em casa. Mas o

gabola tem de se exibir em tudo quanto é lugar! (Imita.) “Óssip:

procure o melhor quarto do hotel e para mim escolha a melhor

comida. Não suporto um mau almoço. Tenho uma absoluta

necessidade do que há de melhor”. Se fosse um alto

funcionário, vá lá! Mas não passa de um escriturariozinho à toa.

Mal conheceu outro viajante, mergulhou a cabeça em cima do

baralho e aqui estamos nós, a nenhum! Ah, já estou farto dessa

vida. No campo se vive bem melhor. Lá não há tanta sociedade,

mas pelo menos não se tem tanta preocupação. Basta arrumar

uma boa mulher, e deixar a vida correr, junto do quentinho do

forno, comendo pasteizinhos. Claro que a vida em

São Petersburgo pode ser melhor, quando há dinheiro. Aí,

então, sim. Pode-se levar uma grande vida, refinada... Existem

teatros, política, dança de cachorros, tudo o que a gente quer.

Lá se fala uma linguagem até mais florida que a dos nobres.

Quando se vai às compras, os comerciantes gritam saudações

logo que a gente aparece na porta: “excelentíssimo!” Quando a

gente tem de atravessar o rio, ao pegar a barca, a gente se

senta ao lado de um alto funcionário público. Quando se está

aborrecido, basta entrar num botequim, e ali, algum cavalheiro

nos conta feitos heróicos e nos explica o significado de cada

estrela do céu. De modo que as coisas ficam tão claras como se

estivessem na palma de nossa mão. E às vezes entra alguma

velha acompanhando uma menina donzela e aí então, ai, ai, ai...

(Ri, balançando a cabeça.) Lá as pessoas são tratadas como

se fossem aristocratas. Não se ouve nunca uma só palavra

descortês. A mim me chamam sempre de “excelência”. Se me

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aborreço quando estou andando a pé tomo uma carruagem, e

passeio como um grande senhor. E se não quero pagar o

cocheiro, não pago. Afinal todas as casas têm duas portas, uma

na frente e outra nos fundos. E se não estiverem satisfeitos

comigo que me aticem um cachorro em cima. Só há uma coisa

ruim: às vezes se come como um príncipe, outras vezes se

arrebenta de fome, como agora! E o patrãozinho é que tem a

culpa de tudo. Que é que se pode fazer com ele? O pai lhe

manda dinheiro, bastaria ter um pouco de cuidado, mas qual! Só

anda de carruagem, vai todo o dia ao teatro, e, antes do fim da

semana, manda-me empenhar a casaca nova. Às vezes

empenha até a última camisa e fica só com a roupa de baixo e o

capote. Puxa vida! E pensar que suas roupas são de um pano

tão bom! Tudo de casimira inglesa. Só a casaca vale mais de

cento e cinqüenta rublos. E lhe dão menos de vinte por ela, e

pelas calças é bom nem falar, lhe dão uma ninharia. E tudo isso

por quê? Porque não leva nada a sério. Em lugar de se dedicar

ao trabalho, gasta todo o tempo passeando pela Avenida Nevski

e jogando baralho. Ah, se o velho patrão soubesse disso!...

Mesmo sendo um funcionário público, meu anjinho, ele o faria

arriar as calças e lhe daria umas boas palmadas, dessas que

obrigam a ficar quatro dias de cama. Um funcionário é um

funcionário, que diabo! E agora o hoteleiro diz que não vai dar

mais nada pra gente comer enquanto não se pagar a conta! E

com que dinheiro vamos pagar? Ah, meu Deus! Se pelo menos

me dessem uma sopa de aveia. Eu estou com tanta fome que

tenho a impressão de poder engolir o mundo inteiro sem

mastigar. Estão batendo: deve ser ele!

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Cena II

Levanta-se precipitadamente da cama. Entra Khlestakov.

KHLESTAKOV – Segure! (Dá-lhe o chapéu e a bengala.) Você

tornou a se espojar na minha cama, não é?

ÓSSIP – E pra que eu iria me espojar? Pensa que eu nunca vi

uma cama na minha vida?

KHLESTAKOV – Você está mentindo. Você se deitou. Olha só:

ela está toda desarrumada.

ÓSSIP – Pra que eu preciso de sua cama? Pensa que eu não

sei o que é uma cama? Eu tenho pernas, posso ficar de pé! Pra

que eu iria querer sua cama?

KHLESTAKOV (Passeia pelo quarto) – Acabou o fumo?

ÓSSIP – E como não haveria de acabar? Faz mais de vinte e

quatro dias que o senhor fumou o pouco que ainda havia!

KHLESTAKOV (Passeia e morde caprichosamente os lábios.

Por fim, diz com voz sonora e tom decidido) – Escute! Ei,

Óssip!

ÓSSIP – Que foi?

KHLESTAKOV (Com voz muito menos sonora, e menos

decidido) – Vá lá!

ÓSSIP – Lá onde?

KHLESTAKOV (Com voz muito menos sonora, na qual não

se distingue a menor decisão e se percebe alguma coisa

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muito próxima a uma súplica) – Lá embaixo, na cozinha. Vá lá

e diga para eles o seguinte: diga que eu preciso almoçar.

ÓSSIP – Não, eu não quero ir.

KHLESTAKOV – Como é que você se atreve a me responder

assim, estúpido!

ÓSSIP – Eu me atrevo porque me atrevo. De qualquer forma,

mesmo que eu fosse não iria adiantar nada. O hoteleiro já disse

que não vai dar mais comida pra gente.

KHLESTAKOV – Mas por que não? Isso é um absurdo!

ÓSSIP – E ele disse mais ainda. Disse que vai fazer uma

denúncia ao Governador. Há mais de três semanas que

estamos aqui; e o senhor ainda não lhe pagou nada. “Você e o

seu amo”, disse ele, “são uns bons malandros. E esse seu amo

é um charlatão. Já vi muitos pícaros e sem-vergonhas dessa

laia” – disse ele.

KHLESTAKOV – E você se alegra em repetir isso que ele disse:

minha besta?

ÓSSIP – E ele disse mais ainda: “desse jeito, qualquer um pode

viver como príncipe e fichar cheio de dívidas. E nem ao menos

podemos mandá-lo embora antes que paguem. Mas comigo não

vai ser assim, não. Eu vou direto fazer a denúncia para que ele

vá logo para a cadeia!”

KHLESTAKOV – Chega, chega idiota! Cale a boca. Faça o que

eu mando! Que animal, que bruto!

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ÓSSIP – É melhor que eu chame o hoteleiro e ele mesmo venha

aqui falar com o senhor.

KHLESTAKOV – Pra quê? Vá lá você. Você pode falar com ele,

sozinho.

ÓSSIP – Mas eu acho que é melhor o senhor falar.

KHLESTAKOV – Vá, vá pro diabo que o carregue! Chame esse

hoteleiro. (Sai Óssip.).

Cena III

KHLESTAKOV (Sozinho) – Estou morto de fome! Dei um

passeio para ver se perdia o apetite, e nada – que diabo, não há

jeito! Se não fosse aquela maldita farra em Penza, o dinheiro

daria pelo menos para chegar até em casa. Aquele capitão de

infantaria me roubou sem piedade. Que maneira estranha que

ele tinha de produzir ases. Que bárbaro! Em quinze minutos me

deixou pelado no meio da rua. Mas mesmo assim eu estou

louco para tornar a jogar com ele. O que eu não tenho é sorte!

Cidadezinha chata!... Nem vender fiado eles querem. Que gente

canalha! (Assobia os primeiros compassos de Roberto e o

Diabo, uma canção na moda, e logo uma música qualquer.)

Pelo visto ninguém quer conversar comigo!

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Cena IV

Entram Óssip e o Criado do hotel.

CRIADO – O patrão mandou perguntar o que é que o senhor

deseja.

KHLESTAKOV – Oh, irmãozinho, como é que você vai?

CRIADO – Bem, graças a Deus!

KHLESTAKOV – E... como é que vai o hotel? Nada de novo?

Vai tudo em ordem? Tudo bem?

CRIADO – Sim, graças a Deus, tudo bem.

KHLESTAKOV – Muitos hóspedes?

CRIADO – Sim, bastante.

KHLESTAKOV – Que bom!... Ouve meu querido: até agora,

sabe, até agora não me trouxeram o almoço. Eu queria pedir a

você que me fizesse o favor de dizer para eles mandarem

depressa. Porque depois do almoço eu tenho muito que fazer,

você compreende?

CRIADO – O patrão disse que não vai dar mais nada para o

senhor comer. E hoje ele estava querendo ir se queixar ao

Governador.

KHLESTAKOV – Mas, queixar-se por quê? Você é inteligente,

meu querido; e você compreende que eu preciso comer. Se eu

não como, emagreço e até posso desmaiar. Eu tenho muita

vontade de comer. Estou falando sério.

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CRIADO – Eu sei, mas o patrão disse: “eu não lhe darei de

comer enquanto não me pagar o que me deve!” Foi isso o que

ele disse.

KHLESTAKOV – Mas você precisa fazer com que ele volte a si

e raciocine. Você tem de convencê-lo.

CRIADO – O que é que o senhor quer que eu diga?

KHLESTAKOV – Que você o faça entender, de uma vez por

todas, que eu preciso comer. Dinheiro? Dinheiro é apenas

dinheiro, isso já é outra coisa. O seu patrão pensa que, sendo

ele um camponês, que pode passar uma semana sem comer, os

outros podem fazer o mesmo? Não, as coisas não são assim.

CRIADO – Eu vou falar com ele. (Sai junto com Óssip.).

Cena V

KHLESTAKOV (Sozinho) – As coisas vão acabar pretejando,

se ele resolver não mandar mesmo. Nunca tive tanta fome.

Talvez fosse bom vender alguma roupa. As calças, por exemplo.

Não, não. É melhor passar fome, desde que eu chegue em casa

com meu terno de São Petersburgo. Pena que o Joaquim não

me alugou a carruagem. Seria fabuloso poder voltar para casa

de carruagem e visitar, como um magnata, algum rico

fazendeiro vizinho. Chegar diante de sua porta com os faróis

acesos, e Óssip sentado na boléia, de libré... vermelha. Ai, que

alvoroço! “Quem é?... Que se passa?” (Interpretando o lacaio.)

Então entraria o lacaio e diria: “Ivan Aleksandrovitch Khlestakov,

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de São Petersburgo, deseja ser recebido”. Esses pobres diabos

provincianos aí não sabem nem ao menos o que quer dizer

“deseja ser recebido”. Quando algum rico fazendeiro faz uma

visita, esses ursos vão se esconder no quarto. Mas, mesmo

assim, a melhor coisa do mundo é aproximar-se de uma das

lindas filhas que eles têm e dizer: “Senhorita, eu...” (Faz uma

reverência, com ar elegante.) Ah, Diabo!... (Cospe.) Tenho

tanta fome que sinto até náuseas! (Geme.).

Cena VI

Entram Óssip e o Criado.

KHLESTAKOV – E então?

ÓSSIP – O almoço vem aí!

KHLESTAKOV (Batendo palmas de alegria e levantando-se

da cama de um salto) – O almoço! O almoço! O almoço!

CRIADO (Trazendo pratos e um guardanapo) – O patrão

mandou avisar que esta é a última vez.

KHLESTAKOV – Seu patrão... seu patrão? Bem, que seu

patrão vá pro diabo que o carregue! O que é que você trouxe?

CRIADO – Sopa e carne cozida. A da sopa.

KHLESTAKOV – Ouvi bem, só dois pratos?

CRIADO – Só dois pratos.

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KHLESTAKOV – Que absurdo! Só isso eu me recuso a aceitar.

Vá dizer a seu patrão que isso me parece extremamente

ridículo. É muito pouco!

CRIADO – O meu patrão acha que é até demais.

KHLESTAKOV – E por que não veio sobremesa?

CRIADO – Não há sobremesa.

KHLESTAKOV – Mas como não há? Quando passei pela

cozinha vi que estavam preparando a sobremesa! E hoje de

manhã, no restaurante, eu vi dois indivíduos baixinhos comendo

salmão e outras comidas.

CRIADO – Bem, essas comidas existem e não existem.

KHLESTAKOV – Como não existem?

CRIADO – Pois não existem.

KHLESTAKOV – E o salmão, os peixes, as almôndegas?

CRIADO – Isso é para as pessoas decentes.

KHLESTAKOV – Imbecil.

CRIADO – Sim, senhor.

KHLESTAKOV – Porco.

CRIADO – Certo.

KHLESTAKOV – Como é que se explica que eles comam e eu

não. Por que é que eu não posso? Por acaso não são hóspedes

como eu?

CRIADO – Claro que não.

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KHLESTAKOV – Que é que são eles?

CRIADO – Gente que paga.

KHLESTAKOV – Não vou discutir com você. Imbecil, idiota.

(Serve-se de sopa e come.) Que sopa é essa? Foi feita com

água podre! Não tem gosto nenhum e cheira mal. Não quero

essa sopa. Dê-me outra.

CRIADO – O patrão disse: “se ele não quiser, traga de volta”.

KHLESTAKOV (Defendendo a comida com as mãos) – Bem,

já que está aí mesmo. Pode ir embora, seu tonto. Está

acostumado a tratar assim com os outros, mas eu sou diferente,

meu irmão. Eu não o aconselho a falar assim comigo, não.

(Come.) Deus do céu, que porcaria de sopa. (Continua

comendo.) Eu acho que nunca ninguém conseguiu comer uma

sopa igual a essa. Olhe aí, em lugar de gordura, as penas é que

sobrenadam. De que será que morreu essa galinha? Dê-me a

carne. Óssip: sobrou sopa, vá comendo. (Corta a carne.) Que

carne é essa? Isso não é carne.

CRIADO – E o que é então?

KHLESTAKOV – O que é eu não sei. Mas carne é que não é. É

um machado frito! Ladrões, canalhas! Isso lá é coisa que se dê

de comer a gente honesta? Não se pode nem morder que dói o

queixo. (Palita os dentes com o dedo.) Bandidos. Parece até

que comi madeira. Não sai dos dentes. Oh, depois de comer um

prato desses a gente fica com os dentes pretos. Miseráveis.

(Limpando a boca com o guardanapo.) Não há mais nada?

CRIADO – Não.

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KHLESTAKOV – Canalhas desalmados! Se pelo menos

tivessem posto algum molho, um pedacinho de pastel.

Vagabundos! A única coisa que sabem fazer é tirar a pele dos

hóspedes. (O Criado tira a mesa com dignidade e leva os

pratos, em companhia de Óssip.).

Cena VII

KHLESTAKOV – Eu tenho a impressão de que não comi nada.

Serviu só para me abrir o apetite. Se eu tivesse algum

dinheirinho mandava comprar um pãozinho no mercado...

ÓSSIP (Entrando) – Eu não sei pra que, mas o Governador

acaba de chegar. Mandou perguntar pelo senhor.

KHLESTAKOV (Espantado) – Só faltava essa!... Esse cadelão

do hoteleiro já foi me intrigar com o Governador! Será que eles

vão querer me prender? Bem, se eles me prenderem com

decência, eu talvez... Não, não, não quero... Eu estou dando em

cima de uma menina aí, filha de um negociante. Nessa cidade

moram muitos oficiais. Não, não quero. Mas o que é que ele

pensa que é? Como é que ele se atreve? Está pensando que

pode me tratar como se eu fosse um negociante ou um artesão

qualquer? (Enchendo-se de brios e levantando-se.) Eu vou

lhe dizer com toda a coragem, sem rodeios, bem na cara: como

é que o senhor se atreve? Como é que o senhor...

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Cena VIII

A porta se abre e Khlestakov empalidece e se encolhe.

Entra o Governador e se detém. Ao seu lado, Dobtchinski.

Os dois olham assustados, com as pupilas dilatadas pelo

terror.

GOVERNADOR (Refazendo-se do susto e perfilando-se) –

Minhas saudações e meus melhores augúrios!

KHLESTAKOV – Seu servidor!

GOVERNADOR – Desculpe...

KHLESTAKOV – Não há de quê.

GOVERNADOR – Meu dever como Governador dessa cidade é

zelar para que não sejam molestados os hóspedes deste hotel e

demais pessoas respeitáveis que por aqui dão a honra de

passar.

KHLESTAKOV (Começa gaguejando, mas por fim consegue

falar com voz sonora e rotunda) – O que é... o que é que o

senhor quer que eu faça? A... a culpa... a culpa não é minha. Eu

juro que vou pagar! (Bobtchinski mostra a cabeça na abertura

da porta.) A culpa, para ser sincero, é toda dele. Ele me dá uma

carne dura como pedra. E a sopa, ninguém nunca vai descobrir

o que ele põe dentro dela. Eu fui obrigado a jogar a sopa pela

janela. Ele me mata de fome durante dias seguidos. E o chá que

ele serve. Tem cheiro de peixe! Por que é que eu havia de...

Ora, essa é muito boa!

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GOVERNADOR (Intimidado) – O senhor me perdoe, mas na

verdade a culpa também não é minha. A carne no meu mercado

é sempre muito boa! Os comerciantes que vendem carne em

nossa cidade são gente que não bebe e de ótima conduta moral.

Francamente, eu não sei aonde o hoteleiro vai busca essa carne

podre que ele serve. E se na cidade há outra coisa de anormal,

não é do meu conhecimento. Eu só peço que o senhor me

permita convidá-lo a se mudar para outro domicílio.

KHLESTAKOV – Não, eu não quero. Eu sei muito bem o que

significa esse outro domicílio. O senhor está se referindo à

cadeia. Mas com que direito o senhor me propõe uma coisa

dessas? Como é que o senhor se atreve. Eu sou um alto

funcionário de São Petersburgo. (Animando-se.) Eu... eu... eu...

GOVERNADOR (Á parte) – Meu Deus, como está nervoso! Já

deve saber de tudo. Esses malditos comerciantes já lhe

contaram tudo.

KHLESTAKOV (Tornando-se valente) – Mesmo que o senhor

venha me buscar aqui com todos os seus guardas e soldados,

eu não irei! Vou me queixar ao Ministro! (Dá um soco na

mesa.) Como é que se atreve? Como é que o senhor se atreve?

GOVERNADOR (Perfilando-se e tremendo da cabeça aos

pés) – Tenha piedade, não me desgrace! Eu tenho mulher e

filhos pequenos! Não faça um homem ser infeliz para o resto da

vida!

KHLESTAKOV – Não, eu não quero. Onde é que já se viu? E a

mim, o que é que me interessa? Só porque o senhor tem mulher

e filhos, eu devo ir parar na cadeia? Muito bonito! (Bobtchinski

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mostra de novo a cabeça, com ar assustado, e torna a

desaparecer.) Não, muito obrigado, mas não quero!

GOVERNADOR (Tremendo) – Tudo isso aconteceu por

inexperiência! Eu juro: foi por simples inexperiência! O senhor

deve compreender. O salário que o Governo paga não dá nem

para o chá e o açúcar. Se houve suborno foi por uma ninharia.

Alguma coisa para a mesa, uma cortezinho de pano para se

fazer uma roupa. E quanto a esses boatos de que eu mandei

açoitar a viúva do subtenente, aquela que faz contrabando, isso

é uma calúnia! Juro por Deus! Uma calúnia. Pura invenção

desses desalmados que me perseguem. São tão perversos que

seriam capazes de me enterrar vivo!

KHLESTAKOV – E eu com isso? Eu não tenho nada a ver com

essa gente! (Meditativo.) Eu não estou entendendo por que o

senhor me fala nesses malvados e de não sei que tal viúva, de

não sei qual subtenente. Está bem, eu não tenho nada a ver

com isso. Mas a mim, não! Eu vou pagar. Vou pagar tudo o que

eu devo. Mas assim, de imediato, eu não tenho dinheiro. É

justamente por isso que estou aqui, nesse hotel. Porque não

tenho dinheiro!

GOVERNADOR (Á parte) – Vejam só como ele é esperto. A

gente fica até sem saber se é ele mesmo e como começar.

Raposão! Aconteça o que acontecer, vou tentar. (Em voz alta.)

Se o senhor realmente necessita de dinheiro ou qualquer outra

coisa, eu estou à sua inteira disposição. Meu dever é ajudar os

turistas que visitam esse povoado.

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KHLESTAKOV – Sim, necessito. Um empréstimo virá em boa

hora. Se o senhor me emprestar o dinheiro já, eu pago a conta

imediatamente. Não preciso de muito. Uns duzentos rublos, até

menos.

GOVERNADOR (Dando-lhe o dinheiro) – Duzentos certinhos:

não precisa nem contar.

KHLESTAKOV (Recebendo o dinheiro) – Agradecidíssimo.

Assim que voltar para casa, mandarei pagar. Foi um imprevisto.

Mas agora eu vejo que o senhor é um homem bem nascido, e

tudo muda de figura.

GOVERNADOR (Á parte) – Menos mal, menos mal. Aceitou o

dinheiro. Graças a Deus! A coisa agora vai melhorar. Em vez de

duzentos, dei-lhe quatrocentos rublos.

KHLESTAKOV (Chamando) – Óssip! (Entra Óssip.) Chame o

Criado. (Ao Governador e a Dobtchinski.) Por que estão de

pé? Por favor, sentem-se! Sentem-se, por favor!

GOVERNADOR – Estamos bem de pé, não se preocupe!

KHLESTAKOV – Eu peço que se sentem. (Ao Governador.)

Agora eu posso ver bem a sinceridade do seu caráter e a

bondade do seu coração. E eu que pensava que o senhor tinha

vindo aqui só para me levar para... (A Dobtchinski.) Senta-se.

(O Governador e Dobtchinski se sentam. Bobtchinski

aparece novamente, espiando.).

GOVERNADOR (À parte) – É preciso ser mais audacioso, ele

quer continuar incógnito. Eu também sei fingir. Vou fazer de

conta que não sei quem ele é. (Em voz alta.) Estávamos

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passando pela rua, cumprindo nosso dever, em companhia aqui

do presente Piotr Ivanovitch Dobtchinski, fazendeiro local,

quando entramos ex professo no hotel, para verificar se

tratavam bem os turistas. Porque eu não sou um desses

governadores que não se importam com nada. Muito além do

meu dever, por simples espírito cristão e de humanidade, quero

que todos os mortais sejam aqui bem recebidos. E eis que,

como recompensa divina, a fortuna me fez travar uma amizade

tão agradável!

KHLESTAKOV (Á parte) – Também eu estou muito contente.

Se não fosse o senhor eu ia acabar ficando nesta cidadezinha o

resto da vida. Francamente, eu não sabia o que fazer para

pagar minha conta.

GOVERNADOR (Á parte) – Sei, sei. Vem com essa, vem! (Em

voz alta.) Se não for demasiada indiscrição, poderia perguntar

para onde se dirige?

KHLESTAKOV – Vou à província de Saratov, onde minha

família tem uma fazenda.

GOVERNADOR (À parte, com ar irônico) – Província de

Saratov! E nem fica vermelho com a mentira! Com esse é

preciso tomar muito cuidado! (Em voz alta.) Que ótima idéia!

Suponho que o senhor viaje apenas para se distrair, não é

verdade?

KHLESTAKOV – Não. Meu pai mandou me chamar. O velho

está um tanto aborrecido porque até agora não progredi muito

na administração pública lá em São Petersburgo. Ele pensava

que assim que eu pusesse os pés na capital eles me

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pendurariam uma medalha no peito!... Minha vontade é que ele

fosse fazer uma peregrinação pelas repartições do governo para

ver o que é bom!

GOVERNADO (À parte) – Mas que histórias ele inventa. Até um

velho pai já entrou na dança. (Em voz alta.) E o senhor ficará

fora durante muito tempo?

KHLESTAKOV – Francamente, não sei. Meu pai é tolo e

teimoso. É um velho caduco. Assim que eu chegar em casa vou

dizer logo para ele: não posso viver longe de São Petersburgo!

E, para falar sério, como é que eu vou estragar minha vida

vivendo no meio desses camponeses? Agora, tenho outras

necessidades espirituais. Minha alma tem sede de saber!

GOVERNADOR (À parte) – Ele é formidável, vira, mexe, mas

não cai! Eu o obrigarei a soltar a língua! (Em voz alta.) A sua

observação é muito exata. Não é possível fazer nada nessas

solidões. Este povoado, por exemplo. Passo a noite trabalhando

para o bem da pátria. Sacrifico-me sem regatear esforços. Mas

o meu prêmio, quando virá? (Passa os olhos pelo quarto.)

Este quarto é um pouco úmido, não é?

KHLESTAKOV – Detestável! Se fosse só a umidade não era

nada, mas tem percevejos como nunca vi. Mordem como cães!

GOVERNADOR – É incrível! Um turista tão culto, ser obrigado a

sofrer tais desgraças. E por culpa de quem? Por culpa desses

miseráveis percevejos que nem deviam ter nascido. Eu tenho a

impressão que aqui nem ao menos há luz, não é verdade?

KHLESTAKOV – Escuríssimo, escuríssimo! O hoteleiro já se

habituou a não mandar velas. Às vezes eu tenho vontade de

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fazer alguma coisa, ler, por exemplo. Ou então, a fantasia quer

criar, mas a escuridão é tão grande!...

GOVERNADOR – Se eu tivesse a ousadia de lhe pedir... Mas

não, não sou digno de tanta honra!

KHLESTAKOV – Mas a quê o senhor se refere?

GOVERNADOR – Não, não. Eu não mereço, não sou digno...

KHLESTAKOV – Sei, mas fale assim mesmo!

GOVERNADOR – Se eu tivesse o atrevimento... Em minha casa

eu lhe poderia oferecer um formoso quarto, com muita luz,

tranqüilo. Mas não. Eu compreendo que seria uma honra

demasiada. Não se aborreça pelo amor de Deus. Se eu ousei é

porque sou todo coração!...

KHLESTAKOV – Mas, por que não? Eu terei imenso gosto.

Claro que eu me sentirei mais à vontade em qualquer casa

particular do que na porcaria desse hotel.

GOVERNADOR – Que alegria o senhor me dá! E nem quero

imaginar a satisfação da minha mulher! Esse é um velho

costume meu. Sou hospitaleiro desde criança. Sobretudo

quando o hóspede é uma pessoa culta. Não pense que falo para

lisonjeá-lo, não tenho esse vício. O que digo é de todo o

coração.

KHLESTAKOV – Muito obrigado. A mim também não agradam

os hipócritas. Gosto muito de sua franqueza e de sua bondade e

confesso que isso basta. A fidelidade e o respeito. O respeito e

a fidelidade.

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Cena IX

Entra o Criado, acompanhado por Óssip.

CRIADO – O senhor chamou?

KHLESTAKOV – Chamei. Traga a conta.

CRIADO – Já trouxe.

KHLESTAKOV – Não me lembro das suas contas estúpidas.

Fale. Quanto é que eu devo?

CRIADO – O senhor pediu almoço logo no dia de sua chegada.

No dia seguinte comeu salmão, e desde então nunca mais

pegou coisa alguma.

KHLESTAKOV – Imbecil! Agora é que lhe deu essa vontade de

ficar fazendo cálculos? Quanto é que eu devo no total?

GOVERNADOR – Não se preocupe: isso pode esperar. (Ao

Criado.) Vá embora que o dinheiro já vem.

KHLESTAKOV – Também pode ser assim. (Guarda o dinheiro.

O Criado sai. Bobtchinski aparece à porta.).

Cena X

O Governador, Khlestakov e Dobtchinski.

GOVERNADOR – O senhor não gostaria de visitar agora alguns

estabelecimentos da nossa cidade? O hospital, por exemplo?

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KHLESTAKOV – Mas, pra quê?

GOVERNADOR – Bom, para ver como administramos a coisa

pública. A ordem que reina aqui.

KHLESTAKOV – Bom, com muito gosto. Estou à sua

disposição. (Bobtchinski torna a mostrar a cabeça.).

GOVERNADOR – E depois, se desejar, podemos visitar a

escola, para ver como educamos a mocidade.

KHLESTAKOV – Como não, como não?

GOVERNADOR – Depois, visitaremos a prisão e o senhor verá

como vivem os presos.

KHLESTAKOV – A prisão? Não, pra quê? Prefiro o hospital...

GOVERNADOR – Como queira. Prefere viajar na sua

carruagem ou vir comigo no meu carro?

KHLESTAKOV – Prefiro viajar com o senhor.

GOVERNADOR (A Dobtchinski) – Bem, Piotr Ivanovitch, não

sobrou lugar para o senhor.

DOBTCHINSKI – Não tem importância, eu vou assim mesmo.

GOVERNADOR (Em voz baixa, a Dobtchinski) – Escuta, vá

correndo com a vida e a alma e leve essas duas cartas. Uma a

Zemlianika, no hospital e a outra à minha mulher. (A

Khlestakov.) Posso pedir sua permissão para, na sua presença,

escrever duas linhas à minha esposa, a fim de que tome todas

as providências para receber um tão respeitável hóspede?

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KHLESTAKOV – Não se preocupe! Mas, se o senhor quiser...

Aqui há tinta, mas papel é que não sei. Pode usar esta conta.

GOVERNADOR – É, vou escrever aqui mesmo. (Escreve e,

enquanto isso, diz para si mesmo.) Depois de um bom jantar

e de uma boa garrafa de vinho, tudo vai melhorar. Tenho em

casa um vinho madeira que parece fino, mas é muito

enganador. É capaz de derrubar até um elefante. É preciso que

eu descubra o que ele é e o que devo temer. (Terminando a

carta, entrega-a a Dobtchinski, que se dispõe a sair, mas,

nesse instante, a porta se desprende das dobradiças e

Bobtchinski, que esteve o tempo todo escutando do outro

lado, se esparrama sobre ela, no chão. Todos proferem

exclamações. Bobtchinski se levanta.).

KHLESTAKOV – O senhor não se machucou em nenhum

lugar?

BOBTCHINSKI – Não, não, em absoluto, só machuquei um

pouquinho o nariz. Vou procurar o Doutor Christian, mandarei

pôr um emplastro, não há de ser nada. Ele tem uns emplastros

maravilhosos que curam com incrível rapidez!

GOVERNADOR (Com um gesto de reprovação a

Bobtchinski, diz a Khlestakov) – Não é nada: podemos ir

andando. Eu direi ao seu criado que leve a sua mala. (A Óssip.)

Meu amigo: leve tudo à minha casa. À casa do Governador.

Todo mundo na cidade sabe onde é. (Fazendo um gesto para

que Khlestakov passe.) Por favor!... (Deixa que Khlestakov

passe e o segue de perto, mas volta-se e diz, em tom de

censura, a Bobtchinski.) Cretino! Não encontrou lugar melhor

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para cair? Isso lá é maneira de se esparramar no chão? (Saem

todos.).

ATO III

Cena I

O mesmo cenário do primeiro ato. Anna Andreievna e Maria

Antonovna estão junto à janela.

ANNA – Há mais de uma hora que estamos esperando. E

pensar que foi você que com essa sua maldita vaidade nos fez

ficar sem saber de nada. Que chateação! Não passa ninguém.

Parece que todo mundo morreu!

MARIA – Eu lhe asseguro mãezinha, que dentro de dois

minutos vamos ficar sabendo de tudo. Avdótia deve chegar a

qualquer momento. (Olha pela janela e grita.) Ai, mãezinha,

mãezinha! Vem vindo alguém na rua!

ANNA – Onde, onde está? Você sempre com suas fantasias.

Ah, não, não! Vem alguém sim. Quem será? Baixinho... de

fraque... quem será? Como me aborrece não saber! Quem

será?

MARIA – É Dobtchinski, mãezinha!

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ANNA – Imagina se é Dobtchinski! Você sempre enxerga aquilo

que não vê. Não é Dobtchinski nem ninguém parecido. (Acena

com o lenço.) Ei, ouça! Aqui! Depressa!

MARIA – É Dobtchinski sim, mãezinha!

ANNA – Ah, é Dobtchinski sim, agora vejo. Mas pra que tanta

discussão? (Grita pela janela.) Depressa, depressa! Ande mais

rápido! Bem... onde estão eles? Hein? Mas pra que subir, fale

daí mesmo, tanto faz. Hein? O forasteiro é muito bravo, é?

Hein? E meu marido?... Meu marido? (Afastando-se da janela,

aborrecida.) Que imbecil: não vai contar nada enquanto não

chegar aqui!

Cena II

Entra Dobtchinski.

ANNA – Vamos, agora conte, faça o favor! Que vergonha! E eu

que confiava no senhor como um homem decente! Mas, de

repente, todos desaparecem e o senhor com eles. E eu até

agora sem saber o que está acontecendo! Não tem vergonha?

Sou madrinha dos seus dois filhos e veja só como se comporta

comigo!

DOBTCHINSKI – Por Deus, comadre: corri tanto para

apresentar-lhe meus respeitos que estou sem fôlego!... Ufa!

Como está Maria Antonovna?

MARIA – Bom dia, Piotr Ivanovitch!

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ANNA – Bem... Que se passa? Conte! Que está acontecendo?

DOBTCHINSKI – Seu marido mandou-lhe um bilhetinho.

ANNA – Está bem. Mas que tal é ele, hein? É um general?

DOBTCHINSKI – Não, não é um general. Mas vale tanto quanto

um general, tal a sua educação e finura. E se comporta de

maneira tão importante!

ANNA – Ah! Quer dizer que deve ser o mesmo sobre o qual

escreveram a meu marido, não é?

DOBTCHINSKI – O mesmíssimo. Eu fui o primeiro a descobrir,

junto com o Piotr Ivanovitch.

ANNA – Vamos, conte-me tudinho!

DOBTCHINSKI – Graças a Deus, agora tudo vai bem. Mas, no

início, a verdade é que o visitante recebeu Anton Antonovitch

com certa severidade. Zangou-se, disse que no hotel tudo ia

mal, que não iria à casa de Anton Antonovitch, e que não queria

ira para a cadeia por causa dele. Mas, depois, descobrindo a

inocência de Anton Antonovitch e conversando bastante com

ele, mudou de idéia, e tudo ficou bem, graças a Deus! Agora

foram visitar o hospital... Houve um instante em que Anton

Antonovitch temeu haver ter sido denunciado; eu mesmo me

assustei um pouco.

ANNA – Mas por que haveria o senhor de se assustar? O

senhor não é funcionário público!...

DOBTCHINSKI – Ah, minha senhora!... Quando fala um homem

de tanta importância, a gente sente medo.

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ANNA – Bobagem!... Mas conte-me. Que aspecto tem? É moço

ou velho?

DOBTCHINSKI – Moço, moço. Deve ter uns vinte e três anos.

Mas fala como um velho: “eu”, disse ele, “gosto de ler e

escrever, mas neste quarto não há luz”.

ANNA – É loiro ou moreno?

DOBTCHINSKI – Nem uma coisa nem outra. Cabelos mais para

o castanho e um par de olhos agitados que até nos confundem.

ANNA – Bem, vamos ver o que escreve o meu marido. (Lendo.)

“Apresso-me a comunicar-te, querida, que minha situação era

deplorável, mas graças à providência divina, por dois pepinos no

vinagre e meia porção de caviar, um rublo e vinte e cinco

copeques...” (Interrompendo-se.) Não entendo nada... o que

tem a ver o pepino e o caviar com a providência divina?

DOBTCHINSKI – É que Anton Antonovitch escreveu o recado

nas costas de uma conta do hotel. (Ri, sem jeito.).

ANNA – Ah, claro... (Continua lendo.) “... mas graças à

providência divina, parece que tudo acabará bem. Prepara

imediatamente o quarto amarelo para o nosso ilustre hóspede.

Quanto ao almoço não te preocupes, pois comeremos algo no

hospital, com Artêmy Philippovitch, mas providencia para que

haja bastante vinho: diga a Abdúlin, que mande o melhor,

senão, acabarei com seu armazém. Beijo-te as mãos, querido,

do sempre teu, Anton Antonovitch Skovznik-Dmukhanovski...”

Ai, Deus meu! Preciso andar depressa!... Ei, onde estão todos?

Michka! Michka!

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DOBTCHINSKI (Corre até a porta e grita) – Michka! Michka!

(Entra o criado.).

ANNA – Corra Michka! Vá ao armazém do Abdúlin e... não,

espere. Mandarei um bilhete para ele... (Senta-se à mesa para

escrever enquanto continua falando.) Dê esse bilhete para

Sidor, o cocheiro, diga para ele que corra e leve esse bilhete ao

armazém de Abdúlin e que traga o vinho. E você arruma bem

depressa o quarto amarelo para o hóspede. Ponha lá cama,

bacia e tudo o mais...

DOBTCHINSKI – Bem, Anna Andreievna, eu vou correndo ao

hospital para ver como anda a inspeção!

ANNA – Isso, vá, vá!... Não o prendo! (Sai Dobtchinski.).

Cena III

Anna Andreievna e Maria Antonovna.

ANNA – Bem, Machenka, agora temos de nos fazer muito

elegantes. Esse homem vem da capital. Que Deus nos livre e

guarde dele caçoar de nós. Você devia botar aquele vestido

azul. Fica lindo em você!

MARIA – Ah, mãezinha! O azul, não! Eu não gosto! A filha de

Liapkin-Tiapkin tem um vestido azul, e a filha de Zemlianika

também. É melhor que eu vista o estampado!

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ANNA – O estampado! O que você gosta mesmo é de me

contrariar. O azul ficará muito bem em você porque eu quero

vestir o de cor de laranja que eu adoro!

MARIA – Ah, mãezinha! O de cor de laranja não te fica bem!

ANNA – Você disse que o de cor de laranja não me fica bem?

MARIA – Claro que não. Aposto o que quiser: para usá-lo é

preciso ter olhos bem pretos.

ANNA – Essa é boa! Que bobagem que você está dizendo! E

eu, por acaso não tenho os olhos pretos? Os mais pretos do

mundo!

MARIA – Digo-te que não são pretos, mãezinha!

ANNA – Bobagem, besteira, idiotice. Você não sabe o que está

dizendo! (Sai precipitadamente com Maria. Ouve-se ainda

sua voz.) Já se viu uma coisa dessas? Dizer que meus olhos

não são pretos! Essa é muito boa! (Quando elas se vão,

aparece Michka que vem trazendo, com a vassoura, o lixo

do quarto de hóspedes. Pela outra porta entra Óssip, com

uma mala na cabeça.).

Cena IV

Michka e Óssip.

ÓSSIP – E agora, pra onde é que eu vou?

MICHKA – Por aqui, irmão, por aqui!

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ÓSSIP – Espere um instante. Deixe-me respirar! Que vida!

Quando a gente está com a barriga vazia, qualquer carga

parece pesada!

MICHKA – Conte pra mim, irmão, o general vem logo?

ÓSSIP – Que general?

MICHKA – Seu patrão, ora essa!

ÓSSIP – Meu patrão, general?

MICHKA – Por que: não é general?

ÓSSIP – Quem?

MICHKA – Seu patrão!...

ÓSSIP – Ah! Sim, general de opereta ele é.

MICHKA – Mas isso é mais ou menos que um general de

verdade?

ÓSSIP – Mais.

MICHKA – Ah, bom. Então é por isso que todo mundo aqui está

tão alvoroçado!

ÓSSIP – Ouça aqui, meu jovem. Pelo que vejo; você é um rapaz

esperto. Prepare para mim alguma coisa de comer!

MICHKA – Pra você, irmão, nós não temos nada preparado,

porque é claro que você não vai querer comer o trivial. É melhor

esperar que seu patrão se sente à mesa. Assim você come o

mesmo que ele.

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ÓSSIP – E, por curiosidade, quais são os pratos triviais de que

vocês dispõem no momento?

MICHKA – Aveia, sopa e torta.

ÓSSIP – Então, enquanto eu espero o almoço do patrão, pode

me trazer aveia, sopa e torta. Não se preocupe: eu como de

tudo. Bem, vamos levar a maleta. Há outra saída por aqui?

MICHKA – Sim. Vamos... (Os dois saem, levando a maleta

para o quarto ao lado.).

Cena V

Dois soldados abrem a porta principal. Entram Khlestakov,

o Governador, o Diretor do hospital, o Supervisor das

escolas. Dobtchinski e Bobtchinski, esse, com emplastro no

nariz. O Governador mostra aos soldados um papel que

está no chão e ambos correm para apanhá-lo, empurrando-

se mutuamente.

KHLESTAKOV – Que lindo hospital!... Fico satisfeitíssimo que

os senhores tenham adquirido o hábito de mostrar aos turistas

tudo o que vale a pena ser visto na cidade. Nos outros lugares

onde estive nunca ninguém me mostrou nada.

GOVERNADOR – Nos outros lugares, se o senhor me permite,

os governadores e demais funcionários só pensam em ganhar

dinheiro às custas do erário público. Aqui é o contrário. Só

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pensamos em merecer a atenção de nossos superiores, pelo

nosso labor, trabalho e abnegação!

KHLESTAKOV – O almoço foi excelente. Comi até encher a

barriga. Aqui todos os dias se come assim?

GOVERNADOR – O almoço foi preparado ex professo para tão

grado visitante.

KHLESTAKOV – Quero confessar-lhes uma coisa. Eu gosto de

comer. Afinal é para isso que se vive: para colher todas as flores

no jardim do prazer. Como é que se chama mesmo aquele

peixe?

ARTÊMY (Aproxima-se correndo e fazendo uma reverência)

– Bacalhau.

KHLESTAKOV – Bacalhau! É muito saboroso! E onde foi que

nós almoçamos? No hospital, não foi?

ARTÊMY – Foi lá, sim.

KHLESTAKOV – Ah, agora me lembro, tinha uma porção de

camas. E os doentes, onde estavam? Tive a impressão que

havia uma carência de doentes. Que é que houve, eles se

curaram?

ARTÊMY – Ficaram uns dez no máximo. Os outros todos já se

restabeleceram. Aqui é assim. Desde que eu fui nomeado para

o cargo de diretor do hospital – e sei que isso pode parecer

incrível – todos os doentes se curam, num abrir e fechar de

olhos, como moscas. Mal o paciente tem tempo de entrar no

hospital, e já está curado. E isso não se deve tanto aos

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remédios, mas sim à honra e à austeridade com que eu dirijo

esse estabelecimento.

GOVERNADOR – Eu só lhe posso dizer que os deveres de um

governador dão uma enorme dor de cabeça. São tantos

assuntos para resolver!... Limpeza pública, conservação das

ruas, aumentos do funcionalismo. Numa palavra, o homem mais

inteligente se veria em palpos de aranha. Mas, graças a Deus,

tudo vai bem. Um outro governador, naturalmente só pensaria

no seu bem-estar. Mas eu não. Mesmo dormindo, meu

pensamento está com o povo. Sonho com o povo todas as

noites. E sempre me pergunto: “meu Deus, como poderei fazer

para que meus chefes e superiores vejam todo o meu zelo e

fiquem satisfeitos comigo?” Evidentemente, eu não sei se serei

premiado pela minha dedicação. Isso é uma coisa que depende

deles. Mas, pelo menos, viverei em paz com a minha

consciência; se na cidade reina a ordem e a tranqüilidade, se as

ruas estão bem varridas, se os presos estão devidamente

encarcerados e vivem contentes, se os bêbados são poucos,

que mais posso eu desejar? Não quero honrarias, embora

honrarias seduzam, porque diante da virtude elas não passam

de ouropéis e vaidades!

ARTÊMY (Á parte) – Deus o favoreceu com o dom da

eloqüência. Mas ele só a usa para falar bem de si mesmo.

KHLESTAKOV – Eu às vezes também gosto de ficar meditando

e chego a escrever em prosa, faço até mesmo versinhos.

BOBTCHINSKI (A Dobtchinski) – Exato, Piotr Ivanovitch, ele

faz algumas observações que... logo se vê, é um homem culto.

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KHLESTAKOV (Para o Governador) – Eu queria perguntar

uma coisa. Os senhores não têm por aqui algum passatempo?

Por exemplo, reuniões sociais onde possam jogar cartas?

GOVERNADOR (À parte) – Já sei onde é que você quer

chegar, querido. (Em voz alta.) Livre-nos Deus e guarde! Aqui,

nesta cidade, nunca sequer ouvimos falar em semelhantes

reuniões sociais. Eu, de minha parte, durante toda a minha vida,

jamais pus as mãos em uma carta. Não entendo nada disso e

nem sei como se joga. Nunca pude olhar um baralho com

indiferença. E, se por uma casualidade, eu chego a ver um rei-

de-copas, um ás-de-paus, um valete, ou outra carta qualquer,

sinto vômitos. Certa vez, para divertir as crianças, fiz um castelo

de cartas. Pois bem, durante toda a noite sonhei com essas

figuras malditas. Ao inferno com todos os baralhos! Como é

possível perder desse modo o nosso tempo tão precioso?

LUKA (Á parte) – E esse sem-vergonha ontem me ganhou cem

rublos.

GOVERNADOR – Prefiro dedicar todo meu tempo ao serviço da

pátria!

KHLESTAKOV – O senhor está exagerando. Tudo isso é

relativo. Se, por exemplo, estou jogando e me falta uma carta

para completar uma canastra, então naturalmente... para falar

francamente, até que um joguinho de vez em quando não vai

nada mal!

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Cena VI

Os mesmos, Anna Andreievna e Maria Antonovna.

GOVERNADOR – Bem... (Entram Anna Andreievna e Maria

Antonovna.) Tomo a liberdade de lhe apresentar minha família.

Minha esposa e minha filha...

KHLESTAKOV (Com uma reverência) – Quão feliz estou,

minha senhora, por ter o prazer de fitá-la!

ANNA – Somos nós, senhor, que temos o prazer e a honra de

receber em nossa casa personagem tão ilustre!

KHLESTAKOV (Jactando-se) – Absolutamente, minha

senhora, é exatamente o contrário. A honra é toda minha!

ANNA – Não, não, o senhor fala assim por delicadeza. Sente-

se, por favor.

KHLESTAKOV – Estar de pé ao seu lado já é uma felicidade.

Que direi então se sentar!... Sinto-me demasiadamente feliz em

estar finalmente sentado ao seu lado.

ANNA – Por favor. Não me atrevo a crer no que me diz! Imagino

que depois de viver na metrópole, esta viagem campestre deve

lhe ter sido muito desagradável!

KHLESTAKOV – Extraordinariamente desagradável. Quando

uma pessoa se habitua a viver na sociedade... comprenez

vous... isso de inesperadamente viajar numa carroça, morar

numas espeluncas imundas onde reinam as trevas da

ignorância, sofrer a brutalidade dos hoteleiros que não

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compreendem que um homem precisa comer, é abominável.

Mas eis que o caso me recompensou. Estou sentado ao seu

lado. (Khlestakov está olhando Anna de alto a baixo, numa

atitude donjuanesca.).

ANNA – Realmente, que maus momentos deve ter passado o

senhor!

KHLESTAKOV – De fato, mas sinto-me inteiramente

recompensado pelo magnífico momento que vivo agora, ao seu

lado!

ANNA – Não posso acreditar: o senhor está me acumulando de

honrarias, eu não mereço.

KHLESTAKOV – Por que não haveria de merecer? Claro que

merece minha senhora!...

ANNA – Eu, uma provinciana?...

KHLESTAKOV – Mas é na província que se encontram as

montanhas, os riachos, os arroios murmurantes. É claro que não

se pode comparar uma cidadezinha como essa a São

Petersburgo! Ah, São Petersburgo, que vida! Talvez a senhora

pense que eu seja um simples escriturário. Está enganada. O

chefe de seção é meu amigo íntimo. Às vezes me dá uma

palmada no ombro e fala assim: “venha almoçar comigo, meu

velho!” – Quase não apareço na repartição. Só vou lá para dar

ordens: “faça-se isso, faça-se aquilo”. E nem bem acabo de

falar, todos metem a cara nos papéis. Queriam até me nomear

Secretário do Ministro. Mas eu respondi: “para quê? Que é isso?

Deixa isso para lá, não vale a pena”. – O contínuo corre sempre

atrás de mim, com uma escova na mão, e diz: “excelência:

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quero ter a honra de engraxar suas botas!” (Ao Governador.)

Por que é que os senhores estão de pé? Tenham a bondade de

sentar-se!

GOVERNADOR – Diante de tanta hierarquia, é mais digno ficar

de pé!

ARTÊMY (Ao mesmo tempo) – É melhor ficar de pé.

LUKA (Ao mesmo tempo) – Não se preocupe.

KHLESTAKOV – Deixemos de lado a hierarquia. Eu peço que

se sentem. (O Governador e os demais se sentam.) Não

gosto de tanta cerimônia. Pelo contrário: prefiro até não ser

notado. Mas no meu caso, é impossível passar despercebido.

Em qualquer lugar que eu vá ouço sempre dizer: “olha quem

está aí! Ivan Aleksandrovitch!” Uma vez até me confundiram

com o marechal. E os soldados vieram correndo dos quartéis

para me apresentar armas. Mais tarde o comandante, que é

muito meu amigo, explicou tudo: “pois é, meu irmão, nós

confundimos você com o marechal!”

ANNA – Não me diga!

KHLESTAKOV – E tem mais. Eu também conheço muitas

atrizes lindas. Já escrevi até alguns vaudevilles. Vocês

compreendem, não é? Eu me encontro freqüentemente com os

literatos. Sou amigo pessoal de Puchkin. Às vezes eu digo a ele:

“como é, Puchkinzinho, meu irmão?” – E ele me responde:

“estamos aí, vamos levando”. É um indivíduo muito original.

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ANNA – Então, o senhor também escreve. Como deve ser

agradável! Certamente o senhor publica os seus artigos nas

revistas!

KHLESTAKOV – Freqüentemente. Já escrevi muita coisa boa:

Bodas de Fígaro, Fedra, Tartufo, já nem me lembro mais direito.

Foi tudo obra do acaso. Eu nem tinha vontade de escrever, mas

a direção artística do teatro me dizia: “por favor, irmãozinho,

escreva alguma coisa pra gente”. – Então eu pensava: “vamos

dar uma alegriazinha para eles”. E numa noite, escrevi tudo.

Eles, evidentemente, ficaram assombrados. Minha agilidade

mental é maravilhosa. Tudo que foi publicado com o

pseudônimo de Voltaire é (aponta para si próprio.) meu!...

Cândido, Heloísa. Numa noite escrevi isso tudo!

ANNA – Ah, então Voltaire é o senhor?

KHLESTAKOV – Claro! Além disso, eu corrijo os livros dos

outros todos. Diderot, por exemplo, me paga quarenta mil rublos

por volume.

ANNA – E por acaso Romeu e Julieta é também uma obra sua?

KHLESTAKOV – Essa então é a mais conhecida!

ANNA – Foi o que eu imaginei!

MARIA – Mas, mamãe, todo mundo diz que Romeu e Julieta foi

escrita por Shakespeare.

ANNA – Eu tinha certeza que você iria me contradizer!

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KHLESTAKOV – Bem, ambas têm razão. Há um segundo

Romeu e Julieta que foi de fato escrito por Shakespeare, mas eu

também escrevi o meu.

ANNA – Eu li o seu! Por sinal, muito bem escrito.

KHLESTAKOV – Eu confesso. Eu vivo da literatura. Minha casa

é a melhor de São Petersburgo. É muito conhecida. Lá só se

fala da casa de Ivan Aleksandrovitch. (Voltando-se para os

outros.) Façam-me o favor, senhores. Quando forem a São

Petersburgo, não deixem de me visitar. De vez em quando eu

dou um baile...

ANNA – Suponho que são bailes suntuosos e de muito bom

gosto!

KHLESTAKOV – Nem queira imaginar. Só para dar um

exemplo, os melões que eu sirvo custam setecentos rublos cada

um. A sopa vem diretamente de Paris. Levanta-se a tampa e sai

um olor nunca visto. Todos os dias eu vou a bailes. Formamos

um quinteto para jogar cartas. O Ministro das Relações

Exteriores, o Embaixador francês, o Embaixador inglês, o

Embaixador alemão e eu. Às vezes a gente até se cansa de

tanto jogar. Quando volto para casa, subo os quatro andares e

mal tenho forças para dizer para a cozinheira: “segura meu

capote, Mavra”. Mas não! Que besteiras eu estou dizendo! Eu

moro no primeiro andar. Tenho uma escada tão suntuosa que só

isso me custou... É muito curioso observar a minha ante-sala um

pouco antes de eu me levantar. Condes, duques, barões se

empurram e zumbem como um enxame de abelhas... De vez em

quando aparece um Ministro. (O Governador e os outros

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intimidados se levantam.) Quando me mandam uma

encomenda, no sobrescrito eles escrevem: “para Sua

Excelência”. Uma vez fui até chefe de repartição e logo o diretor-

geral foi embora... e não se sabe para onde. Naturalmente,

começou-se a falar num possível substituto. Muitos generais

tentaram ocupar esse cargo. Mas tiveram de desistir. Era difícil

demais. A tarefa parecia simples, mas na verdade era uma

parada bem difícil. Finalmente, vendo que não havia nada mais

a fazer, recorreram a mim. Começaram mandando uma legião

de emissários, um atrás do outro, um atrás do outro: “Ivan

Aleksandrovitch, venha dirigir a nossa repartição”. Eu confesso

que fiquei um pouco desorientado. Recebi-os em robe de

chambre, e ia recusar quando pensei: “o Czar poderá ficar

sabendo da minha recusa”. Isso seria a única nota destoante da

minha folha de serviços. “Bem, senhores, aceito o cargo”, disse

eu, “assim seja. Mas comigo... muito cuidado... muito cuidado…

porque eu...” E foi dito e feito, quando entrei na repartição,

parecia um terremoto. Todos tremiam como folhas ao vento. (O

Governador e os outros tremem de terror: Khlestakov está

cada vez mais ameaçador.) Comigo nada de brincadeira! Fiz

todo mundo entrar na linha. De mim todos têm medo. Até o

próprio Conselho Imperial. É claro! E por que não? Eu sou

assim! Não poupo ninguém. Eu digo a todo mundo: “eu sei

quem eu sou”. Vou a todos os lugares. Visito o palácio pelo

menos uma vez por dia. E logo, vou ser nomeado para o

ministé... (Escorrega e pouco lhe falta para cair de bruços no

chão. Mas os funcionários o seguram respeitosamente. O

Governador aproxima-se dele, tremendo dos pés à cabeça,

e faz um grande esforço para falar.).

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GOVERNADOR – Exce... Exce... Exce...

KHLESTAKOV (Rapidamente, com voz cortante) – O que foi?

GOVERNADOR – Exce... Exce... Exce...

KHLESTAKOV (Com a mesma voz, ameaçador) – Mas que

há? Estão ficando loucos? Não estou entendendo mais nada!

GOVERNADOR – Exce... Excelência! Vossa Excelência não

gostaria de descansar um pouco? O quarto já está arrumado.

KHLESTAKOV – Descansar? Mas que estupidez! Bem, assim

seja. Aceito descansar. O almoço, meus senhores, estava muito

gostoso. Estou contente, contente... (Com ênfase.) Bacalhau!...

Bacalhau!... (Sai por uma porta lateral, seguido pelo

Governador.).

Cena VII

Os mesmos, menos Khlestakov e o Governador.

BOBTCHINSKI (A Dobtchinski) – Esse sim é um homem, Piotr

Ivanovitch. Aí está o que significa ser um homem. Eu nunca

estive na presença de uma personalidade tão importante. Em

sua opinião, qual será a patente dele?

DOBTCHINSKI – Não lhe deve faltar muito para ser um general!

BOBTCHINSKI – Pois em minha opinião, um general não lhe

chega nem aos pés. Mas se é um general, será pelo menos um

generalíssimo. E as coisas que ele contou do Conselho Imperial!

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Venha, vamos depressa contar tudo a Ammoss Fiedorovitch e a

Korobkin. Até logo, Anna Andreievna.

DOBTCHINSKI – Até logo, comadre! (Saem ambos.).

ARTÊMY (A Luka) – A verdade é que todos nós estamos com

medo e nem sabemos de quê. E nem ao menos nos vestimos a

rigor. O que será que vai acontecer amanhã, quando ele

acordar? Se lhe der na cabeça mandar uma denúncia para São

Petersburgo? (Saem com ar pensativo, os dois – Artêmy e

Luka – dizendo.) Adeus minha senhora!

Cena VIII

Anna Andreievna e Maria Antonovna.

ANNA – Que homem agradável!

MARIA – É um encanto!

ANNA – Que maneiras tão finas! Logo se vê que é alguém da

capital! Adoro jovens assim! Adoro com verdadeira loucura! Eu

acho que ele gostou muito de mim. Isso eu pude observar. Não

parava de olhar para mim.

MARIA – Ah, mãezinha, era para mim que ele estava olhando!

ANNA – Por favor, querida, não diga absurdos. Isso é

completamente fora de propósito.

MARIA – Eu juro que era pra mim, mãezinha.

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ANNA – Você não se corrige mesmo! Claro que você tem

sempre que discutir comigo! Para que ele iria olhar para você?

MARIA – É verdade, mãezinha, garanto que ele olhou. Quando

começou a falar de literatura, olhou para mim e depois, quando

estava contanto como jogava cartas com os embaixadores,

tornou a olhar.

ANNA – Bem, é possível que uma vez ou outra ele tenha olhado

para você só por desfastio! Com certeza ele pensou assim:

“bem, deixe-me olhar um pouco para ela também, coitada!”

CENA IX

Entra o Governador, na ponta dos pés.

GOVERNADOR – Psiu... Psiu...

ANNA – O que é?

GOVERNADOR – Eu não devia ter deixado que ele bebesse

tanto. Se metade do que ele disse é verdade, estou perdido. E

por que não haveria de ser verdade? Quando um homem bebe,

diz sempre a verdade. Claro que deve ter mentido um pouco.

Mas, sem mentira não pode haver uma boa conversa. Joga

cartas com ministros e entra no Palácio quando quer. Quanto

mais penso nisso, maior o caos na minha cabeça!

ANNA – Pois ele não me intimidou nem um pouco. Nele eu vi

simplesmente um homem do mundo, culto. As patentes não me

interessam.

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GOVERNADOR – Ah, vocês mulheres! São mulheres e isso

basta! Pra vocês nada tem importância! Você falou com ele

como se fosse um Dobtchinski qualquer.

ANNA – Se quer um conselho, não se preocupe. Nós duas

sabemos certas coisas... (Olha fixamente a filha.).

GOVERNADOR – Para que eu vou perder tempo falando com

vocês? Que barbaridade! Meu susto foi tão grande que ainda

não passou. (Abre a porta e fala para fora.) Michka: chama os

soldados Svistunov e Dierjimorda. Eles devem estar pertos.

(Pausa breve.) Estranho mundo este! Se, pelo menos, ele fosse

um homem que se impusesse pelo aspecto respeitável,

imponente, mas é magrinho, pequeninho, pálido. Como seria

possível adivinhar quem ele é? Se ao menos fosse militar seria

mais fácil reconhecê-lo pelo uniforme; mas ele vem vestindo

fraque. Parece uma mosca de asa torta. E no hotel, falando

daquele jeito, cheio de rodeios. Cheguei a pensar que a gente

nunca iria se entender. Mas finalmente se entregou de armas e

bagagens. Falou até mais do que devia. Bem se vê que é um

jovem!

Cena X

Entra Óssip e todos correm ao seu encontro, chamando-o

com o dedo.

ANNA – Venha cá, meu queridinho!

GOVERNADOR – Psiu!... Ele está dormindo.

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ÓSSIP – Não! Ainda está se espreguiçando.

ANNA – Ouça. Como é seu nome?

ÓSSIP – Óssip, minha senhora!

GOVERNADOR (À mulher e à filha) – Calem-se! Basta! (A

Óssip.) Então, meu amiguinho, comeu bem?

ÓSSIP – Muito bem, obrigado.

ANNA – É verdade que seu patrão recebe muitos condes e

duques?

ÓSSIP (À parte) – Que é que eu devo responder? Se a comida

agora foi boa, depois vai ser melhor ainda!... (Em voz alta.) Sim,

costuma receber muitos condes.

MARIA – Óssip, meu tesouro, como é elegante o seu patrão!

ANNA – Diga-me, Óssip, como é que ele...

GOVERNADOR – Chega! Chega! Com essa tagarelice toda,

vocês o põem tonto. Que é que você acha meu amigo?

ANNA – Qual é a patente do seu patrão?

ÓSSIP – A patente? Nem queira saber!

GOVERNADOR – Ah, meu Deus! Quando é que vocês vão

parar com essas estúpidas perguntas? Não me deixam falar

nem um momento de coisas concretas. Vamos, meu amigo,

diga-me como é o seu patrão. Severo? Gosta de passar

sermões?

ÓSSIP – Ele gosta de ordem. Quer que tudo esteja sempre em

ordem.

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GOVERNADOR – Simpatizo muito com você, meu amigo. Você

deve ser um bom rapaz. Olhe...

ANNA – Óssip, o seu patrão usa uniforme?

GOVERNADOR – Basta, basta! Gralhas! Precisamos falar de

coisas positivas. Está em jogo a vida de um homem! (A Óssip.)

Como estava dizendo, meu amigo, simpatizo muito com você.

Antes de dormir é bom que você tome outra xícara de chá. O

daqui de casa já está frio. Por isso pegue esse dinheiro e beba

lá fora.

ÓSSIP (Pegando o dinheiro) – Agradecidíssimo, meu senhor.

Que Deus lhe dê saúde e a toda a sua gente! O senhor acaba

de ajudar a um pobre homem!

GOVERNADOR – Não foi nada! Não foi nada! Fico até muito

satisfeito. Conte-me uma coisa...

ANNA – Óssip, meu queridinho, me conte, seu patrão prefere

olhos de que cor?

MARIA – Óssip, meu tesouro, você já reparou como o seu

patrão tem o nariz pequenininho?

GOVERNADOR – Mas, pelo amor de Deus, me deixem falar

com ele. Por favor, meu amigo, me responda uma coisa. O que

mais agrada seu patrão, quando viaja? O que mais chama sua

atenção?

ÓSSIP – Depende. Acima de tudo, ele gosta de comer bem.

GOVERNADOR – Bem?

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ÓSSIP – Exatamente, muito bem. E comigo, que não passo de

um simples servo, ele também se preocupa e quer que eu seja

atendido devidamente. Às vezes visitamos alguém e logo ele me

pergunta: “Óssip, deram-lhe boa comida?” E eu respondo: “má

Excelência”. Aí, ele diz: “ah, essa gente não presta. Lembre-me

disso quando chegarmos à capital!” E aí eu penso comigo

mesmo... (Fazendo um gesto.) “Bah! Que Deus os perdoe. Eu

sou um homem simples...”

GOVERNADOR – Assim é que se fala. Aquele dinheiro foi para

o chá. Agora, tome mais algum para os pasteizinhos!

ÓSSIP (Pegando o dinheiro) – Por que se preocupa tanto,

Excelência? (Guarda o dinheiro.) Vou beber à sua saúde!

ANNA – Óssip: venha cá. Eu também quero dar!

MARIA – Óssip, meu tesourinho, leve um beijo para seu patrão.

(Ouve-se barulho no quarto de Khlestakov.).

GOVERNADOR – Psiu! (Fica na ponta dos pés e diz em voz

baixa.) Pelo amor de Deus, não façam o menor barulho! Vão as

duas embora! Já chega!

ANNA – Vamos, minha filha. (Ao Governador.) Já lhe disse que

observamos certas coisas em nosso hóspede que só podem ser

comentadas entre mulheres...

GOVERNADOR – Então vão comentar na outra sala. Para se

entender as mulheres a única coisa sensata é tapar os ouvidos.

(A Óssip.) Bem, meu amigo...

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Cena XI

Entram Dierjimorda e Svistunov.

GOVERNADOR – Psiu!... Parecem cavalos dando coices no

chão. Entram como animais! Onde é que vocês estavam?

DIERJIMORDA – Cumprindo ordens!

GOVERNADOR – Psiu! (Tapa a boca do soldado.) Precisa

mugir desse jeito? (Imitando.) Cumprindo ordens!... Parece

estar gritando num barril. (A Óssip.) Bom, meu amigo, cuide de

seu patrão. Pode pedir tudo o que for necessário. (Óssip sai.) E

vocês fiquem de guarda na varanda e não se mexam dali. Não

deixem entrar nenhum estranho, principalmente se for

comerciante. Se entrar um que seja, eu... Se alguém se

aproximar com uma queixa, mesmo que não seja escrita, mas

que venha com cara de quem vai se queixar de mim: segurem-

no pelo pescoço e podem baixar o pau. (Gesto de cacetada.)

Eu sei que vocês me entendem. Psiu!... Psiu!... (Sai na ponta

dos pés e, atrás dele, os soldados.).

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ATO IV

Cena I

A mesma sala, na casa do Governador. Entram

cautelosamente, quase na ponta dos pés, Ammoss

Fiedorovitch, Artêmy Philippovitch, o Chefe dos Correios,

Luka Lukitch, Bobtchinski e Dobtchinski. Os últimos

trajando a rigor e os outros em uniforme de gala. Toda a

cena se desenrola à meia voz.

AMMOSS (Reúne os outros em semicírculo) – Pelo amor de

Deus, senhores: formemos um círculo fechado, dentro da mais

perfeita ordem! Deus seja louvado! Esse homem vai a palácio

todos os dias e discute muito à vontade com o Conselho

Imperial. Teremos de comportar-nos diante dele com todo

aprumo, assim como militares. O senhor Piotr Ivanovitch

coloque-se deste lado e o senhor Piotr Ivanovitch do outro.

(Ambos os Piotr Ivanovitch correm, na ponta dos pés.).

ARTÊMY – O senhor pode dizer o que quiser - Ammoss

Fiedorovitch, mas é preciso fazer alguma coisa.

AMMOSS – O que, por exemplo?

ARTÊMY – O senhor sabe o que eu estou querendo dizer.

AMMOSS – Acha que devemos tentar... amaciá-lo?

ARTÊMY – Amaciar é uma boa palavra.

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AMMOSS – É muito perigoso. Ele pode se ofender. Não se

esqueça que ele é um alto funcionário. Não seria melhor

oferecer dinheiro a ele como se fosse alguma subscrição da

nobreza para que ele construa um monumento...

CHEFE DOS CORREIOS – Ou então a gente podia dizer assim:

“veja só o dinheiro que chegou pelo Correio com destino

desconhecido!”

ARTÊMY – Tome cuidado para que ele não mande o senhor

para destino desconhecido. Escutem: o suborno, num país

civilizado, obedece a certas regras. Não é feito assim, de

qualquer maneira. Por que deveríamos ir todos juntos, como um

batalhão, para suborná-lo? Temos de ir um a um. E quando só

estiverem quatro olhos presentes, põe-se-lhe na mão alguma

coisa. Bem, os senhores me entendem. E a coisa deve ser feita

tão sutilmente que nem os quatro olhos percebam o que as

mãos estão fazendo. É assim que se faz numa sociedade bem

organizada! O senhor será o primeiro, Ammoss Fiedorovitch.

AMMOSS – Não. É melhor o senhor. Afinal de contas, foi no seu

hospital que o ilustre hóspede almoçou.

ARTÊMY – Seria melhor ainda que fosse o senhor Luka, que

poderia utilizar sua grande experiência como orientador

espiritual da juventude.

LUKA – Eu não posso meus senhores. Não posso! Confesso

que recebi uma educação tão esmerada e é suficiente que me

encontre na presença de um superior para que me acovarde e

perca inteiramente a fala. Não senhores, por favor, me

desculpem; me desculpem.

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ARTÊMY – Então, Ammoss Fiedorovitch, o senhor é

insubstituível. Sua eloqüência é comparável à do próprio Cícero.

AMMOSS – Nada disso! Cícero também é exagero. Se uma vez

ou outra me entusiasmo falando de assuntos domésticos ou de

um cão perdigueiro...

TODOS (Atacando) – Não apoiado! O senhor sabe falar não só

de cachorros, mas também da criação do mundo. Vamos,

Ammoss Fiedorovitch, não nos abandone. Seja nosso pai!

Vamos, Ammoss Fiedorovitch!

AMMOSS – Deixem-me em paz, meus senhores!... (Ouvem-se

passos e tosse no quarto de Khlestakov. Todos se

precipitam para a porta atropelando-se e empurrando-se.

Várias exclamações à meia voz.).

VOZ DE BOBTCHINSKI – Ai, Piotr Ivanovitch! O senhor pisou

no meu pé!

VOZ DE ARTÊMY – Largue-me, largue-me! Assim não posso

respirar! (Ouvem-se vários ais. Todos saem, empurrando-se

mutuamente, e a sala fica vazia.).

Cena II

Entra Khlestakov, sonolento.

KHLESTAKOV – Pelo visto, dormi como Deus manda. Onde

será que essa gente foi buscar tantos travesseiros e colchas?

Estou até suando! Tenho a impressão de que ontem me deram

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uma bebida tão forte que até agora me dói a cabeça. Pelo que

estou vendo, aqui se pode passar o tempo agradavelmente.

Gosto da boa vontade dessa gente. E a filha do Governador não

é de se jogar fora. E até mesmo a velha está tão bem

conservada que eu bem podia... Francamente, essa vida me

agrada.

Cena III

Khlestakov e o Juiz.

AMMOSS (À parte) – Deus meu, livrai-me desse transe! Meus

joelhos estão tremendo. (Em voz alta, perfilando-se e

segurando o punho da espada.) Tenho a honra de me

apresentar: Juiz do Tribunal, conselheiro Liapkin-Tiapkin.

KHLESTAKOV – Tenha a bondade, senhor Liapkin-Tiapkin.

Sente-se. De modo que o senhor é o Juiz dessa cidade?

AMMOSS – Em 1816, fui eleito para um período de três anos

em obediência à vontade da nobreza e, desde então, continuo

neste cargo.

KHLESTAKOV – O que é que o senhor lucra sendo Juiz?

AMMOSS – No primeiro ano de serviço, recebi a ordem de São

Vladimir, de quarta categoria, com menção honrosa. (À parte.)

Estou com o dinheiro na mão e ela me arde como se estivesse

pegando fogo.

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KHLESTAKOV – Gosto muito da ordem de São Vladimir. Já da

ordem de Sant’ana, que é da terceira classe, eu não gosto tanto.

AMMOSS (Avançando um pouco, de mão fechada, à parte) –

Meu Deus: tenho a impressão de que estou sentado em brasas!

KHLESTAKOV – O que é que o senhor tem na mão?

AMMOSS (Assustadíssimo, deixa cair o dinheiro) – Nada,

nada.

KHLESTAKOV – Como nada? Olha o dinheiro aí no chão.

AMMOSS (Tremendo da cabeça aos pés) – Não é verdade,

não é verdade! De forma alguma! (À parte.) Ai, Deus meu! Já

estou me vendo preso, diante dos tribunais!

KHLESTAKOV (Pegando o dinheiro) – É dinheiro, sim!

AMMOSS (À parte) – Tudo se acabou. Sou um homem perdido.

Destruído!

KHLESTAKOV – Sabe de uma coisa: empreste-me esse

dinheiro!

AMMOSS (Vivamente) – Como não, como não! Com

muitíssimo gosto, muito obrigado! (À parte.) Coragem, coragem!

Livrai-me desse transe, Virgem Maria!

KHLESTAKOV – O senhor compreende. Durante a viagem

gastei mais do que eu pensava. A vida está cada vez mais cara.

Assim que voltar para casa, mandarei seu dinheiro de volta...

AMMOSS – Por favor: não se preocupe! Para mim é uma

grande honra!... Naturalmente eu... com minhas poucas forças...

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meu zelo e abdicação... trato de bem servir, lealmente, aos

meus superiores. (Levanta-se e perfila-se.) Não me atrevo a

importuná-lo por mais tempo. Alguma ordem, Excelência?

KHLESTAKOV – Que ordem?

AMMOSS – Quero dizer... não deseja ordenar nada ao Juiz

local?

KHLESTAKOV – Pra quê? Atualmente não tenho problemas

com a justiça. Mas, em todo caso, muito agradecido!

AMMOSS (Faz uma reverência e retira-se; à parte) – Estamos

salvos, salvos!

KHLESTAKOV (Sozinho) – O Juiz é um homem bom!

Cena IV

Entra o Chefe dos Correios; perfila-se, segurando a espada.

CHEFE DOS CORREIOS – Tenho a honra de apresentar-me:

Chefe dos Correios, Conselheiro Chpekin, de quinta categoria!

KHLESTAKOV – Encantado em conhecê-lo. Gosto muito das

pessoas agradáveis. Sente-se! O senhor vive sempre por aqui,

não é verdade?

CHEFE DOS CORREIOS – Sim, senhor.

KHLESTAKOV – Gosto desta localidade. É verdade que a

população não é das mais numerosas, mas... e daí? Afinal de

contas, isto não é a capital. Não é verdade?

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CHEFE DOS CORREIOS – A pura verdade, meu senhor.

KHLESTAKOV – É só na capital que reina o bom-tom. E não

existem esses provincianos de mau gosto. Não lhe parece?

CHEFE DOS CORREIOS – Assim é. (À parte.) Apesar de tudo

não é um homem orgulhoso, quer saber tudo.

KHLESTAKOV – Mas, até mesmo num povoadozinho, pode-se

viver feliz.

CHEFE DOS CORREIOS – Assim é, meu senhor.

KHLESTAKOV – O que é necessário para a felicidade? Em

minha opinião, é suficiente que o homem seja respeitado, e

sinceramente querido!

CHEFE DOS CORREIOS – É a pura verdade!

KHLESTAKOV – Muito me alegra que sua opinião coincida

sempre com a minha. Naturalmente dirão que sou um tipo

original. Mas o meu caráter é assim. (Olha-o nos olhos e diz

para si mesmo.) Vou pedir dinheiro emprestado a esse

também. (Em voz alta.) Sabe que na viagem aconteceu comigo

um fato insólito? Fiquei totalmente sem dinheiro. O senhor não

poderia me emprestar trezentos rublos?

CHEFE DOS CORREIOS – Como não! Eu considero isso uma

grande felicidade! Disponha de mim, faça-me o favor. Estou às

suas ordens, de todo o coração!

KHLESTAKOV – Muitíssimo obrigado! Confesso que, quando

viajo, não gosto de me privar de nada. Para que, não é

verdade?

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CHEFE DOS CORREIOS – Assim é, meu senhor. (Levanta-se,

perfila-se, segurando a espada.) Não me atrevo a importuná-lo

mais com a minha presença. O senhor deseja fazer alguma

observação sobre os Correios?

KHLESTAKOV – Que idéia! Claro que não! (O Chefe dos

Correios faz uma reverência e sai. Khlestakov acende um

charuto.) Quero crer que também o Chefe dos Correios é um

homem excelente. Pelo menos, serviçal. E eu gosto desse tipo

de gente.

Cena V

Entra Luka, empurrado pelos outros. Atrás dele ouve-se,

claramente: “por que essa covardia? Vá, não tenha medo”.

LUKA (Perfilando-se, tremendo, segura a espada) – Tenho a

honra de me apresentar: Diretor das Escolas, Conselheiro de

terceira categoria, Luka Lukitch.

KHLESTAKOV – Entre, tenha a bondade. Sente-se. Quer um

charutinho? (Dá-lhe um charuto.).

LUKA (À parte) - Por essa eu não esperava. Aceito ou não

aceito?

KHLESTAKOV – Tome! A marca é boa. Claro que não se

compara com os da capital. Lá, meu irmão, eu fumava

cigarrilhas de vinte e cinco rublos cada uma. Tinha vontade de

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beijar as mãos depois de fumar. Tome fogo... (Luka não sabe o

que fazer.) Por quê? O senhor não fuma?

LUKA – Fumo, fumo... Mas se o senhor quiser posso largar hoje

mesmo!...

KHLESTAKOV (Rindo) – Vamos, deixe de histórias. (Luka

tenta acender o charuto, mas treme da cabeça aos pés.)

Acende do outro lado...

LUKA (Assustado, treme; deixa o charuto cair; tem um

gesto de desalento e diz, à parte) – O Diabo que me carregue!

Fui vencido pela minha maldita timidez!

KHLESTAKOV – Pelo que vejo o senhor não gosta tanto assim

de fumar. Eu, ao contrário. É meu vício predileto! Cigarros e

mulheres. Confesso que não consigo ficar indiferente diante do

belo sexo. E o senhor, quais prefere, hein, louras ou morenas?

LUKA (Fica absolutamente desconcertado e não sabe o que

dizer) – Não ouso...

KHLESTAKOV – Responda com toda a franqueza, louras ou

morenas?

LUKA – Eu... eu... eu não me atrevo a saber a minha própria

opinião!

KHLESTAKOV – Vamos, não seja tão evasivo! Faço absoluta

questão de conhecer as suas predileções!

LUKA – Eu me permito informar a Vossa Excelência, que em

relação às louras... (À parte.) Já não sei mais o que estou

dizendo...

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KHLESTAKOV – Ah, não quer falar, hein? Escondendo o jogo...

Vai ver alguma moreninha, por aí, hein... oh, ficou vermelho! Ah,

ah! Por que não responde?

LUKA – Não, é que... Exce... a timidez... Reverendíssima, é

que, Alteza... Majestade! (À parte.) Maldita língua: me traiu!

KHLESTAKOV – Timidez? Eu bem sei que nos meus olhos

existe alguma coisa que provoca a timidez e a covardia. Pelo

menos, até agora, nenhuma mulher conseguiu resistir. O senhor

não acha?

LUKA (Rouco de pavor, quase inaudível) – Eu acho!

KHLESTAKOV – Aconteceu-me um imprevisto. No caminho

fiquei sem nenhum centavo. O senhor pode me emprestar

trezentos rublos?

LUKA (Precipitadamente, procurando no bolso) – Creio que

sim!... Quer dizer, como não! Claro! (Continua procurando.)

Bonito seria se eu não encontrasse. Ai, meu Deus! (Num grito.)

Encontrei! (Entrega-lhe o dinheiro, trêmulo.).

KHLESTAKOV – Muito agradecido.

LUKA (Perfilando-se e segurando a espada) – Não me atrevo

a importuná-lo com a minha presença.

KHLESTAKOV – Adeus!

LUKA (Sai quase correndo e diz à parte) – Deus seja louvado!

Espero que não tenha a má idéia de visitar a escola!

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Cena VI

Entra Artêmy, que se perfila e segura a espada.

ARTÊMY – Tenho a honra de apresentar-me: Diretor do

Hospital local, Conselheiro de terceira, Artêmy Philippovitch

Zemlianika.

KHLESTAKOV – Bons dias! Faça o favor de sentar-se.

ARTÊMY – Tive a honra de acompanhá-lo e recebê-lo

pessoalmente no hospital que está sob meus cuidados.

KHLESTAKOV – Ah, eu me lembro. O senhor me ofereceu um

excelente almoço!

ARTÊMY – Fico feliz em fazer tudo o que posso para o bem da

minha pátria!

KHLESTAKOV – E da minha parte eu lhe confesso que essa é

minha debilidade. Adoro a boa comida. Por favor, diga-me uma

coisa. Ontem eu tive a impressão de que o senhor era um pouco

mais baixo...

ARTÊMY – É bem possível. (Após um silêncio.) Eu não meço

esforços para servir com zelo ao meu país. (Aproxima-se e diz

em voz baixa.) Mas o Chefe dos Correios é exatamente o

contrário. Não faz absolutamente nada. Está tudo abandonado.

A correspondência demora semanas inteiras. O senhor mesmo

pode tirar a prova disso. O Juiz, então, nem se fala. Passa o

tempo todo caçando e cuidando dos cachorros que ele guarda

na sala do Tribunal. E a sua conduta – isso eu devo confessá-lo,

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embora se trate de um grande amigo meu e até parente – a sua

conduta é das mais reprováveis. Aqui existe um fazendeiro

chamado Dobtchinski, que ainda ontem o senhor teve a

bondade de conhecer. Pois, mal Dobtchinski sai de casa, entra o

Juiz para fazer companhia à sua mulher. Isso eu posso jurar!

Vossa Excelência tenha a bondade de observar os filhos de

Dobtchinski. Nenhum deles se parece com o pai. Todos, até o

caçulinha, são a cara do Juiz!

KHLESTAKOV – Não me diga! Sabe que isso jamais teria me

passado pela cabeça?

ARTÊMY – E o Supervisor das Escolas, então? Como é que um

homem desses pode continuar num cargo de tanta

responsabilidade? É pior que um jacobino e só sabe ensinar

corrupção à juventude. Se o senhor preferir, posso expor tudo

isso por escrito.

KHLESTAKOV – Eu também acho melhor. Pode escrever.

Quando me aborreço, gosto de ler alguma coisa divertida. Como

é mesmo seu nome? Esqueço sempre.

ARTÊMY – Zemlianika.

KHLESTAKOV – Ah, sim, Zemlianika. Diga-me uma coisa,

Zemlianika, entre parênteses, o senhor tem filhos?

ARTÊMY – Cinco. Dois já estão grandinhos...

KHLESTAKOV – Não me diga! E como é que eles... como

direi...

ARTÊMY – O senhor quer saber como eles se chamam?

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KHLESTAKOV – Exato, como é que eles se chamam?

ARTÊMY – Nicolau, Ivan, Isabel, Maria e Anastácia.

KHLESTAKOV – Muito interessante.

ARTÊMY (Cumprimentando para sair) – Não me atrevo a

importuná-lo mais com a minha presença, e roubar o seu tempo

destinado ao cumprimento de deveres sagrados.

KHLESTAKOV – Não, não é nada... Até que o senhor me

contou umas coisas engraçadas. Sempre que puder venha me

visitar. Gosto muito dessas histórias. (Observa Artêmy, que

sai; vai até a porta e grita para o visitante.) Ei, escute! Como

é mesmo o seu nome, esqueço sempre!

ARTÊMY – Artêmy Philippovitch Zemlianika!

KHLESTAKOV – Faça-me um favor, Artêmy Philippovitch

Zemlianika: aconteceu-me um fato insólito. Durante a viagem,

perdi todo o meu dinheiro. Não tem quatrocentos rublos para me

emprestar?

ARTÊMY – Tenho.

KHLESTAKOV – Que coincidência! Muito obrigado.

Cena VII

Entram Bobtchinski e Dobtchinski.

BOBTCHINSKI – Tenho a honra de me apresentar: fazendeiro

local, Piotr Ivanovitch Bobtchinski.

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DOBTCHINSKI – Fazendeiro local, Piotr Ivanovitch Dobtchinski.

KHLESTAKOV – Ah, sim... sei, sei! Claro que eu já conhecia os

senhores. Se bem me lembro foi o que levou o tombo, não foi?

Como vai o seu nariz?

BOBTCHINSKI – Graças a Deus bem, não se preocupe. Está

completamente curado.

KHLESTAKOV – Que bom, não é? (Bruscamente, com voz

cortante.) Tem dinheiro?

DOBTCHINSKI – Dinheiro? Que dinheiro?

KHLESTAKOV – Dinheiro para me emprestar. Mil rublos.

BOBTCHINSKI – Tanto eu não tenho. Juro por Deus! E o

senhor, Piotr Ivanovitch?

DOBTCHINSKI – Aqui comigo eu também não tenho. Todo o

meu dinheiro está investido em bônus do governo.

KHLESTAKOV – Bem, se não tem mil, me dá cem.

BOBTCHINSKI (Procurando no bolso) – O senhor por acaso

não tem cem rublos, Piotr Ivanovitch? Eu só tenho quarenta, em

promissórias.

DOBTCHINSKI (Consultando sua carteira) – Ao todo tenho

vinte e cinco.

BOBTCHINSKI – Procure bem, Piotr Ivanovitch. Eu sei que seu

bolso direito está furado. O dinheiro pode ter caído no forro do

paletó.

DOBTCHINSKI – Não, não. No forro também não há nada.

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KHLESTAKOV – Bem, dá na mesma. Afinal, falei por falar.

Venham os sessenta e cinco rublos. Tanto faz... (Pega o

dinheiro.).

DOBTCHINSKI – Eu me atrevo a formular um pedido sobre um

assunto muito delicado.

KHLESTAKOV – O que é?

DOBTCHINSKI – Sim, muito delicado. O meu filho mais velho,

se o senhor me permite, nasceu antes do casamento.

KHLESTAKOV – É?

DOBTCHINSKI – Quer dizer, isso é uma maneira de falar. Ele

nasceu do mesmo modo como se eu estivesse casado.

Legalizei depois minha situação pelos sagrados laços do

matrimônio. Eu quero que esse menino seja meu filho legítimo e

se chame como eu, Dobtchinski.

KHLESTAKOV – Bem, que se chame assim. Eu não vejo

inconveniente nenhum.

DOBTCHINSKI – Eu só lhe peço isso porque o menino é muito

talentoso. Promete muito. Sabe de cor diversas poesias e, nem

bem encontra um canivete, esculpe figurinhas muito

interessantes, como um verdadeiro mágico. Piotr Ivanovitch

pode confirmar tudo que estou dizendo.

BOBTCHINSKI – Sim. Uma criatura de muito talento.

KHLESTAKOV – Está bem. Está bem. Vou me ocupar desta

matéria. Falarei disso com o... eu espero que tudo... quer dizer...

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(Voltando-se para Bobtchinski.) E o senhor não quer pedir

nada?

BOBTCHINSKI – Justamente. Quero lhe fazer um pedido

humílimo.

KHLESTAKOV – Qual?

BOBTCHINSKI – Queria lhe pedir, muito humildemente, que,

quando o senhor voltar à capital do império, diga a todos os

nobres, senadores e almirantes, que em tal e tal povoado vive

Piotr Ivanovitch Bobtchinski. Diga exatamente assim: que aqui

vive Piotr Ivanovitch Bobtchinski.

KHLESTAKOV – Perfeitamente.

BOBTCHINSKI – E, se por acaso, o senhor visitar o próprio

Czar, não se esqueça de dizer a ele: “Majestade, em tal e tal

lugar mora Piotr Ivanovitch Bobtchinski”.

KHLESTAKOV – Perfeitamente.

DOBTCHINSKI – Desculpe se já o importunamos com a nossa

presença.

BOBTCHINSKI – Desculpe se já o importunamos com a nossa

presença.

KHLESTAKOV – Não é nada, não é nada. Tive o maior prazer.

(Acompanha os dois até a porta.).

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Cena VIII

KHLESTAKOV (Sozinho) – Aqui há funcionários demais. Acho

que eles estão pensando que eu sou uma alta autoridade.

Ontem é bem possível que eu tenha contado algumas histórias

de fadas. Que imbecis! Vou escrever uma carta a Triapitchkin

contando as novidades. Ele é jornalista e vai dar uma bela

gozada nessa gente. Ei, Óssip! Traga papel e tinta. (Óssip

mostra a cabeça na porta, respondendo: “já vai”.) Pobre de

quem cai nas mãos de Triapitchkin. Pra fazer uma piada, não

tem piedade nem do próprio pai. Mas esses funcionários são

boa gente. O fato de terem me emprestado dinheiro é um

formoso rasgo de desprendimento. Vamos ver quanto eu

consegui. O Juiz me deu trezentos, O Diretor dos Correios

outros trezentos, são seiscentos, seiscentos, setecentos,

oitocentos, que papel mais gorduroso!... Oitocentos,

novecentos... Caramba! Mais de mil!... Ah, meu capitão, se o

encontro outra vez, você vai ver a desforra que vou tirar!...

Cena IX

Entra Óssip com tinta e papel.

KHLESTAKOV – Está vendo, seu estúpido, como é que estou

sendo recebido, agora? (Começa a escrever.).

ÓSSIP – É. Graças a Deus. Mas, quer saber de uma coisa?

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KHLESTAKOV – O quê?

ÓSSIP – Vamos embora daqui, está na hora.

KHLESTAKOV (Escrevendo) – Não seja besta. Embora por

quê?

ÓSSIP – O senhor já se divertiu bastante durante dois dias.

Agora chega. Não se meta mais com essa gente. Pode ser que

venha por aí alguém... por Deus, Ivan Aleksandrovitch... Há

cavalos formidáveis aqui... Podíamos dar uma corrida...

KHLESTAKOV (Escrevendo) – Não. Estou com vontade de

ficar por aqui mesmo. Vamos embora amanhã!

ÓSSIP – Mas, por que amanhã? Pelo amor de Deus, vamos já!

Eu sei que eles tratam a gente com muitas honras, mas é

melhor a gente ir embora. É claro que eles estão confundindo o

senhor com alguém. Pelo amor de Deus, vamos! Seu pai vai

ficar aborrecido com essa demora! Aqui eles podem nos dar uns

cavalos de primeira!

KHLESTAKOV (Escrevendo) – Está bom, vá lá. Mas, antes,

leve esta carta ao Correio. E peça os melhores cavalos que eles

tiverem. Diga aos cocheiros que se voarem como correios do

imperador e cantarem bonitas canções, receberão boas

gorjetas. (Continua escrevendo.) Só queria ver a cara de

Triapitchkin arrebentando de rir...

ÓSSIP – É melhor que um criado vá levar a carta ao Correio,

enquanto eu fico fazendo as malas para não perder tempo...

KHLESTAKOV (Escrevendo) – Está bem, mas antes me traga

uma vela.

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VOZ DE ÓSSIP – Ei: escuta aqui, meu irmão. Leva essa carta

ao Correio e diz ao Chefe que não pagamos selo, porque é de

um alto funcionário. E manda preparar para o meu patrão a

melhor carruagem que houver. Anda depressa, senão ele vai

ficar aborrecido. Espera um pouco que a carta ainda não está

pronta. Avisa também que ele não vai pagar a viagem porque

tem caráter oficial, viu?

KHLESTAKOV (Continuando a escrever) – E eu que me

esqueci onde é que Triapitchkin está morando agora. Ele vive

mudando de endereço para não pagar aluguel atrasado. Vou

mandar para seu último endereço. Talvez acerte. (Fecha a carta

e escreve o endereço. Óssip traz a vela e neste instante

ouve-se a voz de Dierjimorda.).

VOZ DE DIERJIMORDA – Onde é que você vai barbudo? Eu já

não disse que tenho ordens para não deixar ninguém entrar?

KHLESTAKOV (Dando a carta a Óssip) – Toma, pode levar!

VOZES DOS COMERCIANTES – Sai da frente, eu preciso falar

com ele! Ninguém pode impedir a minha entrada. Temos um

assunto importante!

VOZ DE DIERJIMORDA – Fora daqui! Ele não pode receber

ninguém porque está dormindo. (O alvoroço se acentua.).

KHLESTAKOV – O que é isso, Óssip? Vai ver que barulho é

esse.

ÓSSIP (Olhando pela janela) – São os comerciantes que

querem entrar. Mas o soldado não deixa! Trazem papéis nas

mãos. E, pelo visto, querem falar com o senhor.

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KHLESTAKOV (Chegando perto da janela) – Meus amigos,

que querem de mim?

VOZES DOS COMERCIANTES – Queremos falar com Vossa

Excelência! Permita-nos apresentar uma petição, paizinho!

KHLESTAKOV – Óssip: diga ao soldado para que os deixe

entrar. (Sai Óssip, Khlestakov pega algumas petições pela

janela, desdobra uma delas e lê.) “À sua Notável Excelência, o

senhor Comandante das Finanças, da parte do comerciante

Abdúlin...” Diabo que o carregue! Nem ao menos existe esse

posto na administração!

Cena X

Entram comerciantes e trazem um barril de vinho e sacos

de açúcar.

KHLESTAKOV – Meus amigos, que desejam de mim?

COMERCIANTES – Desejamos nos inclinar profundamente

diante de Vossa Excelência!

KHLESTAKOV – E que mais?

COMERCIANTES – Não nos desampare senhor! Estamos

sofrendo vexames insuportáveis.

KHLESTAKOV – De quem?

COMERCIANTES – De quem haveria de ser? Do Governador!

Nunca se viu um Governador como esse, paizinho! O que ele

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faz conosco não se pode nem contar. Agarra um de nós pela

barba, por exemplo, e diz: “ah, selvagem, você vai ver uma

coisa!” Juro por Deus! Se ao menos tivéssemos pecado! Mas

fazemos tudo que é certo e cumprimos o nosso dever: quando

ele precisa de alguma coisa para a mulher, mandamos tecidos

para fazer os vestidos dela e da filha. Não lhe negamos nada.

Mas tudo para ele é pouco. Quando entra em nossas lojas, leva

tudo que encontra. Vê um corte de qualquer fazenda e logo diz:

“escuta, bom homem, esse pano é muito bonito. Pode levar para

minha casa”. E a gente faz o que ele manda!

KHLESTAKOV – Não é possível! Mas então ele é um

grandessíssimo malandro!

COMERCIANTES – É verdade. Nunca houve aqui um

Governador assim. Quando se sabe que ele está a caminho, a

gente tem de esconder tudo rapidamente. E não se pode dizer

que ele só leve o que há de melhor. Não! Leva qualquer

porcaria! Na minha loja ele pegou uma quantidade de ameixas

que há sete anos apodreciam num barril e nem mesmo os

criados queriam levar. O aniversário dele cai no dia de Santo

Antônio. E nesse dia nós levamos tudo o que ele precisa para a

casa inteira. Pois quer saber de uma coisa? Isso não lhe basta.

Ele jura que o dia de Santo Onofre é também dia de seu

aniversário. E no dia de Santo Onofre lá vamos nós, levando

mais presentes para ele.

KHLESTAKOV – Mas... Esse é simplesmente um salteador de

estrada!

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COMERCIANTES – Claro que é! E se alguém tenta resistir, ele

manda um regimento de soldados acabarem com o coitado. Ou

então manda fechar a loja. “Eu não vou te castigar com uma

pena física, meu filho”, diz ele, “nem vou te torturar. As leis

proíbem. Mas você vai ter de apertar o cinto.”

KHLESTAKOV – Que miserável! Só isto basta para mandá-lo

para a Sibéria!

COMERCIANTES – Vossa Excelência pode mandá-lo para

onde quiser: desde que seja para bem longe daqui! Agora,

paizinho, não recuse o nosso tributo sincero. Trouxemos vinho e

açúcar.

KHLESTAKOV – Não. Vocês estão enganados. Eu não aceito

suborno de nenhum tipo. Mas se os senhores, por exemplo, me

oferecessem um empréstimo de trezentos rublos... o assunto

seria completamente diferente. Em se tratando de um

empréstimo, eu posso aceitar.

COMERCIANTES – Sim, por favor, pai nosso! (Tiram o

dinheiro do bolso.) Por que só trezentos? Quinhentos é

melhor! Mas, nos ajude!...

KHLESTAKOV – Tratando-se de um empréstimo, não há

inconveniente. Aceito os quinhentos, ou mais.

COMERCIANTE (Apresentando o dinheiro sobre uma

bandeja de prata) – E aceite também a bandeja, por favor.

KHLESTAKOV – Está bem, posso ficar com a bandejinha!

COMERCIANTES (Inclinando-se diante dele) – Então, aceite

também o açúcar!

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KHLESTAKOV – Não, não. Não posso aceitar suborno de

nenhuma forma!

ÓSSIP – Excelência, por que é que não aceita? Aceita sim!

Durante a viagem, tudo tem serventia! Traz pra cá o açúcar e o

vinho! Podem trazer tudo o que tiver, tudo que serve. O que é

isso aí? Uma corda? Mandem pra cá a corda! Também vai servir

na viagem. Se o eixo da roda se quebra preciso ter uma corda

para amarrar.

COMERCIANTE – Ah, faça-nos essa caridade, Excelência. Se o

senhor não nos ajudar, não saberemos o que fazer. Só nos

restará a forca!

KHLESTAKOV – Fiquem tranqüilos, fiquem tranqüilos! Vou

fazer tudo o que estiver ao meu alcance. (Os comerciantes

saem. Ouve-se uma voz de mulher.).

VOZ DE MULHER – Você não terá a petulância de me proibir a

entrada. Vou me queixar de você a Sua Excelência. Não me

empurre bruto!

KHLESTAKOV – Quem é que está aí? (Vai até a janela.) Quem

és tu, mulher?

VOZES DE MULHERES – Vimos pedir ajuda paizinho! Mande

esse brutamonte sair do caminho!

KHLESTAKOV (Pela janela) – Que entrem!

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Cena XI

Entram a Mulher do Carpinteiro e a Viúva do Subtenente.

MULHER DO CARPINTEIRO (Com uma grande reverência) –

Venho pedir proteção!

VIÚVA – Eu venho pedir proteção!

KHLESTAKOV – E quem são as senhoras?

VIÚVA – Sou a Viúva do Subtenente Ivanov.

MULHER DO CARPINTEIRO – Sou a Mulher do Carpinteiro,

meu senhor, cidadã desta cidade, Fevrônia Petrovna

Pochlepkina.

KHLESTAKOV – Um momento. Fale uma de cada vez. (À

Mulher do Carpinteiro.) Que deseja de mim?

MULHER DO CARPINTEIRO – Venho me queixar do

Governador, Excelência. Que Deus faça cair na cabeça dele

todos os males do mundo. Que nunca sejam felizes, nem ele

nem seus filhos, nem suas tias e tios, pais e primos, ele é muito

miserável!

KHLESTAKOV – Mas por quê? O que foi que aconteceu?

MULHER DO CARPINTEIRO – Ele deu ordem para que meu

marido entrasse para o Exército, mesmo não sendo a sua vez.

Canalha! E a lei não permitia. Era casado!

KHLESTAKOV – Mas como é que ele fez isso?

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MULHER DO CARPINTEIRO – Fez porque quis; assim! Deus

devia dar-lhes tantas chibatadas, nesse mundo e no outro! Se

tiver uma tia, que todas as desgraças imagináveis aconteçam a

essa tia. Se seu pai está vivo, que se arrebente ou se estropie

para sempre, maldito seja! Quem tinha de servir ao Exército era

o filho do alfaiate, aquele bêbado! Mas os pais dele mandaram

um bom presente para o Governador e ele então ficou de olho

no filho da taberneira Pantelevna. E a Pantelevna mandou para

a esposa do Governador três cortes de pano. E então o

Governador veio me visitar e disse: “pra que é que você precisa

de marido? Ele já não tem mais serventia”. Essa é boa! Quem

sabe se ele tem serventia ou não, sou eu! É um problema meu!

Maldito seja esse canalha! E disse mais, assim: “teu marido é

um ladrão. Embora ele não tenha roubado nada ainda, tanto faz:

vai acabar roubando! E no ano que vem ele acaba sendo

condenado a entrar pro Exército mesmo, de qualquer maneira”.

E agora, como é que esse Governador infame quer que eu viva

sem marido? Sou uma mulher fraca! Eu só queria que toda a

parentela desse canalha explodisse! E tem uma sogra, então

que essa sogra...

KHLESTAKOV – Está bem, está bem... E a senhora? (Afasta a

outra.).

MULHER DO CARPINTEIRO (Saindo) – Não se esqueça de

mim, paizinho! Seja misericordioso!

VIÚVA – Eu vim me queixar do Governador, paizinho!

KHLESTAKOV – Por quê? Vamos, fale e seja breve!

VIÚVA – Ele mandou me açoitar, paizinho!

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KHLESTAKOV – Como é que foi?

VIÚVA – Por engano. Duas mulheres brigaram na feira, e

quando a polícia chegou, elas já tinham ido embora. Então eles

me agarraram e me deram uma surra que eu fiquei dois dias

sem poder me sentar!

KHLESTAKOV – E o que é que a senhora quer que eu faça

agora?

VIÚVA – Claro que não pode fazer nada. Mas pode fazer com

que ele pague uma multa pelo erro cometido. Estou bem

precisada.

KHLESTAKOV – Está bem, pode ir embora. Vou dar minhas

ordens! (Pela janela aparecem mãos com petições.) Mas

quem é que ainda está aí? (Aproxima-se da janela.) Não quero

mais! Para mim chega! ... (Afastando-se da janela.) Já estou

farto, que diabo!... Não deixe mais ninguém entrar, Óssip.

ÓSSIP (Gritando pela janela) – Vão todos embora! A hora não

é própria. Voltem amanhã! (Abre-se a porta e aparece um

indivíduo encapotado, com barba de vários dias, boca

inchada e com um pano amarrado no rosto; atrás dele,

aparecem várias outras pessoas.) Vá embora! Vá embora!

Onde é que você quer ir? (Empurra o intruso e afasta-se com

ele, fechando a porta atrás de si.).

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Cena XII

Entra Maria Antonovna.

MARIA – Ah!

KHLESTAKOV – Por que se assustou senhorita?

MARIA – Não. Não me assustei!

KHLESTAKOV (Galante Don Juan) – Caramba, senhorita! Fico

encantado só de pensar que lhe pareço um homem que... Até

me atrevo a perguntar: aonde pretendia ir?

MARIA – Não ia a lugar nenhum.

KHLESTAKOV – E por que não ia a lugar nenhum?

MARIA – Pensei que, talvez, a mamãe estivesse aqui.

KHLESTAKOV – Não. Eu queria saber por que é que não ia a

lugar nenhum.

MARIA – Eu acho que estou incomodando. O senhor estava

ocupado com assuntos importantes...

KHLESTAKOV (Donjuanesco) – Pois seus olhos são mais

belos que os assuntos importantes! A senhorita não poderia me

incomodar jamais. Pelo contrário, até me poderia proporcionar

algum prazer...

MARIA – O senhor fala como as pessoas da capital.

KHLESTAKOV – Para uma pessoazinha tão deliciosa... eu me

pergunto se teria o atrevimento de tentar a felicidade de

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oferecer-lhe uma cadeira. Mas não! O que a senhorita merece

não é uma cadeira, mas sim um trono!

MARIA – Na verdade, eu não sei... Eu acho que devo ir

embora... (Senta-se.).

KHLESTAKOV – Que lenço mais formoso esse!

MARIA – Os senhores da capital gostam muito de ridicularizar

as moças da província...

KHLESTAKOV – Como eu gostaria de ser esse lenço,

senhorita, para poder rodear esse colo tão macio...

MARIA – Eu não sei do que o senhor está falando! A que lenço

o senhor se refere?... Que tempo esquisito, hoje!...

KHLESTAKOV – Os seus lábios, senhorita, são mais belos que

todos os tempos!

MARIA – Os senhores dizem sempre cada coisa!... Mas eu

preferia que escrevesse uma poesia no meu álbum. Deve saber

muitas de cor.

KHLESTAKOV – Para a senhorita, tudo que ordenar. Exija! Que

estilo prefere?

MARIA – Tanto faz. Que sejam lindos e originais.

KHLESTAKOV – Ih! Conheço tantos!

MARIA – Então diga. Que poesia vai escrever para mim?

KHLESTAKOV – Eu tenho uma enormidade de poemas.

Poderia escrever este, por exemplo. “Ó tu, que no infortúnio te

queixas, sem razão, de Deus”... Eu já escrevi muitos outros,

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mas agora não me lembro. E afinal isso não tem importância

assim. Prefiro oferecer meu amor que, com o seu olhar...

(Aproxima sua cadeira.).

MARIA – O amor!... Eu não compreendo o amor. Eu nunca

soube o que é o amor! (Afasta sua cadeira.).

KHLESTAKOV (Aproximando sua cadeira) – Por que a

senhorita se afasta? É bem melhor conversar de perto.

MARIA (Afastando de novo sua cadeira) – Por que de perto?

Dá no mesmo conversar de longe!

KHLESTAKOV (Aproximando sua cadeira) – Por que de

longe? Dá no mesmo conversar de perto!

MARIA (Afastando sua cadeira) – Mas por que tudo isso?

KHLESTAKOV – A senhorita é que pensa que é perto. Mas

pode ficar perto e imaginar que estamos longe! Como me

sentiria feliz se pudesse apertá-la em meus braços!

MARIA (Olhando pela janela) – Que foi isso que passou

voando? Foi um corvo, ou outra ave qualquer?

KHLESTAKOV (Beijando-lhe o ombro e olhando depois pela

janela) – Foi um modesto urubu...

MARIA (Levantando-se, indignada) – Ah! Isto já é demasiado!

Que atrevimento!...

KHLESTAKOV (Retendo-a) – Perdoe-me, senhorita!... O que

fiz, fiz por amor!... Assim é, foi por amor!

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MARIA – O senhor pensa que eu sou uma dessas

provincianas... (Tenta sair.).

KHLESTAKOV (Continuando a segurá-la) – Por amor de

verdade! Só e tão somente amor!... Eu estava brincando, Maria

Antonovna, não fique aborrecida. Estou pronto a pedir perdão de

joelhos. (Cai de joelhos.) Perdão! Perdão! Você reparou que eu

estou de joelhos?...

Cena XIII

Entra Anna Andreievna e vê Khlestakov de joelhos.

ANNA – Ah!... Que situação!...

KHLESTAKOV (Levantando-se) – Diabo!

ANNA (À sua filha) – O que significa isso, senhorita? Que

procedimento é esse?

MARIA – Mãezinha, eu...

ANNA – Saia daqui! Saia já daqui, está ouvindo? E nunca mais

tenha o atrevimento de aparecer diante dos meus olhos! (Maria

sai, desfeita em lágrimas.) Perdão, senhor, mas eu confesso

que fiquei surpreendida.

KHLESTAKOV (À parte) – E esta também me parece bastante

apetitosa. Não vai nada mal! (Ajoelhando-se outra vez.)

Senhora, estou ardendo de amor, me compreende? Ardo!

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ANNA – Como? O senhor de joelhos? Levante-se, levante-se,

por favor! O chão aqui está um pouco sujo!

KHLESTAKOV – Não! Eu quero continuar de joelhos! De

joelhos! Quero saber se devo esperar a vida ou a morte!

ANNA – Mas, queira perdoar. Até agora não compreendi o

sentido de suas palavras. Se não interpreto mal, acredito que o

senhor acabou de fazer uma declaração com respeito à minha

filha?

KHLESTAKOV – Não. Estou apaixonado é pela senhora! Minha

vida está pendurada por um fio. Se a senhora não premiar meu

amor fiel, eu não merecerei mais viver neste mundo. Com o

coração em chamas tenho a honra de pedir a sua mão!...

ANNA – Mas permita-me observar que... até certo ponto... eu

sou casada!

KHLESTAKOV – Pouco importa. O amor não tem fronteiras. O

poeta Karamzin já disse: “as leis nos condenam, vamos fugir

para um país distante, nós nos esconderemos sob a sombra das

cascatas...” Eu peço a sua mão!... Eu quero a sua mão.

Cena XIV

Entra Maria, correndo.

MARIA – Mamãe! Papai mandou dizer... (Vendo Khlestakov de

joelhos, exclama.) Ah! Que situação!

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ANNA – Bem, e daí? O que é que você quer? Entrando sem

mais, por aquela porta, correndo como uma gata escaldada!

Que leviandade! Bem, o que há de tão extraordinário? Que foi

que aconteceu? Você parece uma menina de três anos. Quem

diria que tem dezoito? Não sei quando você vai aprender a se

comportar como uma menina bem-educada! Quando é que você

vai descobrir o que é a etiqueta e a seriedade do

comportamento?

MARIA (Chorando) – Mãezinha, francamente, eu não sabia!...

ANNA – Você parece que tem sempre uma corrente de ar na

cabeça! Está seguindo o exemplo das filhas de Liapkin-Tiapkin.

Ninguém manda você andar com elas! São maus exemplos! E

você precisa dos exemplos bons. A sua mãe, digamos que sou

eu! Eu sou o exemplo que você deve imitar!

KHLESTAKOV (Segurando a mão de Maria) – Anna

Andreievna, não se oponha à nossa felicidade. Dê sua bênção

ao nosso amor eterno!

ANNA (Assombrada) – Isto significa que o senhor está

apaixonado por ela?...

KHLESTAKOV – Decida: a vida ou a morte!

ANNA – Está vendo, cretina, está vendo? Por uma porcaria

como você o nosso hóspede teve a bondade de se ajoelhar. E

você entra correndo como uma louca. Bem merecia que eu

dissesse não! Você não é digna de tanta felicidade!

MARIA – Eu nunca mais entro correndo, mãezinha! Palavra,

nunca mais!

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Cena XV

Entra o Governador, desalentado.

GOVERNADOR – Excelência, não me desgrace! Não me

desgrace!

KHLESTAKOV – Por quê?

GOVERNADOR – Os comerciantes queixaram-se a Vossa

Excelência. Eu juro pela minha honra que nem metade do que

eles disseram é verdade. São eles que roubam no peso e

exploram o povo. A viúva mentiu quando disse que eu mandei

surrá-la! É mentira! Juro por Deus que é mentira! Ela mesma se

surrou!

KHLESTAKOV – Ela que vá para o diabo! Não estou em

condições de pensar nela no momento!

GOVERNADOR – Não acredite! Não acredite! São todos uns

embusteiros! Nem uma criança pode acreditar neles! Todo povo

sabe que eles são mentirosos! E quanto a essa história de dizer

que eu sou um canalha, garanto-lhe que canalhas iguais a eles

nunca se viu no povoado!

ANNA – Sabe com que honra nos distinguiu Ivan

Aleksandrovitch? Pediu a mão de nossa filha!

GOVERNADOR – Pára de dizer bobagens, você perdeu o juízo,

velha? Não se aborreça, Excelência! Ela nunca teve a cabeça

no lugar. Saiu à mãe!

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KHLESTAKOV – Mas é verdade. Peço a mão de sua filha em

casamento. Estou apaixonado!

GOVERNADOR – Não posso acreditar: Excelência!

ANNA – Mas se é ele mesmo que está dizendo!

KHLESTAKOV – E não estou brincando. Este amor poderá me

deixar louco!

GOVERNADOR – Não me atrevo a acreditar! Não mereço tanta

honra!

KHLESTAKOV – Se o senhor não me dá a mão de Maria

Antonovna, estou disposto a fazer qualquer loucura!

GOVERNADOR – Eu não posso acreditar, Excelência. Vossa

Excelência está brincando comigo!

ANNA – Mas que estúpido! Se todo mundo está dizendo que é

verdade!

GOVERNADOR – Não acredito.

KHLESTAKOV – Dê-me a mão dela! Dê-me a mão dela! Eu

estou desesperado! Eu sou capaz de tudo! Se eu der um tiro na

cabeça o senhor vai ser condenado por causa disso!

GOVERNADOR – Ai, meu Deus! Eu juro que sou inocente de

corpo e alma. Não se aborreça, por favor! Excelência: faça o

que achar melhor! Francamente, estou me sentindo mal. Não sei

o que está acontecendo! Minha cabeça dá voltas! Nunca me

senti assim...

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ANNA – Vamos. Dê sua bênção. (Khlestakov aproxima-se, de

braço com Maria Antonovna.).

GOVERNADOR – Que Deus vos abençoe! Mas eu não tenho

culpa. (Khlestakov beija Maria e o Governador olha para os

dois.) Que diabo, mas então é verdade! (Arregala os olhos.)

Eles estão se beijando! Meu Deus! Eles estão se beijando!

Então ele é um noivo! Um noivo de verdade. (Dá um grito e um

pulo de alegria.) Anton! Anton! Governador! Olha só aonde

chegamos!

Cena XVI

Os mesmos, mais Óssip.

ÓSSIP – Os cavalos estão prontos.

KHLESTAKOV – Então, vamos embora!

GOVERNADOR – O senhor vai embora?

KHLESTAKOV – Eu vou-me embora.

GOVERNADOR – Mas então... quer dizer... Eu creio que foi o

senhor mesmo que teve a bondade de falar num certo

casamento, não é verdade?

KHLESTAKOV – Eu vou, mas volto logo. Vou passar só um dia

com a titia. É uma velha muito rica. E amanhã estarei aqui de

volta.

GOVERNADOR – Nós então esperamos seu feliz regresso!

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KHLESTAKOV – Ah, claro, claro! Volto num abrir e fechar de

olhos! Adeus, meu amor! Não, não! As palavras existentes não

conseguem expressar meus sentimentos. Adeus, meu tesouro!

(Beija a mão de Maria Antonovna.).

GOVERNADOR – E Vossa Excelência não precisa de nada

para a viagem? Eu tenho a impressão que carecia de algum

dinheiro, não é assim?

KHLESTAKOV – Não, não, pra quê? (Pensa um pouco.) Quer

dizer... não há nenhum inconveniente.

GOVERNADOR – E quanto deseja Vossa Excelência?

KHLESTAKOV – Naquela ocasião o senhor me deu duzentos

rublos, quer dizer, quatrocentos e não duzentos – não quero me

aproveitar de seu engano, de modo que, se o senhor me der

agora outro tanto, ficam oitocentos justos.

GOVERNADOR – Imediatamente. (Tira a carteira.) Parece de

propósito. As cédulas são novas.

KHLESTAKOV – É, é? (Pega o dinheiro e examina as

cédulas, desconfiadamente.) Dizem que o dinheiro novo traz

sorte nova.

GOVERNADOR – Exato Excelência.

KHLESTAKOV – Adeus, Anton Antonovitch. Muito agradecido

pela sua hospitalidade. E quero lhe confessar de todo coração:

nunca, em nenhum lugar, nunca fui assim tão bem recebido.

Adeus, Anna Andreievna! Adeus, querida Maria Antonovna.

(Saem todos e a cena prossegue nos bastidores.).

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VOZ DE KHLESTAKOV – Adeus, meu anjo, Maria Antonovna!

VOZ DO GOVERNADOR – Mas, como é isso? O senhor vai

viajar sem almofadas? Eu vou mandar buscar algumas!

VOZ DE KHLESTAKOV – Não, pra quê? Bem, mas, afinal de

contas... que tragam as almofadas!

VOZ DO GOVERNADOR – Avdótia: vai lá dentro depressa,

pegar a nossa melhor almofada, aquela azul-celeste, persa!

VOZ DO COCHEIRO – Brrr... brrr...

VOZ DO GOVERNADOR – Quando é que o senhor volta

Excelência?

VOZ DE KHLESTAKOV – Amanhã ou depois!

VOZ DE ÓSSIP – É essa almofada? Traga-a para cá. E traga-

me também feno para o cavalo!

VOZ DO COCHEIRO – Brrr... brrr...

VOZ DE ÓSSIP – Do lado de cá! Traga mais! Agora está bem!

Pode-se viajar com mais comodidade. (Bate na almofada.)

Sente-se agora, Excelência...

VOZ DE KHLESTAKOV – Adeus, Anton Antonovitch!

VOZ DO GOVERNADOR – Adeus, Excelência!

VOZ DAS MULHERES – Adeus, Ivan Aleksandrovitch!

VOZ DE KHLESTAKOV – Adeus, mãezinha!

VOZ DO COCHEIRO – Vamos, meus cavalinhos! Upa! Upa!

Upa! (A carruagem se afasta, com ruído.).

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ATO V

Cena I

A mesma sala. O Governador, mulher e filha.

GOVERNADOR – Que lhe parece, Anna Andreievna? Alguma

vez você ao menos sonhou com isso? Hein? Que caça

magnífica! Confesse sinceramente, você não poderia nem

sonhar com isso! E assim, do dia para a noite, zás! Com que

personalidade ilustre eu vou me aprontar!

ANNA – Não seja tolo. Eu já sabia disso há muito tempo. E, se

você acha tudo assim tão estranho, é porque você é um rústico

que nunca viu gente decente.

GOVERNADOR – Eu também sou um decente, velha! Mas,

pensando bem, Anna Andreievna, agora estamos por cima.

Hein? Agora sim, vou mandar arrebentar toda essa gente que foi

se queixar de mim. Ei, quem é que está aí? (Entra um

soldado.) Ah, é você, Ivan Karpovitch? Mande chamar todos os

comerciantes, meu irmão. Eles agora vão ver como é que vão

ser tratados daqui por diante. Queixando-se de mim, não é?

Malditos traidores! Eles vão ver! Até agora só os tratei com

severidade, só isso. Mas agora vou tratá-los com mão de ferro!

Tome nota de todos os que vieram se queixar de mim. E

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também o nome dos escreventes que redigiram as queixas. E

pode dizer a todos, para que fiquem sabendo. Deus enviou uma

grande honra ao nosso Governador. Sua filha vai se casar. Mas

não com qualquer um, não. É com um desses como existem

poucos. Um homem que é capaz de fazer tudo, tudo, tudo, tudo!

Anuncie a toda a cidade, para que toda gente fique sabendo!

Grite por todo o povoado e mande tocar todos os sinos. Afinal, o

triunfo é o triunfo! (O soldado sai.) Pois assim vai o mundo,

Anna Andreievna. E agora, onde é que a gente vai morar, aqui

ou na capital?

ANNA – Na capital, naturalmente. Como é que a gente poderia

ficar aqui?

GOVERNADOR – Se você quer na capital, que seja na capital!

Mas até que a gente podia continuar aqui mesmo, senão tenho

de abandonar meu título de Governador!

ANNA – Naturalmente. E quem é que pensa ainda nesse título?

GOVERNADOR – Porque agora, não é verdade, Anna, eu

posso pretender um posto bem mais elevado. Você não acha?

Ele é unha e carne com todos os ministros. Vai a palácio quando

bem entende. Usando sua influência, com algum tempo, poderei

chegar a general! Você não acha Ana Andreievna? Eu não

posso chegar a ser general?

ANNA – Claro que sim, naturalmente.

GOVENADOR – Ah, que diabo! Deve ser muito bom ser

general! Eles põem uns galões aqui no nosso ombro. Que tipo

de galões você prefere, Anna? Vermelhos ou azuis?

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ANNA – Claro que os azuis são melhores.

GOVERNADOR – Olha só que pretensão. Por que é que todo

mundo quer ser general? Porque, quando um general vai a

algum lugar, é sempre precedido pelos secretários e ajudantes

de ordem. E gritam: “os cavalos!” Todos têm de esperar. Todos

os conselheiros de segunda e de terceira, todos esses capitães

e governadores. O general está acima de todos. Quando um

deles almoça na casa de Governador, o Governador

humildemente é obrigado a lhe fazer uma saudação. (Ri até não

poder mais.) É isto que me atrai.

ANNA – Você sempre gosta do que é grosseiro. Não se

esqueça que vamos ter de mudar completamente de vida.

Vamos ter de mudar de amigos. Você não irá mais à caça com

juízes que gostam de cachorros. Pelo contrário, seus amigos

devem ser pessoas de maneiras finas, condes e homens do

mundo. Mas para dizer a verdade, eu tenho medo de você. Está

sempre dizendo cada palavra, dessas que não se ouvem na alta

sociedade.

GOVERNADOR – E daí? Uma palavrinha não faz mal nenhum.

ANNA – Dizer palavrões não faz mal quando se trata de um

Governador. Mas na capital a vida é completamente diferente.

GOVERNADOR – Dizem que lá eles servem um peixe tão

gostoso que ninguém, ninguém consegue comer sem se babar

todo.

ANNA – Para você um peixe basta... Eu só vou ficar contente

quando estiver morando na melhor casa de São Petersburgo. E

que essa casa seja tão perfumada que ninguém consiga entrar.

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E que quem já estiver lá dentro fique com os olhos cheios de

lágrimas, assim. (Mostra os olhos.) Então sim, eu vou ser feliz!

Cena II

Entram os Comerciantes.

GOVERNADOR – Ah! Saúde, meus amiguinhos!

COMERCIANTES (Fazendo uma reverência) – Nós também

lhe desejamos muita saúde, senhor Governador.

GOVERNADOR – Muito bem, meus queridos. Que tal, como

vão os negócios? Então, vocês vieram aqui se queixar de mim,

não é? Ladrões, canalhas, embusteiros! Vieram se queixar, não

é? Estavam certos de que eu iria parar na cadeia, não é? Pois

fiquem sabendo, seus filhotes de Satanás, que eu...

ANNA – Meu Deus, que linguagem, Antocha!

GOVERNADOR – Bem, agora não estou para ficar escolhendo

palavras. Vocês sabiam que o inspetor, a quem vocês se

queixaram, vai se casar com minha filha, hein? Hein? Que é que

vocês me dizem agora? Vocês me pagam! Vocês vão ver como

é que vou tratá-los daqui por diante. Vocês são uns ladrões.

Roubam o povo! Venderam cem mil rublos de pano podre ao

Estado e, só porque me deram uns vinte metros de tecido,

estavam esperando o quê? Um prêmio? Se o inspetor soubesse

de todas as suas falcatruas, vocês iriam parar na Sibéria! E é

preciso ver as miseráveis esmolas que me dão de presente! E

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todos pensam que são intocáveis: “não somos inferiores aos

nobres!” E esses imbecis se esquecem de que os nobres

estudam ciências. E eles também são espancados na escola

para aprender alguma coisa de útil. E vocês, comerciantes, por

que tantas pretensões? Desde criança a única coisa que vocês

aprendem é picardia. E o patrão dá um cascudo em quem não

souber enganar o freguês. Antes mesmo de aprender a rezar o

Padre-Nosso, vocês aprendem a roubar no peso. E logo que

enchem o bolso e a barriga, olhem só como ficam importantes!

Onde já se viu uma coisa dessas?

COMERCIANTES (Com uma reverência) – Nós reconhecemos

nossa culpa, Anton Antonovitch!

GOVERNADOR – Reconhecem a culpa me acusando, não é?

(Apontando um deles.) Você aí! Quem ajudou você naquela

falcatrua, quando você construiu a ponte e lançou na

contabilidade que tinha fornecido vinte mil rublos de madeira e

eram apenas cem; quem lhes estendeu a mão amiga? Fui eu

que o ajudei, seu barba de bode! Você já se esqueceu? Se eu o

tivesse denunciado, era outro que iria parar na Sibéria! Que é

que você diz a isso?

COMERCIANTE – Eu afirmo em Jesus Cristo, que nós temos

culpa, Anton Antonovitch! Foi uma tentação do diabo! Mas

nunca mais nos queixaremos! Pode pedir o que quiser, mas não

se aborreça conosco!

GOVERNADOR – Não se aborreça! Agora vocês rastejam a

meus pés. Por quê? Só há uma razão: eu triunfei! E se vocês,

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canalhas, tivessem triunfado, seriam capazes de me bater com

uma acha de lenha na cabeça e me enterrar vivo!

COMERCIANTES (Com profundas reverências) – Tem

piedade de nós, Anton Antonovitch!

GOVERNADOR – Tem piedade! Agora é “tem piedade”! E

antes, o que era, hein? Tenho vontade de... de... (Faz um

gesto.) Enfim! Que Deus os perdoe! Não sou rancoroso. Mas,

daqui por diante, muito cuidado! Muito cuidado comigo. Eu não

vou casar minha filha com um nobre qualquer. Os votos de

felicidade devem ser... entendem? Não me venham com

bacalhaus e sacos de açúcar! Bem, podem ir com Deus. (Os

comerciantes saem.).

Cena III

Entram Ammoss, Artêmy e Rastakovski.

AMMOSS (Da porta) – Devemos acreditar no que estão

dizendo, Anton Antonovitch? É verdade que o senhor teve essa

extraordinária felicidade?

ARTÊMY – Tenho a honra de felicitá-lo pela sua boa fortuna.

Fiquei muito contente quando soube. (Aproxima-se de Anna

Andreievna e lhe beija a mão.) Anna Andreievna! (Beija a mão

de Maria Antonovna.) Maria Antonovna!

RASTAKOVSKI (Entrando) – Felicidades, Anton Antonovitch!

Que Deus lhe conceda uma longa vida e também ao jovem

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casal, e lhe dê uma numerosa prole de netos e bisnetos. Anna

Andreievna! (Beija-lhe a mão.) Maria Antonovna! (Beija-lhe a

mão. Entram Liuliukov, Korobkin e sua mulher.).

KOROBKIN – Tenho a honra de felicitá-lo, Anton Antonovitch!

Anna Andreievna! (Beija-lhe a mão.) Maria Antonovna! (Beija-

lhe a mão.).

MULHER DE KOROBKIN – Eu a felicito de todo o coração,

Anna Andreievna, por essa nova felicidade!

LIULIUKOV – Tenho a honra de felicitá-la, Anna Andreievna!

(Beija-lhe a mão.) Maria Antonovna, tenho a honra de felicitá-la.

(Beija-lhe a mão.).

Cena IV

Muitos visitantes de casaca se aproximam e beijam a mão

de Anna Andreievna, dizendo: “Anna Andreievna” e, depois,

a de Maria Antonovna, dizendo: “Maria Antonovna”.

Dobtchinski e Bobtchinski abrem caminho aos empurrões.

BOBTCHINSKI – Tenho a honra de lhe desejar felicidades!

DOBTCHINSKI – Anton, Antonovitch, tenho a honra de felicitá-

lo...

BOBTCHINSKI - ... por esse feliz acontecimento!

DOBTCHINSKI – Anna Andreievna!

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BOBTCHINSKI – Anna Andreievna! (Ambos se aproximam ao

mesmo tempo e suas cabeças se chocam.).

DOBTCHINSKI – Maria Antonovna! (Beija-lhe a mão.) Tenho a

honra de lhe desejar felicidades. A senhorita será muito, muito

feliz. Passeará com um vestido de ouro, e há de comer todos os

tipos de sopas refinadas. Há de passar muito bem o seu tempo!

BOBTCHINSKI (Interrompendo) – Maria Antonovna: tenho a

honra de felicitá-la. Que Deus lhe dê todas as riquezas: moedas

de ouro e um filho pequeno (mostra o tamanho.), tão

pequenininho que a gente possa assentá-lo na palma da mão e

brincar com eles assim: uau, uau, uau!

Cena V

Entram Luka Lukitch e sua mulher.

LUKA – Tenho a honra... (A mulher adianta-se correndo.).

MULHER DE LUKA – Felicidades, Anna Andreievna. Fiquei tão

contente quando ouvi essa história! Disseram-me assim: “Anna

Andreievna vai casar sua filha!” “Ah, meu Deus”, pensei. E fiquei

tão feliz, que fui correndo contar a meu marido: “veja, querido,

veja que felicidade o destino reservou para Anna Andreievna!” E

pensei mais, pensei muito mais ainda: “bem, que Deus seja

louvado!” E ao meu marido eu ainda disse: “estou tão encantada

que a impaciência me consome enquanto não disser

diretamente a Anna Andreievna o que eu sinto!” – “Ah, meu

Deus” – pensei. “Anna Andreievna esperava exatamente isso:

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um bom partido para sua filha! E o destino não fazia outra coisa

senão preparar essa coincidência!” E me senti tão contente,

juro, que nem conseguia falar! Chorei, chorei tanto que aquilo já

não era mais chorar. Eram soluços. Chorei tanto que meu

marido me perguntou: “por que é que você está chorando assim,

Anastácia?” E eu respondi: “não sei querido. Nem eu mesma

sei. As lágrimas nascem em meus olhos como um rio em sua

fonte!”

GOVERNADOR – Por favor, vamos todos nos sentar! Michka:

traga mais cadeiras!

Cena VI

Sentam-se os visitantes. Entram o Chefe de Polícia e os

soldados.

CHEFE DE POLÍCIA – Tenho a honra de felicitar a Vossa

Excelência e desejar que seja feliz por muitos e muitos anos!

GOVERNADOR – Obrigado! Obrigado! Queiram sentar-se,

senhores! (Todos se sentam.).

AMMOSS – Mas então, Anton Antonovitch, conte-nos como

começou tudo isso! Vamos lá! Como se desenvolveu o assunto?

GOVERNADOR – Pois foi uma coisa nunca vista. Sua

Excelência dignou-se fazer o pedido pessoalmente.

ANNA – Muito respeitosamente e da forma mais fina que se

possa imaginar! Falou muito bonito. Disse: “eu, Anna

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Andreievna, faço tudo isso em honra a vossos méritos”. Ah, que

homem magnífico, educado, culto e de sólidos princípios morais!

“Para mim”, disse ainda, “creia-me, Anna Andreievna, a vida não

tem a mínima importância: faço isso apenas em homenagem às

suas extraordinárias virtudes!”

MARIA – Não, mãezinha, foi a mim que ele disse isso!

ANNA – Cale a boca. Você não sabe nada e só se mete no que

não lhe diz respeito! “Estou perturbado, Anna Andreievna”.

Falou de uma maneira tão lisonjeira! E quando eu lhe quis dizer:

“não, Ivan Aleksandrovitch, não nos atrevemos de forma alguma

a esperar semelhante honra”, ele de repente se atirou de joelhos

no chão e disse de uma forma indescritivelmente cavalheiresca:

“não faça a minha desgraça, Anna Andreievna! Corresponda a

meus sentimentos, porque, do contrário, porei fim à minha vida”.

MARIA – Garanto mãezinha, que isso ele disse para mim!

ANNA – Bem, claro... evidentemente... ele disse também a

você, não nego.

GOVERNADOR – Vocês precisavam ver como ele nos

assustou! Ameaçou suicidar-se: “eu darei um tiro na cabeça! Um

tiro na cabeça!” – disse.

VOZES – Não diga!

AMMOSS – Inacreditável!

LUKA – É. Mas o destino é o destino!

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ARTÊMY – Não, meu amigo, não foi o destino. Foi o mérito. Foi

o mérito. (À parte.) A sorte sempre há de perseguir um porco

como esse.

AMMOSS – Se quiser, estou disposto a vender-lhe aquele

perdigueiro que o senhor tanto queria.

GOVERNADOR – Não, não. Agora não posso mais me

preocupar com perdigueiros.

AMMOSS – Como quiser. Ou talvez possamos entrar em acordo

sobre um cachorro de outra raça.

MULHER DE KOROBKIN – Como estou contente com sua

felicidade, Anna Andreievna! Nem pode imaginar!...

KOROBKIN – Mas, se me permitem a pergunta, onde está o

ilustre hóspede? Ouvi dizer que ele partiu.

GOVERNADOR – Realmente. Teve de se ausentar por um dia,

para tratar de um assunto importante.

ANNA – Foi visitar a tia para pedir a bênção.

GOVERNADOR – Sim, para pedir a bênção, mas amanhã

mesmo... (Espirra e se ouvem exclamações em meio ao

burburinho geral. “Deus o abençoe”, etc.) Muito obrigado...

mas amanhã mesmo estará de volta e... (Espirra novamente;

alvoroço e exclamações. Destacam-se várias vozes.).

CHEFE DE POLÍCIA – Desejamos-lhe muita saúde, Excelência!

BOBTCHINSKI – Cem anos de vida e uma pirâmide de rublos

de ouro!

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DOBTCHINSKI – Deus o crie!

ARTÊMY (À parte) – Que te arrebentes!

MULHER DE KOROBKIN (À parte) – O diabo que te carregue!

GOVERNADOR – Obrigado. Desejo-lhes o mesmo!

ANNA – Estamos pensando em mudar para São Petersburgo.

Para dizer a verdade, aqui se respira um ar por demais

provinciano... Muito desagradável, confesso. Além disso, meu

marido será promovido a general.

GOVERNADOR – Ah, sim, meus senhores. Digo-o com toda a

franqueza. Gostaria muito de ser general.

LUKA – Deus queira que consiga.

RASTAKOVSKI – O homem põe, Deus dispõe!

AMMOSS – Para um grande barco, grandes travessias.

ARTÊMY – A César o que é de César!

AMMOSS (À parte) – Imaginem só se ele consegue mesmo

chegar a general. Aí está um homem a quem um título

assentaria tão bem quanto uma sela numa vaca!

ARTÊMY (À parte) – Diabo! Esse aí já quer ser general! E

sabe-se lá!... Pose não lhe falta. Que vá para o inferno! (Ao

Governador.) Veja lá, Anton Antonovitch, quando chegar a

general não vá se esquecer da gente, hein?

AMMOSS – E, se a gente precisar de alguma proteçãozinha

legal, não nos abandone!

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KOROBKIN – No ano que vem vou levar meu filho à capital

para que ele fique a serviço do Estado. Tenho a certeza de que

o senhor será para ele um verdadeiro pai!

GOVERNADOR – Não duvide! Não duvide! De minha parte

estou pronto a fazer sempre o humanamente possível para o

bem do meu povo.

ANNA – Você está sempre disposto a prometer. Em primeiro

lugar, você não vai ter nem tempo de pensar nisso. Como é

possível fazer esse tipo de promessas? E, além disso, para

quê?

GOVERNADOR – Por que não, querida? Às vezes pode-se

ajudar um pouco!

ANNA – Naturalmente que pode. Mas não vejo por que você

haveria de proteger qualquer pessoa insignificante.

MULHER DE KOROBKIN – Está vendo como ela nos trata?

UMA VISITANTE – Eu conheço essa velha. Ela sempre foi

assim. Mostra-lhe um dedo, ela engole a mão.

Cena VII

Entra o Chefe dos Correios, desalentado, com uma carta

aberta na mão.

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CHEFE DOS CORREIOS – Um caso surpreendente, senhores!

O funcionário que todos nós pensávamos que fosse um inspetor

não é um inspetor!

TODOS – Como não é o inspetor?

CHEFE DOS CORREIOS – Nem de longe. Esta carta revela

tudo.

GOVERNADOR – O quê? O que é que está escrito aí? Que

carta é essa?

CHEFE DOS CORREIOS – Uma carta dele próprio. Chegou à

agência dos Correios e eu li o remetente: Ivan Aleksandrovitch

Khlestakov. Fiquei petrificado de medo. Eu logo pensei que ele

tivesse descoberto alguma coisa errada nos Correios e queria

avisar o seu chefe. Foi só por isso que eu abri a carta.

GOVERNADOR – Como é que o senhor foi fazer uma coisa

dessas?

CHEFE DOS CORREIOS – Eu mesmo não sei dizer. Senti

como se uma força sobrenatural se apossasse de mim. E uma

voz dizia: “abre a carta, abre!” Já estava quase mandando a

carta ao destinatário quando senti uma curiosidade tão grande

que não resisti. Então outra voz me disse ao ouvido: “não abra

essa carta. Ela é a tua ruína!” E o primeiro demônio continuou

murmurando: “abre, abre, abre!” Quando eu abri, senti o sangue

pegando fogo em minhas veias. E uma febre gelada. Eu juro

que era gelada. Minhas mãos estavam trêmulas e tudo se

embaçou na minha frente.

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GOVERNADOR – Mas como é que o senhor teve a coragem de

abrir a carta de uma autoridade tão elevada?

CHEFE DOS CORREIOS – Essa é a questão. Não é nem

elevada, nem é autoridade.

GOVERNADOR – Então o que é que ele é?

CHEFE DOS CORREIOS – Não fede nem cheira. Nem o diabo

sabe quem ele é.

GOVERNADOR – Como “nem fede nem cheira” e dizer que

nem o diabo sabe quem ele é? Eu vou mandar o senhor para a

cadeia!

CHEFE DOS CORREIOS – Quem vai mandar: o senhor?

GOVERNADOR – Sim: eu!

CHEFE DOS CORREIOS – Acho que vai ser difícil!

GOVERNADOR – Fique sabendo que ele vai casar com a

minha filha. E eu mesmo hei de ser um nobre. E se quiser,

posso mandar o senhor até para a Sibéria!

CHEFE DOS CORREIOS – Ah, Anton Antonovitch! Faça-me o

favor. Esqueça da Sibéria, que é muito longe. O melhor é ler

essa carta. Se os senhores permitem, eu mesmo leio.

TODOS – Leia, leia, leia!

CHEFE DOS CORREIOS (Lendo) – “Apresso-me a informar-te,

meu caro Triapitchikin, das incríveis aventuras que comigo se

passaram. Durante a viagem, um capitão de Infantaria deixou-

me sem um níquel, a tal ponto que o taberneiro queria me

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mandar para a cadeia. Mas, eis senão quando, em virtude do

meu aspecto metropolitano, e das minhas roupas, o povinho

daqui me toma pelo próprio inspetor geral. Agora estou

hospedado na casa do Governador, levo uma vida ótima e

cortejo furiosamente sua mulher e sua filha. Resta-me somente

decidir por qual delas começar... creio que começarei pela

“mamãe”, já que me parece predisposta a oferecer todos os

serviços. Lembras-te dos tempos de miséria que passamos

juntos, comendo um dia sim, um dia não, e como certa vez o

dono de uma confeitaria me agarrou pelo pescoço, porque eu

não podia pagar os pastéis? Agora as coisas transcorrem

diferentemente. Todos me emprestam dinheiro, na quantidade

que eu bem entender. É uma gente pitoresca: se tu o visses,

morrerias de rir. E já que escreves para os jornais, poderias

colocá-los em tuas crônicas. Em primeiro lugar, vem o

Governador: ele é mais imbecil do que um capão na engorda...”

GOVERNADOR – Não, não é possível. Isso não está aí!

CHEFE DOS CORREIOS (Mostrando a carta) – Está sim, está

sim! Leia o senhor mesmo.

GOVERNADOR (Lendo) – “... mais imbecil do que um capão na

engorda!” Não, não pode ser! Foi o senhor mesmo que escreveu

isso!

CHEFE DOS CORREIOS – Como é que eu iria escrever?

ARTÊMY – Leia, leia!

LUKA – Leia!

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CHEFE DOS CORREIOS (Prosseguindo com a leitura) – “Em

primeiro lugar vem o Governador: ele é mais imbecil do que um

capão na engorda!”...

GOVERNADOR – Mas, que diabo! Pra que repetir? Todo

mundo já sabe, não é?

CHEFE DOS CORREIOS (Segue lendo) – Hmmm... hum...

hum!... “Mais imbecil do que um capão na engorda. O Chefe dos

Correios também é um bom homem...” (Parando de ler.) Bem,

aqui vêm umas expressões inconvenientes ao meu respeito...

GOVERNADOR – Ah, não! Leia!

CHEFE DOS CORREIOS – Mas, para quê?

GOVERNADOR – Não, senhor! Que diabo é isso? Já que está

lendo, leia tudo!

ARTÊMY – Permita-me. Eu leio. (Põe os óculos e lê.) “O Chefe

dos Correios é idêntico a Mikhaiev, contínuo da nossa

repartição. Deve ser também o mesmo poltrão e bêbado.”

CHEFE DOS CORREIOS – Não passa de um rapazola

malcriado que deveria levar uma surra, eis tudo!

ARTÊMY (Lendo) - ... “O Diretor do Hospital...” (Interrompe-

se.).

KOROBKIN – Por que parou?

ARTÊMY – Não entendo bem a letra... além disso vê-se logo

que é um miserável!

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KOROBKIN – Deixe ver! Acho que a minha vista é melhor que a

sua! (Quer pegar a carta.).

ARTÊMY (Resistindo) – Não, não, podemos pular esse

pedaço. O que vem a seguir já se entende.

KOROBKIN – Permita-me, talvez eu consiga decifrar!

ARTÊMY – Mas, para quê? Eu mesmo leio. Asseguro-lhe que

mais adiante se lê com muita facilidade!

CHEFE DOS CORREIOS – Não senhor. Até agora se leu tudo.

Não vale pular pedaços.

TODOS – Entregue a carta, Artêmy Fiedorovitch! Entregue a

carta! (A Korobkin.) Leia!

ARTÊMY – Imediatamente. (Entrega a carta.) Pronto! (Cobre

com a mão uma passagem.) Com licença... leia desde aqui...

(Todos se aproximam.).

CHEFE DOS CORREIOS – Leia, leia! Mas que bobagem! Leia

tudo!

KOROBKIN (Lendo) - ... “O Diretor do Hospital, um certo

Zemlianika, é um verdadeiro porco enfeitado!”

ARTÊMY – Hmmm! Nem ao menos tem espírito! Um porco

enfeitado? Onde já se viu isso?

KOROBKIN (Continua lendo) – “O Supervisor das Escolas

fede tanto a cebola que é de dar medo!”

LUKA – Eu juro por Deus que nunca provei uma cebola!

AMMOSS (À parte) – Graças a Deus, não fala de mim.

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KOROBKIN (Lendo) – “O Juiz...”

AMMOSS (À parte) – Ai: fui precipitado! (Em voz alta.)

Senhores, esta carta já está muito longa. É incrível que gente de

responsabilidade perca tempo com tamanha estupidez!

LUKA – Não, não!

CHEFE DOS CORREIOS – Que é isso? Que é isso? Vamos ler

sim senhor!

ARTÊMY – Isso mesmo! Que se leia!

KOROBKIN (Continuando) – “O Juiz, um tal de Liapkin-Tiapkin,

é um mauvais ton”... (Interrompe-se.) Deve ser uma palavra

francesa...

AMMOSS – Só o diabo sabe o que isso significa. Dou-me por

contente se significar malandro ou coisa parecida, mas talvez

seja coisa bem pior.

KOROBKIN (Prosseguindo) – “No mais, todos são

hospitaleiros e amáveis. Adeus, meu caro Triapitchikin.

Seguindo teu exemplo, estou decidido a enveredar pela

literatura. É muito monótona a vida assim. A alma também

precisa ser alimentada. Descobri que realmente é necessário

preocupar-se com as coisas superiores. Escreve-me, estarei na

província de Saratov, na aldeia de Podkatilovka. (Vira a carta e

lê o endereço.) Ao Ilustríssimo Senhor Ivan Vassielivitch

Triapitchikin, Rua do Correio, casa número 97, dobrando-se a

esquina, pátio, terceiro andar, à direita.”

UMA DAMA – Mas, que contratempo!

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GOVERNADOR – Apunhalou-me! Apunhalou-me! Estou morto!

Morto! Completamente morto! Não vejo mais nada! Só focinhos

de porco em lugar de caras! Focinhos de porcos!... Tragam-no

de volta! Tragam-no de volta!

CHEFE DOS CORREIOS – Quem poderá trazê-lo? Eu mesmo

ordenei para que lhe dessem a melhor tróika. E o diabo me

instigou para que eu lhe desse uma ordem escrita, com a qual

ele vai pegar os melhores cavalos de muda pelo caminho!

MULHER DE KOROBKIN – Que confusão incrível, meu Deus!

AMMOSS – E eu? E eu que lhe emprestei trezentos rublos?

ARTÊMY – O mesmo lhe dei eu!

CHEFE DOS CORREIOS (Suspirando) – Eu também lhe

emprestei trezentos rublos.

DOBTCHINSKI – Eu e Piotr Ivanovitch lhe emprestamos

sessenta e cinco.

AMMOSS (Desconcertado, com um gesto de perplexidade) –

Mas... mas, como foi isso, senhores? Como se explica termos

caído nesta impostura?

GOVERNADOR (Batendo na testa) – Como se explica ter isto

acontecido comigo!... Comigo... velho cretino!... É claro, perdi o

juízo! Estou ficando gagá! Trinta anos de administração pública!

Em trinta anos nenhum comerciante, nenhum atravessador

conseguiu me enganar. Eu sim enganava um tapeador depois

do outro. Enganei os maiores ladrões e malandros, desses que

roubam meio mundo. Meti no bolso três governadores! E que

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governadores! (Com um gesto de desalento.) Ah, não falemos

de governadores!

ANNA – Mas isso não pode ser Antocha. Ele se comprometeu

com Machenka!...

GOVERNADOR (Enfurecido) – Ah, se comprometeu? Pensa

que se comprometeu! E vem ela dizendo: “se comprometeu”!

Vejam, vejam todos! Todo o mundo! Toda a cristandade! Vejam

todos como o Governador foi feito de besta! Vejam todos como

passou por imbecil! O velho malandrão!... (Ameaçando-se com

o próprio punho.) Ah, narigudo desgraçado! Confundiste um

palhaço com um homem importante. E lá se vai ele, rindo pelos

caminhos. Espalhando aos quatro ventos o que aconteceu! E

como se não bastasse ser motivo de troça para todo mundo,

ainda vai aparecer um rabiscador, um borrador de papéis

qualquer que te meterá numa comédia! Isso é o que mais me

dói! Não respeitará meu cargo, minha posição! E todos

gargalharão mostrando os dentes e batendo palmas! Parece

que os vejo! Mas estão rindo de quê? Imbecis! Estão rindo de si

mesmos! (Bate com os pés no chão, irado.) Ai, que eu

esmagaria todos esses caneteiros! Ah! Escrevinhadores, ah,

liberais malditos, sementes do diabo! Eu amarraria todos juntos

num só feixe, eu os transformaria em pó, eu os... ah! (Dá golpes

com os punhos no ar, batendo com os pés. Depois de uma

pausa, procura dominar-se.) Não consigo me acalmar. É

assim mesmo: quando Deus quer nos castigar, começa por nos

tirar o raciocínio!... Vamos ver: o que tinha de inspetor geral

aquele malandro? Nada, absolutamente nada! Nem um pingo de

semelhança e, no entanto, de repente, estavam todos lá:

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“inspetor aqui, inspetor ali... Ah, o inspetor! Meu Deus, um

inspetor!” Quem foi o primeiro a espalhar que ele era o inspetor?

Respondam!

ARTÊMY (Com um gesto de perplexidade) – Que eu morra se

entendo como é que isso foi acontecer! Foi como se entrasse

uma névoa na minha cabeça, como se eu fosse enredado pelo

próprio demônio!

AMMOSS – Pois aqui está quem espalhou a notícia.

(Apontando Dobtchinski e Bobtchinski.) Foram estes

cavalheiros!

BOBTCHINSKI – Ei, ei! Eu não! Nem sequer pensei...

DOBTCHINSKI – Eu não disse nada, absolutamente nada...

ARTÊMY – Foram os senhores, sim!

LUKA – Claro que foram eles! Vieram correndo da taberna,

gritando como uns loucos: “ele veio! Vive e não paga!” Pelo

amor de Deus, bela personagem vocês descobriram.

GOVERNADOR – Naturalmente que foram vocês! As comadres

da cidade! Boateiros malditos!

ARTÊMY – Que vão pro diabo, com o inspetor e todas essas

histórias!

GOVERNADOR – Vivem correndo pela cidade, cochichando,

urubus desgraçados!

AMMOSS – Malditos difamadores!

LUKA – Palhaços!

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ARTÊMY – Intrigantes pançudos! (Todos cercam os dois

acusados.).

BOBTCHINSKI – Juro por Deus que não fui eu! Foi Piotr

Ivanovitch!

DOBTCHINSKI – Oh, não, Piotr Ivanovitch! Pois se foi o senhor

primeiro a...

BOBTCHINSKI – Não, não, Piotr Ivanovitch, o primeiro foi o

senhor.

Última Cena

Entra um soldado.

SOLDADO – Senhores! Um funcionário, que acaba de chegar

de São Petersburgo com ordens especiais, ordena que o

procurem imediatamente. Ele está no hotel. (As palavras

pronunciadas têm o efeito de um raio. De todos os lábios

femininos ecoa um som de surpresa; todo o grupo que, de

repente, muda de posição, pára como que petrificado. O

Governador está no centro, como uma coluna, as mãos

estendidas e abertas, cabeça inclinada para trás. À sua

direita, estão sua esposa e sua filha, com um movimento de

corpo em sua direção; atrás delas, o Chefe dos Correios,

convertido num ponto de interrogação dirigido ao público.

Detrás dele, Luka, que se encontra perdido da forma mais

inocente possível; detrás de Luka, no ponto extremo da

cena, três das senhoras visitantes apóiam-se uma na outra,

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com expressões fisionômicas satíricas, diretamente

alusivas à família do Governador. À esquerda do

Governador está Zemlianika, com a cabeça um pouco

inclinada, como se estivesse escutando alguma coisa; atrás

dela, o Juiz, com os braços abertos, quase sentado no

chão, e com um movimento nos lábios, como se quisesse

assoviar e exclamar: “estamos diante do Juízo Final!” Mais

atrás, Korobkin, que pisca um olho maliciosamente para os

espectadores, divertindo-se com a situação do Governador;

mais atrás, no fundo do cenário, Bob e Dob, com os braços

estendidos um para o outro, de boca aberta e olhos fora das

órbitas. Os demais visitantes reduziram-se meramente a

simples colunas estáticas. Durante quase meio minuto, o

grupo mantém-se petrificado nessa atitude.).

FIM