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DOI: 10.20287/doc.d22.ar1 O (ir)representável da História: o cinema e o arquivo do Holocausto Miguel Mesquita Duarte* Resumo: Partindo da relação entre o cinema documental do Holocausto e o regime deleuziano da imagem-tempo, este artigo centra-se na análise comparativa de dois filmes, – Shoa, de Lazmann, e Histoire(s) du cinéma, de Godard, – de forma a com- preender diferentes perspetivas sobre a montagem, o audiovisual e o valor das imagens de arquivo como suportes documentais e atos de testemunho. Palavras-chave: arquivo fílmico; memória; montagem; cinema experimental docu- mental; Gilles Deleuze. Resumen: Partiendo de la relación entre el cine documental del Holocausto y el régi- men deleuziano de la imagen-tiempo, este artículo se centra en el análisis comparativo de dos películas –Shoa, de Lazmann, y Histoire(s) du cinéma, de Godard– con el pro- pósito de comprender diferentes perspetivas sobre el montaje, el audiovisual, y el valor de las imágenes de archivo como soportes documentales y como actos de testimonio. Palabras clave: archivo fílmico; memoria; montaje; cine experimental documental; Gilles Deleuze. Abstract: Starting from the relationship between the documentary cinema of the Ho- locaust and the Deleuzian regime of the time-image, this article focuses on the com- parative analysis of two films, – Shoa, by Lazmann, and Godard’s Histoire(s) du ci- nema – in order to understand different perspectives on the montage, the articulation between sound and image, and the value of archival images as documents and acts of testimony. Keywords: film archive; memory; montage; experimental documentary film; Gilles Deleuze. Résumé: À partir de la relation entre le cinéma documentaire de l’Holocauste et le régime deleuzien de l’image-temps, cet article se concentre sur l’analyse comparative de deux films, – Shoah, de Lanzmann, et Histoire (s) du cinéma, de Godard - afin d’en comprendre les différentes perspectives sur le montage, l’audiovisuel et la valeur des images d’archives comme document et actes de témoignage. Mots-clés: archives ; mémoire; montage ; documentaire expérimental ; Gilles De- leuze. * Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de História da Arte. 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] Submissão do artigo: 02 de fevereiro de 2017. Notificação de aceitação: 27 de maio de 2017. Doc On-line, n. 22, setembro de 2017, www.doc.ubi.pt, pp. 216-242.

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DOI: 10.20287/doc.d22.ar1

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Miguel Mesquita Duarte*

Resumo: Partindo da relação entre o cinema documental do Holocausto e o regimedeleuziano da imagem-tempo, este artigo centra-se na análise comparativa de doisfilmes, – Shoa, de Lazmann, e Histoire(s) du cinéma, de Godard, – de forma a com-preender diferentes perspetivas sobre a montagem, o audiovisual e o valor das imagensde arquivo como suportes documentais e atos de testemunho.Palavras-chave: arquivo fílmico; memória; montagem; cinema experimental docu-mental; Gilles Deleuze.

Resumen: Partiendo de la relación entre el cine documental del Holocausto y el régi-men deleuziano de la imagen-tiempo, este artículo se centra en el análisis comparativode dos películas –Shoa, de Lazmann, y Histoire(s) du cinéma, de Godard– con el pro-pósito de comprender diferentes perspetivas sobre el montaje, el audiovisual, y el valorde las imágenes de archivo como soportes documentales y como actos de testimonio.Palabras clave: archivo fílmico; memoria; montaje; cine experimental documental;Gilles Deleuze.

Abstract: Starting from the relationship between the documentary cinema of the Ho-locaust and the Deleuzian regime of the time-image, this article focuses on the com-parative analysis of two films, – Shoa, by Lazmann, and Godard’s Histoire(s) du ci-nema – in order to understand different perspectives on the montage, the articulationbetween sound and image, and the value of archival images as documents and acts oftestimony.Keywords: film archive; memory; montage; experimental documentary film; GillesDeleuze.

Résumé: À partir de la relation entre le cinéma documentaire de l’Holocauste et lerégime deleuzien de l’image-temps, cet article se concentre sur l’analyse comparativede deux films, – Shoah, de Lanzmann, et Histoire (s) du cinéma, de Godard - afin d’encomprendre les différentes perspectives sur le montage, l’audiovisuel et la valeur desimages d’archives comme document et actes de témoignage.Mots-clés: archives ; mémoire; montage ; documentaire expérimental ; Gilles De-leuze.

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Institutode História da Arte. 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

Submissão do artigo: 02 de fevereiro de 2017. Notificação de aceitação: 27 de maio de 2017.

Doc On-line, n. 22, setembro de 2017, www.doc.ubi.pt, pp. 216-242.

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1. Introdução: A imagem-tempo deleuziana e o cinema documental

Um dos aspetos mais importantes da imagem-tempo deleuziana refere-seà situação ótica e sonora pura. Esta acompanha a emergência daquilo que oautor francês viria a conceptualizar como as formas cristalinas da narração ci-nematográfica. No novo caminho procurado pelo cinema da imagem-tempo,tudo se passa como num cristal, assistindo-se a uma permanente troca entre aopacidade e a transparência, o visível e o invisível, o presente e o ausente, overdadeiro e o falso. A imagem é pois empurrada para um regime de coexis-tência, no qual cada termo não subsiste isolado, mas devém continuamente oseu contrário. Mais exatamente, e seguindo a terminologia deleuziana, o queacontece é que, ao invés de se ligar a ações operativas no espaço, definido-ras de um todo narrativo coerente e totalizador, próprio ao regime orgânico docinema dito clássico (regime da imagem-movimento), a imagem cristalina dasituação ótica e sonora pura passa a constituir um circuito de indecidibilidade ede incerteza, pela ligação a uma imagem puramente virtual. O acontecimentonarrado pelo cinema envolve agora uma troca recíproca entre o presente e opassado, o verdadeiro e o falso, o atual e o virtual, o real e o imaginário, e oato do ver é atirado para uma zona de infinita reserva e questionamento.

Por outro lado, perante o critério de coexistência e de indiscernibilidadedas imagens cristalinas, que definem o regime da imagem-tempo, não bas-tava já, para Deleuze, evocar o flashback. Este depende ainda da intervençãode uma consciência individual que restitui o acontecimento narrado atravésde imagens-lembrança datáveis e perfeitamente determinadas. Aí, o passadosurge ainda simplificado como presente antigo, inserido num esquema diegé-tico tendente a explicar a ordem dos factos, por recurso a esquemas de sucessãodo antes e do depois. Com efeito, é de notar que, em Deleuze, o critério do cris-talino (que deve ser preservado como metáfora de uma condição não-orgânicae mineralizante) não é atribuível à produção subjetiva da mente. Trata-se, pelocontrário, de uma característica inerente às próprias imagens e linguagem ci-nematográfica, cuja potencialidade é a de fundar uma representação incomen-surável das coordenadas de espaço-tempo. Como referia Deleuze, aquilo quenós vemos no cristal não é a progressão empírica do tempo, mas a sua apre-sentação direta, o desdobramento constitutivo que emerge da interrupção dosprolongamentos racionais e motrizes, confrontando a perceção atual com umarepentina e perturbadora incapacidade de evocação de um passado delimitável.

A imagem-tempo pode por isso ser equiparada, como viu D.N. Rodowick,a uma imagem da memória. Esta envolve uma operação na qual a perceçãoé continuamente redobrada por uma lembrança, mas uma lembrança que res-peita ao constante jogo de reciprocidade entre o presente e o passado. Tudo

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se passa, efetivamente, como numa interminável fita de Moebius. Ora, o quea imagem-direta do tempo apresenta é, justamente, este movimento da pró-pria memória e do pensamento, e não o movimento mecânico dos corpos noespaço. Como escreve Rodowick, “Estas imagens desdobram-se através dedeslocamentos na memória mais do que em ligações cronológicas; o espaço éorganizado através de uma lógica de falsa continuidade, apresentando o tempocomo movimento aberrante” (Rodowick, 1997: 113). Reside aqui a marcada especificidade do cronosigno da imagem-tempo. O cronosigno implica umpassado que não pode ser mostrado, ou melhor, um passado que não pode seridentificado e designado nem em função de estados de coisas fixados, nemem função de proposições verdadeiras e totalizadoras. Trata-se de um passadoincerto, sem ponto fixo, apontando para séries de desdobramentos e bifurca-ções nunca completas, até porque o critério da indiscernibilidade aponta paraum processo de contínua renovação e reprodução do acontecimento. Comoescreve Deleuze, na imagem-tempo:

[...] não há mais ligação entre imagens associadas, mas apenas rearticula-ção de imagens independentes. Em vez de uma imagem depois da outra,existe uma imagem ‘mais’ outra imagem, e cada plano é desenquadrado emrelação ao desenquadramento do plano seguinte... [A imagem-tempo] põe opensamento em contacto com o impensável, o inapreensível, o inexplicável,o indecidível, o incomensurável. O fora ou o reverso das imagens substituiuo todo, ao mesmo tempo que o intervalo [‘interstice’] ou o corte substituiu aassociação. (Deleuze. Cit. Rodowick, 1997: 14).

Neste sentido, a imagem-lembrança terá, por si só, pouco interesse, en-quanto ela não supuser regiões virtuais do passado e ligações que subsis-tem num constante esforço de evocação, envolvendo a contração do presentecomo parcela mais vasta de uma procura constantemente redobrada e reto-mada. Desta forma, várias possibilidades do passado coexistem ao nível deuma arquitetura da memória sem centro fixo ou identificável. É esta relaçãoda imagem-tempo com o fenómeno dos deslocamentos da memória não sub-jetiva, e consequente aproximação ao sentido próprio de historicidade, tomadaenquanto relação de tempos heterogéneos que se encaixam através de múl-tiplas combinações, que justifica, como pretendemos demonstrar a partir dediferentes exemplos, o encontro entre a teoria de Deleuze sobre o cinema e ofilme documental, nomeadamente no momento em que este procura expressaro irrepresentável de um acontecimento limite como o Holocausto. Interessaigualmente pensar a radical transformação da linguagem cinematográfica nasua potência documental e histórica, pois só essa transformação se revelaráadequada à narração dos eventos-limite da História.

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Neste sentido, a afirmação de Adorno de que “nenhuma palavra com umtom elevado, nem mesmo uma palavra teológica, permanece com um direitonão-transformado depois de Auschwitz” (Adorno 2009: 304), adquire toda arelevância. Esta afirmação, frequentemente citada e ligada, como assinalouAnton Kaes, a um "sentimento de pós-história"(Kaes, 1992, 207), expressa aideia de que o acontecimento traumático do genocídio perpetrado pelos Na-zis exige uma transformação radical das formas artísticas e do pensamento, asquais devem integrar novas metodologias e configurações, capazes de respon-derem aos efeitos produzidos pelo Holocausto e pela Segunda Grande Guerra.É esta exigência de transformação radical do cinema, considerada nas suas im-plicações antropológicas, culturais, filosóficas e políticas, que marca a teoriade Deleuze, algo que, de resto, orienta decisivamente a identificação da pas-sagem que nos leva da imagem-movimento à imagem-tempo. Também aqui,a teoria de Deleuze converge com a problemática do cinema documental en-quanto forma alternativa de conhecimento histórico, interessando examinar astransformações formais e semânticas que afetam a linguagem cinematográficacomo documento do real.

É o que acontece no exemplo, central na teoria deleuziana, da obra deAlain Resnais. Em Alain Resnais, o inconcebível da morte e da violênciado acontecimento produz o apagamento de um centro, ou ponto fixo, a par-tir do qual aquele poderia ser atingido como instância unitária e conclusiva.Veja-se Hiroshima, mon amour (1959), paradigmaticamente situado num es-paço de permanente indecisão entre o documental e o ficcional. O passadonão é suscetível de ser estabilizado num ponto fixo e rigorosamente evocável,possibilitador de uma ligação direta com o presente. O diálogo que pontua oprelúdio do filme marca esse caráter de incerteza: “Ele: Tu não viste nada emHiroshima. Nada. Ela: Eu vi tudo. Tudo”. Os planos aproximados dos cor-pos dos amantes são então intercalados com fragmentos de filmes de arquivoda tragédia de Hiroshima, evocando os limites impossíveis do nada e do tudodaquilo que pode ser dito e mostrado. Esses fragmentos envolvem os afetos eas sensibilidades das personagens numa memória que, todavia, não pode serreduzida a uma produção subjetiva. Algo de semelhante acontece no documen-tário de Resnais sobre os campos de concentração e de extermínio Nazi, Nuitet brouillard (1955): “9 milhões de mortos obcecam esta paisagem”, apelandoa um ponto procurado que é inacessível, um ponto do passado que é da ordemdo impensável, não sendo por isso suscetível de atualizar-se numa lembrançatotalizadora e unívoca (Deleuze, 2006: 162).

É que, como refere Deleuze, a morte não pode fixar-se no presente comocentro determinável enquanto o impensável obscurecer a memória e os níveis

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do passado. Estes envolvem não só a lembrança, mas também “o esqueci-mento, a falsa lembrança, a imaginação, o projeto, o julgamento...” (Deleuze,2006:152-53), impedindo que o passado se degrade numa lembrança cronoló-gica balizada pelo modelo do verdadeiro e pelos esquemas interpretativos dahistória. Desta forma, é a própria narrativa que se vai transformando a par-tir de vários tempos coexistentes, persistentemente bifurcados e entrecortados,dando azo ao irromper de múltiplas saídas que não são nunca inteiramenteconcretizadas. Perante o impensável da morte e da destruição, o evento perdea sua invariabilidade e não pára de se transformar e de se recriar como ato defabulação, como ato de pensamento irredutível à conformação a um modelode verdade e de universalidade. A verdade não tem de ser produzida ou alcan-çada. Ela terá de ser criada e fabulada. Desta forma, Deleuze remete-nos paraa ideia de uma “função fabuladora” do cinema que, sendo encontrada pelo au-tor francês no cinema documental de realizadores como Perrault e Jean Rouch,produz a erosão da ficção a favor de uma memória ativa e politicamente com-prometida. Porque o que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade – cujomodelo, como afirma Deleuze, “é sempre a dos mestres ou dos colonizadores”(Deleuze, 2006: 195), mas a potência de fabulação que inscreve a memóriacomo duração e ato criador de narração.

Isto não significa, como tal, que o acontecimento histórico não possa serconhecido, interpretado e construído pelas formas do cinema documental, in-separáveis de um certo valor de veracidade que importa preservar ao nível dorelato do acontecimento. Simplesmente, história e memória não serão maisapreendidas como facto já dado, cingidas a um único tempo e a um únicoespaço, devendo ser, precisamente, construídas e reinventadas no seio de umprocesso imaginativo que une o testemunho e o literário, trazendo consigouma forma alternativa de construção documental. No cinema documental daimagem-tempo, a história emergirá, mais exatamente, como facto da memó-ria que faz existir aquilo que não pode ser mostrado e que subsiste como puravirtualidade e reserva. Como indicámos, esta questão revela-se crucial no quetoca a perspetivar a possibilidade de construção da imagem histórica no mo-mento em que o presente procura contactar com um passado que é atravessadopela dimensão do impensável e do inimaginável, tal como acontece quandoconsideramos um acontecimento limite como o extermínio na Segunda GrandeGuerra. É esta questão que procuraremos abordar nos próximos pontos.

2. O sonoro e o visual: Shoah e Nuit et brouillard

Coloca-se uma primeira questão: revelar-se-á adequado suscitar a catego-ria do inimaginável para os eventos-limite da História? Em Imagens apesar

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de tudo, Georges Didi-Huberman propõe que o inimaginável não deve sequerser convocado perante as imagens e as palavras que nos chegam das experiên-cias hediondas dos campos de concentração e de morte (Didi-Huberman, 2012:15). O que está em causa na tentativa de imaginar aquilo que julgávamos im-possível é uma dívida e um tributo para com aqueles que se dispõem a relataressa experiência. Equivale a disponibilizarmo-nos a ver e a ouvir os testemu-nhos que procuram dar uma forma ao inimaginável, de modo a retirar algo,nesse gesto de humanidade, da vivência de um inferno mecanizado e erigidosob a racionalização do horror. Não é a dimensão hedionda do extermínio demassa que constitui a exclusividade do Holocausto, mas sim o programa indus-trializado da morte e da supressão, por sua vez acompanhado de um programade supressão das provas desse ato duplamente monstruoso. Aqueles capazes detestemunhar eram liquidados, e se alguma informação, ou alguém, escapassepara o exterior, os relatos seriam demasiado dispersos, e, sobretudo, demasi-ado inconcebíveis, como observou Jacques Rancière, para serem inteiramentecríveis: ainda que um de vós fique para testemunhar, ninguém o acreditará(Rancière, 2011: 170).

É este o cerne da supressão ligada à terrível lógica negacionista dos Na-zis. É esta a maquinaria da desimaginação em que estava sustentada a SoluçãoFinal: fazer desparecer os utensílios, as estruturas e as fábricas de liquidação,mas também os arquivos e a “memória do desaparecimento” - forma de “man-ter, ainda e sempre [o acontecimento] na sua condição inimaginável” (Didi-Huberman, 2012: 37). Esta ideia é igualmente defendida por Peter Haidu noseu ensaio The Dialectics of unspeakability (Haidu, 1992). Segundo o autor,nós devemos hesitar profundamente perante a utilização de conceitos como osde irrepresentabilidade e de indizidibilidade para caracterizar o Holocausto.Isso equivaleria a aceitar, e até a perpetuar, depois dos factos e depois dasmortes, a apologia do encobrimento e do silenciamento.

É por isso que, para Jacques Rancière, aquilo que se exige representar doHolocausto é “uma dupla supressão: a supressão dos judeus e a supressão dasmarcas da sua supressão” (Rancière, 2011: 168). A habitual lógica ficcionalque aspira ao modelo do todo e do verdadeiro não se coaduna a esta exigên-cia. O inominável do Holocausto é incompatível com o tratamento ficcional,regulado pelos habituais artifícios dramatúrgicos e pela encenação da históriados carrascos e das vítimas numa lógica de espetáculo e distração (Rancière,2011: 169). Mas também o testemunho puro, pretensamente capaz de resti-tuir factualmente o acontecimento do passado, constitui uma resposta insufici-ente, dado que falha a representação da segunda supressão, aquela respeitanteao programa de apagamento das marcas e da memória do extermínio. Dar

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conta dessa dupla supressão metodicamente elaborada exige que se edifiqueum trabalho de fabulação que incorpora a dimensão lacunar e fragmentária doevento. Implica que a palavra proferida pelas testemunhas seja relacionadacom a realidade material e o esvaziamento do lugar onde ocorreu o massacre eo aniquilamento (Rancière, 2011: 168). E, dessa forma, é também a inserçãodo próprio sujeito-testemunho numa narrativa capaz de atingir o outro, o outroque não experienciou o horror do acontecimento senão indiretamente, que éatingida.

É esta, com efeito, a fórmula ativada por Claude Lanzmann em Shoah,filme-documentário de 1985 que se baseia na coleção dos testemunhos diretosdos sobreviventes do extermínio. As questões colocadas diretamente por Lanz-mann aos sobreviventes dos campos solicitam uma resposta, uma descrição doinimaginável. Em Shoa, o conteúdo dos relatos é pontuado pela gravidade dosrostos daqueles que falam, mas também pelas imagens dos lugares agora de-sertos e esvaziados da presença. Aquilo que é narrado pelo ato da palavra, eque se reporta aos acontecimentos vividos, prolonga-se através da imagem quemostra os vestígios e os lugares esvaziados. Neste sentido, a imagem aparececomo testemunho visual e fabulador daquilo que persiste no tempo como ras-tro e invisibilidade, como ruína do que é descoberto pelos lentos movimentosde câmara. Mas, por esse mesmo motivo, a articulação entre voz e imagemestá sempre em falta. Existe uma inadequação entre palavra e imagem, entrediscurso proferido na primeira pessoa, que procura desenterrar o episódio noseu terror, e o lugar agora vazio, apresentando-se como clareira, como esvazi-amento. É essa inadequação entre sonoro e visual que a montagem sublinha,convocando um ato de construção como imaginação.

Em Shoah, a relação entre a palavra e a imagem implica, assim, aquiloque D.N. Rodowick viria a conceber como um ato de “imaginação histórica”.Um ato que nos coloca em contacto com a memória enquanto trabalho dereconstrução e montagem, enquanto “relação histórica” que combina os traçosvisuais do presente com o ato de testemunho dos sobreviventes (Rodowick,1997: 147). A palavra que se forma e se torna palpável no lugar esvaziado,adquire, ao ser proferida no presente, uma dimensão alucinatória. O seu realé o real da desaparição, é o momento paradoxal em que a ausência é tornadapresente e presença, podendo ser atingida apenas como ato de fabulação, istoé, ato de imagem e de imaginação.

Na primeira sequência de Shoah, por exemplo, Lanzmann acompanha ahistória de um sobrevivente que revisita o campo de extermínio de Chelmno,na Polónia. O campo encontra-se agora totalmente soterrado na paisagem. Acâmara percorre um espaço de grande extensão, mas no qual é apenas possível

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ver uma grande clareira, rodeada de uma densa cortina de árvores que se pro-longa indefinidamente. As palavras proferidas pelo sobrevivente, que procuradescrever aquilo que ali se tinha passado, formam-se como que estratigrafi-camente no espaço deserto. A dada altura, e por via da abertura do plano, apresença do corpo é miniaturizada, ocupando uma imagem que aviva o cerneda supressão e a lógica do negacionismo Nazi (Rancière, 2011). Na realidade,é a própria imagem que adquire, na sua relação com o sonoro, uma dimen-são estratigráfica. É que aquilo que estava soterrado na paisagem é tornadoagora visível através da palavra, que se converte numa imagem independente.A imagem, por sua vez, torna-se legível, adquire um caráter problemático e ar-queológico, fazendo surgir múltiplas linhas de confronto entre a imagem visuale a imagem sonora. Esta imagem legível implica, assim – tal como observadopor D.N. Rodowick, a partir do que Deleuze considerava como constituindo oregime verdadeiramente audiovisual do cinema (Deleuze, 2006 : 293) – um atode leitura e de atenção pelo espectador. Este relaciona os dados apresentadosatravés de formas de inteligibilidade que dependem de um registo simultane-amente factual e imaginativo. Só assim o espectador pode imaginar e chegarperto do inominável e do irrepresentável que lhe é apresentado.

A rutura sensorial motriz que funda a narração cristalina da imagem-tempoencontra, desta forma, o seu culminar na apreensão do intolerável que suscitaa desarticulação entre o ato da palavra e o ato da imagem. A imagem torna-seato fundador e faz subir aquilo que está antes e depois da palavra, enquantoesta atinge o seu limite pelo modo como profere o invisível e o inominável dopassado do acontecimento. A circulação entre a palavra e a imagem dependede um espaço estratigráfico, apontando para uma zona de exterioridade infini-tamente longínqua, dado que o mundo exterior registado encontra-se ocultado,dissolvido no tempo, constituindo um fora, ou um puramente virtual, que forçaa sensibilidade e obriga a pensar o impensável. Por isso mesmo, o fora remetesimultaneamente para um dentro que surge como o impensado no pensamento,uma estranha forma de subjetividade que é mais profunda do que qualquermundo interior. Em suma, uma subjetividade que se forma num espaço de dra-maturgia singular, afeta ao registo documental cinematográfico como exercíciofabulatório e operação audiovisual (Deleuze 2006: 354). Esta dissociação en-tre o sonoro e o visual acaba por fornecer a cada uma das componentes daimagem uma potência renovada, apontando para as múltiplas camadas de sig-nificação que organizam o espaço da imagem como algo a decifrar, como pontoenigmático que requer um ato de interpretação ativa. Um ato de pensamentoque procura no discurso aquilo que não pode ser visto, e no visível aquilo quea palavra não consegue mais expressar (Rodowick, 1997: 151).

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Este tipo de correlação entre palavra e imagem caracteriza alguns dos maisimportantes momentos de Shoah. Todavia, esta marca da audiovisualidadenão é algo de exclusivo, nem muito menos de inaugurado, por Claude Lanz-mann. No contexto do tratamento do Holocausto pelos meios fílmicos, essarelação encontrava-se já exemplarmente trabalhada por Alain Resnais, emborade uma outra forma, em Nuit et brouillard, de 1955, com textos de Jean Cay-rol. Neste caso, o ato da palavra não é o do testemunho direto e na primeirapessoa, correspondendo antes à voz off que evoca, que comenta e que abre asequência de imagens a uma nova potência sensorial e cognitiva, fornecendoao não-visto uma presença específica. O discurso autonomiza-se, ultrapassa aimagem visual. Mas sem renunciar a essa imagem completamente, dado en-contrar nos lugares desconectados e vazios, que só a câmara pode percorrer, oespaço privilegiado de acolhimento de um ato da palavra que funciona verda-deiramente como testemunho. Por outro lado, a voz off sofre, também ela, umdeslocamento, pois deixa de ver tudo de forma omnisciente. Torna-se incerta,questionadora, dado que aquilo de que ela fala é o inominável. Na realidade,já não há fora de campo ou voz off, como observava Deleuze, dado que o forae o invisível se tornaram a própria imagem visual e sonora, o visual e o sonororelacionando-se através de um corte irracional, um ponto irracional que fazintervir o pensamento como ato de criação e de construção. Em Nuit et brouil-lard, este movimento recíproco entre o visual e o sonoro pode ser encontrado,por exemplo, numa sequência em que o travelling faz avançar a câmara sobreos carris que levam à entrada do campo de morte, justapondo-se ao discursoque diz:

Hoje, nos mesmos caminhos, o sol brilha. Percorremo-los lentamente, mas àprocura de quê? Do traço dos cadáveres que tombavam no chão quando asportas das carruagens se abriam? Ou talvez daqueles guiados para os camposcom uma arma apontada à cabeça, entre o ladrar dos cães e as luzes dos pro-jetores, com o fumo do crematório à distância, numa dessas cenas noturnastão ao gosto dos Nazis? (Cayrol, 1955).

Mais à frente, sobrepondo-se a um travelling sobre as camas amontoadasdos dormitórios: “[...] nenhuma descrição, nenhuma imagem pode revelar asua verdadeira dimensão: interminável, ininterrupto medo [...] [Estas ima-gens] são tudo o que nos resta para imaginar uma noite de gritos penetrantes,de controlo de infestações, de ranger de dentes. É necessário tentar adormecerrapidamente” (Cayrol, 1955). Em Resnais, a palavra cria o acontecimento, e oacontecimento é recoberto pela terra, pela paisagem que oculta os cadáveres,fornecendo um sentido estratigráfico à imagem que complementa a palavra.O sonoro renuncia agora ao exercício empírico de ligações visuais convenci-onadas, orientando a imagem visual para o limite do invisível e do indescrití-

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vel: nenhuma imagem pode revelar a verdadeira dimensão do acontecimento,como é afirmado em Nuit et brouillard, mas é por ela, ou melhor, é por via dasua relação assíncrona com o sonoro, que é possível imaginar, chegar perto doponto do inominável e do invisível de uma experiência que não é a nossa.

Uma vez mais, a imagem não regista o espaço nas suas relações mensurá-veis, mas imprime o tempo, incorporando a memória e o pensamento do forano dentro da imagem e da perceção. Como escrevia Deleuze, “a imagem visualnunca mostrará o que a imagem sonora enuncia” (Deleuze, 2006: 355). Cadauma atinge o limite que a separa da outra, descobrindo um território comumde relações incomensuráveis

Desde então, nenhuma das duas faculdades se eleva ao exercício superior sematingir o limite que a separa da outra, mas referindo-se à outra separando-a. O que a palavra profere é igualmente o invisível como a vista só vê pelavidência e o que a vista vê é o que a palavra profere do indizível. (Deleuze,2006: 332).

3. O arquivo de imagens: uma imagem sem imaginação?

O filme Shoah constitui um exemplo incontornável na problemática refe-rente aos limites representativos do cinema. Mas que limites são esses? Oumelhor, quais os limites a que o filme deve obedecer quando está em causa atransmissão de um evento-limite que escapa às habituais metodologias e for-mas de conceptualização? Para Lanzmann esses limites são claros e dizem res-peito à desclassificação das imagens de horror dos arquivos fílmicos. Porém,como notou por exemplo Jacques Rancière, esta posição resulta numa colagema um discurso ligado ao irrepresentável e ao interdito da representação, e, maisexatamente, ao interdito da imagem.

Não tanto por aquilo que é o filme de Lanzmann considerado isoladamente,pois esse, como se viu, parte de uma utilização da imagem no seu confrontocom o ato da palavra, atingindo o cerne de uma experiência representativa efabulatória. Mas sim porque é o próprio Lanzmann que, em inúmeros discur-sos e entrevistas, questiona a efetividade da imagem como ato de testemunho,concedendo ao ato da palavra um quase total privilégio, com subsequente me-norização dos poderes da imagem. O que está aqui em causa é, igualmente, aproblemática relativa aos valores e usos do arquivo de imagens, nomeadamentequando este pode intervir na compreensão e transmissão de um acontecimentodecisivo na história do Séc.XX Ocidental. É pois sobre este conjunto de ques-tões que importa refletir.

Lanzmann não podia ser mais perentório quando afirma que a imagem nãoé capaz de mostrar o indizível e o inconcebível do Holocausto. A imagem não

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mostra tudo – não há, por exemplo, imagens daquilo que se passou no inte-rior das câmaras de gás; não há sequer uma única imagem de Chelmno nemde outros campos de extermínio. Mas mesmo que essas imagens existissem,elas seriam, na opinião de Lanzmann, profundamente insuficientes, dado pro-duzirem uma visão sempre dispersa e incompleta da realidade. Mais ainda, aimagem é, segundo Lanzmann, sem imaginação, pois ela tende a produzir umaficção do acontecimento; ela tende a estabilizar o horror num ícone especta-cularizado, que nada nos diz sobre a experiência do medo e da angústia dasvítimas. A imagem de arquivo seria, por isso, um ícone vazio, uma instânciaque pouco ou nada conta para o verdadeiro conhecimento dos acontecimentosmais extremos. Repare-se nesta passagem de Lanzmann:

Sempre disse que as imagens de arquivo são imagens sem imaginação. Elaspetrificam o pensamento e matam todo o poder de evocação. Vale bem maisfazer o que eu fiz, um imenso trabalho de elaboração, de criação da memóriado acontecimento. O meu filme é um monumento que faz parte daquilo quemonumentaliza, como diz Gérard Wajcman [...] Preferir o arquivo às palavrasdas testemunhas, como se aquele pudesse mais do que estas, é reconduzirsub-repticiamente esta desqualificação da palavra humana na sua destinaçãopara a verdade. (Lanzmann, 2001 : 274).

O primeiro ponto importante a assinalar neste posicionamento refere-se aofacto de Lanzmann conferir um privilégio absoluto ao ato da palavra. O relatodireto e na primeira pessoa dos sobreviventes é, segundo o realizador, o únicotestemunho passível de nos dar conta da experiência dos campos. É o ato dapalavra, e a presença que ganha corpo naquele que a profere, que constitui aúnica forma adequada de testemunhar a experiência do Holocausto, pois sóatravés da palavra é possível conhecer e imaginar o impossível desse aconte-cimento. Donde o interesse de Lanzmann pelo pormenor e pelo detalhe dosrelatos; as questões por ele colocadas procuram insistentemente ir ao encontrodo mais ínfimo e aparentemente banal pormenor das descrições. Lanzmannnão se dirige às grandes questões metafísicas sobre o mal, a injustiça ou a re-denção. À semelhança do método historiográfico de Raul Hilberg, assumidopelo próprio Lanzmann como a sua grande referência metodológica, Lanz-mann procura investigar as pequenas questões: Estava frio?; Desenterrava oscorpos com as mãos ou com instrumentos?; Mostre-nos como cortava os ca-belos das mulheres... Dessa forma, ele procura retirar dos relatos uma formade descrição e de construção tão metódica quanto os métodos e os processosusados pelo programa Nazi (Salles, 2012). É dessa descrição cumulativa, –que fala, por exemplo, da limpeza dos espaços de onde haviam sido retiradosos cadáveres, ou dos preparativos dos corpos para a entrada nas câmaras degás, – que se levanta o horror do extermínio. Aquilo que emerge é, assim,

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uma imagem como construção, uma imagem que não se converte num cliché,num ícone visual ostensivo e inserido numa forma de ritualização mediática,tendente a transformar o singular e a reserva do Holocausto em informação eobjeto cultural. No final, Lanzmann restringe à palavra a faculdade e a forçade mostrar o irrepresentável. Mas fá-lo à custa de uma crítica e de uma ge-neralização abusiva da imagem e do arquivo. Como se a imagem de arquivofosse sempre um mero documento, como se a imagem fosse sempre a mesma,como se ela não dependesse do uso e das formas de montagem em que se in-sere, das relações originais entre o sonoro e o visual a que dá acesso. Como sea imagem pudesse ser reduzida a uma apreensão consensual e estabilizada doreal, aprisionando o acontecimento num ícone de horror que teria como funçãoencobrir e velar, numa forma mais ou menos tranquilizadora, aquilo que é daordem do irrepresentável.

Shoah é efetivamente caracterizado pelo rigor de uma escolha que pres-cinde das imagens de arquivo do Holocausto a favor do testemunho dos so-breviventes, produzindo uma obra exímia no seu detalhe e precisão. Tudose complica, porém, quando essa escolha e esse método é elevado ao valorde uma regra que deve ser obrigatoriamente aplicada em qualquer abordagemséria do acontecimento. Shoah adquiriu, em alguns círculos, uma aura de ex-clusividade. Transformou-se, para muitos, na única obra sobre o Holocausto.Converteu-se no filme que, ao longo das suas mais de 9 horas de duração, nosdá a verdade toda e única da experiência do extermínio. 1

Este tipo de posicionamento não se revela frutífero, desde logo, para pen-sar as potencialidades inerentes ao relacionamento da imagem de arquivo como testemunho fílmico, falhando a compreensão das especificidades fenomeno-

1. Este tipo de dedução esquemática levanta, obviamente, questões de várias ordens. So-mos levados a questionar, desde logo, se uma boa parte da eficácia da estratégia de Lanzmannnão depende do facto do espectador já conhecer as imagens de horror do Holocausto e poderimaginar, a partir daí, o terror vivido pelas vítimas. Depois, há a questão do consenso geradoem torno da obra de Lanzmann, que passa para o exterior como se fosse a única representaçãopossível do Holocausto, ignorando-se as influências de filmes como Nuit et brouillard, de AlainResnais, mas também de Le chagrin et la pitié (1969), de Marcel Ophuls, ambos filmes querecorrem às imagens de arquivo (embora no caso de Ophuls não estejam em causa as imagensde horror dos campos dado que a sua investigação se centra nas razões políticas e ideológicasda colaboração do governo de Vichy com os Nazis). A esses filmes Lanzmann vai buscar ométodo de combinação entre o discurso e os espaços vazios, no caso do primeiro, e o métododa entrevista e do testemunho direto dos sobreviventes, no caso do segundo. Ignora-se, poroutro lado, o facto de Shoah não ser, como seria de esperar, um filme que mostra a totalidade daexperiência do Holocausto, e, sobretudo, que o filme sofre dos limites e do parcialismo que écomum a qualquer tipo de filme, documental ou ficcional – basta, para isso, lembrar que são asperguntas de Lanzmann que, para o bem e para o mal, definem decisivamente a direção daquiloque é narrado pelos testemunhos; ou então a afetação moral do Lanzmann ex-combatente daresistência perante os polacos e a forma tendenciosa como é descrito o posicionamento polo-nês na altura da invasão alemã; e, neste caso, a utilização altamente controversa de imagensda Varsóvia dos anos 80 para fazer passar a ideia de que, fora do gueto, os polacos viviam emperfeita normalidade, e que isso é a marca indesmentível de um colaboracionismo generalizado(Cf. Salles, 2012).

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lógicas da imagem e as peculiaridades da sua receção pelo sujeito. A imagemfotográfica (a rejeição do arquivo por parte de Lanzmann inclui naturalmenteo arquivo fílmico e fotográfico, sendo necessário compreender o caráter epis-témico e fenomenológico do suporte fílmico na sua aceção mais ampla) possuiaquilo que, por exemplo, Marianne Hirsch, designou como constituindo uma“força evidencial” que se encontra implicada na conexão material da fotogra-fia com o objeto que esteve lá, perante a lente, num determinado tempo eespaço. Mas, ao mesmo tempo, como afirma Hirsch, a fotografia pode ser ex-tremamente desapontante pela sua transiência e fugacidade, assinalando umadistância intransponível com respeito à realidade – a fotografia revela tanto darealidade, quanto aquilo que ela encobre, sendo essa a fenomenologia funda-mental de um processo constitutivo e ontológico que a define como imagem(Hirsch, 2001: 14).

É por isso que, como assinala Marianne Hirsch, as imagens fazem maisdo que representar a realidade ou providenciarem um mero acesso factual aopassado. Elas têm também a habilidade de transmitir, como escreve Hirsch,“uma experiência corpórea e afetiva pela evocação das emoções e das memó-rias sensíveis do próprio espectador. Elas afetam o espectador, falando a partirdas sensações materiais, em vez de falarem de, ou representarem o passado”(Hirsch, 2001: 15). Era precisamente neste sentido que Marianne Hirsch eralevada a integrar, logo no início do seu texto, duas passagens relativas a doisencontros traumáticos com as imagens do horror Nazi, tais como descritos,respetivamente, por Susan Sontag em On photography (1973), e por Alice Ka-plan, em French lessons (1993):

Eram apenas fotografias – de um evento do qual eu mal tinha ouvido falare em relação ao qual nada podia fazer, de um sofrimento que eu não conse-guia imaginar e não podia atenuar. Quando olhei para essas fotografias, algorompeu. Algum limite tinha sido atingido, e não apenas o do horror; eu senti-me irrevogavelmente afligida, ferida, mas uma parte dos meus sentimentoscomeçaram a comprimir-se; algo morreu, algo ainda chora (Susan Sontag).

A minha mãe tinha visto as fotografias para retirar aquelas que ela conside-rava serem demasiado chocantes, mas eu queria levá-las todas, especialmenteas mais impressionantes... Eu acreditava que os meus amigos não tinhamo direito de viver sem conhecerem estas fotografias, como podiam parecertão felizes sendo tão ignorantes. Nenhum deles sabia o que eu sei, pensei.Detestava-os por isso (Alice Kaplan).

O encontro com as imagens de horror produz, nestes casos, exatamenteo efeito oposto àquele que estaria implicado na consideração das imagens dearquivo do Holocauto como véus, como substitutos, como repetições compul-sivas que bloqueariam o trauma através de um efeito de alienação especular.

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Elas não são, definitivamente, substitutos atrativos da falta (definição de fe-tishe), podendo antes surgir como imagens do próprio deslocamento (imagensque expressam uma espécie de real último onde falha toda a mediação, comoviu Didi-Huberman a partir de Jacques Lacan) (Didi-Huberman, 2012: 108).Essa violentação provocada pela imagem leva o sujeito a descobrir e a con-frontar os aspetos que preferiria manter ocultos, invisíveis e inimagináveis,numa experiência que pode ser equiparada ao trabalho doloroso do luto no seusignificado psicanalítico.

4. Pós-memória, trabalho de memória e fetichização narrativa

Marianne Hirsch sublinharia assim o aspeto ético e intersubjetivo da rela-ção imposta pela pós-memória: a experiência traumática do outro é inscrita nanossa própria experiência, uma vez que aquilo que somos depende da nossaexistência cultural e da nossa resposta aos factos coletivos e sociais (Hirsch,2001: 15). Como tal, esta (pós) memória, definida pelo seu caráter críticoe ativo, pode inclusivamente fazer intervir construções fabulatórias e narrati-vas que transportam a marca de uma exigência ética e política. Trata-se deuma forma de ritualização e de fabulação que não pode, naturalmente, serconfundida com a constituição de uma narrativa que, consciente ou incons-cientemente, seria orientada pelo desejo de ocultação dos traços traumáticosdo evento. Era neste sentido que Eric Santner viria a distinguir aquilo que,por um lado, ele designa como o fetichismo narrativo, e, do outro, o trabalhopositivo do luto:

O trabalho de luto é um processo de elaboração e integração da realidadeda perda ou do choque traumático pela sua recordação e repetição simbólicae dialógica doseada; é um processo de tradução, metaforização e figuraçãoda perda, e, como Dominick LaCapra assinalou, pode incluir uma relaçãoentre a linguagem e o silêncio que é de certo modo ritualizada. O fetichismonarrativo, pelo contrário, é o modo pelo qual a inabilidade ou a recusa do lutonarrativiza os eventos traumáticos; é uma estratégia de evitação, na fantasia,da necessidade do luto pela simulação de uma condição de intocabilidade,tipicamente pela localização do espaço e da origem da perda num outro lugar.O fetichismo narrativo liberta o indivíduo do sofrimento de reconstituição dasua identidade sob condições pós-traumáticas; no fetichismo narrativo o pósé indefinidamente adiado. (Santner 1992: 144). 2

2. As tentativas de reelaboração da identidade germânica que surgiram na década de 80, nocontexto da designada disputa histórica (Historikerstreit), por autores como Andreas Hillgru-ber, constitui um exemplo claro daquilo que Santner designa como uma tentativa de “reajusta-mento mnemónico” que ignora a necessidade do trabalho do luto (neste caso, a glorificação deepisódios narrados de forma dramática por Hillgruber, como por exemplo aquele respeitante àdefesa derradeira dos territórios situados a Leste pelas tropas alemãs, no período de colapso doImpério, faz esquecer que esse ato heroico permitiu a continuação do funcionamento dos cam-pos de morte e que o genocídio não pode ser apagado da memória da guerra) (144;148). Um

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Esta passagem é importante por sublinhar a ideia de que o trabalho deluto, considerado como exercício crítico da memória, implica processos de“tradução, metaforização e figuração”. São, se quisermos, processos de en-cenação e de exposição narrativa que integram a perda, não podendo ser con-fundidos com as estratégias de evitação e de substituição definidoras do feti-chismo narrativo. A utilização do filme no trabalho de construção históricadenuncia exemplarmente que a exposição narrativa não consiste apenas, comodemonstrado exaustivamente por exemplo por Hayden White (White, 1992),em proposições factuais e objetivas, incluindo igualmente elementos poéticose retóricos, intrigas, figuras de estilo e tipologias próprias que são integradasnum trabalho fabulatório, convertendo os factos em histórias. Aliás, o factopressupõe sempre uma relação entre o acontecimento e a forma como este édescrito, interpretado e exposto. O facto não designa uma instância estável edefinitiva que seria passível de ser explicada e transmitida na sua identidadeplena. O conhecimento histórico é incompatível com uma forma fechada e de-finitiva; ele implica a revisão e a produção de novas perspetivas dependentesdas condições do presente (White, 1992: 311-12). Desta forma, a narrativacria os factos. Ela não se limita a representá-los, mas participa na sua própriaconstituição.

É nesta perspetiva que a vertente crítica da estética pós-moderna do filme(encontrada em autores como J.-L.Godard, Alain Resnais, Harun Farocki, Ch-ris Marker, ou Hans-Jürgen Syberberg) incorpora uma reflexão importante so-bre os próprios limites da representação. Ela apresenta esses limites não comouma linha negativa que não pode ser ultrapassada, mas sim como um espaço deprodução de múltiplas alternativas. Ela liberta-nos da ideia de que o realismona representação pode ser absoluto. Mais exatamente, afirma a inadequaçãode qualquer tipo de representação puramente realista de um acontecimentocomo o Holocausto, sem que isso implique uma espectacularização ou umadramatização abusiva da dimensão perturbadora, inconcebível e problemáticado evento. Este deverá emergir a partir de uma representação “extracanónica”,

outro caso apresentado por Santner é o do filme de Edgar Reitz intitulado Heimat, transmitidopela televisão alemã em 1984 e coroado de êxito. Heimat aborda o período Nazi por via de umasubstituição do tema inalienável do extermínio dos Judeus pela dramatização do sofrimento dopovo alemão separado da sua pátria e da sua tradição no período do pós-guerra, fornecendo umaimagem fetiche de vitimização da nação agressora (149). Consideramos que é no entanto neces-sário não diminuir o sofrimento daqueles que foram perseguidos e experimentaram a vingançapor parte dos vencedores da guerra: o filme Tondues en 44, de 2007, de Jean-Pierre Carlon,por exemplo, documenta os castigos ignominiosos a que foram submetidas as mulheres france-sas que se envolveram afetivamente com militares alemães na altura da ocupação Nazi. Essa éuma temática abordada igualmente por Alain Resnais, recorde-se, em Hiroshima mon amour,de1959. Finalmente, filmes como A Lista de Schindler (1993) podem ser considerados, apesarda sua vertente humanista, narrativas orientadas por princípios estéticos e dramatúrgicos que serevelam inadequados a um exercício de memória crítica que visa o acontecimento não só na suadimensão inconcebível e impensável, como também na sua complexidade cultural e identitária.

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“suspensa entre a história e a memória, suspensa também entre a literatura e odocumentário, cujo objeto é consistentemente a resposta diária ao terror [...]”(Hartman, 1992: 324).

É pois neste ponto que gostaríamos de reintroduzir a questão inerente àutilização da imagem (de) arquivo na representação do acontecimento do Ho-locausto. Tratar-se-á, mais exatamente, de pensar o problema que concerneaos limites e às potencialidades do filme na sua relação com a montagem e arespetiva convergência com o ato da memória e do pensamento. Neste ponto,o projeto Histoire(s) du cinéma, de Jean-Luc Godard, surge como um ponto deanálise privilegiado, até porque ele é sustentado numa conceção da imagem dearquivo, e, consequentemente, da montagem cinematográfica, diametralmenteoposta àquela advogada por Claude Lanzmann.

5. Pluralismo histórico e escrita paratática: as Histoire(s) de Godard

As críticas dirigidas ao projeto Histoire(s) du cinéma, de J.-L-Godard(1998), baseiam-se em dois argumentos principais. O primeiro concerne àideia de que a montagem é gratuita e aleatória, que ela se limita a misturartudo com tudo, não respeitando a singularidade histórica dos acontecimentos.Esta crítica reflete um ceticismo geral relativamente àquilo que determinadascorrentes teóricas definem como o relativismo da estética pós-moderna. Nasua análise ao projeto de Hans-Jürgen Syberberg, Hitler: Um filme da Ale-manha (1977), – filme que partilha com as Histoire(s) algumas aproximaçõesmetodológicas e relações estéticas importantes, – Anton Kaes afirmaria, a tí-tulo exemplificativo, que a estética pós-moderna do filme de Syberberg operauma cisão dos eventos e das personagens do passado com os seus contextosoriginais. Eles são convertidos em elementos citáveis e combinados numa es-trutura orientada por princípios estéticos, independentemente de preocupaçõeshistóricas e de rigor analítico (Kaes, 1992: 211). Para Anton Kaes, a faci-lidade com que Syberberg usa o passado como material que pode ser citadoreflete uma conceção negativa do fim da história. A história desemboca numimpasse, fazendo com que o presente se eternize numa referência infindável aopassado (Kaes, 1992: 118). Kaes expressa, desta forma, os principais critériosque estão na base da crítica ao relativismo da estética pós-moderna. O se-gundo argumento em que se baseia a condenação das Histoire(s) deriva destaconceção crítica do pluralismo histórico. Defende-se, neste caso, que a es-tratégia de citação de elementos pertencentes a diferentes períodos, contextose proveniências, redunda num exercício de estilo que faz aparecer a imagemcomo símbolo de uma ostentação icónica ligada ao caráter ilusório, substitu-tivo e fantasista da figuração. Sustenta-se, inclusivamente, que, no caso das

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Histoire(s), essa operação de ostentação icónica tem como efeito a elevaçãoda imagem ao estatuto de objeto de crença e de relíquia, numa associação en-tre a crença religiosa e a fetichização da imagem, hipoteticamente corporizadana fórmula godardiana de que a imagem surgirá no tempo da sua ressureição(Didi-Huberman, 2012, 162).

Michael Witt havia já demonstrado que a ampla referência de Godard aocristianismo nas Histoire(s) adquire uma função alegórica e, sobretudo, histó-rica (Witt, 2013, 132). O aforismo pauliniano, adotado por Godard, de que aimagem virá no tempo da sua ressureição, deve ser perspetivado ao nível deuma conceção ampla de montagem, compreendida como processo capaz deproduzir significações novas a partir da combinação entre imagens que são re-configuradas à luz do seu embate e confronto com o presente: Como escreviaGodard, “A base é sempre dois; apresentar inicialmente sempre duas imagensem vez de uma é aquilo a que chamo imagem, esta imagem feita de dois [...]”(Godard, 2000. Cit. Didi-Huberman, 2012, 162). A montagem providenciauma nova capacidade de reflexão, de imaginação e de criação do conhecimentohistórico. Em Godard, a montagem é o que faz ver aquilo que se gera nos in-terstícios das imagens, mas também nos intervalos criados pelas “colisões des-multiplicadas” entre as palavras e as imagens citadas (Didi-Huberman, 2012,177). A montagem articula as fronteiras do texto e da imagem, integrando for-mas de pensamento interrogativas e padrões de inteligibilidade que pervertemas associações convencionadas e a lógica do contínuo explicativo. Por issoGodard afirmava que:

A imagem entra no texto, e o texto, num dado momento, acaba por surgirdas imagens. Já não há uma simples relação de ilustração. Isso permite-lheexercer a sua capacidade de pensar, de refletir, de imaginar e de criar. [...]A certa altura, isso interpelou-me como uma imagem, o facto de serem duaspalavras que [são] aproximadas. (Godard, 2000. Cit. Didi-Huberman, 2012,162).

Por isso Raymond Bellour podia referir-se a um “poder material das pa-lavras” que devêm “um equivalente da imagem, uma parte, uma camada, umnível do que compõe uma imagem” (Bellour, 1999: 126). Godard transformaas palavras e os fragmentos discursivos extraídos dos livros, dos discursos edos filmes citados, e faz entrar a palavra no circuito do documentário, cujo ma-terial visual, em Histoire(s) du cinéma, é igualmente submetido a um processode extração, citação e recontextualização dos fragmentos. Assim, segundoRaymond Bellour,

Tal implica igualmente a possibilidade de tratar a escrita como imagem [e] oecrã como uma página. E assim de subtrair a escrita à sua legibilidade própriapara fazer dela o objeto de um visível-legível que garante a sua plasticidade

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in vivo no tempo da inscrição e do desdobramento (é isto que, entre outrascoisas, se atinge plenamente em Histoire(s) du cinéma). (Bellour, 1999: 126).

Rancière avançaria, da sua parte, no sentido da identificação, a partir dasHistoire(s), de uma “potência frásica”, relacionada com uma espécie de grandeparataxe que desfaz o esquema de causalidades ideais e as normas habitual-mente reguladoras da produção do inteligível e do sensível (Rancière, 2011:67). No caso de Godard, os signos apresentados são, segundo Rancière, “ele-mentos visuais agenciados na forma do discurso”, envolvendo uma “sintaxeparatática” que pode receber o nome de montagem, desde que, como temosvisto, se alargue a noção para lá do seu significado mais restrito e especiali-zado (Rancière, 2011: 67; 59).

Veja-se a sequência final do episódio 1A das Histoire(s). Godard combinaimagens de arquivo de um filme de 16mm Kodachrome dos campos de morte,registadas por George Stevens e mostrando corpos empilhados e rostos cadavé-ricos (numa analogia brutal com os rostos representados nas gravuras de Goya,inseridas anteriormente), com uma cena onde reconhecemos Elisabeth Taylorem fato de banho, segurando sobre si o amante, Montgomery Cift. Aparente-mente incompreensível, esta relação é, na verdade, fundamentada pela voz off :George Stevens é o autor de ambos os fragmentos apresentados (o de ElisabethTaylor, no filme Um lugar ao sol (1951), e o do registo do campo de morte).É o realizador que só pôde voltar a Hollywood e filmar a cena de felicidaderadiante e de pacificação, porque entrou nos campos com os Aliados, e porquedecidiu, em 1945, utilizar o primeiro filme a cores em 16mm para testemunhara realidade das atrocidades cometidas. 3

Este exemplo mostra que, em Godard, a montagem não impõe um todo.Ela é antes um modo de fragmentação que fornece uma nova independência àimagem e ao ato da palavra, implicando a transformação das duas componen-tes ao nível de passagens e de aproximações que expressam aquilo que não sepode ver. É isto que une os projetos aparentemente complementares de ClaudeLanzmann e de Jean-Luc Godard, recaindo ambos sobre a ideia de que o acon-tecimento do extermínio da Segunda Guerra obriga a um repensar mais amploda nossa relação com a imagem.

3. Sobre esta relação Godard diz: “Há uma coisa que sempre me tocou muito num cineastade quem gosto mais ou menos, George Stevens. Em Um lugar ao sol, encontrei um sentimentoprofundo de felicidade que raramente encontrei noutros filmes, mesmo em filmes melhores. Umsentimento de felicidade laico, simples, percetível, momentâneo, em Elisabeth Taylor. E quandosoube que Stevens tinha filmado os campo de concentração e que, então, a Kodak lhe tinhaconfiado os primeiros filmes a cores de dezasseis milímetros, não encontrei outra explicaçãopara que em seguida ele pudesse ter feito este grande plano de Elisabeth Taylor irradiando estaespécie de felicidade sombria”. Godard, J.-L. (1998b) Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard.Paris: Cahiers du Cinéma, p.172.

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Mas a diferença entre ambos observa-se, desde logo, a um nível formal.Como viu Didi-Huberman, onde Lanzmann faz uso de uma forma de “mon-tagem centrípeta”, baseada no ritmo lento e no tempo dilatado que acolhe osdiscursos das testemunhas, Godard opõe uma “montagem centrífuga”, baseadana proliferação dos centros e na fusão entre imagens e palavras que são citadas,criadas e recontextualizadas a partir de um mosaico de referências múltiplas(Didi-Huberman, 2012: 161). Essa espécie de mosaico hieroglífico sugere,além do mais, a interdependência do Holocausto com outros fenómenos his-tóricos, a começar pela história das estórias do próprio cinema. Em segundolugar, a disparidade teórica entre Claude Lanzmann e J.-L.Godard aprofunda-se quando se examina o posicionamento dos dois realizadores relativamenteao valor da imagem e dos arquivos na representação do Holocausto. Onde emLanzmann a imagem é inadequada à expressão da reserva do acontecimento,adquirindo quanto muito um valor de prova documental, em Godard a imagempossui um poder de evocação construído no interior de um trabalho laboriosode montagem entre as palavras e as imagens. Para Godard, o impacto afetivoe sensorial da imagem faz com que esta apareça como uma espécie de vidên-cia, suscetível de transmitir aquilo que não pode ser mostrado nem dito atravésdas formas de encadeamento explicativas do texto, ou das soluções dramatúr-gicas do cinema. É sobretudo esta diferença de perspetiva relativamente aospoderes e funções da imagem que cava uma distância inconciliável entre ascinematografias de Lanzmann e de Godard.

Neste ponto, porém, é necessário sublinhar que a afirmação das potenci-alidades evocativas e poéticas da imagem, por parte de Godard, vai a par deuma aguda compreensão do seu valor indicial e testemunhal. É que, apesarde em Godard a imagem constituir um traço, cuja verdade não é senão perse-guida ao nível de um exercício de montagem sempre incompleto e parcial –constituindo, se quisermos, uma espécie de exercício de verdade que capta asignificação da imagem apenas ao nível dos seus efeitos posicionais, reencade-amentos e diferenças – ao mesmo tempo, ele não partilha da posição mantidapor uma certa corrente acrítica pós-moderna, caracterizada pela desqualifica-ção do poder testemunhal e referencial da imagem e do próprio arquivo.

É esta conceção, contraditória apenas na sua aparência, que se encontrafirmada na formulação godardiana de que “mesmo deteriorado um simples re-tângulo de trinta e cinco milímetros salva a honra de todo o real” (Godard,1998a: 88). Esta fórmula deve ser compreendida ao nível da teorização godar-diana da função documental do suporte fílmico, que atua como uma impressãopor contacto material do objeto. O suporte fílmico comporta pois a ideia de umcontacto direto com o mundo; constitui um lastro de realidade que transmite a

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experiência do acontecimento através de vestígios brutos. Dito de outro modo,a imagem preserva um fragmento (um retângulo) da realidade: parafraseandoGodard, não uma imagem verdadeira, mas somente uma imagem.

Assim, se o retângulo de 35mm implica uma ética é porque, desde logo,ele salva o acontecimento do seu desaparecimento. Mais, esse retângulo – qualescudo de Perseu que derrota Górgona por via do reflexo da imagem redire-cionada – permite defrontar o horror do real, levando o sujeito a incorporaressa possibilidade nos seus processos cognitivos e mnésicos. A imagem nãosalva os grandes valores, mas redime um saber e recita a memória do tempohistórico, como viu Didi-Huberman. 4 E se, nas Histoire(s), Godard faz cru-zar a fórmula textual do retângulo de trinta e cinco milímetros com imagensde arquivo de corpos pulverizados, vítimas da Guerra, é porque ele pretendedemonstrar que aquilo que as imagens salvam, ou redimem, é justamente o hor-ror da sua invisibilidade e esquecimento. Neste sentido, elas não constituemvéus, formas pacificadoras, mas assumem-se, pelo contrário, como veículosde conhecimento daquilo que se pretenderia manter ocultado e longe de nós.Prescindir delas ou recusar olhar o seu horror equivaleria, como assinalado porDidi-Huberman, a fechar os olhos, a denegar a sua existência e compreensão,recalcando o acontecimento ao nível de uma espécie de amnésia histórica -era este, justamente, o problema colocado por Harun Farocki em The inextin-guishable fire (1969), que recai sobre a problemática da violência das imagensdas vítimas de Hiroshima.

Existe, a este primeiro nível, um poder de testemunho da imagem que nãopode ser excluído. Ele obriga o espectador a defrontar o horror e o excesso,que irrompe brutalmente pela imagem sob uma forma do visível que desregulauma certa ordenação entre aquilo que é visível e aquilo que é invisível, entreo que é da ordem do saber e do não-saber. Mas esse poder de testemunhoobserva igualmente modos de sobrevivência e de repetição que se entrelaçamno tecido da memória como construção, como trabalho do tempo na imagem(Didi-Huberman, 2012: 209-10). É esse trabalho sobre a imagem e o próprioarquivo enquanto instâncias sempre parcelares e dispersivas (e aqui o sentidometafórico da deterioração evocada por Godrad), que, finalmente, cria pontosde ligação ao presente e à particularidade da experiência vivida, experiênciaque é também, no seu sentido mais profundamente nietzschiano, uma vivênciahistórica das imagens.

4. Como observa Didi-Huberman, a metáfora do escudo de Perseu é utilizada por SiegfriedKracauer na sua defesa da dimensão redentora da imagem cinematográfica, comparando o ecrãde cinema ao escudo refletor (Didi-Huberman, 2012: 22-223); (Cf. Kracauer, 1969: 305-06).

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6. O cinema, uma forma que pensa e que é feita para pensar

A componente citacional de Histoire(s) du cinéma, trabalhada por via damontagem diferencial de elementos sonoros e visuais, vai ao encontro, deforma consciente ou não, da ideia de que o inconcebível do sofrimento humanonão é exclusivo de um povo, ou melhor, não é exclusivo de um acontecimentoque teve lugar num tempo e num espaço passível de ser cortado de um antes ede um depois, mesmo que aquele possua características absolutamente singu-lares. Também aqui, Godard adota um posicionamento distinto do de ClaudeLanzmann, que afirmava que o Holocausto se refere a um tempo e a um espaçoúnicos, a algo que nunca havia acontecido e que não voltará jamais a aconte-cer. Lanzmann colava-se, dessa forma, a uma perspetiva que tende a afirmarpara o Holocausto a exclusividade do paroxismo da dor e do sofrimento huma-nos. Porém, como defendia Peter Haidu, é a comparação que permite aferir daunicidade do evento histórico: se negar a especificidade do extermínio Nazi éuma “mistificação da história”, declarar que não há paralelos e que o fenómenoqueda inexplicável também o é (Haidu, 1992: 296).

Convém lembrar, neste contexto, que Histoire(s) du cinéma não é, ao con-trário do que acontece com o documentário de Lanzmann, um filme sobre oextermínio. As Histoire(s) mapeiam antes a influência desse acontecimento naforma como perspetivamos a imagem nos nossos dias, assim como as implica-ções para as possibilidades de futuro da prática e conceptualização cinemato-gráfica. Neste sentido, parece-nos que uma das grandes teses de Godard, emHistoire(s,) du cinéma, concerne à tentativa de relacionamento do Holocaustocom o contexto politico, social e mediático do presente, preocupação que érefletida, por exemplo, na frequente referência ao massacre de Srebrenica naex-Jugoslávia, em 1995. O posicionamento teórico adotado por Godard pareceassim responder à exigência, formulada por um autor como Yehuda Bauer, deque o Holocausto deve ser tratado como uma coisa do presente e não do pas-sado. O facto de o Holocausto ter acontecido no nosso século e na nossacultura, o facto de ser uma ocorrência atual e não o produto de uma qualquerintervenção de tipo sobrenatural, demonstra, como assinalado por Bauer, que oNazismo constitui uma “possibilidade lógica resultante da história Europeia”,embora revelada nos seus traços mais hediondos e macabros. 5

Esta exigência que concerne a uma reflexão crítica de índole política e so-cial era já convocada por Alain Resnais e Jean Cayrol em 1955. Um alertapungente marca o fim de Nuit et brouillard. Nós fingimos, é dito pelo co-mentário em off, que tudo aconteceu apenas uma vez, num só tempo e num

5. Baseamo-nos aqui no estudo de Peter Haidu sobre o pensamento de Yehuda Bauer, TheHolocaust in historical perspetive, 1978, p.36. Cit. Haidu, 1992: 292.

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só país. Pretendemos crer e fazer crer que o “monstro contraccionário” re-cua num passado cada vez mais longínquo, como se estivéssemos salvos dessapeste, fechando os olhos ao sofrimento e às injustiças que nos rodeiam. Masquestiona-se:

[...] quem de nós vigia, dessa estranha torre de controlo, para nos advertir dachegada dos novos algozes? São os seus rostos verdadeiramente diferentesdos nossos? Em qualquer parte, entre nós, continuam a existir afortunadoskapos, oficiais reestabelecidos, informadores anónimos. Há sempre aquelesque se recusam a acreditar, ou acreditam apenas de longe a longe (Cayrol,1955).

Talvez porque haja sempre quem se recuse a acreditar e a olhar, ou quemacredite e olhe, mas faça submergir o inconcebível no lamaçal do inimaginávele da amnésia histórica, que Alain Resnais decide fazer uso das mais violentasimagens de arquivo que registaram a experiência dos campos. A discussãosobre o Nazismo persiste como um tema do presente pois ele possibilita umacompreensão renovada das condições de existência do indivíduo contemporâ-neo e das relações de poder que ele integra; persiste como tema do presenteuma vez que as bases e pressupostos teóricos dos modelos de organização eco-nómica, social e política, consolidados nas sociedades capitalistas do fim doséculo XIX, e início do século XX, continuam a caracterizar as grandes confi-gurações das sociedades atuais.

É neste sentido que devemos compreender um dos momentos mais polémi-cos de Histoire(s) du cinéma, no qual Godard combina, em 4A, excertos de umfilme pornográfico com uma imagem dos campos, na qual vemos um cadáveresquelético a ser levantado para ser empilhado juntamente com os corpos deoutras vítimas. Numa primeira análise, esta justaposição é orientada pela alu-são às singularidades históricas do acontecimento. Georges Didi-Hubermanargumentaria que Godard estava a mostrar as coisas no seu aspeto mais pro-blemático, relembrando que elas existiam já juntas: nos campos, o mesmo ad-jetivo, sonder (especial), designava a morte (sonderbehandlung, isto é, açõesespeciais de gaseamento), mas também a coação ao sexo e à prostituição (son-derbau, ou bordel). 6

Mas a articulação ativada por Godard implica também uma referência, eaté um apelo, ao facto das práticas da imagem deverem integrar configuraçõesde resistência que lutam contra as formas opressivas da indústria audiovisual,– corporizadas de modo particular nas formas televisivas e mediáticas, – lem-brando que o cinema possui uma responsabilidade ética que é conferida pela

6. Por isso Godard referia que “[...] não se trata de pôr tudo no mesmo saco; as coisas sãoapresentadas em conjunto; a conclusão não está imediatamente dada. [...] Elas existiram juntas;recorda-se pois que elas existiram juntas” (Godard 2000. Didi-Huberman, G. (2012) Imagensapesar de tudo. Lisboa: KKYM, p.192.

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sua componente testemunhal. A crítica violenta de Godard relativamente aoimpacto da televisão relaciona-se, precisamente, com a denúncia das formasde reificação a que o sujeito, e o próprio pensamento, são submetidos pelamercantilização da imagem e dos corpos. 7 É pois neste momento benjamini-ano de perigo que Godard apela às possibilidades futuras do cinema, as quaisdevem integrar uma dimensão ética e política incompatível com as formas es-pectacularizadas do entretenimento. Mas, ao mesmo tempo, e por isso mesmo,a denúncia ativada pela imagem não deve ser meramente uma figuração da vio-lência e do sofrimento, mesmo quando aquilo que está em causa é a responsabi-lidade ética associada à sua função documental. A imagem deve converter-se,ela própria, numa instância de violentação do pensamento e do visível: é essadilaceração que a imagem cinematográfica deve causar. Finalmente, parece seresse o sentido último do redentório em Godard.

Não é pois por acaso que Godard afirma que a montagem empresta ao ci-nema a qualidade de se converter numa forma que pensa, e que é feita parapensar. Mas esse pensamento só é válido se violentar o pensamento e aqueleque pensa (Godard, 1998a: 45). É por isso que Godard exorta a um pen-samento que “devenha aquilo que é na realidade: perigoso para o pensador etransformador do real” (Godard, 1998a: 41). Um pensamento que se abandonaaos seus ritmos e esquemas padronizados é um pensamento que se proletariza,é um pensamento que se deixa dominar pelo culto da opinião, pela especta-cularização e pelos consensos mediáticos, assim como pelas leis e valores ca-nonizados, impedindo que ele se imponha na sua verdadeira força e potência.Isto é, que ele se imponha como um ato de criação, envolvendo até a condiçãopragmática do pensamento que incita o homem a pensar com as próprias mãos(Godard, 1998a: 45). É esta a dimensão ética e política do pensamento, do atode pensar, que se revela inseparável de uma prática visual equiparável a umaescrita por imagens:

Todo o ato criador, escreve Godard, contém uma ameaça / real / para o homemque ousa / é por essa via que uma obra / toca o espectador ou o leitor / se opensamento se recusa a pesar / a violentar / ele submete-se infrutiferamente /a todas as brutalidades / que a sua ausência liberou. (Godard, 1998a: 41).

Nas Histoire(s), este texto sobrepõe-se, não por acaso, à montagem acimamencionada entre morte e pornografia. O texto não se limita a descrever asimagens; ao contrário, ele redimensiona as trajetórias de sentido possibilitadas

7. Como observado por Natalia Tacceta, em Godard a televisão liga-se à espectacularizaçãoda guerra e da morte, numa lógica de consumo alienante que caracteriza a cultura ocidentalcontemporânea. Em Histoire(s) du cinéma esta tese é por exemplo explorada na série onde alegenda RAI (Radiotelevisão Italiana) é sobreposta a um quadro de Henri Rousseau intituladoA Guerra (1894), convertendo-se depois em REICH 3, ecoando sob o fundo de uma marchaNazi (Tacceta, 2015: 242).

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pela montagem das imagens, demonstrando que aquilo que está em causa é areflexão mais ampla sobre a relação do cinema – tomado como ato de cria-ção – e a vida quotidiana, isto é, os processos que definem as possibilidadesde ação, de pensamento e de expressão do indivíduo e do coletivo num dadomomento cultural. É neste ponto, que define a feliz convergência entre a para-tática do filme e a ação do pensamento, que se torna possível identificar umacomponente fortemente deleuziana na prática visual de Godard. Em Deleuze,o pensamento constitui algo que se faz e não algo que é: implica interpretar,selecionar e analisar, mas também experimentar e criar. Deste modo, ele podeemergir como ato de criação e de experimentação do novo. Donde J.-L.Godardafirmar que o pensamento se faz com as mãos, aludindo ao gesto da montagemcinematográfica como um ato de combinação que pressupõe relações, metáfo-ras, analogias e passagens entre as imagens visuais e sonoras. Isto é, toda umaatividade pensante e sensorial, na qual a imagem habita e reconfigura a super-fície cinematográfica, introduzindo curvaturas e relevos variáveis no decursoda sua própria construção e experimentação. 8

O cinema de Godard torna-se, em boa verdade, naquilo que o pensamentofilosófico deveria ser para Deleuze: uma misosofia, espaço de incoerências, fis-suras, lapsos, gaguejos, erros e intervalos que nascem da experimentação e daerrância que é afeta a qualquer ato de criação, furando os modelos de organiza-ção de um pensamento aprisionado que sonha a unidade e o consenso. Por issoDeleuze seria levado a questionar: “O que é um pensamento que não faz mala ninguém, nem aos que pensam nem aos outros a quem se dirige?” (Deleuze,1994: 136). Ou seja: o que é um pensamento que se limita a veicular os valoresjá dados e concertados? A filosofia deve pois conter uma “violência originalinfligida ao pensamento” (Deleuze, 1994: 139), deve acordar o pensamentodo seu estupor e conivência com o instituído. Deve surgir, segundo Deleuze,da contingência de um encontro que força o pensamento como uma paixãodo pensar. Filosofia e Arte cinematográfica aproximam-se neste relançar dospossíveis, abrindo buracos nas formas consensualizadas do pensamento e dosdomínios sensíveis institucionalizados (Fontes, 2007: 4).

Ainda que necessariamente sucinta, esta contextualização da obra filosó-fica de Deleuze revela-se crucial para compreender um dos aspetos mais sig-nificativos da imagem-tempo no seu conflito com a imagem-movimento. A

8. Neste sentido, em Deleuze o ecrã cinematográfico converte-se numa gigantesca super-fície cerebral e mnésica: “O mundo tornou-se memória, cérebro, sobreposição de idades ou delóbulos, mas o próprio cérebro tornou-se consciência, continuação das idades, criação ou au-mento dos lóbulos sempre novos, recriação da matéria à maneira do estireno. O próprio ecrã éa membrana cerebral onde se confrontam imediata, diretamente o passado e o futuro, o interiore o exterior, sem distância atribuível, independentemente de qualquer ponto fixo [...] A imagemjá não tem como características primeiras o espaço e o movimento, mas a topologia e o tempo.”Deleuze, G. (2006) A imagem-tempo. Lisboa: Assírio & Alvim, p.164.

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imagem-movimento como automatismo do movimento e máquina estética efilosófica é suscetível de produzir, ainda hoje, um sujeito pensante que pensasob o efeito do choque das imagens, mas também uma espécie de autómatopsicológico, como via Gilles Deleuze (Deleuze, 2006: 341-42), despossuídodo seu próprio pensamento e submetido à alienação imposta pela força ideo-lógica das imagens, convertidas em mera informação e espetáculo. Ao intro-duzir uma nova desordem a partir das imagens e dos discursos anteriormenteestabilizados, o cinema da imagem-tempo abre um espaço de pensamento ede reflexão crítica. Por essa via, e surgindo como meio que encerra a von-tade original da arte, o cinema pode restituir a nossa ligação ao mundo e aosacontecimentos através de práticas que ultrapassam a informação, avançandomodalidades de “fabulação criativa”, como dizia Deleuze, capazes de voltar aimagem do avesso e de “[criarem] o mito em vez de lhe tirar o benefício ou aexploração” (Deleuze, 2006: 342).

Ora, em Godard, a imagem captada nos seus efeitos de montagem ins-creve, justamente, um exercício de construção fabulatória que restitui o acon-tecimento através de novas leituras. Em Godard, a montagem avança pois porvias originais, reinventa e recria o sentido histórico das imagens, produz cortese extraterritorialidades que fazem passar o que antes permanecia enterrado, in-transmissível, ou, simplesmente, atolado no lamaçal informativo. E, tal comoem Deleuze, também em Godard a restituição dessa ligação do cinema à vidaé objeto de crença. Mas agora a crença não se refere a um outro mundo trans-cendental ou mitificado. A crença é a deste mundo, é a ela que o cinema devereferir-se, apelando a uma espécie de transcendental histórico que estabelecevias originais para o pensamento, num face-a-face do homem com o impensá-vel e o intolerável do acontecimento.

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