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O LIBERALISMO RADICAL DE FREI CANECA: O TYPHIS PENAMBUCANO COMO AGENTE FORMADOR DA
CONSCIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA
Maria Madalena Sorato – UEM Marcília Rosa Periotto-UEM
Este trabalho realizou uma análise histórica do pensamento de Frei do Amor
Divino Caneca expresso no jornal Typhis Pernambucano publicado entre 25 de
dezembro de 1823 a agosto de 1824. Pretendeu-se subtrair dos seus escritos, tidos como
revolucionários, o caráter educativo que revestia o conteúdo destinado a fomentar nos
homens da época o empenho em se disporem à luta social em curso. Frei Caneca ostenta
entre os grandes personagens dessa história o título de ter sido um aguerrido defensor da
liberdade política e civil no interior do processo da independência brasileira. Vivendo
em Pernambuco, onde a agitação em torno da separação de Portugal era mais intensa
que no restante do país, construiu, com textos marcadamente combativos, uma visão do
seria o país sem o despotismo e das relações de dependência que caracterizavam a
situação colonial.
O primeiro quartel do século XIX no Brasil foi marcado por acontecimentos
profundamente significativos para a história nacional e que anunciaram o início das
transformações sociais advindas da derrocada da colonização portuguesa e de uma série
de convulsões sociais que se seguiram à Independência.
A história nacional, escrita naquele período, contou com a participação de
figuras que escreveram o movimento constitutivo da nação brasileira à custa de muita
luta. Deram a ele o máximo de suas forças, empenhados que estavam em realizar
localmente as determinações exigidas pelo desenvolvimento do capitalismo mundial, ou
daquilo que entendiam como medidas necessárias para tal.
É comum o fato da história de uma nação se apoiar na figura de heróis, ou se não
os havendo, maximizar os feitos comuns, dando-lhe a forma de ações surpreendentes.
Este não é o caso de Frei Caneca. Embora a historiografia oficial carregue nas cores
com que pintou o quadro das ações desse personagem e o classifique como
revolucionário, a verdade é que protagonizou um dos momentos mais genuínos dessa
história, e contestou como nenhum outro os rumos que os intérpretes do movimento da
independência imprimiam à nova formulação política do país.
Expressando, como poucos haviam feito, aquela vertente de pensamento
originada da Revolução Francesa que naturalizara o ideal de liberdade como bem
supremo do indivíduo, Frei Caneca foi o artífice de um movimento que preconizava a
separação profunda do Brasil em relação a quaisquer laços que pudessem confundi-lo
com a antiga Metrópole. Ao assim fazer, pôs em configuração uma luta que se
desenhara já no seio das necessidades burguesas, mas que por razões históricas ainda
não havia chegado, principalmente nas antigas colônias ibéricas, àquele grau de
maturação que lhe deixasse obter sucesso.
Esse frei, nascido e criado no Brasil, de onde nunca saíra, e que aos 17 anos foi
ordenado carmelita, ao ter franqueado o acesso ao Seminário de Olinda, recém fundado
pelo bispo Azeredo Coutinho e por ele dirigido, em pouco tempo diplomou-se em
Filosofia, Retórica e Geometria e, ali, teve traçada sua trajetória de vida.
Azeredo Coutinho concebera o Seminário como instituição voltada para a
renovação do ensino na colônia, mantendo-se para isso em sintonia com a vanguarda
iluminista que agitava a Europa, mas que tinha reflexos ainda limitados no Brasil.
Consta que o Frei freqüentava ao mesmo tempo a Academia Literária do Paraíso, uma
associação de ilustrados que se reuniam para ler e discutir obras científicas, políticas e
filosóficas. Através de instituições desse tipo os valores do Iluminismo, de fundo
igualitário, iam criando raízes na colônia, apesar da vigilância e do controle da
metrópole sobre a difusão desses conceitos que, em última análise, comprometiam a
própria idéia de exploração colonial.
A preocupação não era infundada: em anos anteriores, haviam sucedido
tentativas de sedição e revoltas na colônia, marcadamente influenciadas pelos ideais de
independência de treze províncias (colônias) norte-americanas e pela Revolução
Francesa, e cujos desdobramentos contagiavam enormemente os brasileiros que viviam
no velho continente. João Scantimburgo (1989, p. 58) anota que, naquele período,
“Todos os estudantes brasileiros que freqüentavam universidades européias,
principalmente as francesas, deixaram-se, e nem poderia ser diferente, contagiar pela
efervescência ideológica ou das idéias que fermentavam os círculos universitários e
culturais do continente, no século das luzes”.
Foi nesse ambiente de rebeldia contra a ordem constituída que Frei Caneca foi se
formando intelectualmente e à medida que as relações entre portugueses e brasileiros se
distanciavam em termos de interesses, seu pendor revolucionário se forjava alicerçado
nas idéias vicejadas no interior da revolução que finalmente enterrara a velha
aristocracia feudal.
Durante dois séculos e meio o Brasil atuou foi entreposto para o comércio
português de matérias-primas, produtor de açúcar e algodão e exportador de pau-brasil,
produtos que abasteciam a Europa. Era um território ocupado apenas para a exploração
das riquezas naturais e daqueles ramos de produção agrícola bem aceitos pelo solo e
clima. Em meados do século XVII, entretanto, o produto de exploração não vinha
apenas da agricultura monocultora empregadora de mão-de-obra escrava, mas também
da mineração, cujo ouro iria robustecer as fábricas inglesas da Revolução Industrial.
É possível perceber que numa economia agrária estagnada, com quadro social
extremamente rígido, a mineração trouxe muitas perturbações. Em primeiro lugar
ampliou o mercado interno, pois os mineradores, ao contrário dos fazendeiros, não
plantavam, nem colhiam, nem produziam objetos de uso. Assim a complexidade
aumentava com a necessidade de mão de obra livre para atividades não realizadas pelos
braços escravos e também de um aparelho estatal com juizes, funcionários,
administrativos. Enfim, pela primeira vez no Brasil, surgia uma camada intermediária,
difusa ainda, mas que anunciava os gargalos da relação fundada no trabalho escravo.
O centro do poder se deslocava do Nordeste em direção para o Sudeste. Salvador
cedia o lugar de capital para o Rio de Janeiro. A produção canavieira começava a
declinar em razão da concorrência no mercado internacional, instalando uma crise que
viria a ter forte repercussão no sistema colonial lusitano.
Os fazendeiros nordestinos (especialmente os pernambucanos, onde a produção
era maior), ressentidos desse declínio, começaram a se colocar em conflito com a
administração colonial, ou seja, criavam uma autonomia que marcava a diferença de
seus interesses com os interesses da coroa. Isso explica o surgimento da figura do
latifundiário rebelde, nacionalista, que pegaria em armas contra o “despotismo do Rio
de Janeiro” na República de 1817 e na Confederação do Equador. As camadas
intermediárias também buscavam espaço político e simpatizavam com as idéias de
autonomia, contando com significativa participação de letrados nas lutas pela
independência.
Nesse período a imprensa brasileira podia ser dividida em duas grandes
correntes ideológicas: a imprensa oficial e a imprensa de oposição. A primeira nada
mais era que um instrumento de dominação política utilizada para noticiar as
ordenações do poder central, silenciando sobre as ondas revolucionárias que varriam a
Europa; limitava-se em dar notícias sobre saúde de príncipes europeus e da família real.
Já a imprensa de oposição mal chegava às camadas populares devido a situação
miserável em que viviam, além de ser composta em sua maioria por analfabetos. Com
muita eficiência, embora não sem grandes dificuldades, cumpriu o papel de expressar o
descontentamento dos grupos contrários ao governo de D. João VI e posteriormente de
seu filho Pedro I, considerados ambos arbitrários e despóticos. Mas sem dúvida o seu
maior papel foi o ter contribuído para educar o povo dado às circunstâncias da época.
A historiografia anota que chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808
deu início a história do jornalismo brasileiro. É importante notar que em um país de
maioria analfabeta a imprensa teve atuação relevante na formação política dos
brasileiros estimulando, em muitas ocasiões, a opinião pública a tomar as vias de fato.
Na revolução pernambucana de 1817 e depois em 1824, com a Confederação do
Equador, a imprensa se firmou na oposição demonstrando grande capacidade de
arregimentação de partidários de um projeto de Brasil desvinculado da velha Metrópole.
Em 12 de novembro de 1823, numa atitude autoritária de D. Pedro I, foi
dissolvida a Assembléia Geral Constituinte. Essa atitude do Imperador reacendeu em
algumas províncias do Império e em especial na província de Pernambuco, uma
oposição que há muito vinha se avolumando em relação às diretrizes tomadas pelo
governo central sediado no Rio de Janeiro.
No interior desse intenso conflito ganhou relevância a atuação de jornalistas de
oposição como a do deputado baiano Cipriano José Barata de Almeida e do
pernambucano Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, cuja atuação política e motivação
ideológica estiveram relacionadas às idéias defendidas aquele no jornal O Sentinela da
Liberdade, órgão de imprensa que fazia crítica contundente ao governo de D. Pedro I.
Frei Caneca não atuou somente como articulista, mas também liderando o
movimento rebelde de 1824. O frade carmelita escrevia e publicava inflamados
discursos contra o governo do Rio de Janeiro, além de atuar de forma decisiva nos
Grandes Conselhos (mecanismo usado a partir da demissão da junta de governo
presidida por Francisco Paes Barreto, para deliberar e tomar decisões pelos grupos
mobilizados contra o poder central), onde seus votos eram seguidos pela quase
totalidade dos membros presentes às reuniões. Os membros do Grande Conselho
lutavam para que não fosse empossado o Presidente nomeado pelo Imperador e para que
não fosse jurada a Constituição do Império.
Introduzida no Brasil oficialmente em 1808, a imprensa logo se fez notar pela
sua adesão às campanhas políticas. Os jornais brasileiros criados entre os anos de
1808 a 1880 não precisavam procurar matéria, já que os assuntos estavam bem ao
alcance das mãos, tantos eram os acontecimentos que despertavam a consciência
nacional, reclamando uma atuação das organizações políticas e mesmo do povo: a
reação ao absolutismo, o constitucionalismo, a Revolução de 1817, a regência de D.
Pedro, e a independência, entre outros.
A Assembléia Constituinte foi dissolvida em 12 de novembro de 1823 com a
prisão e deportação de deputados e no dia 25 /12/1823 do mesmo ano é publicado o
primeiro número do Typhis, que logo iria assumir a responsabilidade de propagar os
ideais autonomistas e republicanos como também orientar a causa dos insurretos da
Confederação do Equador. Em relação à dissolução da Assembléia Constituinte, Frei
Caneca comentava em seu jornal que:
Amanheceu nesta corte o lutuoso dia 12 de novembro, dia nefasto para a liberdade do Brasil e sua Independência, dia em que o partido dos chumbeiros do Rio de Janeiro pôs em prática as tramóias do ministério português e conseguiu dissolver a suprema Assembléia Constituinte Legislativa do Império do Brasil. (TYPHIS, 1984, p. 40).
D. Pedro I procurou justificar esse ato dizendo que a assembléia constituinte
havia perjurado, quebrado o juramento de defender a integridade do Império, sua
independência, sua dinastia, e de manter a religião católica e que, portanto, na qualidade
de imperador e defensor perpétuo do Brasil, achou por bem dissolver a mesma
assembléia, e convocar já uma outra a qual deveria trabalhar sobre o projeto de
constituição que em breve seria apresentada a nação, a qual seria duplicadamente mais
liberal do que aquela que a extinta assembléia acabara de fazer. Que as prisões eram
motivadas por serem os deputados considerados inimigos do Império ao cometerem
perjúrio, que embora consideradas despóticas, eram medidas de polícia para se evitar a
anarquia (Cf. TYPHIS, l984, p. 4l).
Frei Caneca procurava mostrar a atitude imperial de fechar a Assembléia
Constituinte e de mandar prender seus deputados como despóticas, e que não havia
razão que justificasse tamanha arbitrariedade. Em resposta ao ato de Pedro I publicou no
jornal o juramento que os deputados prestaram ao tomar assento na soberana
Assembléia, no qual se dizia:
Juro cumprir fiel e lealmente as obrigações de deputado na assembléia geral constituinte e legislativa brasiliense, convocada para fazer a
constituição política do império do Brasil, e as reformas indispensáveis e urgentes, mantida a religião católica, apostólica, romana, e a integridade e independência do império, sem admitir com outra alguma nação qualquer outro laço de união ou federação, que se oponha à dita integridade e independência mantido, outrossim, o império constitucional, e a dinastia do Senhor D. Pedro, nosso primeiro imperador, e sua descendência. (Diário da Assembléia Nacional, nº 1 apud CHACON, 1984, p.43).
Com essa a publicação Frei Caneca mostrava a nação que não houvera perjúrio
por parte da Assembléia Constituinte, e que o diário do congresso contendo o juramento
dos deputados podia ser lido por todos, uma vez que o mesmo corria impresso por todo
o mundo, e que nele ficava explícito que a assembléia observou, com toda religiosidade,
a santidade de seu juramento. Alertava que a integridade e independência do Brasil
estavam ameaçadas já que no primeiro artigo do projeto da Constituição se via
claramente a unicidade e indivisibilidade do império brasileiro, e que as negociações do
gabinete português com o brasiliense haviam deliberado não se admitir nenhuma
negociação com o governo de Portugal sem que esse reconhecesse a independência e
integridade do Império Brasileiro.
Frei Caneca deixava claro que o argumento utilizado por D. Pedro I quanto a
integridade do território brasileiro era falso uma vez que nenhuma parte dele fora cedido
a Portugal ou a qualquer outra nação. E o Frei não parou por aí: questionou no segundo
número do Typhis o alegado motivo religioso que provocara a dissolução da assembléia.
Nela o imperador dizia: “Que se a assembléia não fosse dissolvida, mas sim continuasse
nos seus trabalhos, seriam destruídas nossa santa religião e as nossas vestes tintas em
sangue” (TYPHIS, 1984, p.45). Como isso seria possível, perguntava, se os deputados
haviam jurado manter a religião católica, apostólica, romana; e no projeto da
constituição dizia-se que “A religião católica, apostólica, romana é a religião do Estado
por excelência e a única mantida por ele” (Id., p. 45).
O perjúrio quer em direito natural, quer no civil, quer no canônico, é a violação do juramento praticado por dolo, ou por culpa. Ora, se a soberana assembléia prometeu manter a religião católica, apostólica, romana, e não faltou à promessa, como então perjurou?
Com esse argumento demonstrava que a fala do monarca foi pretexto utilizado
para iludir os povos rudes e suavizar o choque de toda a Nação ao saber da dissolução
da Assembléia Constituinte, dos representantes de sua soberania, dos defensores dos
seus direitos. Em um país de maioria católica, a notícia da destruição dessa religião
causaria pânico entre a população, que iludida não conseguiria perceber as intenções do
imperador em trazer para si o apoio da população.
Nos artigos 153 e 154 publicados no dia 1º de janeiro de 1824, em que desafiava
o imperador, Frei Caneca reafirmava que os deputados haviam jurado manter o Império
Constitucional e a dinastia de D. Pedro I e em nenhum momento se notara o interesse da
Assembléia Constituinte em excluir do trono do Brasil D. Pedro e sua dinastia:
Concluindo-se em último resultado ser inconstitucional e atentatória da soberania da Nação brasileira a dissolução da Assembléia Constituinte e Legislativa, visto se não verificarem os princípios trazidos para uma medida tão além das esperanças do Brasil, e que tem introduzido em todos os ânimos o maior descontentamento e temor de serem conduzido ao mais sanguinário absolutismo e escravidão. (Ibid., p. 48).
Eram argumentos infundados, dizia. Para dissolver a Assembléia Constituinte
Pedro I não hesitava em criar fatos que pudessem justificar um governo que se queria
centralizador em termos de decisão. Na verdade o que pretendia o imperador era desviar
a atenção do povo para que um novo projeto de constituição fosse elaborado mais a
gosto do seu ímpeto absolutista e que esse não fosse contestado. Esse expediente se
apoiava numa constante idéia de sublevação das forças contrárias ao estabelecimento da
nação e do fortalecimento de um governo central.
Quando finalmente apareceu o projeto prometido pelo imperador o qual, em
tese, deveria ser mais liberal do que o discutido pela assembléia dissolvida, Frei Caneca
chamava a atenção no Typhis sobre o tempo gasto para preparar o tal projeto, forjado
em menos de um mês. Tamanha pressa indicava que viesse a ter muitas falhas e
imperfeições, ou seja, que estava anteriormente pronto, faltando apenas alguns ajustes,
já que não seria possível elaborar um projeto de constituição em tão pouco tempo. Dizia
que obras de muito menos importância, mas que aspiravam à perfeição, custaram muito
mais tempo aos seus autores, como foi o caso de O Espírito das Leis, de Montesquieu,
que demorou 20 anos para ficar pronta. Não que o projeto de constituição devesse levar
tanto tempo para ficar pronto, mas segundo o Frei: “[...] não se deve ser tão calvo, que
apareça os miolos. O projeto já foi feito para não ser discutido, e passar como
constituição eterna do Brasil” (Ibid., p. 80).
Diante de tantas críticas o Senado afixou edital comunicando aos cidadãos que
após examinarem o projeto não encontraram nada que merecesse sofrer correção, pois
ao contrário do que se dizia era um projeto liberal e julgado conveniente à nação.
Alegava, ainda, que para se evitar que o país ficasse por muito tempo sem uma lei que o
regulasse, correndo risco da segurança pública ser abalada pela anarquia e por outras
nações que ao não considerarem o país constituído por uma lei geral poderiam não
reconhecer sua independência, ficou então aquele projeto definido como a Constituição
do Império do Brasil.
No Typhis Frei Caneca tratava dos acontecimentos de Pernambuco e das outras
províncias em que explodiam manifestações contrárias ao Império. Usando de
linguagem enérgica, destacava os erros cometidos pelo monarca e atacava a prepotência
dos portugueses. Criticava, também, de forma muito severa, a escolha de Francisco Paes
Barreto para o cargo de presidente da província de Pernambuco. Alegava que o próprio
reconhecera sua inaptidão para o governo da província e que convocara um conselho de
cidadãos com representantes de todas as classes sociais no qual foram expostas as
razões pelas quais se demitira do governo de Pernambuco. Para que a província não
ficasse sem um dirigente elegeu-se um governo temporário que duraria enquanto não
chegasse um presidente nomeado pelo imperador.
Porém, como não apareceu nenhum presidente indicado pelo governo central e
por haver o colégio eleitoral se reunido, instituíram presidente Manuel de Carvalho Paes
de Andrade e comunicaram ao imperador terem assim procedido devido à necessidade
em que Pernambuco se achava, uma vez que Francisco Paes Barreto não foi capaz de
resolver os problemas provinciais e tornara-se impopular entre o povo. Segundo o que
os fatos comprovavam, no lugar de procurar conservar a boa ordem dos negócios, a
tranqüilidade do povo e sua felicidade, Paes Barreto causava a desordem, perturbava-
lhes a paz promovendo a ruína da província, e temiam pelo desastroso sucesso da
dissolução da assembléia constituinte que poderia restabelecer o antigo despotismo a
que tanto desprezavam e que haviam escolhido para presidente uma pessoa que gozava
da inteira confiança de todos e, portanto, esperavam que o imperador não estranhasse tal
procedimento e sim os apoiassem.
No entanto, não foi essa a atitude de D. Pedro, que insistiu em dar posse a
Francisco Paes Barreto contrariando a vontade dos pernambucanos. Diante de tal atitude
do imperador vociferou Caneca nas páginas do Typhis:
Pode S.M. dar padrões do tensas, título de barões, viscondes, condes, marqueses; porém dar ciências a um tolo, valor a um covarde, virtude a um vicioso, honra a um patife, amor da pátria a um traidor, não pode sua majestade. (Ibid., p.87).
O público lia no jornal de Frei Caneca coisas desse teor. O princípio da
autonomia provincial era um dos pontos fundamentais a ser respeitado pela constituição
e que não podia ser descartado:
Nós queremos um império Constitucional e o ministério um absoluto. Nós queremos uma Constituição feita pela nação soberana; o ministério um projeto feito por ele, que não tem soberania. Nós, como racionais, queremos jurar uma Constituição, com conhecimento do que juramos, livremente, sem coação, para o juramento do poder ligar-nos; o ministério quer que abjuremos da razão, o Dom mais precioso que recebemos do Criador, e que nos diferencia dos demais animais que a natureza criou, propensos para a terra e sujeitos aos apetites do ventre; e que juremos o projeto, porque o Senado do Rio de Janeiro o qualificou de obra-prima em política, e que o juremos com um bloqueio na barra, fazendo-nos todas as hostilidades. Nós queremos uma Constituição que afiance e sustente a nossa independência, a união das províncias, a integridade do Império, a liberdade política, a igualdade civil, e todos os direitos inalienáveis do homem em sociedade; o ministério quer que, à força de armas, aceitemos um fantasma ilusório e irrisório da nossa segurança e felicidade, e mesmo indecoroso ao Brasil. (Ibid., p. 178-180).
As questões debatidas por Frei Caneca enfatizavam a ameaça à independência.
Segundo Glacyra Leite (1989, p. 119), o frei afirmava “[...] haver um plano concentrado
pela alcatéia portuguesa contra a Independência do Brasil, ou para o estabelecimento do
absolutismo”. A intenção era re-colonizar o país, plano que exigia a dissolução da
Assembléia Constituinte já que essa representava obstáculo para atingir aquele objetivo.
Frei Caneca, a princípio, não acusava diretamente o Imperador. Dizia ter sido a
“perversa facção portuguesa que tivera a habilidade de iludir S.M.I. para acabar com a
soberana Assembléia Constituinte Brasiliense”, chegando a proclamar Pedro I de
“barrocamente príncipe justo, magnânimo, incomparável”, afirmando confiança no
“Império Constitucional” que se [...] colocado entre a Monarquia e o governo
democrático reúne em si as vantagens de uma e de outra forma, e repulsa para longe os
males de ambas. Agrilhoa o despotismo, e estanca os furores do povo indiscreto e
volúvel. (CHACON, 1984, p. 23).
Porém, quando Pedro I dissolveu a Assembléia Nacional Constituinte em 1823
para outorgar uma Constituição que fosse de seu gosto e interesse, e na qual o poder
ficava ainda mais centralizado em suas mãos e na região Sudeste em detrimento do resto
do país, Frei Caneca passou a ter atitudes mais radicais e a pregar abertamente em seu
jornal a luta revolucionária. Segundo Morel (1987, p. 36), nesse período liam-se frases
como: “Um monarca, quando incorre na desconfiança da nação é imediatamente
reputado um inimigo interno” ou “Os governos querem fundar o seu poder sobre a
pretendida ignorância dos povos, ou sobre antigos erros e abusos”.
Frei Caneca propunha um projeto de Constituição participativo e libertador
diante da opressão existente. Dizia: “Hoje não há homem do sertão mais interior que
deixe de conhecer a dignidade do homem, seus direitos, seus deveres, sua liberdade; e
origens do poder dos que governam” (Id., p. 37). Dessa maneira se referia a toda uma
região que, cansada da intransigência imperial, começava a organizar a revolta armada.
O número 24 do Typhis Pernambucano (1984, p.213) trouxe um comunicado,
contendo as bases para a formação do pacto social, redigido por uma sociedade de
homens de letras. Listavam-se os seguintes pontos entre outros também contundentes:
“Os direitos naturais, civis e políticos do homem são a liberdade, a igualdade, a
segurança, a propriedade e a resistência à opressão. A liberdade da imprensa, ou outro
qualquer meio de publicar estes sentimentos, não pode ser proibido, Suspenso nem
limitado. Todos os cidadãos são admissíveis a todos os lugares, empregos e funções
públicas. Os povos livres não conhecem outros motivos de preferência, senão os
talentos e virtudes. A instrução elementar é necessária, a todos, e a sociedade deve
prestar igualmente a todos os seus membros”.
No artigo 22 percebe-se a preocupação de Caneca com a instrução do povo, que
a via como fundamental para a formação do Novo Estado Nacional que se formava. Era
um defensor do equilíbrio dos poderes, do respeito à Constituição e, sobretudo do
fortalecimento da civilização através da educação, do esclarecimento, da propagação
das luzes do saber:
O primeiro cuidado do governo, a respeito dos cidadãos e súditos, é procurar iluminá-los com as luzes das ciências, artes e ofícios, dispartindo (sic) esta tarefa aos cidadãos mais sábios e eruditos, não se poupando a gastos por maiores, pois está assentado entre todos que um povo ignorante é um povo selvagem e bárbaro.’ (TYPHIS, 1984, p.55).
Para ele a instrução daria ao homem o entendimento necessário ao seu
desenvolvimento e as suas escolhas, pois um homem sem uma boa formação corria o
risco de cometer erros bem maiores, já que a falta de conhecimento produz idéias falsas
e inexatas e que uma sociedade que não se valoriza a formação do povo pode produzir
juízo falsos, incoerências, crimes, atentados, perturbações e até sua ruína final.
Acreditava que a imperfeição das idéias produzia efeitos prejudiciais e funestos na
moral e nos costumes dos povos. Portanto, defendia a idéia de que uma república bem
constituída é aquela em que seu governo prioriza a instrução do povo.
Ao ter em mente essa preocupação Frei Caneca se dedicava a elucidar matérias
em que via não se pensar com a devida retidão, sendo o Typhis o seu grande
instrumento para a propagação das idéias que julgava serem as corretas para a formação
do homem. Atuava, assim, como uma espécie de intelectual orgânico, procurando
discutir formulações para uma nova sociedade. Através dele, suas idéias liberais
chegavam até o povo, se constituindo num dos principais fatores de animação e
orientação dos indivíduos contrários ao governo imperial, lido com muito entusiasmo
pelos rebeldes, apesar de atingir somente a parcela da população possibilitada de ter
acesso a jornais. Sua atuação se dava também nas grandes assembléias públicas, suas
palavras inflamadas e sensatas eram as mais ouvidas. Ele buscava de todo modo,
sintetizar as tendências contraditórias no interior do movimento, sem perder a
perspectiva revolucionária, afirmando que:
Governe quem governar, seja nobre ou mecânico, rico ou pobre, sábio ou ignorante, da praça ou do mato, branco ou preto, pardo ou caboclo, só há um partido que é o da liberdade civil e da felicidade do povo; e tudo o que não for isso há de ser repulsado a ferro e fogo. (CANECA apud MOREL, 1987, p. 39).
Embora existisse no Brasil uma imprensa de oposição como foi o caso do
Typhis, ardente e corajosa, pouco esta podia alcançar em relação às camadas populares.
Nesse momento, a atuação de Frei Caneca no papel de religioso foi imprescindível para
levar até eles as palavras com as quais contestava o poder despótico de Pedro I e a
política voltada, ainda, para os interesses portugueses:
Além de ser um religioso com acesso ao púlpito da igreja e, portanto, com possibilidade de levar seu pensamento a um público amplo e de constituição muito heterogênea, era regente de cadeira de Geometria Elementar, o que o colocava em contato com outro tipo de clientela. Essas eram algumas das vias de acesso que tinha o Carmelita para divulgar suas idéias. Outro meio muito eficaz utilizado por Frei Caneca eram as reuniões políticas, em especial as reuniões do Grande Conselho. Aí ele se fazia presente como membro do “Corpo Literário” da cidade do Recife. A opinião manifestada em seus votos era aquelas que sempre conseguia ser referendada. (LEITE, 1989, p. 119).
Por esses mecanismos propagava as novas idéias na intenção de que se
almejasse o fim dos privilégios da metrópole, aos pobres que enxergassem o fim da
aristocracia ociosa, aos mulatos perceberem um ponto final para os preconceitos, aos
negros, o fim da escravidão. Quanto às transformações sociais mais profundas, como
por exemplo, a organização da sociedade, suas manifestações não se distanciavam da
realidade então vivida pelo povo. Para ele, a defesa do direito de propriedade
sobrepunha-se à defesa do direito de liberdade, asseverando que “Nenhuma pessoa pode
ser privada da menor porção da sua propriedade sem seu consentimento, só no caso de
haver necessidade pública, e esta legalmente contestada, que exija evidentemente e
debaixo de uma justa e prévia indenização” (CANECA apud LEITE, 1989, p. 120).
Expressando as contradições de sua época, por muitas vezes se fazia
contraditório ao defender a liberdade de todos os homens ao afirmar que “todo homem
pode entrar no serviço de outro pelo tempo que quiser, porém não pode vender-se, nem
ser vendido” (Idem, p.120), mas contraditoriamente sobrepunha ao direito de liberdade
o direito de propriedade, exatamente como a burguesia havia consolidado no seu
processo de desenvolvimento. Percebe-se dessa forma em Frei Caneca a tendência de
radicalizar politicamente uma vez que defendia uma posição de rompimento em relação
ao governo do Rio de Janeiro, mas com relação à estrutura social, ou seja, a forma como
a sociedade se organizava para a produção de riqueza, vê-se nele a figura de um frei
reformista.
Para compreender tal postura é preciso entender que o liberalismo que
predominava entre os letrados no Brasil era o mesmo que norteara a Revolução
Francesa, um liberalismo que nem sempre estava vinculado às aspirações e aos
movimentos das camadas pobres da população. Segundo Morel (1987, p. 40) “[...] a
idéia de revolução é uma idéia da modernidade política, elaborada ou assumida,
sobretudo, pelas elites urbanas letradas, ainda mais em fins do século XVIII”. No Brasil
e não só nele, a condenação da escravidão vinha acompanhada de uma certa tolerância,
atitude comum entre os liberais da primeira metade do século XIX. Essa posição
contraditória diante da abolição do trabalho escravo era característica da maioria dos
revolucionários franceses, inclusive os tidos como mais radicais.
No Brasil, conquistada a independência, o grupo social que herdou o poder
representava os interesses dos grandes proprietários de terra, ligados a uma economia
agro-exportadora, dependente do trabalho escravo. Portanto, nele, o discurso liberal foi
ao mesmo tempo revolucionário no que se refere à emancipação política e destruição de
instituições político-administrativa tradicional e conservador quando se tratava de
manter a ordem interna vigente. Na visão de Heitor Ferreira Lima (1978, p. 82)
O pensamento liberal do século XVIII, que na Europa serviu para realizar a revolução democrática-burguesa, na América Latina foi utilizado para cumprir somente uma de suas tarefas: a independência política. Os argumentos da burguesia européia, contra o feudalismo, foram adaptados pela burguesia nacional no caso do Brasil para lutar contra a opressão Monárquica. Na Europa, o pensamento liberal foi a bandeira da burguesia industrial, na América Latina foi a ideologia dos latifundiários, dos mineiros e comerciantes.
O contraponto mais expressivo às idéias e ações de Frei Caneca talvez esteja
presente na figura de Azeredo Coutinho. Esse bispo foi exemplo de liberal conservador,
fundador do Seminário de Olinda, local impregnado das influências francesas e de
ideais modernistas, manteve-se sempre como um reformista convicto. Nasceu em
Campos, Rio de Janeiro, herdou terras e engenho do pai, portanto descendia de família
abastada. Assumiu a administração de suas posses aos 26 anos de idade, seis anos
depois, aproximadamente, com 32 anos, abdicou do direito de primogenitura e dirigiu-
se para Portugal, onde, em Coimbra, estudou letras e filosofia e, mais tarde, licenciou-se
em direito canônico. Viveu entre a permanência das formas culturais escolásticas e o
impulso das novidades iluministas. Ordenado sacerdote e depois bispo, segundo Alves
(l993, p. 64), nunca deixou, contudo, de raciocinar como um senhor de engenho, como
um burguês.
Ao mostrar-se preocupado com a recuperação da antiga grandeza material de
Portugal, na qual teria papel fundamental a riqueza natural do Brasil, pretendia a
prosperidade brasileira, no entanto visando sempre garantir vantagens aos portugueses.
Quando seu pensamento correspondia, de certo modo, a um interesse brasileiro, era
sempre ao dos grandes proprietários de terras, defendendo a utilização do trabalho, o
tráfico de negros e o absolutismo.
Para justificar tal postura argumentava que o trabalho livre, no caso europeu, era
necessário uma vez que atendia os trabalhadores expropriados dos meios de produção e
que não tinham outra alternativa que não a de se tornarem assalariados juntos aos
detentores do capital. Já no caso brasileiro isto seria impensável, pois somente o
trabalho escravo asseguraria a permanência do trabalhador junto ao capitalista. De
acordo com Alves (Id., p. 65), temia que o trabalho livre ensejasse aos negros a
possibilidade de adentrarem-se pelo interior do Brasil, cujas terras eram devolutas e aí
iniciarem a restauração da organização social que lhes era peculiar na África.
O bispo de Olinda, um absolutista de fé, não chegou a cultivar o liberalismo no
plano político: em relação ao Brasil nunca admitiu a idéia de independência frente ao
domínio português. Já no plano econômico combatia as políticas monopolistas, como a
do sal, da exploração e da comercialização da madeira e do tabaco. Também se insurgiu
contra a taxação do açúcar por entender que diminuía a competitividade do produto
brasileiro no mercado internacional.
Suas convicções casavam-se com as da elite intelectual brasileira educada na
Universidade de Coimbra, com formação iluminista, ao reconhecer que a crescente
complexidade da sociedade exigia recursos humanos com formação humanística e
científica a nível secundário, já não bastando apenas saber ler, escrever e contar.
Percebe-se, portanto, que a criação do Seminário de Olinda tinha como objetivo
atender a interesses econômicos. Segundo Alves (Ibid., p. 69) “Sua proposta pedagógica
emerge quando da consideração mais ampla acerca da restauração da antiga grandeza de
Portugal”. Azeredo Coutinho tinha claro que para Portugal participar do ritmo da
história deveria desenvolver a agricultura, expandir as manufaturas e ter conhecimento
dos seus domínios como de sua colônia mais extensa e mais rica.
Foi um representante da classe dominante, nunca pediu a independência nem a
liberdade de comércio com outras nações e, segundo Lima (1978, p.58), seu “[...] ideal
consistia em resguardar ao máximo a estrutura colonial da produção, rompendo apenas
com o regime de monopólio, a autonomia não tinha nenhuma condição de definir-se
como reforma, ou revolução”.
Neste ponto sobressaem as diferenças existentes entre o pensamento de Azeredo
Coutinho e Frei Caneca. Apesar de ter passado pelo Seminário de Olinda como muitos
outros padres e comungado as mesmas idéias que o Bispo de Olinda, seus ideais
convergiam em direções opostas, principalmente quando se tratava da liberdade para o
Brasil. Azeredo Coutinho em nenhum momento desejou a independência, pois o que
tinha em mente era o desenvolvimento da colônia como forma de garantir a recuperação
econômica de Portugal. Por sua vez, Frei Caneca mostrava-se como um homem
insatisfeito: tinha sede de verdade, saber e liberdade e acreditava que essas aspirações
não viriam através da acomodação, da concordância com o estado de coisas que
mantinham o país em completa submissão aos interesses de outras nações. Foi a partir
de sua trajetória de vida que ele cruzou com a trajetória do país e da sociedade de sua
época, procurando influir nas mudanças que via serem necessárias ao desenvolvimento.
Segundo Morel (1987, p. 19), “Frei Caneca começa, então, lentamente, a trocar a
vida monástica, tão marcante em sua existência, pela atuação pastoral, em sintonia cada
vez maior com a sociedade daquele tempo”. Defendeu com afinco a independência do
Brasil afirmando que:
É por todas estas razões que eu sou de voto que se não adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois não garante a independência do Brasil, ameaça a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nação e nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, qual o perjúrio, e nos é apresentada de maneira coativa e tirânica. (CANECA apud MOREL, 1987, p. 35).
Uma outra questão que aponta o distanciamento entre as idéias de Frei Caneca e
Azeredo Coutinho é referente à questão educacional. Tanto um como o outro se
preocupava com a educação do povo, porém defendiam interesses diferentes. Para Frei
Caneca a instrução dos homens era uma ferramenta indispensável à formação do novo
Estado Nacional, defendendo a educação do povo como meio de esclarecimento e
propagação do saber. Considerava o conhecimento universal e o acesso ao mesmo um
direito de todos os homens. Morel (2000, p. 29) vê em Frei Caneca “Um defensor do
equilíbrio dos poderes, do respeito à Constituição e, sobretudo, do fortalecimento da
civilização através da educação, do esclarecimento, da propagação das luzes do saber”.
Para Azeredo Coutinho, conhecer as riquezas naturais das terras pertencentes a
Portugal requeria um conhecimento mais especializado, realizado por filósofos
naturalistas, profissionais dispostos a interiorizarem-se para que os recursos do reino
mineral, da flora e da fauna fossem catalogados, porém o Bispo estava diante de uma
grande dificuldade: o filósofo naturalista de seu tempo era um homem de gabinete, vivia
nos centros urbanos e não estava disposto a fixar-se nos sertões.
Seria então necessário formar homens que se dispusessem ao trabalho de
catalogar as riquezas naturais, importantes para a recuperação econômica de Portugal.
Diante desse desafio Azeredo Coutinho aponta a formação do padre, do cura para o
desempenho de tal tarefa. Se esse recebesse uma boa formação em ciências naturais, em
desenho, em geometria, poderia contribuir para o grande projeto de desenvolvimento de
Portugal. Segundo Alves (1993, p. 70):
Este deveria estar onde se encontravam as suas ovelhas, homens simples, mas, que dominavam, com muita perspicácia e por meio do senso comum vastos conhecimentos sobre plantas medicinais e alimentícias, sobre aves, peixes e outros animais.
A proposta pedagógica de Azeredo Coutinho é definida por motivação
nitidamente burguesa, marcada pela preocupação com o domínio do mundo material.
No caso de Frei Caneca, a instrução do homem era vista como ferramenta indispensável
ao esclarecimento e propagação do saber. Para ele, o conhecimento era universal e o
acesso ao mesmo era um direito de todos os homens. Em uma sociedade com a maioria
do povo analfabeta, contribuiu no plano institucional elaborando sugestões à
Constituição que se preparava, escrevendo tratados e dissertações. Mas fazia sempre
questão de discutir tais idéias no ambiente popular, imprimindo folhetos que corriam de
mão em mão, e fazendo pronunciamentos a viva voz: “Do que tenho dito já se deixa ver
que eu não escrevo para os homens letrados; sim para o povo rude, e que não tem
aplicação às letras” (CANECA apud MELLO, 2001, p. 57).
Numa sociedade de iletrados, procurava escrever aquilo que o povo gostaria de
expressar caso tivessem o domínio da escrita, ou seja, tornou-se porta-voz do povo,
através do Typhis, conferindo a ele um caráter profundamente educativo na medida em
que o debate ali propagado infiltrava-se no espírito dos homens, fazendo-os enxergar
que as dificuldades que enfrentavam deveriam ser combatidas na forma de luta política.
Assim Frei Caneca objetivava “Ensinar a ciência da palavra que transformava as
consciências e a sociedade, no púlpito, nas salas de aulas ou, futuramente, na imprensa,
eis um aprendizado teórico ao qual se dedicou por vários anos e que, anos mais tarde,
desaguaria em atitudes práticas” (MOREL, 2000, p. 25).
Na propagação do saber teve por aliado o Typhis, para atingir um determinado
público usou a sala de aula, o púlpito e as reuniões políticas como meio de fazer o povo
esclarecido. Dessa forma suas idéias chegavam aos mais diferentes grupos sociais,
desde os menos favorecidos socialmente, através do púlpito da Igreja, até os mais
privilegiados, aqueles que possuíam renda elevada, mas viam seus interesses serem cada
vez mais combalidos pela ação do governo imperial:
[...] com a facção portuguesa, que não dorme em querer levar a adiante os seus fins desastrosos, devemos formarmo-nos em esquadrão cerrado contra esta cáfila maligna, que, não se contentando de ter transtornado a nossa representação nacional na Corte do Rio de Janeiro, traz emissários e apaniguados por todas as províncias do Império para trabalharem no mesmo plano, intrigando, dividindo as opiniões e fazendo chocarem-se as forças umas contra as outras. (TYPHIS, 1984, p. 88).
Frei Caneca via aquele momento de luta exigindo a independência externa e a
liberdade política. Afirmava ao povo que governar sempre foi uma das mais difíceis
tarefas dos homens, mesmo em tempo de tranqüilidade e entre povo de costumes fixos e
virtuosos, mas que em situação contrária a essa de efervescência, e quando os diversos
interesses dos homens são opostos, sem dúvida governar se torna ainda mais difícil:
A ciência do governo sempre foi a mais difícil das empresas dos homens, em tempos de tranqüilidade e entre um povo de costumes fixos e virtuosos; em quadras, porém, de efervescência, e quando os homens vacilantes em moral se não dirigem a norte nenhum certo e, sem dúvida acima das forças humanas. (Id., p. 126).
Entendia não ser aquele momento oportuno a lutas individuais, devendo o povo
perceber que o espírito de corporação na qual cada classe social procurava atingir seus
interesses dividia as forças isoladamente uma das outras. Sem laços de reciprocidade
jamais se conseguiria o fim geral e comum a todos, dizia, ao procurar instruir o povo no
sentido de que a hora era a de esquecer os desgostos e querelas particulares, os objetivos
deveriam ser os mesmos para todos, o de conservação e salvação da pátria:
O governo político, a magistratura, o povo, a tropa e o clero, todos devemos estar ligados de feição, que um não possa ser arrastado por algum furacão, a menos que leve a rojões consigo todos os outros. Talvez não haja uma tempestade, por mais furiosa, que possa destruir uma tão estreita e apertada união; o que não sucederá, se desunidos pretendermos resistir ao astuto e manhoso inimigo, que nos quer suplantar [...] Sem este espelho de desinteresse, de justiça, de generosidade, não poderemos jamais atender seriamente ao bem da nossa pátria, à sua grandeza e gloria; sem uma perfeita união seremos, com facilidade, rotos e desbaratados, unamo-nos, pois, em só pensar, em um querer. (Ibid., p. 89-90).
Através desse jornal procurou despertar o povo para o perigo que corria a
província de Pernambuco instruindo-os para a necessidade de se organizarem e de
lutarem pelos seus direitos, uma vez que aquele que deveria fazê-lo os haviam traído:
“O teu Typhis te apontará as ciladas, os bósforos, as sirtes; te notará os perigos até onde
se estender o horizonte da sua vista; ele subirá o mais elevado tope da tua gávea, sem,
mudar a cor do rosto” (Ibid., 1984, p. 39).
Até mesmo nos momentos mais difíceis pelos quais atravessou não deixou de
demonstrar sua preocupação com a instrução do povo. A exemplo disso, quando esteve
na prisão por envolvimento na Revolução de 1817 não perdeu tempo, começou a
organizar cursos, incentivando seus companheiros republicanos presos com ele a
fazerem o mesmo. A vida dos presos começou a mudar, passaram a ter aulas de
filosofia, geometria, retórica, etc. No entanto, a prioridade de Frei Caneca era ensinar
aos iletrados e foi pensando assim que para sistematizar tais atividades ele redigiu um
Breve Compêndio de Gramática Portuguesa, onde se observa a preocupação de torná-lo
adequado à capacidade dos novos alunos. .
No dia 20 de dezembro de 1824 reuniu-se em Pernambuco uma comissão
Militar para julgar os envolvido no movimento rebelde de 1824. Frei Caneca foi o
primeiro a ser julgado. Acusado da autoria dos papéis incendiários, considerado como o
que mais se empenhou no projeto de promover o desmembramento da Província de
Pernambuco, de desobrigar a mesma província da obediência devida ao Imperador,
culpado de julgar o projeto de Constituição oferecido à nação como obra do despotismo
e da tirania, de ter divulgado princípios desorganizadores da integridade do Império, de
difundir as mais perigosas idéias tendentes a provocar nos povos a desobediência ao
Imperador, de defender o sistema republicano e, finalmente, de ter marchado com a
tropa rebelada, fazendo-se um deles.
Frei Caneca argumentou energicamente contra essas acusações, classificou as
duas linhas de acusação como injustas: tanto a que se referia a seus escritos como
revolucionários, subversivos da ordem pública, como a que considerava rebelião sua
marcha do Recife para o sertão, em companhia das tropas confederadas. Dizia:
Quanto às doutrinas dos seus impressos, não ia se furtar a prestar contas, apesar de a matéria não ser objeto de tratamento pela Comissão Militar, pois a instância competente para julgar os abusos de liberdade de imprensa era o Tribunal dos Jurados. Afirmava que, propondo-se a escrever o periódico a que dera o título de Typhis Pernambucano, nenhum outro fim tivera senão o de sustentar a Independência do Brasil, a integridade do Império, a justa liberdade de sua pátria e, em última análise, os direitos e a glória do imortal D. Pedro I, Imperador do Brasil. (LEITE, 1989, p. 31).
Suas argumentações de nada adiantaram. O trabalho da Comissão Militar já
tinha como objetivo determinado reafirmar o poder do governo do Rio de Janeiro e a
extensão ilimitada de seu alcance. Para isso era necessário punir imediatamente os
elementos cujas atividades mais repercutiam entre a população. No caso de Frei Caneca,
além de ser um religioso que exercia seu papel nos cultos, era articulista, redator de
jornal e ainda mais professor. Assim, Frei Caneca foi condenado em 23 de dezembro de
1824 e executado em 13 de janeiro de 1825, depois de ser destituído de sua condição de
sacerdote pela justiça do Estado e pelas autoridades religiosas. Tal atitude significava o
risco que o governo não queria correr: o de ver Frei Caneca ser transformado em mártir,
exatamente como o povo passou a considerá-lo depois da sua execução.
Tendo em vista a importância da análise do pensamento de Frei Caneca para o
entendimento de um momento histórico crucial para a sociedade brasileira, pois nele se
deu o rompimento dos laços políticos entre Brasil e Portugal e definiu o que deveria ser
o fim do regime absoluto do governo de Dom Pedro I, se faz oportuno o estudo de um
personagem histórico tão emblemático na luta pela difusão das idéias liberais e na
proposta de uma forma de governo em que predominavam os interesses nacionais.
Para entender as causas verdadeiras de um acontecimento, muitas vezes é
preciso que se observe o dia-a-dia das pessoas presentes àqueles acontecimentos bem
como as relações que perpassavam entre elas, de tal forma que seja possível, a partir daí,
configurar a luta de classes que definiam suas existências, principalmente num
momento em que se travava a luta pela Independência do Brasil.
Este trabalho objetivou contribuir para desmistificar a idéia de que o povo
brasileiro em épocas passadas foi um povo pacífico e que tudo aceitava sem opor
resistência.. Resgata, ainda que de forma breve, a trajetória de vida de um personagem
histórico da envergadura de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Ao ressaltar o
exemplo e a herança política do líder popular, cujas palavras convenciam e instruíam o
povo para a luta fica difícil ignorar a sua contribuição para a constituição do novo
Estado num momento em que se buscava definir e construir a nação brasileira.
Embora a historiografia oficial não o tenha colocado como tal, e mantivesse por
muitos anos na obscuridade esta verdade é sabido que Frei Caneca protagonizou um dos
momentos mais genuínos da história nacional, artífice daquela que talvez tenha sido o
maior ensaio de uma revolução social que tentou acabar com o predomínio português no
Brasil. Além desta constatação, emerge a também importante tarefa educativa que levou
a termo durante anos de combate: o jornal O Typhis Pernambucano merece um estudo
aprofundado de seu conteúdo educativo, reclama que o mesmo seja vinculado ao
processo educacional por motivos que a historiografia educacional não pode nem deve
olvidar: ao mesmo tempo em que debateu com a sua época ungido pelo pensamento
liberal, definiu estrategicamente a forma de fazê-lo disseminado.
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