O Livro-Caderno Completo

download O Livro-Caderno Completo

of 41

Transcript of O Livro-Caderno Completo

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    1/41

     

    !" 

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    2/41

      2

    A minha intervenção tem duas partes:1) O lugar do livro nas nossas vidas, e na minha em

    particular, com referência a alguns dos livros que me formaram eque ficaram; quase todos vindos da juventude, outros maistardiamente. São muitos, estamos sempre a descobrir livrosdecisivos (aqueles de nós que lêem, claro), livros que não

    esquecemos, livros que descem fundo em nós, aqueles livros quelemos e voltamos a ler sem nunca lhes chegar ao fim, como diz anossa M. G. Llansol;

    2) E Llansol   será precisamente o objecto da segunda partedesta minha intervenção: porque, a certa altura, já tarde na minhavida (mas nunca demasiado tarde, como ela me escreveu um dia),percebi que os livros, o Livro contínuo de Llansol, se tornou, a parde tantos outros, mas para além deles e de modo diferente, «olivro da minha vida». Aquele que, como diz o soneto de Rilkesobre o «Torso arcaico de Apolo» – como os textos de Llansoluma obra incompleta, e que por isso nos pede sempre para acompletarmos – nos faz dar um novo rumo à nossa vida (já lávoltarei). E nessa nova vida não há paragem: o que a alimenta e

    anima (neste caso o Livro de Llansol) tem como ingredientesprincipais o desassossego, o inacabado, a metamorfose.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    3/41

      3

    No Dia Mundial do Livro, falemos de livros, não desimulacros de livros (há muitos por aí hoje), nem do livro em

    abstracto. O que não me impede de falar do livro em geral,enquanto coisa física (ou virtual), objecto móvel – o mais móvelque há, sem depender de redes nem de aplicações! – e enquantofonte, mãe-de-água que pode saciar muita sede: de saber, deimaginação, de gosto, de espanto, de beleza, de crescimento, deantídoto para o que se chama por aí «solidão», uma ideia tão maltratada e tão mal entendida, e que os livros facilmente

    neutralizam...

     Voltei por estes dias a um livro do romancista americanoHenry Miller  com o título Os Livros da Minha Vida, que logo noinício lança a seguinte ideia, que nos deixa perplexos:«Deveríamos ler cada vez menos, e não cada vez mais.» Penseisobre a frase, e julgo que o que ela quer dizer é isto: ler cada vezmenos é ler em intensidade  (ou também reduzir as leiturasàquelas que valem realmente a pena – até chegar, eventualmente,

    ao  livro da nossa vida, que nem precisaremos de ter em papel,basta tê-lo na cabeça, como no filme de Truffaut a que mereferirei a seguir). Pelo contrário, ler cada vez mais é ler em

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    4/41

      4

    extensão, ler por ler ou para entreter (os tijolos que a indústriado entretenimento hoje propõe, e o marketing  impõe). Ler assim

    é perder o sentido da leitura.E que sentido é esse? É essencialmente o da descoberta e ode uma curiosidade  sem angústia que o livro, com o tempo queexige a sua leitura, pode satisfazer melhor do que a Wikipédia oua Net em geral (e tempo aqui não é dinheiro, é prazer, entrega amundos de fascínio, novos ou velhos, leves ou suculentos,acessíveis ou difíceis – precisamos de reaprender a lentidão!).

    Antigamente, o prazer do livro e da leitura podia levar até ao«crime» (crime não condenável: o roubo de livros na livraria ou nasbibliotecas, que muitos ilustres nomes praticaram e confessaram).Está escrito, e lembro dois exemplos. 

    Num pequeno livro sobre A Biblioteca  (uma conferêncianuma Biblioteca em Milão), Umberto Eco  lembra como roubarlivros é uma tentação louvável (hoje, um estudante roubaria

    quando muito um telemóvel ou uns ténis de marca, e é até capazde matar por isso!). Eco conta: «Podemos surpreender umestudante a dizer: 'Ah, este livro é interessante, amanhã venho

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    5/41

      5

    roubá-lo!' E depois vão passando informações entre si, porexemplo: 'Olha que na livraria Feltrinelli, se te apanham, levas'.

    'Ah, bom, então vou roubar à Marzocco onde abriram agora umnovo supermercado'. No entanto, quem organiza as redes delivrarias sabe que, a dada altura, uma livraria com um alto índicede roubos é também aquela que mais vende»! E João MiguelFernandes Jorge, um importante poeta português desde os anossetenta, descreve também uma cena semelhante num dos seusprimeiros livros de poemas, Actus Tragicus (1979):

    «Este verão a cada momento esqueço havia esse / verão essetempo atravessado por corpos nunca por / nomes tidos essescorpos que fazem vir as lágrimas / os livros gamados por esseChiado abaixo! [...]a Rita cobrindo a / mesa, das antigas, de mármore!, cobrindo amesa de / fotografias. Ao lado o João, eu não, o outro, esse, o /

    dos livros gamados Chiado acima Portugal, Sá da Costa / no meiofica a Bertrand. [...]

    Depois, podia ainda lembrar um grande nome da história dolivro e da leitura, o argentino Alberto Manguel , que na juventudelia para esse outro argentino visionário caído na cegueira, que

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    6/41

      6

    imaginou o lugar dos livros, a biblioteca, como o Universo: oBorges d' A Biblioteca de Babel   (também evocado por Eco no

    início do seu livrinho). Retenho de Manguel uma ideia, título deum dos capítulos do seu livro Uma História da Leitura: «O livro damemória». O livro da memória é aí referido às Confissões  deSanto Agostinho (que, nos Livros X e XI trata de facto,desenvolvidamente e com originalidade, o tema do tempo e damemória). Mas para mim agora, o livro da memória é aquele quenão esquecemos nem esqueceremos, que podemos trazer sempre

    no bolso (se lá couber) e a que voltaremos sempre sem ter asensação de estar a ler a mesma coisa! Manguel lembra que esselivro era, para Petrarca, as Confissões de Santo Agostinho, que opoeta italiano havia de glosar em diálogos num livro próprio. Hojepenso muitas vezes que para mim esse «livro» – se não fosse já ode Llansol – poderia ser, por exemplo, as Obras de Shakespeare,

    ou o Fausto de Goethe, ou O Homem sem Qualidades de Musil,de que ainda falarei. (Para outros, outras, que aqui estão, sei queseria Proust, ou Schiller... Cada um terá, como diz ainda Manguel apropósito das «leituras íntimas», as suas «paixões raciocinadas»...)

    **

    Neste ia Mundial do Livro continuo com um fait divers.«O livro da minha vida» – aquilo que assim se costuma designar –

     já não é o que era, há empresas que o escrevem. Empresas emque uma colaboradora, ou proprietária, ou gestora, escreve porencomenda o livro da vida dos outros (e não apenas defutebolistas ou suas mães, entretanto tristemente célebres,

    também de políticos incapazes de escrever ou de estrelas decabeça oca). E tais livros fazem-se a troco de honorários chorudos.Estes «livros da minha vida», não somos nós quem os escreve, não

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    7/41

      7

    são aqueles que lemos e nos tocaram, são a minha vida – a minhavidinha – posta em livro. Com a história bem contada – o que quer

    que seja que isso signifique –, e com muitas, muitas fotografias.

    É a vera fotografia, a cores, do mundo em que vivemos. Umuniverso todo feito de representações e encenações em que cada

    um quer ser actor, se possível protagonista. Mas já não, como háumas três décadas, quando um livro de Christopher Lash lançou olema da «era do narcisismo», protagonista em solilóquio de siconsigo mesmo, numa peça em um acto e uma cena, escutando oeco especular da beleza do próprio corpo, que se desejavaeterno. Hoje vive-se – e não só na vida, também na literatura, emespecial no romance – uma ânsia, uma quase vertigem da maisdespudorada bio-grafia: mais ainda, e sempre que é possível e orepórter consente, da vida tele-visionada, obscenamentedevassada por todos, na busca de um instante de eternidade quelogo a seguir se desvanece. Tudo feito por outros e paratodos, sem qualquer intervenção própria, nem activa nem passiva.A variante activa e mais em voga desta vontade de exposição de

    si são as «redes sociais», o «Livro das Faces», a maior parte dasvezes (com honrosas excepções) verdadeiros álbuns privadosexpostos na praça pública.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    8/41

      8

    Neste contexto, poucos são os que querem saber de livros,livros de papel ou E-books, tanto dá, que apresentem, não bio-

    grafias ocas, mas signo-grafias cheias, uma escrita de sinais que eurecolho e que dão sentido à minha vida mais funda e maisautêntica, que geram em mim novas necessidades e afectam – notriplo sentido do termo: influenciam, co-movem e transformam – omeu ser libidinal   (de pulsões e emoções), a minha consciênciaética  e a minha predisposição estética. Parece que ninguém seinteressa por «agarrar o desejo pela cauda» (pelo livro, pela obra),

    como sugere o irónico título de uma peça de Picasso (Le désirattrapé par la queue); prefere-se agarrar de qualquer modosimples bio-grafias, próprias ou alheias (porque o que afecta é oefeito de falso-real, não se percebendo que ele é efeito desimulacros), o interessante é pegar de cernelha ou de rabo umavidinha – que, por mais voltas que se lhe dê, nem sequer tem

    ponta de originalidade, porque no mundo globalizado já quasenão há vidas para além do estereótipo. E o livro parece ser, para amaior parte das pessoas, um ser em vias de extinção.

    Fecho o parêntesis, que não é para falar destes sucedâneosque estamos aqui. Mas o fait divers  tem aqui o seu lugar, pelochoque que evidencia em relação àquele que escolhi como o livroda minha vida, e que entendo como um  livro feito de livros, ou,como preferi chamar-lhe, O Livro, coisa escrita e coisa de escrita,que marcou e transformou a minha vida – e não há metáfora nisto.No meu caso, a escolha incide sobre um Livro único e contínuo,livro sem margens que, nos últimos quinze anos, pelo menos, melevou realmente a mudar de vida. Como se diz nos últimos versos

    daquele soneto de Rilke, «Torso arcaico de Apolo» («Tudo nele tevê, te está a olhar: / Tens de dar novo rumo à tua vida»); mas comoutro sentido, mais fundo, porque não se escolhe o livro de uma

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    9/41

      9

    vida apenas pelo impacto de uma forma, pela beleza de uma obra(e, no entanto, é da mesma coisa que se trata em Rilke e no seu

    torso «arcaico», que por alguma razão (já) não é clássico (é umfragmento em que o que lá não está é o mais apelativo): tambémno soneto de Rilke alguma coisa de «acentrado» me vê, me chamae me obriga, por decisão livre, a mudar de vida.

    É disto que se trata, é disto que pretendo falar. E nem sequerdirei, como tantas vezes acontece, que este Livro que escolhi, queme escolheu, se tornou o meu «livro de cabeceira» (de facto,nunca leio na cama!). Direi antes que ele foi, e é, sem qualquermargem para dúvidas, um livro-charneira da e na minha vida.

    Livro com maiúscula e artigo definido, mas sem título.Rasurar títulos pode corresponder, corresponde, a uma intençãode anular diferenças entre eles e de afirmar uma escrita una.Rasura bem diferente daquela outra, de que alguns se lembrarãopor ser tão emblemática de uma certa forma de relação com olivro das nossas vidas – que nunca é único: seria pobre a vida deque pudéssemos escolher apenas um livro. Falo do filme de

    François Truffaut Farenheit 451  (ou, no título que cá lhe deram,Grau de Destruição) – filme que parece ser uma versão modernada velha história de Fausto, em que este surge, no séc. XVI, como

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    10/41

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    11/41

      11

    inaudita: decoravam-nos, para voltarem a publicá-los quandodeixassem de ser proibidos, e depois destruíam-nos.]

    Não consigo imaginar forma mais original de convivênciacom os livros da nossa vida do que esta bibliofagia mental. O livrotornado parte integrante de nós, alojado, não na estante, masnum escaninho próprio do cérebro, à espera de ganhar de novocorpo físico (hoje haveria outros modos, mais sofisticados, de ostornar imateriais). Não servia para mim, que nunca fui forte a

    decorar: se quisesse decorar «o livro da minha vida» seria umfracasso total. Que fazer? Acho que levaria comigo a memória delivros, vários com certeza, da sua substância, mais do que da suaforma. Destilo melhor do que decoro, provavelmente sintetizomelhor do que analiso...

    *

    Quero dar-vos primeiro conta, como documentação pessoal,mas também em jeito de recomendação, de alguns desses livrosque me ficaram no corpo, e não apenas na memória, até hoje,vindos da adolescência e juventude, um ou outro de anos maistardios.

    Poderiam ter sido outros os eleitos, mas lembrarei apenas

    rapidamente alguns deles, dando a ouvir uma página, umfragmento, um poema.

    Podiam ter sido aqueles que me revelaram o que é apoesia moderna, os de T. S. Eliot, lidos avidamente em comboiose autocarros, na praia e na rua, e gerando pastiches de estudanteingénuo, com multidões sem rosto e homens empalhados subindo

    a Rua do Carmo – uma autêntica revelação. A partir daí, a poesia,a moderna e a contemporânea, haveria de ser para mim terrenode eleição, no ensino, na escrita, na tradução, até hoje.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    12/41

      12

    1. T. S. EliotDe: «A canção de amor de J. Alfred Prufrock» (1917)

    Vamos então, vamos, tu e eu,Quando a tarde se espreguiça contra o céu

    Como doente anestesiado na marquesa;Vamos por ruas meio abandonadas,Em murmurantes retiradasDe noites sem descanso em pensões rascas,Pisando serradura e restos de marisco em tascas:Rua após rua, como argumento ociosoAtrás de um qualquer intento insidiosoQue te levará a uma magna questão...Ah, não perguntes: «E qual é ela então?»Vamos, entremos para a nossa visita.

    Na sala há mulheres a entrar e a sair:Falam de Miguel Ângelo – estás a ouvir?

    [...]E na verdade haverá tempoPara o fumo amarelo pelas ruas deslizar

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    13/41

      13

    Roçando-se nas vidraças das janelas;Haverá tempo, haverá tempo

    Para preparar um rosto que olhe os rostos que vais encontrar;Haverá tempo para matar, tempo para criar,E tempo para todos os trabalhos e dias de mãosQue se erguem, e no teu prato vem pousarUma pergunta; tempo para ti, tempo para mim também,E tempo ainda para cem indecisões,E outras tantas visões e revisões,

    Antes do chá e da torrada que aí vem.

    Na sala há mulheres a entrar e a sair:Falam de Miguel Ângelo – estás a ouvir?  [...]

    Poderia ter sido um outro poeta, mais trágico, que meensinou a ver a História numa poesia aparentemente branca eneutra, fechada sobre si mesma ou subitamente reveladora dosdesastres do século, que foi para mim uma das mais dolorosasexperiências de leitura (e de tradução), e que esperou mais de dezanos até à difícil decisão de o dar a ler em português – falo dePaul Celan.

    2. Paul CelanDe: Fuga da Morte 

    Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecerbebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite

    bebemos e bebemoscavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertadosNa casa vive um homem que brinca com serpentes escreve

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    14/41

      14

    escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro[Margarete

    escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilhamassobia e vêm os seus cãesassobia e saem os seus judeus manda abria uma vala na terraordena-nos agora toquem para começar a dança

    Leite negro da madrugada bebemos-te de noitebebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer

    bebemos e bebemosNa casa vive um homem que brinca com serpentes escreveescreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro

    [MargareteOs teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí

    [não ficamos apertados

    [...]Leite negro da madrugada bebemos-te de noitebebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da

    [Alemanhabebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemosa morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os seus

    [olhosatinge-te com bala de chumbo acerta-te em cheiona casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margareteatiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos aresbrinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio

    [da Alemanhaos teus cabelos de oiro Margarete

    os teus cabelos de cinza Sulamith

    **

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    15/41

      15

    [Dos poemas do espólio]

    QUANDO A DISTANTE  prata, rondadatambém pelo voo dos homens, semchegar entrava,

    redonda,e nos olhava com olhos de olhar:

    entãoa palavra dor era uma taça de ondesubia ao nosso encontroa palavraalegria – subia,subia e passava por nós, subiaaté nós dois, sobo telhado,até à cama onde a noite,mestra

    dos nossos corpos, esperava silenciosa, o seufundo, negro como o coração, cheioda manhã.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    16/41

      16

    *

    Não te escrevasentre os mundos,

    ergue-te contraa variedade de sentidos,

    confia no rasto das lágrimas

    e aprende a viver .(A Morte É Uma Flor , 49, 73) 

    Poderia ser, entre os poetas, uma outra aparição, bem maistardia, e imagino que pouco lida (por isso a trago), como a dapoesia de Fernando Echevarría, poesia da escuta lenta e

    silenciosa, com que reaprendi a lentidão e o sentido do «estudo»(«um estudo, não tanto de tarefa, / mas de iluminação», Epifanias,11), uma poesia que me fez tomar consciência de que cada vezmais me movo entre o que é mais simples – coisas e afectos – e oque é mais complexo – certas realidades, livros, autores, obras,que escolho ou me escolhem. No meio está o que evito ouesqueço – a mediocridade.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    17/41

      17

    3. Fernando Echevarría

    A luz repousa, ou, simplesmente, viraa um sossego jubiloso de águas,senão paradas, a fruir a brisade um silêncio esquecido das palavras.Este silêncio traz silêncio aindada transparência diáfanade uma altura de luz que se endominga.

    E, ao endomingar-se, incita à práticade um ócio, penetrado de harmonia,que não reza, mas quase que já canta.O cântico, esse, nem se diz. Rebrilha,adequado à paração das águas.Apalavra-se, aos poucos, pela íntima

    incandescência de almaque funda a nova condição de língua– somente diz o que não diz a fala. (Lugar de Estudo, 30)

    Poderia ter sido algo que nem livro era, mas me fezdescobrir, em criança, uma vida da imaginação, num «mundo davida» de grande dureza e realismo: o Cavaleiro Andante, o dashistórias aos quadradinhos (não o bem mais tardio romance deAlmeida Faria), visto, mais do que lido, num Alentejo a ferro efogo, a frio e fome (que um outro autor das minhas memórias dámelhor no seu primeiro livro: Cardoso Pires e Os Caminheiros eoutros contos). Não vos posso ler do Cavaleiro Andante (que era

    muito para ver), mas posso evocar o tempo em que o lia atravésde uma «Crónica da Casa Futurante», que escrevi e publiquei hápouco tempo (no nº 1 da revista Delphica), sobre esse tempo:

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    18/41

      18

    4. [Cavaleiro Andante]De: Crónica da Casa Futurante 

    A crónica nasce, como tinha de ser, de uma casa que poderia tersido lugar de matéria romanesca – foi-o, com certeza, ao menoscomo cenário de trivial crónica familiar, como todas as casas degente abastada num lugar pobre de há meio século. Hoje, porém,na revisitação acidental e proibida que aconteceu por um impulsoirrefreável de trazer o passado ao corpo do presente, essa casatornou-se depósito de ícones e índices de uma existência – aminha, metonímia de tantas outras – e de um tempo, meu e daHistória. Cada um desses ícones, descobertos décadas mais tarde,é um foco de incêndio da memória que me leva para o outro ladoda rua de uma infância que, como sempre, só mais tarde podemosinterpretar. Não vou apagá-los, vou atiçá-los, para que o fogoarda, lento e sereno como um sonho distante e insusceptível de

    correcção. O negativo não permite retoques. E «quando se lêcomo se deve ler, desabrocha dentro de nós um mundo real everdadeiro, feito à imagem das palavras.» (Novalis). Palavras que

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    19/41

      19

    podem saltar do abandono de um objecto ou escorrer da músicade Mahler que as acompanha hoje (o adagio da segunda sinfonia),

    ou remanescer, translúcidas, do freudiano «bloco mágico» damemória, não accionado durante mais de meio século, e queagora traça na sua película o arco futurante que aproxima doispontos distantes no tempo e ligados por linhas quebradas esinuosas.Não sei quantas vezes me encostei a estas paredes para apanharo primeiro sol da Primavera. ... [...]

    Não sei já quem morava neste primeiro andar que a minhamemória me diz estar sempre desabitado (os ícones e os índicesque fui encontrar nas suas ruínas dizem-me que não foi assim). [...]Sei que a casa futurante é hoje parte de uma memória deste lugarque recordo sem grande emoção, apenas com alguma melancoliaque me traz imagens de pai e mãe, tempos felizes, mas duros,

    histórias de uma guerra que não entendia e me aterrava nasfotografias do  Século Ilustrado  (mas havia o  Cavaleiro Andante para me levar para outras geografias).Sabia que tudo isso já não era meu, até ao dia em que,furtivamente, pisei as tábuas desse lugar adormecido e cobertopelo pó dos anos. Nesse momento, tudo parecia colar-se de novoà pele.

    Poderiam ter sido outros, livros que fui lendo como um sólivro e que me ajudaram a fazer a anatomia de um país a esboroar--se e me ensinaram a crescer como ser político – os de autoresmuito críticos do antigo regime, que conheci de perto, como José

    Cardoso Pires, desde os contos de Os Caminheiros até ao Delfim;

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    20/41

      20

    5. José Cardoso PiresDe: O Delfim [1968]

    [O romance do fim de uma classe dominante em decadência, agrande burguesia do Engenheiro Palma Bravo: o estertor de umacasa no momento do estertor do regime [1968], o país como lugar

    simbólico de morte, na metonímia das águas paradas da Lagoa,ou de uma lagartixa estendida sobre um relevo imperial...]

    [Prólogo]Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano,me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, comdivertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas comTomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.Repare-se que tenho a mão direita pousada num livro antigo –  Monografia do Termo da Gafeira – ou seja, que tenho a mãosobre a palavra veneranda de certo abade que, entre milsetecentos e noventa, mil oitocentos e um, decifrou o passadodeste território. É nele que penso também – nisto tudo, na aldeia,

    nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigamlá em baixo, por entre casas, quelhas e penedos, à distância deum primeiro andar.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    21/41

      21

    [...]Temos, pois, o Autor instalado numa janela de pensão de

    caçadores. Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la,mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no talsopro de nuvens que é a lagoa. Não a vê dali, bem o sabe, porquefica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente. No entanto,aprendeu a assimilá-la por aquele halo derramado à flor dasárvores, e diz: lá está ela, a respirar. Depois, se quisesse escrever,passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o

    acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcariao pó com esta palavra: Delfim.Seria uma dedicatória. Um epitáfio, também. Seis letras que, dequalquer maneira, não teriam mais do que a justa e exactaduração que a poeira consentisse até as cobrir de novo.[...]

     VI... Espalmada na inscrição imperial, havia uma lagartixa. Parda,imóvel, parecia um estilhaço de pedra sobre outra pedra maior emais antiga, mas, como todas as lagartixas, um estilhaço sensível evivaz debaixo daquele sono aparente. Pensei: o tempo, o nossotempo amesquinhado.Ficámos frente a frente, à luz do meio-dia. Eu, senhor escritor dacomarca de Portugal, e portanto animal tolerado, à margem, e ela,ser humilde, português, que habita ruínas da História; que cumpreuma existência entre pedras e sol, e se resigna (é espantoso); queé, ela própria, um fragmento de pedra gerado na pedra – um

    resto afinal, uma sobra; que se alimenta de nada (de quê?) e érápida no despertar, e sagaz, e ladina, embora votada aoisolamento de uma memória do império; que não tem voz, ou a

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    22/41

      22

    perdeu, ou não se ouve... Lagartixa, meu brasão do tempo. Possoencontrá-la amanhã no mesmo sítio (talvez lá esteja ainda) ou nas

    traves do solar da lagoa, ou num buraco da adega que já foi obodegón das minhas ceias do ano passado com o Engenheiro enunca mais o será. Posso, simbolicamente, supô-la no alto doportal, imposta sobre a legenda Ad Usum Delphini, porque emtodos esses lugares ela estará perfeita na sua modéstia abstractacomo a imagem de um tempo ou de uma idade em que os anosescorrem alheios à mão do homem e em que a erva cresce e

    morre e se diz: Afinal também temos primavera.

    Ou, a par desta crónica da Casa da Lagoa e do seu fim, essasalegorias da decadência de uma classe e da modorra de um paísque foram Finisterra, de Carlos de Oliveira ou os contos de MariaJudite de Carvalho):

    6. Carlos de OliveiraDe: Finisterra. Paisagem e povoamento [1978]

    [Metáfora de um país a apagar-se, através do declínio da casa, da

    família (Gafanha: já em Casa na Duna, anos 40); o processo daHistória transposto para a natureza, num «romance» sem acção,só imagens: a gisandra que tudo invade, sufoca e destrói, uma

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    23/41

      23

    natureza arqueológica reduzida a fósseis, a realidade sempresente, apenas mapa, desenho, fotografia (memória)...]

    IO jardim familiar (primeira fase do abandono): montões informesde silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens. Aspalmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar emanões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhoasemaranhadas, caindo em arco até ao chão.

    Sentado num osso de baleia; para ser mais exacto, na secçãomédia da espinha dorsal duma baleia: cinquenta e um centímetrosde diâmetro, trinta e três de altura; duas vértebras abrem-secomo as pás (as asas) duma hélice; bastante afastadas, permitemque os cotovelos se apoiem nelas: pondo o caderno em cima dos

     joelhos, consegue desenhar (não tarda muito, a chuva de verão vai

    obrigá-lo a entrar em casa). Osso de baleia, textura de madeirapobre, exposta à água, à erosão, sem apodrecer: a luz, quandobate de frente nos veios foscos, desprende uma poalha cor decinza, quase a reacender-se. A densidade calcária decresce tantoque podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobremurgos biliosos, caules de gisandra, líquenes, doenças vagarosas. [...]

    VIIAs gisandras não suportam a chuva. Crescem nos meses de estio,quando a placa de zinco (aérea, a fumegar) se define pela formadum forno ou duma ogiva atenuada na cúpula. Durante o outono,

    atravessando o jardim, ouve-se o chão estalar (tal e qual a carumapisada). Expelido o seu licro, carcaças ocas enchem-se de bolhas,rebentam compassadamente. O inverno amassa-as, dá-lhes

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    24/41

      24

    elasticidade: e então a goma borbulhante espraia-se contra osmuros, as paredes da casa, digere insectos, areia, folhas, insinua-

    se na gestação geral e assimila, por sua vez, gérmenes alheios. Deano para ano, as espécies rareiam ou desaparecem: o jardimpressente a vegetação uniforme e degenerada (acopulando ostrês reinos na gisandra futura).

    Podiam ter sido os livros daqueles que, desde cedo e àrevelia da cinzentez em que vivíamos, me ensinaram a pensar, a

    «pensar sem aspas» num espírito de «heterodoxia» e a articular opensamento com uma linguagem própria:

    – os de Eduardo Lourenço  (já o de Heterodoxia, ainda o deMitologia da Saudade ou A Nau de Ícar o):

    7. Eduardo LourençoDe: Heterodoxia I  [1949]

    («Prólogo sobre o espírito da heterodoxia»)

    Fiel ao símbolo que a representa e à vida que nele se manifesta, aheterodoxia não é o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, maso movimento pensante de os pensar a ambos. É o humilde

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    25/41

      25

    propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de elese apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar

    a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles éna realidade o melhor de todos os caminhos.O primeiro que convém saber é que a heterodoxia não é fácil.Serviço divino a poucos cometido, paga-o a moeda que os deusesamam: a amargura e a solidão. Obedientes a um únicomandamento, o de não recusar para as trevas aquilo que se vê naluz, essa exigência dá ao rosto dos heterodoxos uma aparência

    inequívoca de dureza. Porque o Senhor é um só e os amigos, amulher, o pai e a mãe não lhe guardam fidelidade, o heterodoxonão pode fazer outra coisa que declarar que «pai e mãe e amigos»são os que servem o deus e não aqueles que o mundo apontasegundo a carne. Mas trocar os amigos, o pai e a mãe, pelaloucura invisível da Verdade, é ofender o mais originário dos

    mandamentos, o grito mais veemente da caridade animal e porisso o preço da ofensa é pago em amargura e solidão. [...]Se a prática da heterodoxia é difícil, a sua justificação teórica émais difícil ainda. O desejo mais profundo do homem é a paz. Masa paz é a oferta das ortodoxias. O voto mais secreto que cada serarrasta consigo é o de ser ele mesmo, de perseverar no seu ser,como dizia Espinosa. Ora, a continuidade é a promessa dasortodoxias.[...]

    - ou os de um filósofo esquecido como Ernst Bloch (o de Espíritoda Utopia, de Vestígios, de Herança do Nosso Tempo  ou dessasua obra maior que é O Princípio Esperança), com um pensamento

    que é fonte de utopias (concretas) e de esperança, e que descobrinos anos das revoluções estudantis (que começaram cá e secontinuariam, para mim, em Berlim ou em Paris):

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    26/41

      26

    8. Ernst BlochDe: O Princípio Esperança, Prefácio

    Pensar é superar limites. Mas de tal modo que o que existe nãoseja escamoteado, nem ignorado. Nem nas suas misérias, nem

    muito menos no movimento que delas emerge. Nem nas causasdessas misérias, nem muito menos nos sinais de mudança que aícomeçam a germinar. É por isso que a verdadeira superação delimites nunca cai simplesmente no vazio do que vem de trás,sonhando apenas, limitando-se a pintar as coisas de formaabstracta. O seu gesto é outro: compreende o novo como algoque está já presente numa realidade existente e dinâmica, aindaque, para se libertar, exija um máximo de vontade do novo. Averdadeira superação de limites conhece e activa as tendênciaspresentes na História, e a dialéctica que a atravessa. Em princípio,todo o ser humano que aspira a alguma coisa vive no futuro, opassado só mais tarde vem, e um autêntico presente é aindaquase inexistente. O futuro contém o temor ou a esperança; mas

    à luz das intenções humanas, sem a ideia do fracasso, só pode sero lugar da esperança. A função e o conteúdo da esperança sãovividos ininterruptamente, e em épocas de florescimento das

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    27/41

      27

    sociedades nunca deixam de se afirmar e de se disseminar. Notempo de uma sociedade velha e decadente como a de hoje no

    Ocidente, uma certa intenção parcial e transitória só conhece a viapara o abismo. E então nasce naqueles que não encontram saídadessa decadência o receio da esperança, que se vira contra ela.Então, o medo aparece como a máscara subjectiva da crise, e oniilismo como a sua máscara objectiva: máscaras de uma situaçãotolerada, mas que se não compreende, de um estado de coisasque se lamenta, mas se não consegue mudar.

    Poderiam ter sido – são, ainda, e estão aí para ficar – oslivros de um outro filósofo que me foi dado a conhecer tambémnesses anos (cá, ninguém falava deles nos anos sessenta, quandoresolvi ir para as Europas), e que ainda me acompanha hoje, ou eua ele, já não sei: Walter Benjamin, um filósofo que nos espanta

    porque escova a filosofia a contrapelo, em tratados ou memóriasde infância, em livros de aforismos ou ensaios:

    9. Walter BenjaminMercadoria chinesa

    A força com que uma estrada no campo se nos impõe é muitodiferente, consoante ela seja percorrida a pé ou sobrevoada deaeroplano. Do mesmo modo, também a força de um texto édiferente, conforme é lido ou copiado. Quem voa, vê apenascomo a estrada atravessa a paisagem; para ele, ela desenrola-sesegundo as mesmas leis que regem toda a topografia envolvente.Só quem percorre a estrada a pé sente o seu poder e o modo

    como ela, a cada curva, faz saltar do terreno plano (que para oaviador é apenas a extensão da planície) objectos distantes,miradouros, clareiras, perspectivas, como a voz do comandante

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    28/41

      28

    que faz avançar soldados na frente de batalha. Do mesmo modo,só quando copiado o texto comanda a alma de quem dele se

    ocupa, enquanto o mero leitor nunca chega a conhecer as novasvistas do seu interior, que o texto – essa estrada que atravessa afloresta virgem, cada vez mais densa, da interioridade – vaiabrindo: porque o leitor segue docilmente o movimento do seu eunos livres espaços aéreos da fantasia, ao passo que o copista sedeixa comandar por ele. A arte chinesa de copiar livros eragarantia, incomparável, de uma cultura literária, e a cópia uma

    chave dos enigmas da China.(Rua de Sentido Único, vol. II, p. 14)

    Poderiam ter sido, evidentemente – era isso, provavelmente,o que em certos círculos se esperaria de mim –, muitos livros eObras de autores do grande espaço literário alemão, entre muitosoutros novamente os poetas: o Fausto  de Goethe, que euhaveria de traduzir muitos anos mais tarde, mas que me foi dado aler pela sensibilidade e o saber poético, pouco vulgares na época

    em que estudei, de uma professora como Maria da ConceiçãoPuga, que não deixou rasto a não ser na minha memória, e talvezna de mais alguns, poucos, certamente.

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    29/41

      29

    10. J. W. GoetheDe: Fausto I  

    NOITENum quarto gótico, acanhado e de abóbada alta,

    Fausto, inquieto, sentado à banca de trabalho. 

    FAUSTO:Aqui estou eu: Filosofia,Medicina e Jurisprudência,E para meu mal até TeologiaEstudei a fundo, com paciência.E reconheço, pobre diabo,Que sei o mesmo, ao fim e ao cabo!Chamam-me Mestre, Doutor, sei lá quê,E há dez anos que o mundo me vêLevando atrás de mim a eitoFiéis discípulos a torto e a direito —E afinal vejo: nosso saber é nada!

    É de ficar com a alma amargurada.Sei mais, é claro, que todos os patetas,Mestres, doutores, escribas e padrecas;

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    30/41

      30

    Nem escrúpulos nem dúvidas eu temo,E não receio nem Inferno nem demo —

    Mas não me resta réstia de alegria,Nem me iludo com vã sabedoria,Nem creio que tenha nada a ensinarÀ humanidade, que a possa salvar.Também não tenho bens nem capitais,Nem glórias ou honras mundanais.Até um cão desta vida fugia!

    Por isso me entreguei à magia,Para ver se por força da menteTanto mistério se abre à minha frente;Para que não tenha, com o fel que suei,De dizer mais aquilo que não sei;Para conhecer os segredos que o mundo

    Sustentam no seu âmago mais fundo,Para intuir forças vivas, sementes,E largar as palavras indigentes. [...]

    Muito mais tarde, e depois de o ter lido antes sem que eleme ficasse no corpo, esse grande mestre do romance-ensaio queé o austríaco Robert Musil veio para ficar, com o seu grande torsoinacabado (cerca de 2.000 páginas - e não é tudo!), O Homem semQualidades, que dei a conhecer em três volumes há anos:

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    31/41

      31

    11. Robert MusilDe: O Homem sem Qualidades 

    4SE EXISTE UM SENTIDO DE REALIDADE, TEM DE EXISTIR TAMBÉM UM

    SENTIDO DE POSSIBILIDADE

    Se quisermos passar sem problemas por portas abertas, é bomnão esquecer que elas têm ombreiras sólidas; este princípio,segundo o qual o velho professor sempre tinha vivido, mais não édo que uma exigência do sentido de realidade. Ora, se existe umsentido de realidade – e ninguém duvidará de que ele tem direito

    à existência –, então também tem de haver qualquer coisa a quepossamos chamar o sentido de possibilidade.Aquele que o possui, não diz, por exemplo: isto ou aquiloaconteceu, vai acontecer, tem de acontecer aqui, mas inventará:isto ou aquilo poderia, deveria, teria de ter acontecido aqui. Equando lhe dizem que uma coisa é como é, ele pensa:

    provavelmente, também poderia ser diferente. Assim, poderiadefinir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade depensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    32/41

      32

    importância àquilo que é do que àquilo que não é. [...] Esseshomens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama

    mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; seuma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente comelas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores,fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito.Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes tambémidealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua naturezadébil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por

    melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade éum verdadeiro defeito. O possível, porém, não abarca apenas ossonhos dos neurasténicos, mas também os desígnios aindaadormecidos de Deus.[...]E como a posse de qualidades pressupõe uma certa alegria pela

    sua realidade, é legítimo prever que alguém a quem falte osentido de realidade até em relação a si próprio possa um belodia, sem saber como, encarar-se como um homem semqualidades.

    Finalmente, outro poeta que me acompanha desde osbancos da Faculdade, sobre o qual escrevi já o meu primeiroartigo no Jornal de Letras de então (estamos em 1963), e que éainda um work in progress que não sei se alguma vez realizarei: atradução da sua Poesia Toda, seguindo por caminhos que não sãocertamente os mais habituais, mas os que melhor se lhe ajustam.Falo de Hölderlin, e leio dois poemas (de um deles apenas parte):

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    33/41

      33

    12. Friedrich HölderlinQuando eu era rapaz

    Quando eu era rapaz,Um deus muitas vezes me salvava

    Do tumulto e da vergasta dos homens,E eu brincava, tranquilo e feliz,Com as flores do bosque,

    E as brisas do céuBrincavam comigo.

    E tal como tu alegrasO coração das plantasQuando para ti estendemOs delicados braços,

    Assim também, Hélio, pai!, me enchesteDe alegria a alma, e como Endimião,

    Sagrada Lua,Fui teu favorito!

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    34/41

      34

    Oh, deuses fiéis, todos Vós, e amáveis!

    Se soubésseisComo vos amava este meu coração!

    Então, é verdade, ainda vos não chamavaPelos vossos nomes, nem vósA mim me nomeáveis, como fazem os humanos,Julgando que assim se conhecem.

    Mas eu a vós conhecia-vos melhorDo que jamais conheci os humanos,Compreendia o silêncio do éter,As palavras dos homens nunca as entendi.

    A mim, criou-me o murmúrioHarmonioso das árvores do bosqueE fui aprendendo a amarNo meio das flores.

    E nos braços dos deuses me fiz grande.

    *

    Mnemosina(terceira versão)

    Maduros estão, mergulhados em fogo, cozidos

    Os frutos e na terra provados, e uma lei dizQue tudo neles deve entrar, quais serpentes,Profeticamente, sonhando nas

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    35/41

      35

    Colinas do céu. E muita coisa,Como aos ombros uma

    Carga de lenha, deveSer preservada. Mas traiçoeiros sãoOs caminhos. Em verdade, desavindosComo cavalos andam os elementosPrisioneiros, e antigasLeis da Terra. E sempreEsta ânsia para o desmedido. Muita coisa, porém, deve

    Ser preservada. E é necessária a lealdade.Mas nós nem para diante nem para trásQueremos olhar. [...]

    **Poderiam ter sido todos estes, e tantos outros. Mas não

    escolhi nenhum deles. Porquê? Porque o livro de uma vida, parauma vida, com uma vida, tem de ser aquele que provoca em nós omaior abalo, um terramoto, uma metamorfose de corpo e decabeça e de alma. E esse foi e é para mim, já tarde, mas nãodemasiado tarde, o livro contínuo, édito e inédito, escrito e aindapor escrever, de Maria Gabriela Llansol  (a ela terei de dedicarainda algum tempo).

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    36/41

      36

    O rio sem fim da sua escrita, porque Llansol não «fez livros»,limitou-se a escrever. No primeiro volume dos Diários póstumos

    que editamos desde 2009 (os Livros de Horas) a partir doscadernos manuscritos do seu espólio, lemos:

    «Desejo escrever, não fazer livros, o que é muito diferente daquiloque experimentava antes [i.é, em Portugal]»; e «Todos estes

    textos integram o texto do meu livro, livro único, que aparecepublicado em lugares, datas, textos ou volumes diferentes». (UmaData em Cada Mão – Livro de Horas I , pp. 124, 115). E já antes,em Finita, se lê: «Eu não fui talhada para fazer livros, mas para dara entender por escrito o que foi uma experiência...» (Finita, 2ª ed.,123). Estamos, assim, perante um Livro desprovido de autor, umpouco como o de Mallarmé, que diz que «o Livro é Livro quandonão remete para alguém que o teria escrito», mas para uma vozde onde a escrita emana: é isto o que se sente quando se lêLlansol, qualquer livro de Llansol.

    Neste caso, o livro da minha vida chegou (quase) no fim davida, iluminando-a toda no clarão de um segundo, como se diz das

    visões do enforcado no momento em que a corda estrangula, oudas últimas visões em geral. Aí, num «instante que é todo otempo» (Eckhart), revê-se toda uma vida e faz-se luz sobre ela. O

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    37/41

      37

    livro da minha vida não tem, assim, de ser o primeiro, o dadescoberta do literário, aquele que mais aprecio, ou aquele que

    me acompanhou mais tempo (o «de cabeceira»). Pode ser, comofoi, aquele que me faz olhar para trás – e entender, entendertudo, ou muita coisa, de modo diferente ou ao contrário. É o livrodo futuro do meu passado. E de repente ganha sentido toda umavida, que pode ter sido em muitos aspectos a «errada», oufalhada, ou incompleta, aquela em que, diz o filósofo Adorno numdos aforismos de Minima Moralia, não pode haver vida verdadeira

    (es gibt kein wahres Leben im Falschen). O texto contínuo deMaria Gabriela Llansol mostra que pode e que, para além da suainquestionável singularidade de escrita, o projecto do humano que o orienta seria susceptível de mudar um mundo que «nadaainda modificou», esse «jardim devastado» em que ela procuraimplantar o «perfil da esperança», até o tornar de novo reconhe-

    cível como um mundo mais humanizado.

     Vejamos então se consigo reconstituir em síntese o que paramim foi essencial neste Texto que se me oferece sob a forma deuma matéria de linguagem (mas que faz vibrar outras cordas), quese intromete na minha vida, que quis passar a ser parte dessaminha vida e o conseguiu. Conseguiu, diria Llansol, transformarum leitor com interesses literários e culturais de toda a ordemnum «legente». E um legente não tem «interesses» em relação aotexto: ser legente é ler pelo lado da escrita e pelo lado da vida, olegente intervém no texto, actua e textua, cria, com o texto, o seupróprio espaço de leitura (que só pode ser determinado pela suaexperiência, que um texto aberto como este está disposto a

    receber). Llansol escreve, em dois dos cadernos do espólio: «Eunão desejo ficar aqui [em Lovaina] para escrever uma Obra,nenhuma Obra é mais preciosa do que viver, e os livros serão

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    38/41

      38

    sempre gavetas, memórias onde arrecado o meu destino…»(Caderno 1.07, 149); e ainda: «Um livro é um cofre de narrativas,

    pertencendo ao ramo principal da árvore da vida» (Caderno 1.09,87). Contrariamente ao que quase sempre se diz da literatura,aqui texto e existência não se distinguem, são regidos, ambos,por uma dupla lei de atracção e fuga, de afinidade e choque, deEros  e polemos, ou seja, de libido (afectos) e combate, deconfrontação e crescimento (também isto aprendi em Llansol: sóse cresce pelo confronto). De outro modo não se cresce e não se

    muda, acumula-se informação. A minha viagem para este texto ecom ele teve a ver, um dia, com a percepção da música que eleproduz, a vários níveis (antes falei já de voz ), e com o facto de omeu desejo (não o meu interesse) não se orientar já no sentido denenhuma espécie de saber, mas aspirar antes a entender os ecosmúltiplos dessa música: que é música para os olhos, para os

    ouvidos, para a inteligência e – não há razões para recear o uso dotermo – para a alma.

    *

    Não poderei dizer muito mais sobre este Livro único quemudou a minha vida.

    «Llansol será provavelmente o próximo grande mito literáriodo século XX, depois de Pessoa», vaticinva há algum tempoEduardo Lourenço. Não sei se Llansol se transformará em mito –oxalá não! –, nem se o melhor destino para o Livro-Llansol é o damitificação. Não será por aí que ele fará outros mudar de vida.Quer se queira, quer não, o mito apela à trans-figuração (e em

    Llansol existe apenas figuração – uma forma de figuração activa einterveniente: as suas Figuras agem sobre nós). E para alguémmudar de vida com este Livro é mais importante manter-se ao rés

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    39/41

      39

    da linguagem, na imanência do texto, lê-lo pelo caminho do olhar– de um «olhar à cão», como aquele que Llansol oferece a Vergílio

    Ferreira para o ajudar a fazer a Grande Viagem. É decisivo assumiresse olhar à cão para que o Livro-Llansol se torne o livro de umavida, porque, como escreve Augusto Joaquim, com a clarividênciaque o caracterizava, num comentário inédito a Inquérito às QuatroConfidências  (o diário de Llansol para Vergílio Ferreira), esse é oolhar «que procura a luz que emerge, algures, entre a ética daresponsabilidade, a procura intransigente do belo e o dito rasante

    e justo». É difícil encontrar melhor radiografia para O Livro  deMaria Gabriela Llansol.

    O «livro da minha vida», é a conclusão a que posso chegar,nunca preencherá de forma tranquila, nem a minha vida nem aminha memória, estabeleceu com elas um inalienável «pacto de

    inconforto» que as alimenta e as prolonga. O livro da minha vida –o Livro-Llansol, Llansol-o Livro –, que vi mais claramente vistopoucos dias depois da morte da Maria Gabriela, é uma festa e umcombate. Assim o vi no pequeno texto que então escrevi, nocomboio a caminho de Sintra, e de que vos deixo algunsfragmentos – e o filme dessa festa «grave e jubilosa», como eladiria:

    Voltei hoje a Sintra, pela primeira vez depois da noite do fim.Do comboio, vejo quintais com laranjeiras, limoeiros,nespereiras, sinais de vidas simples e límpidas, e logo aseguir, dominando a paisagem, grandes massas de betão,matéria inerte que sustenta o mundo inerte. E lembrei-me do

    universo desde sempre mais próximo de Llansol: um mundode vivos e intensos, de energia e vibração contagiosas, semdistinção entre vivos-vivos e vivos tornados vivos pela força

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    40/41

      40

    da escrita, como os objectos e o próprio texto.

    Na noite anterior imaginara a casa vazia, a guardiã que ficou(a gata Melissa) deambulando por ela a chamar as Figuraspara um festim de luto e alegria, para uma orgia grave e

     jubilosa:o menino-Literatura, a boneca preta do relógio, a Senhora

    decepada, o homem da bigorna, Témia em equilíbrio instávelna sua cadeira, Sant’Ana e Myriam, o carneiro, o cão-lobo, a«jovem vestindo o seu jardim», a máquina de escrever, ocandeeiro de abat-jour redondo sobre a secretária, asbonecas, todas as figuras que se agitam no armário que lhescoube como casa – Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach,Teresa de Lisieux e Nietzsche à vista através do vidro –, e asFiguras maiores, os dois grandes companheiros filosóficos eespirituais, em cima da pequeníssima mesa redonda ao ladodo lugar de trabalho: Spinoza e João da Cruz.O terreiro deste grande festim eram as muitas páginas detodos os livros, d’ O Livro das Comunidades a Os Cantoresde Leitura (e já aos que vierem depois). Era a festa do Texto,

    sensualética, libidinal, vibrante, orgiástica, de mística e carne,de matéria e espírito, do corpo e da escrita e de todos osarcanos do mundo, sem excepção e sem exclusões. Era a

  • 8/18/2019 O Livro-Caderno Completo

    41/41

      41

    festa da despedida e da esperança, da recusa da«experiência abusiva da morte».

    Foi então que verdadeiramente compreendi o que esteTexto tinha para me dizer (…) E percebi também melhor osentido daquela frase de Spinoza sobre a qual tantas vezestinha reflectido, e que a lição de Deleuze me ensinara aentender, mas não a viver em experiência: que (não sendonós imortais) podemos «sentir e experimentar que somoseternos.»