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O LUGAR DA ARTE CONTEMPORÂNEA E SEU PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO: A HISTORICIDADE DA OBRA NAS RELAÇÕES

INSTITUCIONAIS.

Suely Lima de Assis Pinto1 Marcio Pizarro Noronha2

A arte atualmente tem exigido do público espectador maior

interatividade, sensibilidade e vontade de conhecer, de experimentar.

O espectador não se constitui mais em um público passivo, mas

naquele que procura desvelar os caminhos propostos pelo artista na

busca de um significado que o envolva em novas experiências. Não

há mais medo de tocar, de entrar, de participar. Este público percebe

as mudanças que se encontram inseridas no âmbito da arte que se

inicia desde Duchamp, e se reforçam com a produção artística das

décadas de 1950, 1960, 1970.

É possível perceber que as ações dos artistas

contemporâneos apontam para um desgaste da tradição moderna. A

frontalidade diante da obra moderna exigida pela contemplação é

substituída pela inversão sensorial do corpo (MEIRA, 2008). Desde o

movimento de artistas neoconcretos já se percebia, segundo Meira

(2008) uma mudança no desdobramento de suas linguagens

artísticas. A arte passa a ser um prolongamento do próprio corpo.

Para ela, os artistas da contemporaneidade “aguçam em suas

intervenções a sensibilidade do gosto e ao desgosto, ao

estranhamento e à subversão, ao instável e ao transitório, ao fascínio

e a dissonância” (MEIRA, 2008, p, 45).

1 Suely Lima de Assis PINTO, Mestre em Educação Brasileira – FE/UFG. Doutoranda em História – FCHF/UFG. Professora do Campus Jataí / Universidade Federal de Goiás - CAJ/UFG, Departamento de Pedagogia. E-mail: [email protected] 2 Doutor em História (PUCRS), Doutor em Antropologia (USP). Professor e pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Música e do PPG História da UFG. Coordenador e líder do Grupo de Pesquisa CNPq INTERARTES: Processos E Sistemas Interartísticos e Estudos de Performance. Professor do Curso de História do Campus Jataí – CAJ/UFG. E-mail: [email protected].

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A História da Arte do século XX, para essa autora,

caracterizou-se pelo divórcio entre o público e as obras ditas

modernas, a partir dos anos 50 a arte se destaca pelas mudanças e

transformações que criaram uma sensibilização para uma arte

cultural, étnica, social, pública; totalmente diferente do estabelecido

No subjetivismo moderno não existe mais um mundo unívoco evidente, e sim uma pluraridade de mundos particulares a cada artista; não existe mais uma única definição do que seja arte, e sim uma diversidade quase infinita de estilos individuais de processos artísticos. (MEIRA, 2008, p. 46-47)

Ao analisar alguns artistas brasileiros a autora aponta Hélio

Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape como exemplos tradicionais dessa

mudança na História da Arte brasileira. Considerados como objetos

museológicos, suas obras apontavam para uma nova percepção do

espaço e uma visão do que seja uma obra museológica, uma vez que

ela se conclui dentro desse novo espaço “o ambiente penetra e

envolve num só tempo a obra e o espectador” (OITICICA, citado por

MEIRA, 2008, p. 47).

Ressalta Oiticica, que sua obra serve tanto para o espaço

museológico, quanto para o espaço público. Nessa mesma dimensão

Meira (2008) conduz a análise da obra de Lygia Clark, “Obras móveis,

mutáveis, com múltiplas configurações, que, ao serem movimentadas

criam infinitas combinações, que se abrem para a ação do sujeito,

abandonam o repouso inerente da escultura tradicional e adquirem

vitalidade ao incorporar a mutação (MEIRA, 2008, p. 47)”. Nessa

nova estrutura da arte as sensações e a percepção comandam a

relação corpo-a-corpo tornando o processo mais importante que a

obra. Seu trabalho possibilita maior engajamento do espectador

numa relação tátil e motora com o objeto artístico, abrindo-se para

uma nova sensibilidade.

Segundo a autora diferentes artistas desse período, 1950-

1960, apontavam para um novo conceito de arte participativa, e com

isso, para uma nova visão de que “a arte que havia florescido e se

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propagado nos museus era considerada um produto de consumo da

cultura burguesa” (MEIRA, 2008, p. 48). Mas nesse contexto de

mudanças não foi nem o artista e nem o público o maior responsável

e sim

a mass media e os veículos de comunicação da arte, como os críticos, teóricos, historiadores de arte e as instituições, que autorizaram a veiculação de quase tudo, em prol da autenticidade, dos processos criativos e de recursos financeiros (MEIRA, 2008, p. 49)

A idéia de arte totalmente envolvida no campo da

comunicação foi também desenvolvida por Cauquelin (2006). Em seu

estudo ela já apontava para essas mudanças no âmbito da arte

contemporânea e para uma ruptura entre os dois modelos

apresentados: a arte moderna, pertencente ao regime de consumo, e

a arte contemporânea, pertencente ao regime de comunicação. Ela

afirma ainda que o regime de comunicação amplia sobremaneira a

ação e divulgação da arte contemporânea no âmbito da rede e com

isto, a arte modifica totalmente. Regido por um sistema de

comunicação em rede, a informação passa a ser distribuída em tempo

real, atestando, (ate certo ponto) uma transparência entre o

acontecimento e a realidade. Diante desse sistema Cauquelin (2006)

cita os elementos que compõe a comunicação: rede, bloqueio,

saturação, nominação, construção da realidade. Explica como se

constituem e como são constitutivos do conceito de arte por meio de

uma inserção de signos.

Todo este enfoque midiático provoca uma dessacralização

dos lugares convencionais da arte da arte. Os artistas dos anos 1960

já indicavam para uma retórica anti-museológica, isto em função de

uma autonomia em relação à produção, que, segundo Meira (2008),

adquiriram por meio de desencantamento ideológicos com este

período. Até então, a razão de ser dos objetos estavam estritamente

vinculados à estética, ao objeto decorativo (idéia de arte moderna).

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A preocupação atual dos novos artistas, segundo esta

autora, não se vincula mais à natureza da arte, mas a uma relação

entre arte e corpo. Para ela,

O corpo culturalmente é lugar de encontro do gosto e do desgosto, do imaginário coletivo, trabalho simbólico de performático ou de instalação, nos entrega testemunhos e memórias do que se é. O corpo é presença também do rechaçado e do proibido, transformado em identidade social, em atributo sexual; o corpo na atualidade é suporte dos cânones de ordens alternativas (MEIRA, 2008, p. 52).

Para autora toda essa mudança tem sua origem na

apropriação do corpo a partir da performance, dos happenings,

instalações, body art, expandido a partir do ready-mades de

Ducahmp que inaugurou um novo questionamento sobre o objeto

artítico. A influência de Duchamp aos artistas posteriores provocou o

confronto com as velhas posições puramente estéticas. Essa

influência de Duchamp é também apontada por diferentes autores

que estudam a arte contemporânea. Todos são unânimes em mostrar

que é com sua nova forma de pensar a arte que todo o universo

artístico passou a aceitar as novas tendências, novas visões sobre a

arte e seu objeto artístico.

Segundo Cauquelin (2006) Duchamp é o principal artista de

uma lista de autores que demarcam um período de mudança. Ela

chama de embreantes aqueles que com sua obra designa uma

ruptura entre arte e estética porque a arte depende, não da unicidade

da obra em si, mas de elementos e atividades de seu entorno. São

diferentes papeis que a mediam. Pode ser um objeto do cotidiano que

rodeado de novos signos dê ao objeto nova singularidade alçando-o

ao patamar de obra de arte. Essa ruptura mediada por Duchamp

demonstra que a arte não é mais uma questão de conteúdo (formas,

cores, etc) mas é a idéia ou mesmo a mensagem. Essa visão de arte

como mensagem já inseria o espectador no âmbito da arte como

agente participativo e desvelador do signo.

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Neste contexto em que a participação do espectador é

fundamental os museus se vêem obrigados a repensar suas velhas

posições que são puramente estéticas, erigidas nos padrões de arte

do início do século XX. Para Meira (2008) ele se constitui num

espaço sagrado e imutável de tradição e tradução de conteúdo

cultural. Apresenta uma distancia entre a cultura dita “morta” por

uns, e a dinâmica das manifestações contemporâneas. Para ela não

se trata de impor um acervo de idéias, mas de descentralização da

arte, dando ao indivíduo de hoje a possibilidade de experimentar a

criação em busca de novos significados.

Para Meira (2008) é essa idéia de desmaterialização da arte

que desloca o pensamento para questões existentes inseridas no

mundo real, o corpo pensante, o corpo do espectador na fruição da

obra e o corpo-arte, corpo-obra na produção artística

contemporânea. É diante deste universo de sensações que a autora

questiona a nova possibilidade de imersão dos museus neste

contexto de mudanças.

Essa questão é também observada por Freire (2004) que

levanta a problemática dos museus de arte que precisam rever suas

práticas museológicas diante da arte contemporânea. Para ela, essas

práticas ainda estão vinculadas à idéia de valoração do objeto

artístico, de valor da obra. Essa idéia tem sua origem nos conceitos

arraigados da arte moderna que valoram a produção artística

moderna a partir da autonomia do objeto. No entanto, nesse contexto

da arte contemporânea “conceitos como unicidade, perenidade,

autoria, autenticidade e autonomia da obra de arte perdem sentido”

(FREIRE, 2004, p. 60), ou seja, nem a crítica formalista e nem as

práticas museológicas pautadas nos meios técnicos convencionais dão

conta dessas novas poéticas contemporâneas.

É no cerne dessas questões contemporâneas que se instaura

a crítica às instituições inauguradas pelos ready-mades de Duchamp.

Com ele os objetos banais, industriais ao se tornarem objetos

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museais instalam, segundo Freire (2004), a ambigüidade entre o

objeto cotidiano e o objeto de arte. Para Freire não se pergunta mais

o que á arte, mas o lugar onde ela está.

Esta questão sobre o lugar da arte permeia a preocupação

de autores que percebem os conflitos institucionais como

merecedores de um novo olhar. A inserção da rede no sistema da

arte provocou essa nova dimensão que amplia tanto as ações da

instituição museal, quanto de críticos-marchands que lidam com esse

universo midiático.

Hoje a banalidade do objeto, segundo Freire (2004) sugere

um caráter não retiniano para a arte afastando-a do conceito de belo,

inserindo-a num contexto de recriação pelo próprio público. Para ela

essa noção de criação como disponível a todos possibilita profundas

alterações no processo de recepção da obra de arte. Ela passa a ser

recriada pelo público como postulou o próprio Duchamp.

O público está inserido num amplo universo imagético que

exige dele novas formas de ver e sentir a obra. Há, segundo Freire

(2004) uma nova estrutura no processo de percepção e experiência,

e a musealização é cada vez mais sugada nesse redemoinho de

imagens, espetáculos e eventos. Com isso o valor da exposição

ganha mais relevância provocando a autoria curatorial, ou seja, o

curador-criador de espetáculos-exposições, valorando assim o museu

como edifício e não na sua experiência fruidora.

Para ela, surge com isso o museu-edifício-espetáculo, palco

de manobras midiáticas e políticas. É certo que são muitos os

desafios dos museus nesse século, mas a forma como lida com a

produção contemporânea deve permear suas novas buscas,

conceituação e ação. Pois o que Freire (1999) levanta em outro

momento de reflexão sobre a arte nos museus de arte, mais

especificamente no Museu de Arte Contemporânea/USP, é que se

precisa pensar tanto a produção artística contemporânea, como o

lugar destinado à essa arte dentro dos museus.

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O paradigma moderno dos museus já há algum tempo, no

pensamento da autora, não se adéquam às poéticas artísticas do

tempo presente. Para ela não só o objeto de arte, mas o objeto da

arte deve ser reconsiderado. O que implicaria numa crítica à

instituição que legitimam essas narrativas3 e o objeto de analise de

todo seu estudo, a necessidade de se repensar os museus de arte e

seus modelos de criação diante do objeto da arte contemporânea.

Diante do exposto, percebe-se que, a arte do tempo

presente passa por diferentes esferas inseridas no sistema de arte ,

trata-se de, pensar historicamente a relação da obra erigida pelos

conceitos de arte moderna, e o amplo procedimento de

institucionalização gerido por regras rígidas. Os novos

desenvolvimentos recentes da arte contemporânea como foram aqui

observados, exigem uma nova forma de aproximação dos saberes e

dos fazeres artísticos no seu processo de institucionalização.

Percebe-se que as exposições geradas no circuito da arte desde a

década de 1960 e 1970, mesmo criticando intensamente as

instituições museais e expositivas, como foi observado por Meira

(2008), Freire (2004, 1999) e Cauquelin (2006), ao final do século

XX, a maioria desta produção estava inserida nos acervos

museológicos e no circuito expositivo que compõe o sistema das

artes.

Os estudos da história e da teoria da arte contemporânea e

da teoria interartes, desenvolvidos no âmbito desta pesquisa,

integram a preocupação de compreender o modo como noções de

arte que circunscrevem objetos artísticos, integram-se ou não aos

museus, especificamente falando dos museus de arte. Assim, a

pesquisa vai se delineando na preocupação das esferas de negociação

entre a historicidade (e a patrimonialidade instituída) do espaco

3 O objeto de analise da autora nesse texto é a inserção da arte Conceitual no MAC/USP.

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museal e a integração no seu corpus de obras que se baseiam em

premissas ora modernas, ora contemporâneas.

Todo este processo aqui analisado são fatores que incluem a

obra no circuito do sistema da arte e contribuem com seu processo

de institucionalização e patrimonialização. Para Cauquelin (2006) e

Freire (1999), toda essa dinâmica mobilizada pelo sistema das artes,

se configura em um novo debate sobre os museus de arte e o lugar

da arte contemporânea. Ou seja, os museus ainda não conseguiram

lidar com esse arsenal de documentos e acervos, em sua maioria

frágil e perecível, e nem com a obra-monumento, que exige seu

próprio espaço, um novo lugar para a arte.

É por isso que a Freire (2004), quando discute as práticas

museológicas no museu de arte, afirma que à arte não cabe mais a

pergunta do que seja arte, pois a essa pergunta não é possível

fornecer respostas únicas, mas, sobretudo, onde ela esta?

Conclui-se que a partir desses elementos a questão é: qual o

lugar da arte contemporânea?

BIBLIOGRAFIA

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.

FREIRE, Cristina. Práticas museológicas em museus de arte. In: AJZENBERG, Elza (Org.). Arteconhecimento. São Paulo: MAC USP/ Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte, 2004. p. 59-65.

___. Poéticas do Processo. Arte Conceitual no Museu. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.

MEIRA, Silvia Miranda. A anti-aesthetica contemporânea. In: AQUINO, Victor (Org.). Metáforas da Arte. São Paulo: MAC USP/

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Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte, 2008. p. 45-58.