O luto de uma nação: Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa · Postal do Algarve Tiragem: 7699 País:...

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Postal do Algarve Tiragem: 7699 País: Portugal Period.: Mensal Âmbito: Regional Pág: 3 Cores: Cor Área: 19,50 x 27,00 cm² Corte: 1 de 2 ID: 65248607 08-07-2016 | Cultura.Sul O luto de uma nação: Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa, foi publicado em Maio de 2015 pela Sextante Editora. Apesar de muito pouco fa- lado em Portugal, Ungulani (antes Francisco) Ba Ka Khosa é, de entre os escritores moçam- bicanos, o mais reconhecido da sua geração e integra a lista dos cem melhores autores africanos do século XX. A sua primeira obra, Ualalapi (1987), obteve o Grande Prémio de Ficção Moçambicana em 1990, e Os sobreviventes da Noite (2007) o prémio José Craveirinha de Lite- ratura em 2007. Todavia, a não ser por Ualalapi , publicado pela Caminho, e Choriro, obra origi- nalmente publicada no ano de 2009 em Moçambique e agora publicada pela Sextante numa edição revista, é praticamente impossível encontrar as suas obras em Portugal. As restan- tes obras são, aliás, colectâneas de contos. Ualalapi é a obra de eleição de muitos dos seus leitores, pois o autor explora, tal como os sul-americanos o fizeram, o imaginário mítico do seu país. É um exemplo perfeito de re- alismo mágico na literatura sul-africana, onde se utilizam processos característicos da narrativa oral, em que o autor introduz elementos sobrenatu- rais e recorre a uma fenomeno- logia escatológica, assente no exagero que leva ao insólito e ao grotesco, através de vómitos, sangues, menstruações, chuvas diluvianas. Estes são sintomas de um mundo em desintegra- ção que desrespeitou os seus valores tradicionais ao virar-se para a cultura ocidental como um modelo a seguir. A obra é composta por seis contos mas Khosa entretece as seis narra- tivas, unidades in(ter)depen- dentes, sendo cada uma das seis unidades antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram nume- rados de um a seis, numeração essa que parece marcar tam- bém a própria evolução histó- rica que se sente até chegar à queda do império. Choriro é o mais recente ro- mance de Ba Ka Khosa e o seu segundo romance histórico, depois de Ualalapi. A palavra choriro significa, numa das línguas locais da Zambézia, dor, correspondendo também ao período costumeiro de três dias de luto, durante os quais o morto é preparado para a ce- rimónia do enterro. E é sobre esses três dias que a narrativa se centra, retratando o luto da- queles que privaram de perto com o rei branco Nhabezi, aliás Luís António Gregódio. Na au- rora da colonização mercantil de Moçambique, na região do Zambeze, no século XIX, Nha- bezi foi o único rei branco do país. Um rei branco que, à se- melhança de outra das perso- nagens que era sacerdote, aca- ba por deixar para trás a sua vida de branco e de coloniza- dor e adapta-se aos costumes e tradições locais, integrando- -se e sendo respeitado por to- dos. Contudo, foi também este grande caçador que introduziu na dieta o arroz, a banana e o limão, e ensinou os homens a produzir pólvora e a fabricar ar- mas para se poderem defender do invasor. É também curiosa a forma, tal como o título indica, como a narrativa se detém so- bretudo no período do declínio da saúde de Nhabezi, quando surgem os abutres de paragens distantes e ficam de vigia sobre as paliçadas, como aves de mau agoiro que colocam toda a gen- te em sobressalto, e depois na morte do protagonista, porque é em torno dele que se reúnem as várias personagens e as nar- rativas que cada uma traz, e nos ritos fúnebres. Apesar das ana- lepses constantes, que surgem quase sempre de forma alterna- da, esta é sobretudo uma obra que retrata uma comunidade: sobre os conselheiros do rei, os seus guerreiros, as suas mulhe- res, os seus filhos. Ainda que esta narrativa seja um produto de uma aturada pesquisa histórica, onde não faltam citações de uma supos- ta crónica e referências biblio- gráficas, que tanto nos leva a saber mais sobre Livingstone, o explorador do continente afri- cano, como sobre o regícidio em Lisboa, esta é uma versão da História inteiramente imagina- da pelo autor, formado em His- tória, Geografia e Antropologia. Choriro ganha assim um tom de crónica histórica, do que podia muito bem ter acontecido, não isenta de espírito crítico e de ironia, como se percebe logo no início da narrativa, quando nos situa temporal, espacial e socialmente: «A vila de Tete, nos então anos quarenta, cinquen- ta, do século dezanove, era uma pequena povoação com cerca de cem brancos que se intitu- lavam portugueses europeus, como forma de distanciarem-se dos mais de cento e cinquenta filhos de Goa que muito se or- gulhavam de ser portugueses. O trato entre eles não era de todo cortês, por os brancos, incomo- dados com a presença sempre crescente dos canarins, chama- rem-lhes, quando os nervos vi- nham à pele em momentos de infortúnio nas incumbências do comércio, judeus asiáticos pelas felizes e lucrativas arti- manhas que tinham no trato com as mercadorias trafegadas, e outras ocupações ligadas ao comércio de panos e bebidas e diversas quinquilharias de maior e menor valia para os pequenos e grandes reinos do sertão africano.» (p. 15). Ungu- lani Ba Ka Khosa tem uma pro- sa elaborada em que as frases se alongam de modo extenso, sen- do necessário, por vezes, voltar ao início das mesmas de forma a perceber o seu encadeamento e conclusão. A escrita, apesar do cuidado nos factos históricos, é efectivamente literária, cui- dada, despojada de grandes floreados. A narrativa torna-se ainda mais rica quando atenta nos factos e costumes locais, o que configura um dos aspec- tos mais interessantes da obra, como acontecia em Ualalapi: a forma como se retratam tra- dições, crenças e superstições, como, por exemplo, a crença sempre presente de como Nha- bezi irá voltar em espírito como leão, rei, ou, caso os espíritos não o favoreçam, como Negozi – espírito mau – para assombrar os que ficam. Uma das mulhe- res, ainda antes da sua morte, está em permanente pavor a pensar de que forma irá ele re- gressar para voltar a partilhar a sua cama, se transfigurado em símio, leão, leopardo ou hiena, enquanto outra das mulheres do rei – claro que um rei não pode ter apenas uma mulher – a tenta tranquilizar, conven- cendo-a de que o «povo fala por imagens». Como refere o próprio au- tor, «A minha língua-mãe é o português», assimilada logo em criança, e Ba Ka Khosa dá provas disso, utilizando o por- tuguês com grande competên- cia literária, conforme se reflete na sua destreza narrativa, ora contida em frases curtas ora distendendo-se em parágrafos mais longos, lembrando auto- res como Gabriel García Már- quez, José Saramago ou João de Melo, criando o chamado efeito do barroquismo da lin- guagem. A sua linguagem é imaginativa e visual, densa e violenta, o que por vezes se re- vela de forma chocante, sem contudo chegar ao pornográfi- co, dotada de uma energia que veicula uma forte carga simbó- lica e mito-poética. Este autor moçambicano demarca-se por um estilo de escrita bastante ocidentalizante, quase rebus- cado, com o condão de nos dar impressões fortemente visuais, enquanto desdobra a realidade moçambicana com a simplici- dade e destreza de quem a co- nhece bem e vive no seu meio. Esperemos agora que a obra deste fabuloso autor continue a ser publicada e reeditada en- tre nós. Paulo Serra Investigador da UAlg associado ao CLEPUL Letras e leituras FOTOS: D.R. 'Choriro' é o mais recente romance de Ba Ka Khosa Escritor é dos mais reconhecidos da sua geração

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Postal do Algarve Tiragem: 7699

País: Portugal

Period.: Mensal

Âmbito: Regional

Pág: 3

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Área: 19,50 x 27,00 cm²

Corte: 1 de 2ID: 65248607 08-07-2016 | Cultura.Sul

O luto de uma nação: Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa

Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa, foi publicado em Maio de 2015 pela Sextante Editora.

Apesar de muito pouco fa-lado em Portugal, Ungulani (antes Francisco) Ba Ka Khosa é, de entre os escritores moçam-bicanos, o mais reconhecido da sua geração e integra a lista dos cem melhores autores africanos do século XX. A sua primeira obra, Ualalapi (1987), obteve o Grande Prémio de Ficção Moçambicana em 1990, e Os sobreviventes da Noite (2007) o prémio José Craveirinha de Lite-ratura em 2007. Todavia, a não ser por Ualalapi, publicado pela Caminho, e Choriro, obra origi-nalmente publicada no ano de 2009 em Moçambique e agora publicada pela Sextante numa edição revista, é praticamente impossível encontrar as suas obras em Portugal. As restan-tes obras são, aliás, colectâneas de contos.

Ualalapi é a obra de eleição de muitos dos seus leitores, pois o autor explora, tal como os sul-americanos o fizeram, o imaginário mítico do seu país. É um exemplo perfeito de re-alismo mágico na literatura sul-africana, onde se utilizam processos característicos da narrativa oral, em que o autor introduz elementos sobrenatu-rais e recorre a uma fenomeno-logia escatológica, assente no exagero que leva ao insólito e ao grotesco, através de vómitos, sangues, menstruações, chuvas diluvianas. Estes são sintomas de um mundo em desintegra-ção que desrespeitou os seus valores tradicionais ao virar-se para a cultura ocidental como um modelo a seguir. A obra é composta por seis contos mas Khosa entretece as seis narra-tivas, unidades in(ter)depen-dentes, sendo cada uma das seis unidades antecedida por um pequeno texto, intitulado «Fragmentos do fim», textos esses que se encontram nume-rados de um a seis, numeração essa que parece marcar tam-bém a própria evolução histó-rica que se sente até chegar à queda do império.

Choriro é o mais recente ro-mance de Ba Ka Khosa e o seu segundo romance histórico, depois de Ualalapi. A palavra

choriro significa, numa das línguas locais da Zambézia, dor, correspondendo também ao período costumeiro de três dias de luto, durante os quais o morto é preparado para a ce-rimónia do enterro. E é sobre esses três dias que a narrativa se centra, retratando o luto da-queles que privaram de perto com o rei branco Nhabezi, aliás Luís António Gregódio. Na au-rora da colonização mercantil de Moçambique, na região do Zambeze, no século XIX, Nha-bezi foi o único rei branco do país. Um rei branco que, à se-melhança de outra das perso-nagens que era sacerdote, aca-ba por deixar para trás a sua vida de branco e de coloniza-dor e adapta-se aos costumes e tradições locais, integrando--se e sendo respeitado por to-dos. Contudo, foi também este grande caçador que introduziu na dieta o arroz, a banana e o limão, e ensinou os homens a produzir pólvora e a fabricar ar-mas para se poderem defender do invasor. É também curiosa a forma, tal como o título indica, como a narrativa se detém so-bretudo no período do declínio da saúde de Nhabezi, quando surgem os abutres de paragens distantes e ficam de vigia sobre as paliçadas, como aves de mau agoiro que colocam toda a gen-te em sobressalto, e depois na morte do protagonista, porque é em torno dele que se reúnem as várias personagens e as nar-rativas que cada uma traz, e nos ritos fúnebres. Apesar das ana-lepses constantes, que surgem

quase sempre de forma alterna-da, esta é sobretudo uma obra que retrata uma comunidade: sobre os conselheiros do rei, os seus guerreiros, as suas mulhe-res, os seus filhos.

Ainda que esta narrativa seja um produto de uma aturada pesquisa histórica, onde não faltam citações de uma supos-ta crónica e referências biblio-gráficas, que tanto nos leva a saber mais sobre Livingstone, o explorador do continente afri-cano, como sobre o regícidio em Lisboa, esta é uma versão da

História inteiramente imagina-da pelo autor, formado em His-tória, Geografia e Antropologia. Choriro ganha assim um tom de crónica histórica, do que podia muito bem ter acontecido, não isenta de espírito crítico e de ironia, como se percebe logo no início da narrativa, quando nos situa temporal, espacial e socialmente: «A vila de Tete, nos então anos quarenta, cinquen-ta, do século dezanove, era uma pequena povoação com cerca de cem brancos que se intitu-lavam portugueses europeus, como forma de distanciarem-se dos mais de cento e cinquenta filhos de Goa que muito se or-gulhavam de ser portugueses. O trato entre eles não era de todo cortês, por os brancos, incomo-dados com a presença sempre crescente dos canarins, chama-rem-lhes, quando os nervos vi-nham à pele em momentos de infortúnio nas incumbências do comércio, judeus asiáticos pelas felizes e lucrativas arti-manhas que tinham no trato com as mercadorias trafegadas, e outras ocupações ligadas ao comércio de panos e bebidas e diversas quinquilharias de maior e menor valia para os pequenos e grandes reinos do sertão africano.» (p. 15). Ungu-lani Ba Ka Khosa tem uma pro-sa elaborada em que as frases se alongam de modo extenso, sen-

do necessário, por vezes, voltar ao início das mesmas de forma a perceber o seu encadeamento e conclusão. A escrita, apesar do cuidado nos factos históricos, é efectivamente literária, cui-dada, despojada de grandes floreados. A narrativa torna-se ainda mais rica quando atenta nos factos e costumes locais, o que configura um dos aspec-tos mais interessantes da obra, como acontecia em Ualalapi: a forma como se retratam tra-dições, crenças e superstições, como, por exemplo, a crença sempre presente de como Nha-bezi irá voltar em espírito como leão, rei, ou, caso os espíritos não o favoreçam, como Negozi – espírito mau – para assombrar os que ficam. Uma das mulhe-res, ainda antes da sua morte, está em permanente pavor a pensar de que forma irá ele re-gressar para voltar a partilhar a sua cama, se transfigurado em símio, leão, leopardo ou hiena, enquanto outra das mulheres do rei – claro que um rei não pode ter apenas uma mulher – a tenta tranquilizar, conven-cendo-a de que o «povo fala por imagens».

Como refere o próprio au-tor, «A minha língua-mãe é o português», assimilada logo em criança, e Ba Ka Khosa dá provas disso, utilizando o por-tuguês com grande competên-cia literária, conforme se reflete na sua destreza narrativa, ora contida em frases curtas ora distendendo-se em parágrafos mais longos, lembrando auto-res como Gabriel García Már-quez, José Saramago ou João de Melo, criando o chamado efeito do barroquismo da lin-guagem. A sua linguagem é imaginativa e visual, densa e violenta, o que por vezes se re-vela de forma chocante, sem contudo chegar ao pornográfi-co, dotada de uma energia que veicula uma forte carga simbó-lica e mito-poética. Este autor moçambicano demarca-se por um estilo de escrita bastante ocidentalizante, quase rebus-cado, com o condão de nos dar impressões fortemente visuais, enquanto desdobra a realidade moçambicana com a simplici-dade e destreza de quem a co-nhece bem e vive no seu meio. Esperemos agora que a obra deste fabuloso autor continue a ser publicada e reeditada en-tre nós.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

Letras e leituras

fotos: d.r.

'Choriro' é o mais recente romance de Ba Ka Khosa

Escritor é dos mais reconhecidos da sua geração

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Postal do Algarve Tiragem: 7699

País: Portugal

Period.: Mensal

Âmbito: Regional

Pág: 1

Cores: Cor

Área: 4,74 x 7,41 cm²

Corte: 2 de 2ID: 65248607 08-07-2016 | Cultura.Sul

Letras e leituras:

Ungulani Ba Ka Khosa p. 3

d.r.