O MARAVILHOSO CRISTÃO EM A CANÇÃO DE ROLANDO · séculos de história em um mesmo tempo e...
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O MARAVILHOSO CRISTÃO EM A CANÇÃO DE ROLANDO
BORGES, Maria do Carmo Faustino (UEM)
Introdução
Estudar uma obra de arte, principalmente aquelas mais antigas, exige-nos mergulhar
em sua criação, em um contexto constituído de suas formas políticas, culturais e,
sobretudo, dos elementos do mundo imaginário, cujas representações na mentalidade do
povo influenciam decisões e produções materiais e intelectuais. Dentre as Artes, a
Literatura faz a mediação entre a realidade e o mundo imaginado; e o maravilhoso é um
dos artifícios presente na literatura de todos os tempos que colabora para o seu estatuto de
Arte.
Abordar o maravilhoso cristão em A Canção de Rolando1 consiste no objetivo deste
estudo, assim faz-se necessária uma pesquisa que resulta tanto de referenciais históricos
quanto literários. Deste modo, apoiamo-nos nas teorias de Le Goff, Poirion, Bessière e
Candido, bem como nos pressupostos de Vauchez, Espinosa e Franco Júnior; os quais
possibilitaram efetuar uma leitura do maravilhoso cristão na referida obra literária e
apreender a relação que se desenvolve entre os dois polos: real e imaginário.
A queda do Império Romano do Ocidente (476) favoreceu a ocupação dos
territórios do Estado Romano aos povos bárbaros, ocasionando grande desordem política,
religiosa e social. A Igreja, baseada na fé cristã, ideal unificador, era a instituição capaz de
oferecer resistência e domínio aos desajustes e ao caos criado. Desta maneira, a sua
doutrina evidencia-se, sua influência sobrepõe-se às instituições já existentes. Tornou-se a
maior força política do Ocidente e, em sua dependência, os Estados em formação, segundo
Espinosa (1972). No século VIII, a monarquia franca, na liderança de Pepino, o Breve,
1 Este estudo consiste em um recorte da Dissertação de Mestrado O Maravilhoso em A Canção de Rolando, de nossa autoria, defendida no programa de Pós-graduação em Letras, pela UEM – Universidade Estadual de Maringá.
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prefeito do palácio (administrador supremo) e a Igreja firmaram aliança de cooperação: os
francos defendem a Santa Sé dos ataques dos Lombardos e o Papa concede a Pepino o
título de rei dos francos. Carlos Magno, filho de Pepino, herdou o título e assumiu tal
acordo, tornando-se em 800, também por intermédio da Igreja, imperador de Roma.
Esta pequena explanação histórica deve-se ao diálogo do plano sociocultural com a
Literatura em nosso objeto de estudo, A Canção de Rolando; canção de gesta (epopeia do
mundo cristão), que media o tempo e o espaço (séculos VIII – XII, Alta Idade Média),
ocorrendo nela a recriação de Carlos Magno e da Batalha de Roncesvales (778). O
teocentrismo organizava-se em torno da dicotomia Deus – Diabo; Bem versus Mal, e a fé
cristã firmava-se, muitas vezes, nos elementos permeados pelas crenças, incluindo os
rituais, as simbologias e todo o imaginário cristão da época na Europa Ocidental.
A canção de gesta, oral em sua primeira manifestação, tipicamente aborda os feitos
históricos de povos e seus heróis e dramas lendários. As façanhas e as fantasias criadas a
partir dos heróis eram relatadas geralmente pelos trovadores, transmitindo, por gerações, a
mentalidade daquelas populações.
A Igreja tinha o monopólio da cultura e influenciava as obras literárias. As
hagiografias, as crônicas, as canções de gesta, assim como as demais criações passavam
pela concepção das Sagradas Escrituras. No século XI, o adjetivo mirabilis do Latim,
merveillos em Francês antigo, presente no texto de A Canção de Rolando, ou merveillable
referindo-se à pessoa, objeto ou fenômeno, introduzia-se à categoria do maravilhoso. O
Latim erudito, utilizado pelos clérigos medievais, designava o que chamamos “o
maravilhoso”, pelo termo mirabilia (o maravilhoso medieval).2
Com o Cristianismo, impõem-se nova versão do imaginário; modificando,
recriando e construindo-se uma nova literatura, na qual o maravilhoso cristão é uma
adaptação: o maravilhoso passa a ser produzido por forças e seres sobrenaturais múltiplos,
a partir do mundo dos objetos e de ações diversas, dentro de uma religião monoteísta (LE
GOFF, 1994). Seguindo nosso objetivo e apoiando-nos na leitura das teorias do
2 O maravilhoso compreendia: “[...] uma coleção de seres, fenômenos, objetos, possuindo todos a característica de serem surpreendentes [...]. O maravilhoso medieval caracteriza-se pela raridade e pelo espanto que suscita, em geral admirativo. Ele afeta primariamente o olhar e implica qualquer coisa de visual, posto que deriva da raiz mir, a mesma que se encontra nos termos latinos miror, mirari (“surpreender-se”) e mirus (“surpreendente”)” (LE GOFF, 2002, p. 106 e 107).
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maravilhoso cristão3 em A Canção de Rolando, aqui elencadas, fundamentamos as nossas
considerações, apresentando excertos da obra literária, que nos permitem refletir as teorias
em questão.
A versão de A Canção de Rolando, utilizada neste estudo, assim como as citações e
excertos transcritos da obra literária são de Ligia Vassalo (1988) e serão referenciados com
as iniciais CR.
Desenvolvimento
O Cristianismo, ainda em fase de sedimentação na Alta Idade Média, norteou novos
rumos à Europa Ocidental e à cultura de toda a sociedade medieval. A Igreja ajudou a
unificar as estruturas sociais, permeada por representações ideológicas e simbólicas,
oriundas da sua leitura de mundo. Esta sociedade, marcada pela contemplação da “vida
eterna”, reprimia os anseios e os impulsos de ação do homem. O quadro político-social
modificou-se e favoreceu a intervenção de grupos interessados no poder, cujas decisões e
atuações estavam firmadas na retomada dos territórios do antigo Império Romano. Carlos
Magno, maior imperador da Idade Média, era cristão e muito colaborou na configuração
deste contexto.
Embora as origens da Literatura estejam nas lendas e nos contos celtas e suas
formas nos clássicos gregos e romanos, houve a tentativa de rupturas com o, então, mundo
pagão herdado. A Canção de Rolando evidencia a presença da fé cristã em todos os
segmentos da sociedade, assim como reproduz o papel do cavaleiro idealizado. Na obra, as
questões da Reconquista e da expansão do Cristianismo misturam-se, ao narrar a história
de Rolando, herói lendário, e ressaltar a sociedade guerreira medieval, associada ao
período das conquistas de Carlos Magno (séculos VIII). Desta forma, a gesta converte três
séculos de história em um mesmo tempo e espaço.
Compreendemos, deste modo, que o maravilhoso cristão tem, na Idade Média, o
contexto favorável e produtivo à arte literária voltada ao ensino da fé cristã. Le Goff (1994,
3 O termo mirabilia, no plural, encontra espaço a partir de uma correspondência para além do milagre, cujo contexto se expandia a outras forças, seres e objetos, à ação dos anjos, dos santos e de Deus, como criador Onipotente. As origens pagãs (deuses, semideuses) não desapareceram na Idade Média e este mundo maravilhoso antigo aparece transportado para o contexto medieval com uma nova representação, a de um Deus único, do qual dependem todas as coisas (o maravilhoso cristão).
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p. 54) reflete sobre este aspecto, destacando que “[...] a recuperação cristã arrastou o
maravilhoso, por um lado, para o milagre e, por outro, para uma representação simbólica e
moralizante”. A partir deste enfoque, o maravilhoso cristão possibilita a leitura no plano
sobrenatural do imaginário desta mesma sociedade e, em A Canção de Rolando,
desempenha papel de destaque em diversas passagens como podemos observar na seguinte
cena: “O imperador acordou de manhã, com a primeira luz da aurora. São Gabriel, que o
vigia em nome de Deus, levanta a mão e faz sobre ele o sinal-da-cruz” (CR, 1988, p. 88).
Nos limites do império carolíngio, a toda a população, impunha-se o Cristianismo, assim,
podemos observar o diálogo entre a História e a Literatura: “[...] todos os súditos do
imperador cristão excepção feita ao grupo restrito dos Judeus deviam adorar o mesmo
Deus que ele, pelo simples facto de se encontrarem submetidos à sua autoridade [...]”
(VAUCHEZ, 1995, p. 18).
Os anjos representam a espiritualidade popular e a Igreja, como intercessores entre
Deus e o homem, embora a Onipresença divina fosse reconhecida. Os anjos, desta maneira,
constituíam a segurança do homem nas horas difíceis, também eram vistos como
protetores. Os mais conhecidos eram Miguel, Gabriel e Rafael, honrados com um culto
especial e podiam ser representados nas igrejas, segundo Vauchez (1995). No plano
espiritual, já havia a concepção de um Deus-Juiz, que tudo julgava. As exigências éticas da
fé cristã alcançaram, assim, efeitos positivos, o que foi traduzido no comportamento
daquela sociedade.
O maravilhoso da Idade Média, no período da escrita da Canção (séc. XII), já não
sofria grande repressão da Igreja à sua irrupção. O maravilhoso cristão, vinculado ao
sobrenatural propriamente cristão, o miraculosus, não dava conta de todos os elementos
que compreendiam aquele universo. Desta maneira, elementos do mundo sociocultural e
do mundo imaginado são mediados pela Literatura que devolve ao leitor/ouvinte a
possibilidade de interagir com o texto, sem questionar o extraordinário, o surpreendente, o
sobrenatural.
As discussões de teóricos como Le Goff (1994, p. 25) sobre a questão de esse
“subgênero” (derivado do fantástico) trazer alguns desfalques em relação às premissas do
maravilhoso cristão têm fundamento, como no que se refere à imprevisibilidade, quando
tudo se resolve e se explica a partir de Deus. Por outro lado, compreendemos que o
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maravilhoso cristão comporta outras asserções, em uma civilização em que o homem
justificava sua existência para Deus e na busca e conquista do “paraíso” depois da morte.
A fala do arcebispo Turpino demonstra o jogo dessa ideologia: “Em nome de Deus
não fugi, para que nenhum valente cante canções maldosas sobre nós. Mais vale, e de
muito, morrer lutando [...] Mas posso garantir-vos uma coisa, que o santo paraíso vos
espera e que ireis vos sentar entre os Inocentes!” (CR, 1988, p. 56), reiterando o Decreto,
em 1095, do Papa Urbano II, de oferecer a absolvição dos pecados àqueles que morressem
em combate pelo Cristianismo, segundo Franco Jr. (1991). O cavaleiro morreria, sem se
deixar abater pela covardia, sendo que a recompensa o esperava após a morte.
Consideramos que esse imaginário era um dos instrumentos que os poetas utilizavam para
melhor subverter o real. Se o mundo pagão era negado em favor do cristão, Deus, com a
milícia celeste, passava a ser o artifício sobrenatural, o maravilhoso, que podia explicar e
compensar o mundo e seus fenômenos.
Na ideologia cristã, os bons (cristãos) iam para o céu, protegidos de Deus; e os
maus (pagãos), para o inferno, protegidos do Diabo. Os cristãos são sempre vencedores e
os pagãos, os vencidos: “Os pagãos estão no erro e os cristãos no bom direito. Jamais um
mau exemplo virá de mim” (CR, 1988, p. 44) – fala de Rolando. No plano do maravilhoso,
ao analisar uma determinada obra literária, percebemos vestígios do imaginário de um
povo e de sua cultura. No que se refere a esta gesta, do povo francês e do tempo histórico,
apreendidos no texto da Canção.4
No texto literário, encontramos passagens que fortalecem o objetivo ideológico e
pedagógico em questão, como no ataque de Rolando ao vingar o amigo, Engelier: “Com
toda a força vai atacar o pagão. Sacode a lâmina: o pagão cai. Os demônios levam sua
alma” (CR, 1988, p. 57). A alma do pagão não tem salvação, é levada pela entidade do
Mal. Também, no final da história, os pagãos perdem suas riquezas e Saragoça para os
Franceses, porque os bons sempre prevalecem sobre os maus. De outro modo, mas não
diferente, no caso de Bramimonda, esposa de Marsílio, ela continua viva porque aceitou o
batismo e a fé cristã: “[...] ela ouviu tantos sermões e bons exemplos que quer acreditar em
4A religião construía toda essa distinção, resultado da concepção da luta entre o Bem e o Mal, sustentáculo da criação do maravilhoso. O sobrenatural caracteriza-se pela fantasia criada pelos francos, a de ser um povo superior aos demais, conceito que não seria necessariamente aceito por outra cultura.
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Deus e pede o batismo: batizai-a, para que Deus tenha sua alma. ‘ Assim seja, dizem os
bispos, [...] batiza-se aí a rainha da Espanha’ [...]” (CR, 1988, p. 117).
O discurso maravilhoso apresenta o cristão como belo e o pagão como feio.
Destacamos a descrição do herói Rolando: “Rolando tem o porte nobre, o rosto claro e
sorridente” (CR, 1988, p. 48), enquanto que Falseron, irmão de Marsílio é assim descrito:
“[...] debaixo do céu não há maior infiel; entre os dois olhos ele tem uma testa enorme,
onde se podia bem medir um meio-pé [...]” (CR, 1988, p. 49). Nos versos referentes a
Falseron, o uso da comparação metafórica entre “testa enorme” e “medir meio-pé”
aproxima elementos diferentes a partir do tamanho, um aspecto comum.
O mesmo processo de julgamento ocorre quanto às referências aos objetos. Um
deles é o escudo de Malprimis de Brigal (pagão): “[...] Seu belo escudo não vale mais que
um centavo: ele quebra o centro de cristal. Metade cai no chão [...]”, cujo valor é
inferiorizado pelo comentário “não vale mais que um centavo”. Reafirma-se, assim, que a
descrição é sempre depreciativa em relação aos pagãos, ao passo que, aos cristãos, são
destacadas qualidades e virtudes. No excerto em que Olivier se enfurece com injúrias de
Falseron se torna evidente a distinção: “[...] fustiga o cavalo com as duas esporas de ouro e
vai dar em Falseron um golpe de verdadeiro barão [...]” (CR, 1988, p. 50), ou seja, Olivier
estaria comportando-se como um nobre, mesmo atacando o outro.
Em A Canção de Rolando, o imaginário medieval é reforçado, ainda, por meio de
textos bíblicos. De acordo com o narrado na Bíblia5, no dia da morte de Cristo, ao meio-
dia, houve relâmpagos, trovões e trevas. O poeta estabelece uma comparação entre tal
evento e o da morte de Rolando:
[...] na França há uma tormenta maravilhosa, tempestade de trovoada e vento, chuva e granizo em excesso, o raio cai a intervalos curtos e repetidos e, com toda a certeza toda a terra treme, de São Miguel do Perigo até Saints [...] em pleno meio-dia, surgem grandes trevas (CR, 1988, p. 54).
5 “Desde o meio-dia até as três horas da tarde houve escuridão sobre toda a terra. Imediatamente a cortina do santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as pedras se partiram” (BÍBLIA SAGRADA, Mat. 26:45 e 51).
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No excerto anterior, ocorre uma intertextualidade, refletida em um discurso rico e
fantasioso, que procura comparar o herói a Jesus, a fim de exaltá-lo ao máximo diante da
sociedade cristã.
A obra mostra outra produção intertextual, a partir do livro do Apocalipse e de seu
conteúdo, voltada ao Juízo Final6, em torno do qual ocorreram várias especulações. Uma
delas referente ao ano 1000. De acordo com Vauchez (1995, p. 65), “[...] Perto do ano mil
a atenção fixou-se, sobretudo no Anticristo, hidra de cem rostos que incessantemente
renasce e cuja vinda o clero julgava reconhecer nas vicissitudes da história: invasões,
calamidades diversas, aparecimento de heresias. [...]”, quando se previa o final do mundo.
Na Canção, temos o registro desta ideia: “Todos aqueles que vêem tais coisas se espantam,
e alguns dizem: É o fim do mundo, a consumação dos séculos que chegou agora!” (CR,
1988, p. 54).
Em um jogo arbitrário, ocorre a reorganização do imaginário, em que a descrição
da tempestade pode ser interpretada como o fim do mundo, e a densidade dos fatos
excedem o natural, no plano maravilhoso. Conforme Le Goff (1994, p. 56), “O que no
maravilhoso causa espanto vem, para os homens da Idade Média, da tolerância do
cristianismo, que lhe permite existir e manifestar-se”.
O maravilhoso cristão, na Canção, identifica-se ainda em outros trechos com
acontecimentos sobrenaturais que dialogam com o texto bíblico.7 Carlos e seu exército
precisavam da ajuda divina para inverter a posição do combate que lhes era desfavorável.
O discurso maravilhoso apossa-se de figuras e formas da Bíblia e, neste caso, faz-se
referência ao dia em que Javé entregou os amorreus aos israelitas8. Deus sempre quis
formar uma nação que O seguisse, que obedecesse à Sua vontade. Os israelitas eram
incumbidos de atacar as cidades pagãs. O Deus cristão, segundo o relato, fez parar o Sol.
Assim, a permanência do dia favoreceu a vitória do povo israelita, e semelhante acontece
com os franceses nesta gesta:
6 Quem não temeria, Senhor, e não glorificaria o Teu nome? Sim! Só Tu és santo! Todas as nações virão ajoelhar-se diante de Ti, porque Tuas justas decisões se tornaram manifestas!” (BIBLIA SAGRADA, Apocalipse 15:4). 7 De acordo com Todorov (1975, p. 173), “O acontecimento sobrenatural intervém para romper o desequilíbrio mediano e provocar a longa busca do segundo equilíbrio”. 8 “E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no livro de Jasar? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro. (BÍBLIA SAGRADA, Josué 10:13).
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[Quando a tarde cai, o rei] desce à relva verde de um prado, deita-se na terra e pede a Nosso Senhor que pare para ele o curso do sol, retarde a noite e prolongue o dia. Então um anjo que costumava falar com ele deu-lhe logo voz de comando: ‘Cavalga Carlos, pois a ti a claridade não falta [...] para Carlos Magno Deus realizou uma grande maravilha: o Sol interrompe seu curso. Os pagãos fogem. Os Francos os perseguem com firmeza [...] (CR, 1988, p. 79).
Acontecimentos narrados com a intercessão de anjos e de santos são próprios do
maravilhoso cristão, uma vez que, como mensageiros de Deus, participam dos eventos
sobrenaturais, geralmente com a função de operar e conceder graças e milagres. Poirion
(1982, p. 9) afirma que “[...] La Chanson de Roland emprunte à l’hagiographie, entre
autres traits, le merveilleux de cette communication divine [...]”9. Neste sentido, temos o
episódio do momento da morte do herói Rolando, quando ofereceu sua luva direita a Deus,
e os anjos vieram buscar sua alma:
[...] São Gabriel pegou-a nas mãos. Sobre o braço mantinha a cabeça inclinada; com as mãos juntas chegou ao seu fim. Deus enviou seu anjo Querubim e São Miguel do Perigo; ao mesmo tempo que os outros, veio São Gabriel; levam a alma do conde ao Paraíso (CR, 1988, p.78).
O mundo dos símbolos, no período medieval, torna-se mistificado e, até nossos
dias, práticas ocorrem em forma de ritos. Os objetos, os gestos, as fórmulas tornavam-se
necessários às representações mentais. Tais manifestações levavam o homem a expressar
seu mundo interior e a interpretar e a buscar explicações da natureza.
Desse universo imaginário, A Canção de Rolando sugere uma variedade de
elementos que nos proporcionam conceber algumas ideias sobre os meios que o homem
utilizava para explicar sua existência e o mundo em que vivia. Como toda explicação
provinha do mundo cristão, a contextualização desse inventário remete-se ao plano divino,
uma vez instituído pela Igreja, a partir da fé cristã:
[...] Porque o mundo oculto era um mundo sagrado, e o pensamento simbólico [...] era mais que a forma elaborada, decantada, no plano dos doutos, do pensamento mágico que impregnava a mentalidade comum
9“A Canção de Rolando empresta da hagiografia, entre outros traços, o maravilhoso dessa comunicação divina.” (Tradução nossa.)
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[...], para a massa, as relíquias, sacramentos e preces eram seus equivalentes autorizados. Tratava-se sempre de encontrar as chaves que abrissem as portas do mundo sagrado, o mundo verdadeiro e eterno, aquele onde se podia encontrar a salvação [...] (LE GOFF, 2005, p. 337).
A obra favorece-nos observar alguns vestígios daquela cultura, dentre eles, alguns
gestos que sinalizam o aspecto religioso, com a confissão que liberta a alma para a
salvação, e bater a mão no peito, como reconhecimento da culpa:
[...] [Rolando] bate no peito e pede perdão a Deus: “Pai verdadeiro, que nunca mentiste, que ressuscitaste São Lázaro dentre os mortos, que preservaste Daniel dos leões, preserva a minha alma de todos os perigos, pelos pecados que cometi em vida!” [...] (CR, 1988, p. 78).
A Literatura, por meio do discurso, torna verdade aquilo que estava na imaginação
da coletividade, permitindo ao leitor o diálogo entre simbologias e a realidade. Como
pondera Le Goff (1994), o problema com o maravilhoso cristão está na convergência de
todo o sobrenatural a um Deus único, sendo que o maravilhoso é próprio do sobrenatural e
da plurissignificação.
Por meio do maravilhoso, conseguimos estabelecer a justaposição entre o mundo
em que primeiramente foram instituídos tais rituais e o mundo em que o ser humano se
situa. De acordo com Poirion (1982, p. 10), “[...] Par rapport à une mentalité plus
primitive qui situe la force surnaturelle dans l’immanence, le merveilleux chrétien traduite
une volonté d’épuration et de spiritualization en attribuant cette force à la transcendence
divine […]”10. Compreendemos que o autor se refere a um comportamento característico e
intransferível, que poderia ser associado ao sentimento “fé”, inquestionável do ponto de
vista do ser humano que o pratica. Este completa-se com a reflexão de Bessière (1974) de
que o maravilhoso, por meio da representação literária, provoca a emancipação do mundo
real e possibilita a adesão do leitor ao mundo representado. No plano do maravilhoso
cristão, o ritual do culto aos mortos11 representava a extensão à Vida Eterna, praticado
pelos vivos:
10“[...] Em relação a uma mentalidade mais primitiva que situa a força sobrenatural na imanência, o maravilhoso cristão traduz uma vontade de purificação e de espiritualização atribuindo essa força à transcendência divina [...]”. 11 “[...] Por isso vemos a Igreja, durante muito tempo reservada relativamente a certas orientações da devoção popular, acolher, na época carolíngia, as que lhe parecem compatíveis com a doutrina cristã. Tomou
10
O imperador mandou conservar o corpo de Rolando, o de Olivier e o de Turpino. Diante de si manda abrir todos os três, para recolher os corações num tecido de seda, e manda colocá-los em alvos esquifes de mármore; em seguida pegaram os corpos dos barões, colocaram-nos em peles de cervos, depois de os lavarem bem com pimenta e vinho [...] (CR, 1988, p. 91-92).
Desse modo, o maravilhoso é o recurso que veicula a percepção e a aceitação
dessas crenças, dessa cultura, transportando-nos ao passado de forma natural, ao mundo
que o poeta nos quer traduzir. Na realidade, nunca saberemos o que toda essa simbologia
representava exatamente para aquela sociedade, porém o discurso maravilhoso envolve-nos
e convida a interagir com o texto, sem, no entanto, levar-nos a questionar os significados.
Nas palavras de Bessière (1974, n.p.), “[...] O maravilhoso não problematiza a essência
própria da lei que rege o acontecimento, mas a expõe. Neste sentido, ele possui sempre a
função e o valor de exemplo ou de ilustração [...]”. Entendemos, assim, que o maravilhoso
mostra o acontecimento, a necessidade de sua presença no texto, sem, no entanto,
relativizar o fato e suas consequências.
Em experiências de transcender o mundo real, a sociedade medieval procurava,
ainda, por meio dos sonhos, das aparições, das visões12, buscar as graças que amenizassem
as decepções da vida terrena e os desconfortos ante o desconhecido. O sonho, com sua
interpretação, colaborava neste sentido, uma vez que nele tudo pode acontecer, este é
instável, não obedece à ordem do mundo natural, daí o seu caráter maravilhoso. Os sonhos
estão incluídos na herança da cultura medieval, principalmente a partir do Antigo
Testamento, em que Javé tem os reis e os profetas beneficiários de visões ou de sonhos
enigmáticos, portanto, fazem parte do inventário maravilhoso dos medievos, segundo Le
Goff (1994).
A cena a seguir, baseada em um sonho, corresponde ao momento em que Carlos e
seu exército se preparam para retornar à França. Este excerto pode ser classificado como
um sonho premonitório, em que o imperador deveria se precaver contra a traição de
particularmente a seu cargo o culto dos mortos, como o testemunha no século IX a instituição da festa de Todos-os-Santos, a qual veio satisfazer uma necessidade especial da piedade popular, sublinhando a vocação dos fiéis defuntos para a salvação [...]” (VAUCHEZ, 1995, p. 30). 12 Na Alta Idade Média, todos, leigos e clérigos, estão convencidos de que Deus intervém em seus destinos, dessa forma Ele não permite que o homem seja castigado contra sua justiça, por isso adverte-o por meio de visões e de milagres (VAUCHEZ, 1995).
11
Ganelão e, neste caso, para evitar a desgraça que viria desta ação, comprovando as
inquietações de Carlos a respeito do caráter daquele cavaleiro: “[...] Carlos, o poderoso
imperador adormece. Sonha que está nos largos desfiladeiros de Ciza e que segura nas
mãos a lança de freixo; e então o conde Ganelão a arranca, sacode-a e empurra-a com tal
furor que as centelhas voam para o céu [...]” (CR, 1988, p. 37).
Em outro sonho de Carlos, observamos o caráter de revelação, de algo que está para
acontecer; o anjo revela as dificuldades e a dureza da batalha que ele teria pela frente.
Elementos da natureza e animais narrados no excerto elencam as forças do Mal,
interpretação da religião cristã:
Carlos adormece como um homem roído pela angústia. Deus lhe envia São Gabriel com a ordem de velar por ele. O anjo permanece toda a noite à sua cabeceira. Numa visão revelou-lhe uma batalha que ainda vai ser travada. Através do sonho mostrou-lhe o cruel significado dela. Carlos levantou os olhos para o céu, vê trovões, ventos, nevascas, borrascas, tempestades violentas, e chamas de fogo, está tudo ali e se abate sobre seu exército [...] em seguida, ursos e leopardos querem devorá-los, cobras e serpentes, dragões e demônios; há também grifos, mais de trinta mil [...] (CR, 1988, p. 81).
Confirma Le Goff (2005, p. 334) que “O mundo animal era, sobretudo, o universo
do mal [...] os animais fabulosos, como o áspide, o basilisco, o dragão e o grifo são
satânicos, verdadeiras imagens do diabo”. Observamos, mais uma vez, que o maravilhoso
intersecciona com a ficção; embora os animais ali descritos pertençam ao mundo real, o
modo como o poeta os coloca, adequados à situação que a narrativa desenvolve, esses
elementos passam a pertencer ao mundo maravilhoso.
Carlos desconhecia os planos da traição, assim, essa visão nada significava naquele
momento de paz com o inimigo, portanto ela serve apenas para despertar suspeitas e
cautela. O sonho era um estímulo da vida mental, porque refletia pensamentos, anseios e
medos do homem daquela sociedade.
As relíquias também compõem o imaginário cristão medieval na Canção. Para os
fiéis, parte dos corpos e objetos que tinham pertencido aos santos eram procurados com
paixão, pois eles acreditavam que delas emanavam benefícios, como vitórias, curas etc. A
espada de Rolando configura-se como objeto do maravilhoso, do sobrenatural: “[...] Ah!
Durindana, como és bela e santa! No teu punho há muitas relíquias, um dente de São
Pedro, sangue de São Basílio, cabelos de São Dinis, um pedaço da roupa da Virgem Maria
12
[...]” (CR, 1988, p. 77). O excerto evidencia a presença e força do maravilhoso cristão,
uma vez que o herói lendário, de posse da espada, era considerado imbatível.
O maravilhoso cristão pode ser configurado, desse modo, como o instrumento que
o poeta dispunha para melhor recriar e expressar eventos da realidade medieval,
possibilitando verdades a que somente a Literatura consegue ser fiel e disponibilizar ao
leitor em forma de Arte.
Conclusão
O maravilhoso cristão, embora questionado em sua legitimidade, torna-se previsível
a partir de preceitos de uma religião monoteísta, o que permeia a obra A Canção de
Rolando como artifício literário na construção da narrativa. O maravilhoso remete-nos a
formas de culturas e de heranças culturais pré-cristãs. Por meio da obra literária em
questão, concluímos que, na Idade Média, essas mesmas raízes influenciaram o imaginário
medieval do Ocidente, porém foram transformadas, e as atitudes evoluíram para um mundo
teocentrista, construído a partir de crenças no sobrenatural. A literatura, deste modo,
realiza-se nas manifestações do maravilhoso, principalmente cristão, que pela linguagem as
expressa no início do século XII, representando o homem e a sociedade de seu tempo.
A Literatura, sem comprometimento com a realidade, criou e recriou um mundo
cristão, em que as simbologias, os ritos nos possibilitam apreender elementos do
sociocultural. O meio estilístico escolhido pelo poeta, o maravilhoso cristão, foi
fundamental para consolidar sua inspiração, pois se tudo era explicado e fundamentado no
Cristianismo, o poeta e os textos literários não ficaram imunes à sua influência.
A obra literária, desta maneira, apresenta um diálogo com o homem daquela
sociedade, representante da coletividade que busca sua identidade no cavaleiro idealizado,
possibilitando ao leitor “mirar” os fatos e os objetos em uma dimensão que excede o
natural e reler as maravilhas mais antigas pelo viés cristão.
REFERÊNCIAS
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