O mármore e a murta (Salvo Automaticamente)

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O mrmore e a murta: sobre a inconstncia da alma selvagem

1. Introduo. Eram como sua terra, enganosamente frtil, fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas. Esse gentio sem f, sem lei, sem rei no oferecia um solo psicolgico e institucional onde o evangelho pudesse deitar razes. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 185). Antnio Vieira usa de metforas para tentar comparar o selvagem americano e o cristo europeu. Ele compara o ndio murta, arvore da qual seus ramos crescem rpido e desordenadamente, por tanto, precisa sempre ser cortado, para que mantenha a forma desejada. O ndio gozava dessa caracterstica, o fato de ser facilmente moldado, porm, no ser permanente, facilmente voltar a sua forma antiga, bruta e selvagem. Por sua vez, o europeu como o mrmore duro, difcil de ser moldado, porm, aps ser moldado no necessrio mais trabalh-lo, visto que, sempre conserva e sustenta a mesma figura moldada.

2. A inconstncia do ndio. O inimigo aqui no era um dogma diferente, mas uma indiferena ao dogma, uma recusa de escolher. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 185). O gentio amerndio no sabiam cr numa verdade revelada, ou seja, eles no conseguiam cr em dogmas, eles se convertiam facilmente, devido ao encanto do primeiro contato, como uma criana com um brinquedo novo que quando enjoa abandona, assim ocorria com os ndios. O principal obstculo dos jesutas seria justamente a dificuldade que os ndios teriam em acreditar em dogmas, eles no possuam tal instituio, como poderiam ter f se eles nem ao menos sabiam obedecer incondicionalmente. Eles so capazes de cr em tudo, e ao mesmo tempo so incrdulos. Essa inconstncia uma caracterstica elementar do gentio amerndio, o fato de serem guiados pelas suas vontades momentneas, por isso, o ndio era inapto para o trabalho nas lavouras coloniais, visto que, para eles, de acordo com Buarque de Holanda: eram-lhe inacessveis certas noes de ordem, constncia e exatido, que no europeu formam como que uma segunda natureza e parecem requisitos fundamentais da existncia da sociedade civil. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 187). Graas a essa inconstncia e inaptido ao trabalho na lavoura, que alguns antroplogos costumam caracterizar o ndio como preguioso, o que totalmente incorreto, visto que, o ndio um

incansvel caador, ele tende a praticar atividades menos sedentrias e que pudessem exercer de forma espontnea e sem vigilncia. Na verdade o gentio amerndio sentia orgulho em ser o melhor caador de sua tribo e para isso no media esforos.

3. Maus costumes indgenas. Anchieta enumera concisa e precisamente os entraves: Os impedimentos que h para a converso e preservar na vida crist de parte dos ndios, so seus costumes inveterados... como terem muitas mulheres; seus vinhos que so muito contnuos e em tirar-los h ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais... Item as guerras em que pretendem vingana dos inimigos, e tomarem nomes novos, e ttulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no comeado, e sobretudo faltar-lhes temor e sujeio... (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 189) De acordo com os padres jesutas os motivos para que os ndios no conseguissem ter f era a memria e a vontade, fracas, remissas. Do mesmo modo, o obstculo a ser superado so os maus costumes indgenas: a bebedeira (ervas alucingenas nativas), a nudez, a guerra, a poliginia, o nomadismo, a antropofagia, e principalmente a ausncia de autoridade centralizada, esse ultimo mau costume era o maior empecilho para que o ndio pudesse cr; tema que ser melhor abordado no prximo tpico. Portanto, para catequisar era necessrio primeiro educar e civilizar os nativos, tirar esses maus costumes deles. Por isso, os jesutas fundaram as primeiras escolas do Brasil, com o intuito de civilizar os nativos, separando as crianas dos costumes de suas tribos, provocando assim um processo de deculturao, alienando esses povos menos desenvolvidos culturalmente.

4. Sem f, sem rei, sem lei. Assim se v que as trs ausncia constitutivas do gentio brasileiro estavam causalmente encadeadas: no tinham f porque no tinham lei, no tinham lei porque no tinham rei. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 218) Os padres foram vistos como profetas, porm, isso no significa que estaria tudo resolvido e que seria fcil catequisar os nativos. Os profetas indgenas, karaibas, eram sem duvida providos de um grande prestigio, no entanto, tal credibilidade no pode ser confundida com f, os ndios no deviam nenhuma obedincia a eles ou a qualquer outra entidade, como foi dito no comeo os gentios s faziam aquilo que tinham vontade, sem nenhuma forma de submisso. Os Tupinamb faziam tudo quanto lhes diziam profetas e padres exceto o que no queriam. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 219).

Ao contrario do que pensava os europeus os profetas indgenas no possuam uma credibilidade incondicional, eles estavam vinculados verdade de suas profecias e eficcias de suas curas podendo sofrer duras sanes caso no as observe profetas que caam em desgraa junto a seus seguidores eram frequentemente mortos (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 214). Portanto, a crena indgena se caracteriza pela duvida constante, ou seja, como dispe Vieira, ainda depois de crer, so incrdulos. Outro empecilho de grande relevncia seria o fato de os amerndios depositarem maior crena naquilo que experimentado em detrimento daquilo que foi dito, revelado, e como o cristianismo fundado exclusivamente no revelado e no no experimentado muito difcil para os nativos absolver de forma incondicional os preceitos cristos. O problema epistmico era na verdade politica, como perceberam os jesutas (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 216). Por fim, perceberam os jesutas que o problema maior da falta de f dos ndios era a falta de um poder central coercitivo a quem depositassem obedincia, seja por adorao, que significa ter algo como superior, incontestvel, absoluto, ou seja, a f predispem uma obedincia, digo mais, a f tem como essncia a obedincia incondicional, seja pelo temor. Aqui est: os selvagens no creem em nada porque no adoram nada. E no adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ningum. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 216). A falta de um poder central prejudicava pelo fato de os jesutas terem que catequisar um por um e principalmente pela falta de um poder coercitivo que gerasse uma obedincia. Por tudo isso, os europeus no consideravam as manifestaes religiosas indgenas como verdadeiras, justamente por no ter o temor e a sujeio como pressuposta. A verdadeira crena supe a submisso regular regra, e esta supe o exerccio da coero por um soberano (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 218).

5. Poder poltico, sem rei. Religio, sem f. Pierre Clastres fez uma boa pergunta: possvel conceber um poder poltico que no esteja fundado no exerccio da coero? Bem, ela vale esta outra: possvel conceber uma forma religiosa que no esteja assentada na experincia normativa da crena? (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 219). Quando os europeus tiveram a real percepo de que o chefe indgena no possua poder coercitivo e que a religio no tinha a concepo da f como obedincia a dogmas, eles de forma preconceituosa falaram que aquela conjuntura populacional no se constitua em

sociedade, visto que, eles no concebiam uma sociedade sem estado e que aquelas manifestaes mticas desprovidas de dogmas no se constitua em religio. Porm, os amerndios creem sim em algo, eles creem na prpria sociedade, ou seja, a crena da tribo a crena na tribo (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 220). O que gera uma coero e uma identidade de sociedade so as outras tribos vizinhas, pelo fato de existir o outro e de haver uma constante repulsa entre as diferentes tribos que gera uma fora cujo vetor se direciona para fora que, por conseguinte, gera uma fora de reao com vetor oposto ao primeiro, ou seja, para dentro, fazendo com que a sociedade se mantenha sempre uma e indivisvel. como um universo de bolhas, magnticas, com polos iguais, em constante repulso entre si, essa repulso constante e entre todas faz com que elas permaneam macias e indivisveis. Trava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados exterioridade e diferena, onde o devir e a relao prevaleciam sobre o ser e a substncia. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 221).

6. Antropofagia Ele ignora, sobretudo, que a cultura estrangeira foi muitas vezes visado em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado enquanto tal. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 223) Quando os jesutas perceberam que podiam comprar a f dos ndios por vantagens materiais, no perderam tempo em usar de um pragmatismo econmico como forma de persuaso e controle. Porm, o que os brancos viam como vitria, e finalmente a converso, os ndios viam como uma forma de adquirir objetos exticos em troca de uma suposta f. Alm disso, aceitar que os amerndios aceitavam quinquilharias como forma de chantagem, aceitar que eles estavam sendo eles mesmos, ou seja, estavam se apropriando e domesticando a cultura estrangeira em um processo autenticamente antropofgico. Exatamente, alias, como os valores contidos na pessoa dos inimigos devorados: os tupinambs sempre foram uma sociedade de consumo. (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstncia da alma selvagem; p. 224).

Troca e poder: filosofia da chefia indgena

1. O chefe: fazedor da paz. Ele deve tambm a paziguar as disputas, regular as divergncias, no usando de uma fora que ele no possui e que no seria reconhecida, mas se fiando apenas na virtude de seu prestgio, de sua equidade e de sua palavra. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 48). A chefia indgena divide-se em duas esferas uma externa e outra interna, a primeira bem simples de se entender o chefe atua como um ministro das relaes exteriores, ele quem promove as interaes externas, consequentemente ele, tambm, quem lidera sua tribo em tempos de guerra, portanto, no mbito externo sua funo militar e provido de poderes para tal funo, por sua vez, no mbito externo o poder do chefe incontestvel, Assim, a autoridade do chefe tupinamb, incontestada durante as expedies guerreiras, se achava estreitamente submetida ao controle do conselho dos ancios em tempo de paz. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 48). No mbito interno a instituio da chefia mostra-se de forma mais complexa. A chefia, na sociedade primitiva, apenas o lugar suposto, aparente do poder. Qual o seu lugar real? o corpo social ele prprio, que o detm e o exerce como unidade indivisa. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 151). O chefe dentro da tribo no possui poder, e sim prestigio advindos de suas qualidades especficas (estudadas mais a frente), sua funo no mbito interno de apaziguar possveis divergncias, ou seja, ele um fazedor da paz. O chefe um fazedor de paz; ele a instncia moderadora do grupo, tal como atestado pela diviso frequente do poder em civil e militar. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 47). Nas sociedades primitivas o poder politico no se separa da sociedade, ou seja, o poder no uma instancia separada da sociedade, ele estar impregnado na sociedade como todo, partilhado com todos de forma igual. Por que os ndios buscam com tanta veemncia que o poder no se separe do corpo social? A resposta estar na averso ao estado, eles buscam com isso manter a sociedade sempre indivisvel, para que no suja uma desigualdade, de instancias com poder maior que outras, ou seja, os amerndios sabem que se o poder se firmar em uma instancia separada do corpo social criar divises internas que levar ao surgimento do estado como fora coercitiva, repressiva, para tentar apaziguar as tenes entre essas diversas classes. Com efeito, a politica dos selvagens exatamente se opor o tempo todo ao aparecimento de um rgo separado do poder, impedir o encontro de antemo fatal entre instituio da chefia e o

exerccio do poder. Na sociedade primitiva, no h rgo separado do poder porque o poder no estar separado da sociedade, porque ela que o detm, como totalidade uma, afim de manter seu ser indiviso, a fim de afastar, de conjurar o aparecimento em seu seio da desigualdade entre senhores e sditos, entre o chefe e a tribo. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 150).

2. Caractersticas essenciais do chefe indgena. Resolver assim o problema s levaria, entretanto a recoloca-lo de maneira diferente: de onde tal instituio sem substncia tira a fora para subsistir? (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 47). Essa a grande questo de onde vem fora, o prestigio, do chefe indgena? Ela advm de qualidades prprias de seu cargo, caractersticas essenciais a essa instituio, das quais servem justamente para desvincular o chefe do poder, pois, quando ele se torna ambicioso desse poder j no pode mais exercer tal cargo. Tais caractersticas so: generosidade, boa oratria, poligamia.

2.1. Generosidade O segundo trao caracterstico da chefia indgena, a generosidade, parece ser mais que um dever: uma servido. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 48). A generosidade que tem do chefe , talvez, a caracterstica mais importante, ela que de forma mais incisiva vai subjugar o chefe a tribo, ou seja, ela aprisiona o chefe a tribo, pois, ele nunca poder acumular riquezas, visto que, tudo que ele possui tem que ser partilhado a toda sociedade, ou seja, ele deve dar tudo que tem a sociedade, portanto, ele nunca poder ambicionar e acumular riquezas, caso isso ocorra ele perder todo o seu prestigio. Isso perfeito o chefe literalmente servo de sua tribo, ele vive para servi-la, o homem mais pobre materialmente.

2.2. Boa oratria Alm desse gosto to vivo pelas posses do chefe, os ndios apreciam muito suas palavras: o talento oratrio uma condio e tambm um meio do poder politico. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 49). O chefe como fazedor da paz sem um poder efetivo deve usar de outros meios Para tal, talvez o principal atributo pessoal para tal fim a boa oratria. O chefe no age como um juiz que sanciona, ela um arbitro que procura conciliar divergncias internas. Isso

parece com muita nitidez na relao do poder com a palavra: pois, se a lngua o oposto da violncia, a palavra deve ser interpretada, mais do que como privilgio do chefe, como meio de o grupo dispe para manter o poder fora da violncia coercitiva, como a garantia repetida a cada dia de que essa ameaa estar afastada. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 62). 2.3. Poligamia O chefe, proprietrio de valores essenciais do grupo, por isso mesmo responsvel diante dele, e, por intermdio das mulheres, de algum modo prisioneiro do grupo. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 63). A mulher o bem mais precioso em uma comunidade indgena, ento conceder varias mulheres a um nico homem no seria uma forma de diferencia-lo dos outros indivduos da tribo? Porque da ao chefe indgena o privilegio de ter varias mulheres? Aparentemente parece uma troca em que a tribo concede um numero a normal de mulheres ao chefe em troca recebe dele a generosidade e a boa oratria, mas justamente nesse ponto que se sobressai o bom chefe, ele ser aquele que consiga quebrar essa troca. Na verdade o fato do chefe ter varias mulheres no bem uma vantagem pessoal e sim mais uma forma da tribo de prender o seu lder a vontade da sociedade. Quando um ndio se casa ele deve sustentar no s a sua esposa como tambm deve sustentar a famlia da esposa, portanto, quanto mais mulheres tiver o chefe mais famlias ele ter que sustentar, ou seja, cada vez mais a sociedade tira do chefe indgena, na verdade tudo comina para servido do chefe. J que as mulheres so o bem mais precioso de uma sociedade primitiva, o fato de o chefe poder ter varias s ir prend-lo cada vez mais a tribo, visto que, como ele possui valores importantes da sociedade , pois, responsvel diante dela.

Da tortura nas sociedades primitivas

1. Corpo, escrita, lei. A cicatrizes desenhadas sobre o prprio corpo so o texto escrito da lei primitiva, nesse sentido, uma escrita sobre o corpo. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 204). As sociedades primitivas possuam uma forma bem peculiar de afirmar suas leis, atravs da dor. Elas possuam leis escritas, como outras sociedades a lei das sociedades primitivas era positivada, a diferena onde elas eram escritas. Nas sociedades com estado geralmente as leis so escritas, codificadas em papeis, papiros, pedras e etc. Porm, nas

sociedades primitivas a lei positivada no prprio corpo de cada membro da sociedade, atravs das cicatrizes deixadas pelos rituais de passagem, ou seja, o cdigo estar escrito no seu corpo, portanto, quem diz se ele estiver contra a lei seu prprio corpo, ele no pode alegar que no conhece a lei ou que esqueceu, pois, seu corpo revela a lei. , sem qualquer intermedirio, o corpo que a sociedade designa como nico espao propcio a conter o sinal de um tempo, o trao de uma passagem, a determinao de um destino. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 198). muito extenso o nmero de sociedades primitivas que mostram a importncia por elas atribuda ao ingresso dos jovens na idade adulta atravs da instituio dos chamados ritos de passagem. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 197). O rito de passagem o momento em que o ndio deixa a fase de adolescente e passa a ser um homem, estar apto a incorporar, aceitar e entender a sua sociedade, a sua tribo. Esse rito feito por meio da tortura, essa umas das instituies mais importante das sociedades primitivas, pois, justamente atravs dela que o ndio aceita as leis de sua sociedade, nesse momento que o ndio entende a sua funo social e o seu valor perante a sociedade. A tortura um ritual muito doloroso onde o ndio prova o quanto forte e corajoso, ele tem que passar por tais provaes para provar seu valor, e em silncio, pois revela a sua aceitao em fazer parte daquela sociedade, de suas leis: Pedagogia de afirmao, e no dialogo: por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos quando torturados. Quem cala consente. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 202). No podemos nos conter apenas no aspecto de provao da tortura ela possui finalidades alm dessa. As marcas deixadas por ela servem como identificao do individuo no grupo, ela mostra que ele pertence aquela tribo. A marca proclama com segurana seu pertencimento ao grupo: s um dos nossos e no te esquecers disso. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 201). Alm disso, ela serve para afirmar a igualdade entre todos, visto que, o pai, o av dele passou pelo mesmo sofrimento, todos os membros daquela sociedade j passaram pelo mesmo ritual, sem nenhum privilegio, com a mesma intensidade para todos. Essa a lei maior revelada na tortura: todos so iguais. E por ter sido escrita no prprio corpo, atravs das cicatrizes, no a como ser esquecida. A lei primitiva, cruelmente ensinada, uma proibio desigualdade de que todos lembraro. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 203). Podemos concluir que a lei escrita no corpo de cada membro da sociedade, atravs de um rito de passagem que se utiliza da tortura e das cicatrizes deixada por ela para perpetuar a lei da tribo, visto que, como foi entalhada no corpo no ser esquecida.

2. Lei do estado, lei das sociedades primitivas. E, nessa medida, as sociedades primitivas so, de fato, sociedades sem escrita, mas na medida em que a escrita indica antes de tudo a lei separada, distante, desptica, a lei do estado, que escrevem sobre os seus corpos, os co-detentos de Martchenko. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 204). A lei no estado uma instituio distinta da sociedade, e contra essa lei distante da sociedade que se opem a lei nas sociedades primitivas, ao passo que a lei escrita no corpo de cada membro, e as marcas so iguais para todos. A tribo possui uma lei que passada para todos, que se aplica a todos e que todos tm que aceita-las, tudo isso feito no rito de passagem, e pelo fato desse rito ser igual para todos que a sociedade imprime sua principal premissa: Tu no ters o desejo do poder, nem desejars ser submisso. (CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o Estado; p. 204).

A guerra nas sociedades primitivas

1. O paradoxo dos relatos sobre a guerra: cronistas e antroplogos A guerra assim do discurso da etnologia, pode-se pensar a sociedade primitiva sem pensar ao mesmo tempo a guerra. A questo to evidentemente saber se esse discurso cientifico enuncia a verdade sobre o tipo de sociedade eu se refere: deixemos portanto de escut-lo e voltemo-nos para a realidade de que ele fala. (CLASTRES, Pierre; arqueologia da violncia; p. 231). Esse pensamento contemporneo, onde a guerra excluda das sociedades primitivas, colocando-as como sociedades alheias a violncia se mostra bastante equivocado. A guerra seria um dos pilares que manteria as sociedades primitivas unas no mbito interno e descentralizadas no mbito externo. Uma explicao dessa falta de reflexo sobre a guerra dos etnlogos estaria no fato de hoje as sociedades primitivas terem perdido seu carter belicoso, devido, principalmente, a perda de liberdade provocada aps a colonizao, que os levou a um pacifismo forado, o que gerou o desmembramento de varias etnias, principalmente pelo fato da guerra ser uma caracterstica essencial delas. Exploradores ou missionrios, mercadores ou viajantes estudiosos do sculo XVI at o final (recente) da conquista do mundo, concordam todos num ponto: quer sejam americanos (do alaska terra do fogo) ou africanos, siberianos das estepes ou melansianos das ilhas, nmades do deserto australianos ou agricultores sedentrios das selvas da Nova Guin, os povos primitivos so sempre apresentados como apaixonadamente dados a guerra, seu

carter particularmente belicoso que impressiona sem exceo os observadores europeus. (CLASTRES, Pierre; arqueologia da violncia; p. 233). Portanto, j de comum acordo que as sociedades primitivas como um todo teriam como uma caracterstica fundamental sua belicosidade, na verdade a maioria das sociedades s consegue se definir como tribo por meio da guerra, como se a guerra desse uma identidade aquele grupo. imagem suficiente dominadora para induzir uma constatao sociolgica: as sociedades primitivas so sociedades violentas, seu ser social um ser-paraguerra. (CLASTRES, Pierre; arqueologia da violncia; p. 233).

2. Os discursos antropolgicos referentes guerra nas sociedades primitiva. Agora que chegamos a uma real percepo da guerra nas sociedades primitivas, nos resta tentar explic-la, ver o real motivo de sua incidncia, h no universo antroplogo quatros correntes bem definidas: a naturalista, a economista, a relativa troca e por fim uma com um olhar mais politico fundamentada na descentralizao das sociedades primitivas.

2.1 O discurso naturalista A agresso como comportamento, isto , o uso da violncia, relaciona-se portanto humanidade como espcie, coextensiva a ela. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 237) Para essa viso o homem em seu estado primitivo, natural agressivo violento. A violncia uma caracterstica inerente a homem. Ela determina-se como meio de subsistncia do homem, como se o homem dependesse dessa caracterstica para sobreviver. Isso fcil de notar ao observar o homem primitivo caando, a caa nada mais do que uma atividade violenta. O homem um predador, de a sua natureza matar outros seres vivos para sobreviver, portanto, violento. A guerra nada mais que a caa do homem ao homem, como diria Hobbes: O homem o lobo do homem. A guerra segundo Leroi-gourhan: a caa ao homem. O que distingue a guerra da caa que na primeira existe uma agressividade que no h na segunda, ou seja, a caa praticada para subsistncia, para se alimentar, a primeira pura agressividade. O que distingue radicalmente a guerra da caa que a primeira baseia-se inteiramente numa dimenso ausente da segunda: a agressividade. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 239).

2.2 O discurso economista O mundo dos selvagens passou a ser doravante, com ou sem razo, o mundo da misria e da infelicidade. Bem mais recente, esse saber popular recebeu das cincias ditas humanas um estatuto cientifico, tornou-se discurso cientfico, discurso dos cientistas: os fundadores da antropologia econmica, acolhendo como verdade a certeza da misria primitiva, passaram a buscar as razes disso e a revelar suas consequncias. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 240). De forma preconceituosa e observando as sociedades indgenas restantes, esfaceladas, destrudas criou-se um saber popular que caracteriza as tribos indgenas como miserveis, que mal tinha o que comer, falsa ideia, visto que, as sociedades primitivas eram ricas, no no sentido de acumulo de estocagem, e sim em abundancia de alimento na natureza, ou mesmo na agricultura como o caso de algumas tribos que desenvolveram a agricultura. Era tanta fartura a seu dispor na natureza que eles nem se quer estocavam, pois, sempre tinha comida em abundncia. Por isso, Marshall Sahlins pde, com razo, falar da sociedade primitiva como da primeira sociedade de abundncia. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 243) Antroplogos que defendiam a ideia de que as tribos eram sociedades pobres tentaram vincular a guerra com essa condio, eles defendiam que as batalhas eram travadas para tentar roubar alimento de outras tribos, ou mesmo disputa de alimentos. O discurso economicista explica a guerra primitiva pela fraqueza das foras produtivas; a escassez dos bens materiais disponveis prova a disputa por sua posse entre grupos movidos pela necessidade, e essa luta pela vida resulta no conflito armado: no h o bastante para todos. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 240).

2.3 O discurso relativo troca Qual , para Levi-Strauss, a relao entre guerra e sociedade? A resposta clara: As trocas comerciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas, e as guerras so resultado das transaes mal-sucedidas. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 246) Para esse discurso a guerra estaria reduzida a trocas mal sucedidas, ou seja, seria um acessrio, onde o principal a troca lhe da origem, caso no obtenha sucesso. Essa teoria coloca a troca como essncia das sociedades primitivas e coloca a guerra como uma negao da sociedade, visto que, a sociedade estar voltada exclusivamente para a troca e com a guerra

uma troca que no deu certo ela, por sua vez, descaracteriza a sociedade. Portanto, possvel conceber a sociedade sem a instituio da guerra. O que os antroplogos que defendem essa tese no observaram foi autossuficincia das sociedades indgenas, que por sua vez, faz com que se torne rara as trocas entre tribos. ideal de autarquia: cada comunidade aspira a produzir ela prpria tudo o que necessita para a subsistncia de seus membros. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 247). A economia indgena tende a um fechamento em se mesma, atravs da produo interna de tudo o que a sociedade vai precisar. Em outras palavras, o ideal autrquico um ideal anticomercial. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 247). No a troca em si que invalida essa tese, falsa percepo de que a troca um fundamento da sociedade indgena, ou seja, que ela uma caracterstica essencial e que a guerra no passa de um acidente, de uma troca mal sucedida. no a troca em si que contraditrio a com a guerra, mas o discurso que reduz o ser social da sociedade primitiva exclusivamente troca. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 249).

2.4 O discurso poltico No a guerra que o efeito da fragmentao, a fragmentao que o efeito da guerra E no somente o efeito, mas a finalidade: a guerra ao mesmo tempo a causa e o meio de um efeito e de um fim buscados, a fragmentao da sociedade primitiva: em seu ser, a sociedade primitiva quer a disperso. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 250). A guerra nas sociedades primitivas fundamental para se manter uma fragmentao e ao mesmo tempo o motivo dessa fragmentao. As tribos funcionam como um todo uno, ou seja, produzem tudo que precisam, so autossuficiente, uno porque seu ser homogneo no havendo divises sociais internas. essa unidade e autossuficincia que cria uma identidade do ser com a tribo, ele tem a conscincia de que pertence a tribo e desempenha um papel importante, e que a sua tribo diferente das outras, e que preservar essa constante diferena fundamental para aa unidade de sua tribo. Portanto, , principalmente, devido a sua politica de descentralizao em relao ao mbito esterno e unidade indivisa no mbito interno que justifica as constantes guerras. justamente o outro como espelho os grupos vizinhos que devolve comunidade a imagem de sua unidade e sua totalidade. diante das comunidades ou bandos vizinhos que tal comunidade ou tal bando determinado se afirma e pensa como diferena absoluta, liberdade irredutvel, vontade de manter seu ser como totalidade uma. (CLASTRES, Pierre;

Arqueologia da violncia; p. 255). como se cada comunidade visse sua cultura como superior, como bela, perfeita e por ser diferente da outra que tambm pensa o mesmo de sua cultura surge os conflitos. Seria como duas crianas brigando para ver quem tem a me mais bonita, pois cada um tem orgulho de sua me e acha ela perfeita melhor que todas e quer sempre ser filho dela. , portanto essa vontade de cada tribo em afirmar sua diferena perante as outras que gera os constantes conflitos, sendo a invaso de um territrio, ofensa a seus Deuses, aos seus xams, como mero pretexto para que se comece uma guerra, cujo principal motivo as diferenas presentes entre eles. Com efeito, a vontade de cada comunidade de afirmar sua diferena suficiente vigorosa para que o menor incidente logo transforme a diferena desejada em contenda real. Violao de territrio, agresso suposta do xam dos vizinhos: no preciso mais para que a guerra irrompa. (CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violncia; p. 256).