O Marrare número 15 · em vez de agir como senhor no sentido hegeliano atuou no sentido...
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O Marrare
http://www.omarrare.uerj.br/numero15/apresentacao.html[12/28/14 2:58:22 PM]
Histria Apresentao Ficha Tcnica Instrues aos Autores Indexadores Contato
O Marrare nmero 15Homenagem ao prof. Dr. Leodegrio A.de Azevedo Filho"
Apresentao
Em 1966, quando entrei para o curso de Letras na UERJ, Leo (como era chamado naintimidade) foi meu primeiro professor de Literatura Portuguesa. A patir da, iniciou-se umconvvio de muitos anos, estreitando laos de amizade, de trabalho e de pesquisa que seentrelaam com o amor pela Literatura Portuguesa.
Inacreditvel e verdade: nossa amizade sobreviveu aos liames da vida acadmica nauniversidade, onde as relaes especulares regem a luta entre o senhor e o escravo, tobem demonstrada, na leitura que Kojve faz de Hegel.
O desejo de ctedra levou Leodegrio a fazer concurso para obter o ttulo de Catedrtico,transformado por exigncia da lei em Titular. Nesse grau, durante quase quarenta anos,em vez de agir como senhor no sentido hegeliano atuou no sentido analtico: seu desejoorientava uma atuao mais aberta, em que a singularidade de cada um no s eraacolhida, mas tambm incentivada ao nvel da pesquisa. Sem dvida, a generosidade,to escassa em nossos dias, era uma de suas qualidades. Havia sempre lugar para maisum em seus empreendimentos, desde que houvesse mrito. Era assim em sua vidapblica e privada. Outra de suas facetas era a fidelidade. Nunca traiu os amigos eaqueles que o ajudaram na trajetria universitria. Nunca. Existem inclusive vriashistrias que relatam atos hericos para defender os amigos.
Dedicou-se ao estudo de vrios autores, desde a poca do trovadorismo at acontemporaneidade, mas sua paixo, sem dvida, era Cames. Uma paixo seguidapela obsesso do estabelecimento do cnone camoniano que, infelizmente no foiterminado e que esperamos que seja levado adiante pela camonista Marina MachadoRodrigues, sua amiga e companheira de pesquisa.
Um portugus adoadoAna Hartherly
Depoimentos
Leodegrio,O mestreAlbano Martins
Momento SingularCludia Azevedo
Fernando Pessoa paraLeodegrioJlio Carvalho
Carta a LeoMarcus Vincius Quirga
Uma pgina para lembrar: Oprofessor, o homem, a obraMarina Machado Rodrigues
Profissionalismo e didatismoMonica Rector
A crtica textual em Lus AntnioVerneySebastio Pinho
Entrevista
Conversa em casa do poeta Joo
HomenagemPotica
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O Marrare
http://www.omarrare.uerj.br/numero15/apresentacao.html[12/28/14 2:58:22 PM]
Sua partida, alm das saudades dos amigos e dos familiares, exps a olho nu as marcasdo malestar em nosso mundo ps-moderno. Nesse mundo, a universidade deixa de ser olugar de produo do saber e se torna o imprio da burocracia, onde o que conta so osnmeros advindos das estatsticas. A quantidade desbanca a qualidade. O anonimatosubstitui o autoral. A implicao subjetiva desaparece para dar lugar ao Grupo, cujasregras extirpam a reflexo, a criatividade e a singularidade. Os agonizantes, estranhosnesse novo mundo, devem ser eliminados pela lei da vida, ou seja, a morte, ou devemser perseguidos at desistirem de pertencer nova corte.
Nesse admirvel mundo novo no h lugar para o reconhecimento, para a amizade epara a homenagem desprovida de interesses polticos. Passivos e aderentes, osintegrantes da Academia universitria se espedaam na luta pelo prestgio, verdadeiromercado de aes, onde se vendem bolsas, viagens e outros prmios.
neste contexto, dominado pelo dio e desejo de vingana, que a Editora de O Marraredecide, com o apoio da minoria do Setor de Literatura Portuguesa, dedicar o ltimonmero deste ano ao Professor Leodegrio A. de Azevedo Filho, homenageando-o,depois de sua partida sem retorno.
Sem lugar para a reconciliao, nasce essa homenagem. No artigo O perdo, a verdade,a reconciliao: qual gnero?, publicado em Jacques Derrida: Pensar a descontruo(So Paulo: Estao Liberdade, 2005), Jacques Derrida diz que a reconciliao umaconstituio democrtica de extrema modernidade e que incorpora todos os progressosdo direito constitucional das democracias deste sculo (p. 46).
Neste nmero, reunimos no todos os amigos, porque alguns no conseguimos encontrare outros no puderam colaborar por razes diversas. Mas todos os que foramencontrados aceitaram com entusiasmo participar desta edio que homenageia ohomem que partiu e a obra que ficou, imortalizando assim um nome que se associa pesquisa e divulgao da literatura portuguesa.
Prestar uma homenagem ao professor, unicamente, seria limitar sua dimenso humana.A obra, mais de 70 livros e cerca de quatro centenas de artigos e ensaios publicados,nem ns nem as as geraes vindouras poderemos ignorar ou esquecer, ainda quepossamos discordar dela em alguns pontos.
Deste modo, no se trata de dar voz obra. Aqui, renem-se depoimentos, ensaios,poesia e fotos, uma pequena mostra das impresses que o Leo deixou gravadas em cadaum de ns: a sua famlia e os seus amigos. Esta publicao no tem por isso um cartereminentemente acadmico, mas tambm afetivo. Em relao ao acadmico, algunsconvidados escreveram artigos, dedicados ao Leodegrio, para esse nmero. Outrosprefiraram dar seus depoimentos pessoais sobre as suas relaes com ele e AnaHatherly faz sua homenagem, criando dois poemas
para terminar, quero falar das saudades do Leo que, nas horas amargas e tristes excepcionalmente nessas horas sabia acolher os amigos com gesto de amor.
Nadi Paulo Ferreira
Cabral de MeloNicols Extremera Tapia
Artigos
A Morte enquanto luto da vidaAntnio Srgio Mendona
O Cancioneiro peninsular e oromanceiro nordestino em ArianoSuassunaLuisa Trias Folch
Corte e literatura norenascimentoRita Marnoto
Uma jia da bibliografiacamonianaVtor Aguiar e Silva
O soneto camoniano sete anosde pastor Jacob servia luz docnone editorial de LeodegrioA. de Azevedo FilhoXos Manuel Dasilva Fernndez
Iconografia
Fotos de Leodegrio A. deAzevedo Filho Homenagem
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O Marrare
http://www.omarrare.uerj.br/numero15/apresentacao.html[12/28/14 2:58:22 PM]
EditoraProfessora Titular de Literatura Portuguesa-Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Sobre o Caf Marrare
Na primavera de 1843 outra figura de apparencia mesa do Marrare: um moo Na flor davida; baixo, nariz adunco, olhos penetrantes, faiscando atravs das lentes encaixilhadasnum aro de oiro muito delgado; bocca fina levemente vincada e contrahida sobre oscantos; suissas negras, aneladas e finas, deixando livre a ponta do queixo forte como ada estatua de pedra, que o cinzel no alindou; maas do rosto proeminentes; picado debexiga. (...)
Chegara de Frana,(...) O novo freqentador do marrare doutorou-se em medicina.Prosador elegante e orador didctico de primeira ordem.
Este rapaz dento era meu velho amigo Thomaz de Carvalho.
Manuel, Passos. O Marrare do Polimento. In: PATO, Bulho. Memrias. Scenas deinfancia e homens de lettras. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Sciencias, 1894,3v, tomo I. pp.146 e 147.
Histria Apresentao Ficha Tcnica Instrues aos Autores Indexadores Contato
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CORTE E LITERATURA NO RENASCIMENTO
Rita Marnoto Universidade de Coimbra/UC
Leodegrio A. de Azevedo Filho, consideraes sobre a expresso
do silncio na poesia de Ferreira Gullar e na poesia de Tasso da Silveira
Mobilidade da estrutura, encarada como fora resultante de uma srie de transformaes.
Nas breves linhas que servem de incipit a este trabalho, fica contida uma
daquelas mximas lapidares, caracterizadas por um rigor e um sincretismo muito
prprios, em que a escrita do Prof. Leodegrio de Azevedo Filho frtil. Pe em
relevo, na senda de Lvi-Strauss, aquela mobilidade transformacional da estrutura
que a liga ao contexto. De facto, qualquer sistema literrio se encontra em
permanente evoluo, dado que dinmico, o que propulsiona a heterogeneidade
dos elementos que o constituem e das suas combinaes possveis, quer com
elementos desse mesmo sistema, quer com elementos de outros sistemas, literrios
ou paraliterrios.
Esta uma das mais produtivas vias para o estudo dos chamados perodos
clssicos, e do Renascimento em particular. Mostra como um modelo de alcance
abrangente foi declinado de modo diversificado, dando lugar a articulaes de
formas, ritmos e convergncias muito vrios. Trata-se, pois, de um sistema formado
por vrios sistemas, em constante evoluo, cujos elementos so interdependentes,
e que, da mesma feita, parte de um sistema mais vasto, o polissistema de uma
poca.
Fica assim superado aquele conceito purista que, ao associar o modelo do
classicismo e a imitatio uniformidade repetitiva de um formulrio, se arriscava a
convert-lo numa entidade esttica. Correlativamente, da reduo do alcance de um
fenmeno to amplo a fronteiras nacionais, no poder resultar seno uma leitura
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esterilizante. Se, numa escala temporal, os seus confins se estendem recuperao
do mundo antigo, numa escala espacial so extravasadas as fronteiras da Europa,
para outros continentes, como o americano.
Concebida nos meios do estruturalismo russo e do estruturalismo checo,
tendo depois encontrado brilhantes desenvolvimentos na obra de Umberto Eco, Jurij
Lotman ou Even-Zohar, a noo de sistema dinmico conta com um slido historial
crtico, e tem vindo a ser explorada, em tempos mais recentes, por certos ramos dos
estudos culturais, dada a abrangncia e a capacidade que lhe prpria de
compreender realidades complexas. O dinamismo do perodo do Renascimento
decorre, em grande parte, do modo como um modelo, que o do classicismo, vai
sendo sucessivamente declinado e revitalizado atravs das suas aplicaes. Essa
multiplicidade de interseces potencia a canonicidade que o sustm. Na verdade,
por entre as pregas desses cruzamentos aloja-se a prpria arte da modelao do
sistema do classicismo. na explorao desses percursos e dessas transferncias
sgnicas que reside o sentido da teoria e da prtica da imitatio no Renascimento.
Assim sendo, esta via metodolgica a de um comparatismo concebido
escala europeia e trans-europeia1. Na dialctica entre corte e literatura, espelha-se
uma multiplicidade de interseces e uma variedade de modelaes cujo sentido
decorre da sua insero num plano mais vasto. a partir deste conjunto de
orientaes metodolgicas que entendo desenvolver a articulao entre corte e
literatura no Renascimento.
Como sabido, ao significado, em latim medieval, da palavra corte, para
designar os lugares adjacentes ao castelo, sobrepe-se o de cria, enquanto local
de encontro dos mais dignos homens. Daqui decorre um sistema de valores que a
lngua ocitana logo consagrou atravs do adjectivo cortes e do substantivo cortezia.
Ao longo de um processo evolutivo secular, a corte erige-se, pois, em sujeito
colectivo dotado de uma funo e de um simbolismo prprios.
A sociedade de corte desenvolve-se precocemente na rea ocitana, j em
finais do sculo IX. A partir do ano de 1000, alguns castelos tornam-se sede laica de
uma produo artstica e cultural que alcanar particular desenvolvimento no
mbito da poesia lrica. O fenmeno alastrar depois pela Frana, pela Itlia e para
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o Leste, e tambm pelo Ocidente ibrico, tal como foi estudado por crticos da
envergadura de Erich Khler2 e Georges Duby3, que associam essa poesia a uma
forma de autoconscincia e de autolegitimao de estratos da sociedade feudal.
Por sua vez, a corte renascentista instaura um modelo e assume um
simbolismo que decorrem de uma fase evolutiva subsequente. O novo paradigma
acompanha a deslocao do centro do polissistema literrio para terreno italiano. No
plano europeu, serve-lhe de padro a institutio italiana. Peter Burke4 e Amedeo
Quondam5 mostraram como a partir dele que pode ser compreendida toda a
evoluo da corte moderna, com as suas rupturas e as suas articulaes, levando a
cabo, da mesma feita, uma reviso das teses de Norbert Elias.
O modelo da corte feudal teve escassa penetrao em Itlia. Para melhor
compreender esta situao, ser necessrio ter em linha de conta que, por um lado,
a nobreza feudal italiana no se distingue pela sua fora, mas, por outro lado, a
burguesia no adere ao sistema de valores ocitano, que lhe alheio, nem manifesta
interesse em fazer sua a literatura que lhe correlata. A magna curia de Frederico II
imperial e brota das franjas da Pennsula, como fenmeno multicultural que cruza
componentes muito diversificados, entre a cultura do Centro e do Norte da Europa, a
presena rabe e o mundo hebraico, para alm da esfera ocitana6. Por entre todas
as dvidas com que a historiografia literria se confronta, admite-se que, na escala
social, os seus poetas fossem funcionrios ligados, quando muito, pequena
nobreza. Mais do que visarem, propriamente, a autolegitimao de um estrato,
procuravam a proteco do poder.
Quando, com a desintegrao da corte do Imperador, em meados do sculo
XIII, a poesia dos Sicilianos se expande pelo Centro da Pennsula, para lanar
razes no ambiente comunal, expresso do meio urbano e de um grupo social activo
e empreendedor. No seio da nova ordem ligada ao comrcio, muito vivo o
confronto entre ncleos e entre estratos ligados ao governo comunal. O ambiente
das comunas vrio e extremamente receptivo ao novo, quer nos seus contornos
sociais, quer no que diz respeito s preferncias literrias.
O centro de gravitao no , porm, a corte, mas a urbe. Beatrice, prottipo
da mulher-anjo stilnovista, na Vita nova caminha pelas ruas da cidade, dando o seu
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saluto a quem o merece. A poesia distancia-se, definitivamente, do modelo da corte
feudal, apesar de poder ser considerada como funcionalmente corts7. Os poetas do
dolce stil novo fazem jus determinao com que cultivam uma tradio alta, dotada
de um elevado grau de abstraco, que capta as transformaes sociais em
movimento. Paralelamente, a produo literria, do plano lrico, estende-se a temas
polticos, histricos, enciclopdicos, de edificao, de teorizao retrica, jocosos,
romanescos ou de ocasio, numa avalanche de novas modalidades de interseco.
Sob o signo da variedade, essa ecloso literria abrange no s uma extrema
diversidade de formas, contedos e gneros, como tambm de opes lingusticas.
A feio experimental que a propulsiona traduz-se na sucesso de escolas e
tendncias, atravs de um afincado jogo de diatribes e conflitos. Sumo
representante dessa vaga de fundo, o Dante da Commedia.
Se a variedade que caracteriza a literatura italiana do sculo XIV fica contida
nos trilhos da polifonia, aquele sculo XV, no qual Benedetto Croce no conseguiu
penetrar, ainda mais a potencia. A historiografia literria recente concebe-o como
proliferao anrquica de formas e gneros, autores e obras. Essa panplia de
realizaes situa-se no mbito de um classicismo que est a construir o seu cnone.
Ser depois da Pace di Lodi, de 1454, que ficam criadas aquelas condies
de estabilidade que permitiro ao sistema de cortes consolidar-se. Neste ponto,
decisiva a passagem do regime poltico das senhorias, para um regime de estados
senhoriais. A trama constituinte e vital dessa mudana o efectivo aumento do
patriciado urbano, com a correlata formao de novos grupos sociais, caracterizados
pela sua ndole substancialmente diversificada, que no eram compreendidos pela
antiga ordem. Apesar disso, os novos estratos so extremamente coesos na defesa
de objectivos comuns. Formam-se no seio de cada estado, mas a sua presena
estende-se, transversalmente, por toda a Itlia.
Ao analisar este processo evolutivo e os seus mecanismos, Amedeo
Quondam mostra como, correlativamente, a centralidade deslocada, do prncipe,
para a prpria corte. Entre esta situao e o modelo de vassalagem sobre o qual se
construra a corte feudal no h soluo de continuidade.
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A corte, no estado senhorial, traduz o consenso necessrio fortificao de
uma sociedade que, com os seus vrios grupos, heterognea. O novo pacto,
consensual e consentneo, assenta na interrelao orgnica dos membros de um
corpo, sob a gide de um conjunto de normas de comportamento que define a sua
identidade antropolgica. O seu horizonte distancia-se, por consequncia, das
especulaes acerca de amor e da sua essncia contidas num De amore de Marsilio
Ficino ou no Libro de natura de amore de Mario Equicola. De outra forma, esse
pacto ir ser consagrado por uma trade de tratados que logo granjeou renome
europeu: Il cortegiano, de Baldassar Castiglione, com sucessivas redaces entre
1513 e 1525, quando o seu autor j se encontrava em Espanha como Nncio
Apostlico, editado pelos sucessores de Aldo Manuzio em 1528, em Veneza, e, no
mesmo ano, pelos Giunta, em Florena; Galateo overo de costumi, de Giovanni
della Casa, editado pstumo em 1558; e La civile conversazione de Stefano Guazzo,
que saiu em 1574 e em 1579, numa segunda redaco. Todos eles so escritos sob
a forma de dilogo, emblema de uma sociedade que elege o discurso como
plataforma de interrelacionamento, e prescrevem modelos de desempenho
susceptveis de identificarem os membros da corte, enquanto tal. Costumes e
conversao passam a ser uma segunda natureza. A conversao, juntamente com
esses cdigos de comportamento, so a face visvel de um esprito de corpo,
reunido em torno de prticas gregrias que identificam o corteso,
antropologicamente, como membro de um colectivo.
Essas prticas so descritas e prescritas em todos os seus aspectos e com
todo o cuidado. De entre elas, a lrica petrarquista desempenha uma funo
primordial. Assenta, tambm ela, numa tendencial homogeneidade de formas e
temas, que tem ao seu servio os instrumentos capitais do rimrio e do dicionrio de
topoi. A sua difuso servida pela imprensa. Ao lanar no mercado centenas de
exemplares iguais, pe-se ao servio de um desempenho literrio tambm ele
equilibrado e consensual8. Sob a gide de Petrarca, mestre de todas as finezas
literrias, esta lrica nutre-se a si prpria e nutre toda a Europa com as lies do
classicismo.
Este modelo de corte no corresponde, de forma alguma, ao modelo corts,
mas a outro modelo que costuma ser designado corteso. Como sublinha Marco
Santagata, no artigo Nascer duas vezes. Vicissitudes da lrica italiana dos primeiros
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sculos9, a lrica italiana no conheceu uma verdadeira estao corts, em virtude
de circunstncias j anteriormente explicitadas. no sculo XV que a sociedade de
corte ganha pujana, em Itlia, e tambm nesse momento que a poesia se torna
um componente fulcral desse ambiente. Como tal, no reentra no domnio do corts,
porquanto distanciada da tipologia ocitana e do cenrio feudal. Cria, ento, o seu
prprio modelo, corteso. Este padro faz-se expresso das mudanas e das
agitaes que orientam o novo relacionamento interpessoal, confluindo na
interseco entre tica e esttica. Modelo mais maturado no tempo, modelo gerado
no centro do polissistema literrio europeu, ser seguido e imitado ao longo de todo
o curso temporal que ir at Revoluo Francesa. Apesar de a rea mais visvel
do seu impacto ser a Frana de Versalhes, a sua irradiao europeia.
Pelo que diz respeito a Portugal e ao perodo do Renascimento, no resulta a
existncia de tratados de comportamento que possam ser colocados em paralelo
com Il cortegiano, o Galateo, ou a Civil conversazione. Nas letras portuguesas de
Quinhentos, encontram-se representados os grandes gneros literrios do tempo. A
narrativa de viagem uma das mais originais vertentes dessa produo, ao que h a
acrescentar o nome de um poeta de primeiro plano, Lus de Cames10. Apesar de a
normatividade de costumes ser um assunto abordado em textos de diversas
tipologias, o tratado de comportamento no cultivado.
Contudo, os fundos das bibliotecas portuguesas mostram que Castiglione,
della Casa ou Guazzo eram lidos, quer no original, quer em traduo. Alis, na rea
ibrica, Il cortegiano foi objecto de uma prestigiada traduo feita por Boscn. Em
1624, entra para o ndice de livros proibidos, o que mostra que era objecto de leitura.
Na verdade, a corte real portuguesa uma instituio dotada de uma
substancial continuidade, ao longo dos sculos11. No tem o carcter precoce das
cortes ocitanas, nem conhece o seu prematuro eclipse. A sua criao no
protelada para um momento adiantado, como em Itlia, nem decorre de uma
necessidade de recuperar modelos que lhe permitam preencher um vazio de
cdigos, como em Frana. O seu perfil vai evoluindo ao longo de uma linha
contnua, marcada por interregnos que no a chegam a afectar. Sofre algumas
vicissitudes no perodo da monarquia dual, para logo ser revitalizada pelos
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Bragana. No terramoto de 1755, o palcio da Ribeira desmorona-se, mas, mesmo
assim, os rituais vo-se mantendo na real barraca para onde D. Jos se transfere.
A corte de Avis foi, nos seus primrdios, como sabido, um importante centro
de renovao literria, com o cuidado posto na organizao da biblioteca real, o
incentivo traduo e o cultivo de vrios tipos de prosa. Ao lermos, porm, as
pginas do grande repositrio da poesia de corte da segunda metade do sculo XV
e dos incios do sculo XVI, o Cancioneiro geral de Garcia de Resende editado em
1516, colhemos a imagem de uma sociedade que se caracteriza por um forte
dinamismo interpessoal, mas que se encontra perfeitamente satisfeita consigo
prpria e que, nesse sentido, basicamente conservadora. Os novos costumes
suscitam reaces de espanto, que ficam entre a curiosidade e o repdio, assim
mostrando a vitalidade relativa de um mundo que se observa e que se interroga
acerca das mudanas em acto, mas sem que por elas seja atrado. No se trata de
um colectivo estagnado, embora tambm no acalente particulares expectativas.
formado por uma nobreza de casta que, como tal, no tem necessidades de
autolegitimao, e vai fruindo o bem-estar que lhe oferecido pela proteco real. A
sua composio classstica e social mantm uma certa homogeneidade ao longo
dos tempos, sem sofrer particulares alteraes. Aquela diversidade resultante, por
exemplo, das novas formas de organizao scio-poltica da Itlia do sculo XV -
lhe substancialmente alheia. O centro continua a ser o rei, mais do que a corte. A
riqueza e a abundncia que caracterizavam a corte portuguesa do sculo XVI eram
postas ao servio de modalidades de representao do poder que no requeriam,
como tal, intervenes codificadoras exgenas.
A essas caractersticas de homogeneidade social, alia-se uma certa
heterogeneidade de costumes. A corte portuguesa era famosa, em toda a Europa,
pelo seu luxo extico. Essa mesma linha de continuidade ao longo da qual se
processara a sua evoluo, sem rupturas, favorecera a acumulao de elementos
de diversa provenincia, enquanto sinal de um consenso que procedeu por incluso.
O rei D. Afonso V, cognominado, precisamente, como O Africano, acolheu uma filha
do ltimo Rei de Granada e cultivou o gosto pelos ambientes africanos. O hbito
orientalista das mulheres se sentarem no cho, sobre almofadas, deu nome a um
grupo de damas de corte chamadas as almofadas. Tais hbitos mantiveram-se at
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ao sculo XVIII, altura em que inspiraram a viajantes estrangeiros relatos de grande
fascnio por esses usos.
Alis, D. Manuel soube tirar o melhor partido da imagem de exotismo, nas
suas relaes internacionais. Recorde-se a Embaixada do Elefante, enviada ao
potente Papa Leo X em 1514. O Rei da pimenta percebeu perfeitamente que
qualquer tentativa de competir com o fausto do Papa de Medici, no campo do
classissismo, seria v. No entanto, deslocando o fulcro para o domnio do exotismo,
a vitria estaria garantida, como de facto esteve. Enviou ento nessa misso pedras
preciosas vindas do Oriente, outras matrias pouco conhecidas na Europa e um
elefante indiano que deslumbrou os grandes senhores12. Por sua vez, num momento
mais adiantado do sculo, D. Sebastio intuiu o significado da primeira grande
epopeia que no se desenrolava no Mediterrneo, abrindo novos horizontes atravs
da navegao pelo Oceano Atlntico e pelo ndico, Os Lusadas, cuja primeira
edio, de 1572, logo apoiou.
necessrio que a corte atravesse o Atlntico, ao tempo de D. Joo VI, para
que se gere uma verdadeira heterogeneidade social no seio da sua malha13. O
impacto decorrente da osmose com o novo mundo propulsiona uma verdadeira
renovao do seu ambiente.
As grandes transformaes em acto no seio da instituio que a corte e da
produo literria que lhe anda associada so, pois, acompanhadas por uma
evoluo estrutural que potenciada pela heterogeneidade sistmica gerada no seio
do prprio classicismo. O que mais uma vez mostra, como escreve o Prof.
Leodegrio de Azevedo Filho, que h que considerar a mobilidade da estrutura
como fora resultante de uma srie de transformaes.
NOTAS
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1 Tive oportunidade de aprofundar este tema em Literatura comparada. Imaginar, interrogar, Imaginao e literatura, coordenao de Rita Marnoto, Coimbra, Instituto de Estudos Italianos da UC, 2009, pp. 167-194. 2 Trobadorlyrik und hfischer Roman. Aufstze zur franzsischen und provenzalischen Literatur des
Mittelalters, Berlin, Ruetten & Loening, 1962; Sociologia della finamor. Saggi trobadorici, Padova,
Liviana, 1976. 3 Guerriers et paysans. 7e-12e sicle. Premier essor de lconomie europenne, Paris, Gallimard,
1973. No mbito galego, vd. Antnio Resende de Oliveira, Depois do espectculo trovadoresco: a
estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos scs. XIII e XIV, Lisboa, Colibri, 1994. Para
uma perspectiva geral e um balano crtico, vd. Marco Santagata, Dalla lirica cortese alla lirica
cortigiana: appunti per una storia, M. S., Stefano Carrai, La lirica di corte nellItalia del Quattrocento,
Milano, Franco Angeli, 1993, pp. 11-30. 4 The Italian Renaissance. Culture and Society in Italy, Princeton, Princeton University Press, 1972. 5 Questo povero cortegiano. Castiglione, il libro, la storia, Roma, Bulzoni, 2000; La conversazione. Un modello italiano, Roma, Donizelli, 2007. 6 Referi-me a este conjunto de questes em A Vita nova de Dante Alighieri. Deus, o amor e a palavra, Lisboa, Colibri, 2001. 7 Cf. Marco Santagata, cit. 8 Vd. Amedeo Quondam, Petrarquistas e gentis-homens, Petrarca 700 anos, coordenao de Rita Marnoto, Coimbra, Instituto de Estudos Italianos da FLUC, 2005, pp. 187-248. 9 Estudos Italianos em Portugal, n.s., 1, 2006, pp. 13-39. 10 H que agregar Lus de Cames a um enquadramento epocal mais vasto, assunto tratado no fundamental ensaio de Marina Machado Rodrigues, Cames e os poetas do sculo XVI, Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006. 11 Vd., sobre a corte portuguesa da Baixa Idade Mdia, Rita Costa Gomes, A corte dos reis de Portugal no final da Idade Mdia, Lisboa, Difel, 1995; e sobre a corte de Bragana at 1640, Mafalda Soares da Cunha, A casa de Bragana. 1560-1640. Prticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, ambas acompanhadas de bibliografia. 12 Vrios foram os senhores que pediram emprestado a Leo X o clebre elefante. Assim o seu jovem sobrinho, o Conde Cosme I, com quem se escusou do emprstimo dado o dano nos cascos do animal que seriam causados por uma viagem at Florena. Vd. Matthias Winner, Raffael malt einen Elefanten, Mitteilungen des kunsthistorischen Instituts in Florenz, 9, 2-3, 1964, pp. 71109. 13 Vd., mais recentemente, Juandir Malerba, A corte no exlio. Civilizao e poder no Brasil s vsperas da independncia, So Paulo, Companhia das Letras, 2000.
O Marrare_SITE.pdfwww.omarrare.uerj.brO Marrare
RITA MARNOTO