O MENINO QUE NASCEU AOS QUINZE ANOS - CAPES...onde o sol brilha mais forte que as chamas de uma...

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O MENINO QUE NASCEU AOS QUINZE ANOS MARIA DO CARMO CONOPCA OCTAVIO CAVALARI JUNIOR

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  • O MENINO QUE NASCEUAOS QUINZE ANOS

    MARIA DO CARMO CONOPCA

    OCTAVIO CAVALARI JUNIOR

  • Copyright © 2019

    Maria do Carmo Conopca

    Octavio Cavalari Junior

    Produção Editorial, Projeto Gráfico e Diagramação

    Gustavo Binda

    Xilografia de Capa

    Cadu Souza

    www.instagram.com/xilogravurasdobenedito

    IMPRESSO NO BRASIL | PRINTED IN BRAZIL |2019|Todos os direitos desta edição reservados à Editora Cousa

    Editora Cousa | Rua Gama Rosa, 236 Centro Histórico de Vitória-ES | CEP 29015-100

    www.cousa.com.br | facebook.com/editoracousa

    C753m Conopca, Maria do Carmo.O menino que nasceu aos quinze anos / Maria do

    Carmo Conopca, Octavio Cavalari Junior.- Vitória, ES: Editora Cousa, 2019.

    58 p. ; 13x21cm.

    ISBN 978-85-9578-086-6

    1. Educação. 2. Gênero. 3. Sexualidade. 4. Inclusão. 5. Diversidade. 6. Gestão. I. Cavalari Junior, Octavio. II. Título.

    CDU 305:869.0(81)-91

    Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348

  • O MENINO QUE NASCEUAOS QUINZE ANOS

    MARIA DO CARMO CONOPCA

    OCTAVIO CAVALARI JUNIOR

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    APRESENTAÇÃO

    Este cordel surgiu com um objetivo principal: é o produto educacional gerado a partir de minha pesquisa como aluna do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal do Espírito Santo – Ifes, Campus Vitória.

    A pesquisa, desenvolvida sob orientação do Prof. Dr. Octavio Cavalari Junior, abordou a importância do uso do nome social como ferramenta para a identidade de gênero dos alunos e alunas transexuais na Educação Profissional e Tecnológica do Ifes, a partir da publicação do Decreto nº 8.727/2016.

    A ideia do cordel surgiu pelo título: O menino que nasceu aos 15 anos. Tornou-se desde então uma idéia fixa e imperiosa durante o curso do mestrado, mesmo que eu não tivesse experiência alguma com a escritura de um cordel. Esse foi o meu maior desafio.

    A inexperiência justifica a estrutura adotada, em oitavas, que não é muito corrente entre os cordelistas tradicionais, e ainda alguma outra inadequação de forma que possa ser percebida. Devo também esclarecer que os versos destacados em itálico são de outros autores e autoras, por vezes com pequenas adaptações. Assim proponho ao leitor o desafio de tentar identificar a quem na verdade pertencem tais versos.

    INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOAutarquia criada pela Lei n° 11.892 de 29 de Dezembro de 2008

    PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA

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    Para que o produto tomasse forma, fomos ouvir os(as) alunos(as) transexuais ou que se identificam como LGBTQI, bem como servidores(as) que atuam em contato direto com o corpo discente e ainda gestores(as) do Campus Colatina, local de nosso estudo de caso.

    Também embasaram a redação deste cordel as autoras e autores que abordam a temática do gênero. Do mesmo modo, as histórias e os depoimentos de pessoas transexuais que pesquisamos nas mais diversas fontes durante estes dois anos de trabalho estão representados ao longo das estrofes.

    Não se trata, portanto, de contar uma única história. O resultado desta escrita é fruto de uma fusão de memórias, de relatos, de tantas trajetórias e vidas de alunos e alunas que perpassaram e perpassam os caminhos da Educação Profissional e Tecnológica no Ifes.

    A intenção do cordel é provocar a empatia e despertar a sensibilidade dos leitores e leitoras sobre a importância das políticas de inclusão e acolhimento das pessoas transexuais/LGBTQI, a fim de que possam desfrutar de condições de igualdade e dignidade para concluírem com sucesso suas trajetórias na Educação Profissional e Tecnológica dos Institutos Federais.

    A minuta de regulamentação do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Negex) do Campus Colatina, apresentada após o texto do cordel, constitui outro produto educacional desenvolvido como parte da mesma pesquisa.

    A minuta do Negex foi submetida ao Conselho de

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    Gestão do Campus Colatina na reunião de 19 fevereiro de 2019. Após apreciação o Conselho deliberou por constituir uma comissão para encaminhar a discussão do texto por meio de consulta pública junto à comunidade. A comissão foi designada pela Portaria do Diretor-Geral do Campus Colatina nº 134, de 3 de abril de 2019.

    A minuta apresentada teve como base a Resolução nº 37, de 20 de junho de 2017, do Conselho Superior do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, a qual regulamenta os Núcleos de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (NEPGSs) daquela instituição.

    Almejamos, com a proposta deste produto educacional, que o possível funcionamento do Negex no Campus Colatina torne-se um modelo embrionário a ser replicado nos demais campi do Ifes.

    Os Negex que vierem a ser constituídos atuarão visando à discussão de políticas de inclusão direcionadas aos alunos e alunas LGBTQI, por meio da temática da educação para a diversidade de gênero e sexualidade.

    Agradeço ao meu orientador pela parceria e por ter acreditado nesde trabalho desde o início. Agradeço igualmente a todas as pessoas que me inspiraram, me incentivaram e colaboraram para que este trabalho se realizasse.

    Maria do Carmo ConopcaVitória, junho de 2019

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    O MENINO QUE NASCEUAOS QUINZE ANOS

    Maria do Carmo ConopcaOctavio Cavalari Junior

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    Ninguém nasce feito,é experimentando-nos no mundo

    que nós nos fazemos.

    Paulo Freire

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    Aviso de início a todosos leitores desta obraque a história é ficção,fruto da imaginação.Ou será realidade?Ninguém sabe, na verdade,se a arte é que imita a vida,se a vida é que imita a arte.

    Por isso peço licençaao leitor interessado,e à musa engenho e artepara escrever parte a parteas palavras destes versoscom clareza e sem ofensasespalhando meu recadodo respeito às diferenças.

    Se esse tema te chateiaou te deixa arreliado,reveja seus preconceitos,não deixe o cordel de lado!É melhor cair das nuvensque de cima de um telhado,já disse o velho Machado,o de Assis, grande letrado.

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    Este cordel que apresentoé um cordel diferente,pois não nasce dessa genteacostumada ao repenteque é a gente nordestina:é um cordel capixaba.Traz a história de um menino,tem começo e não acaba...

    Não acaba porque a vidase tece no dia-a-dia,cada um vai construindosua história, seu caminhode acordo com os princípiose ideais com que se alinha.E o nosso personagemjá nasceu com sua sina.

    Já se mudou de cidadefoi até para outro estadoem busca de seu diplomapra se tornar graduadoe seguir na educaçãoo caminho começadonum curso profissionaldo instituto federal.

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    Foi numa cidade quentesituada bem ao norte,onde o sol brilha mais forteque as chamas de uma fornalha.Na cidade de Colinaque nasceu essa menina,que ainda pequeninanotou uma coisa errada.

    Ela notou que seu corpo,seu corpinho de criança,naquela mais tenra infânciadecerto não pertenciaa tudo que ela sabiaque ela queria ser.Mesmo sem ter muito tino,sentia que era um menino.

    No começo, teve medo,não revelava pra mãee muito menos pro pai,receando o que viria.Quando lhe punham vestidolacinhos e sapatinhoso seu coração doíaao pensar em seu destino.

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    Como que pode um meninoter um corpo de menina?Que brincadeira era aquela?Quando é que se acabava?A criança escondiano coração sua angústia,e utilizando de astúcia,fingia que se aceitava.

    E assim se passou o tempo.Essa menina crescia,já frequentava a escola.As amigas do primárioconviviam sem problemascom aquela garotinha,igual a todas as outras,mas fechada como ostra.

    Em seu coração pequenoforjava um entendimento,a razão de seu sofrer.Às vezes sentia culpapor esconder seu segredo.Se alguém lhe apontasse o dedo,mesmo sem ter um motivo,sempre morria de medo.

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    No entanto, ela sofria,seu peito era uma cratera.Escondia sua dorpor ter que viver fingindoser aquilo que não era.Por dentro havia uma ferarugindo por liberdade,buscando uma identidade.

    Depois de mudar de escolabem na pré-adolescência,foi tomando consciênciade qual era o seu mundo.A situação foi talque quis desistir do estudologo na segunda etapado ensino fundamental.

    À medida que cresciamudava a situação.Foi ficando mais difícile às vezes complicadoenganar quem está do ladodo seu próprio coração.Ao tempo que o pai não via,sua mãe já percebia.

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    Luzmarina (esse era o nomeda menina que apresento),passou a buscar na almauma maneira bem calmade relatar seu tormentoà mãe que tanto lhe amava.Esperava que entendessetudo por que ela passava.

    Queria que a mãe soubesse,tivesse esclarecimentode todo seu sentimento de completa solidão.Não tinha amigos na escola,aguentava zombariapor demonstrar que queriacom os meninos jogar bola.

    Lhe botavam apelidos,as meninas se afastavam,os meninos, nem se diga.Professor despreparadoe sem nenhuma empatia,sem entender a questão,mandava à diretoriaou para a coordenação.

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    E lá ia Luzmarinaouvir o sermão de sempre:que o seu comportamentojá não tinha cabimento.Que mesmo com notas boas,jamais se tolerariauma aluna como elaprovocando rebeldia.

    O sermão da diretorase baseava em intrigas.Ela jamais perguntavana verdade, o que havia.Não dava oportunidadeda menina se expressar,de mostrar suas feridas,de expor sua verdade.

    Era melhor reprimir.Era melhor não saber.Escola mal preparadapara tratar o alunocomo um ser social,um indívíduo totalcom direito de aprendere ser o que quiser ser.

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    A mãe ouvia caladaa voz da sua pequena.As duas dentro do quarto,a mãe com a voz serena,disse à filha que choravaapós fazer seu relato:como dois e dois são quatro,sei que a vida vale a pena.

    E começou com um abraçoentre a mãe e Luzmarina,uma nova parceriabem mais forte do que um laço.A mãe não compreendiao que sua filha queria,mas iria a qualquer preçodefender sua menina.

    Isso estava decidido.Enfrentaria o pai dela,o prefeito, a diretora,podia vir quem viesse:ninguém mais se interpusesseno caminho de sua filha,buscando a felicidadepor meio da identidade.

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    Tentou falar com o paisobre a sua condição,mas como já esperavafechou-se o seu coraçãoe sua alma ferina.Bateu forte sobre a mesae disse que Luzmarinapodia ter a certeza

    que em seu coração de paisua pequena meninaseria sempre princesa.Não viesse com conversade gênero e coisas tais.Não queria ouvir mais nada, nem grito, nem sussurrado:o caso estava encerrado.

    Mesmo antevendo o desfechodaquela conversa dura,Luzmarina ficou tristecom o seu pai que negavaque a sua princesinhadescobria adolescenteque era bem diferentede tudo que ele sonhara.

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    A filha já soube entãoque o melhor dos caminhospra definir seu destino foi abrir seu coração.A mãe estava com ela.Mesmo com sol encoberto, Todos sabem quando é dia.Iam lutar essa guerra.

    Luzmarina expôs à mãeas suas inseguranças.Em seu corpo de meninasentia algumas mudanças,mas inda não entendiaque a sexualidadecada dia que afloravamais dúvidas lhe trazia.

    Sabia porém por certoque se sentia atração,nunca era por meninos,não lhe chamavam atenção.Gostava mais das meninas,do seu jeito delicado,ora meigo, ora açodado,do seu andar com gingado.

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    Nelas seu olhar parava,seu coração se agitava.E explicou para a mãe,que lhe perguntava então,que esse fato se tratavade sua orientação.Se gostava de uma igual,era homossexual.

    Portanto ela já sabiae já podia ensinar.E também já foi falandode um jeito bem informalque no caso a sua mãeera heterossexual,pois por prazer e por gostobuscava o sexo oposto.

    E prosseguiu ensinando:que a orientaçãorepresenta a atraçãopor quem a pessoa sente.Se sente atração por homeme por mulher, tudo igualentão estamos falandode alguém bissexual.

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    O sexo biológicoé fácil compreenderé aquele que ao nascerlogo se vê no nascido:se é feminino é menina,se é masculino é menino.O que se nota está visto,e assim se dá seu registro.

    Há porém outro formatoque foge à regra já dita,quando ocorre a formaçãode sexo femininoe sexo masculino,numa mistura total.Dito outrora hermafrodita,hoje é intersexual.

    Também há pessoas CIS,sendo a grande maioria.Cisgênero é o nome certo.É a pessoa que temo gênero igual ao sexo,o sexo igual ao gênero,menino que é menino,menina que é menina.

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    O CIS quando é meninotem orgulho do seu pênis,do seu corpo masculino.A CIS quando é meninavai se tornar uma moçacom seus peitos e vagina,viverá com plenitudesua condição feminina.

    Pra não ter que explicar mais,CIS são chamados “normais”.E lhe digo, minha mãe,que inda há muito que aprender.A sigla LGBTtraz um universo inteirobem dinâmico e diversode questões sexuais.

    Por fim, abordou o temaque expunha o seu segredoque estava mais bem guardado.Pediu à mãe que sentasse,que ouvisse com atençãotodas as suas palavras.Elucidava o mistérioà medida que falava.

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    Contou que entendia agoraque seu corpo de meninatorneado, com voz finaera como uma prisão.Sendo menina por fora,era menino por dentro,menino no coraçãoe masculino em seu gênero.

    Gênero é o que eu sintoele é o que sei que sou.É o gênero masculinoque traduz a minha essência.Minha mãe, escute beme tente manter a calma:o gênero não é corpo,o gênero está na alma.

    Pela minha condiçãoeu sou transexual.Não é difícil entender,não é difícil aceitar.Só para simplificarde um jeito bem informal:o trans é aquela pessoaque vem no corpo trocado.

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    É o homem aprisionadoem um corpo de mulher,ou a mulher sufocadaem um corpo masculino,que é tudo que ela não quer.O corpo é um tormento,pois ele não representao que a pessoa é no íntimo.

    O problema é que tem gente,uma grande maioria,que não aceita que os gays,as lésbicas e os transsão cidadãos, como todose têm direitos iguais.O preconceito é que criaa homo-lesbo-transfobia.

    A transfobia acontecepor falta de humanidade,por se julgar que a pessoapor seu gênero, seu sexoe sua orientaçãonão faz juz à equidade,pois não pertence ao padrãoda cisnormatividade.

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    A mãe que ouvia o discursojá um tanto atordoada,entendeu que sua filhaestava bem informada,estava bem decidida,ciente de seu destino.Sob qualquer condição,sempre lhe daria a mão.

    E a mãe foi na parceria.Luzmarina lhe ensinavaas questões sexuais,tudo que ia aprendendocom as pesquisas em sites,livros, redes sociais,já que buscar na escolanão trazia nada mais.

    A partir dessa conversaLuzmarina fez-se fortepara enfrentar na escolatodo tipo de agonia.E como qualquer pessoacurtia ficar na sua,fases de andar escondida,fases de ir para a rua.

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    O tempo passou depressapassou e deixou memória:assim como o Dante disse,o céu não vale uma história.Vencida a etapa finaldo ensino fundamental,Luzmarina ia ingressarnuma escola federal.

    Agora uma nova etapaa ela descortinava.Aquele percurso novoque ora se apresentavaencheu de expectativaseu coração, sua mente,sendo no meio de tantossó mais uma adolescente.

    Podia ser quem querianaquele novo ambiente.Ali ninguém conheciaa sua história de vida,apesar da pouca idadejá um bocado sofrida.Queria seguir em frente,Não se sentir diferente.

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    Sentia orgulho de estarnum lugar especial,escola de qualidadenum curso profissional.Curso técnico integradojunto com o ensino médio,tendo sido aprovadana seleção, por seu mérito.

    Isso lhe fortaleciadava orgulho, dava honra.Uma nova formação,um caminho que se abria,pois tudo que ela queriaera estudar de verdade,fazer novas amizadese conquistar seu diploma.

    Por isso a ansiedadediante da nova escola,dos professores, colegas,de todos que trabalhavamem cada setor ou sala.Será que a aceitariamcomo a pessoa que era?Que será que lhe esperava?

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    Seu coração apertadodiante da incertezabolou uma estratégia,um esquema de defesa.Em vez de se assumir transdiria que era lésbica,pelo menos por um tempo.Essa foi a sua técnica

    pra lidar com o preconceitode uma forma mais amena.Antes de se dizer trans,o que tantos desconhecem,diria aos que perguntassemque gostava de meninas,que era homossexual,o que é mais usual.

    A estratégia funcionou.Luzmarina logo viuque naquela nova escolahavia muitos iguais.Tinha amigos de verdadedentro da comunidade.Comunidade é dizerpovo LGBT.

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    Assim eles se tratavam,pois falar comunidadeera a codificaçãode um grupo minoritário,auto-identificaçãodentro da diversidadeque compunha o alunadodaquela instituição.

    Luzmarina percebeujá no início das aulasque se havia tolerância,respeito e inclusãopor parte de professores,colegas e servidores,era uma grata surpresa,porém não era um padrão.

    Também recebia olharesque eram de reprovação.Também ouvia piadasque eram ditas sussuradasao passar nos corredores,e ao ir lanchar na cantinacom a sua namorada,que também era menina.

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    Sabia que o preconceitoque teve desde a infânciaseria pra vida toda,fruto da ignorânciade uma sociedadeque não vê a diferençacomo oportunidadepara melhor convivência.

    Sabia que o caminhopra conseguir a mudançapassa pela empatia,pelo conhecer o outro,por entender sua história,sua identificação.É preciso então lutarpela conscientização.

    Decidiu que era horaDe tomar uma decisão.Precisava de um avalpra definir a questão.Buscou junto à pedagoga,foi até a psicóloga,à diretora de ensino,e ao diretor-geral.

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    Queria se assumircomo transexual,sair de sua prisãoe na documentaçãoalterar pelo princípioo seu nome de registro,exercendo o seu direitode ter nome social.

    E um nome masculino,pois por dentro era um menino.Menino, não: um rapaz.Seu gênero já sabiaque não era o feminino,desde muito pequenino.Agora que abria as asasnão ia voltar atrás.

    O fato foi que o moçoprovocou grande alvoroçoque não acabava mais.Diante da divergência,professores exigiramque a equipe da escolaconvocasse os seus paisem regime de urgência.

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    Foi um zum-zum-zum danadodiante da novidade,pois ninguém foi preparadopraquela realidade.Numa escola centenáriado governo federal,não se conhecia um jeitode dar nome social.

    Foi o primeiro pedidoem tantos anos de história.Sem regulamentação,sem preceder a questãonenhum fato semelhanteque se tivesse memória.Era um grande desafio,um teste para a gestão.

    Houve gente questionandose era papel da escolase imiscuir em questãoparticular do educando.Houve quem viu essa causacom mais sensibilidade,procurando compreender,aprender com a situação.

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    Aos poucos a novidadefoi se espalhando no campus.Primeiro virou fuxico,conversa de pé do ouvido.Mas como é que será isso?Será que é mesmo verdade?Essa menina endoidou?Que é transexualidade?

    Pra contornar o problemae evitar confusão,o diretor convocou uma grande reuniãoonde o assunto foi pautado.Professores, servidores,pessoal terceirizado,todos foram convocados.

    A questão foi colocadapra todos compreenderemque agora havia um aluno que era transexual.Achassem certo ou errado,cada um, no seu conceito,mas ele tinha direitoa inclusão e respeito.

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    A equipe explicouque é dever da educaçãoque se diz de qualidadegarantir aos seus alunoscondições de equidade,de acesso e permanência,para concluir seu cursodentro da instituição.

    Proporcionar que o aluno,cada qual, seja quem for,não seja discriminado.Que se sinta acolhido,se sinta igual, respeitado.Que seja sempre a inclusãoum príncípio educativo,ideal da educação.

    Após isso a reuniãocom os pais de Luzmarinafoi marcada na escolade forma bem repentina.A mãe e o pai presentes,o diretor, a alunae alguns membos da equipeque eram mais conscientes.

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    A conversa foi direta.Foi Luz que falou primeirosobre sua condição,seu gênero verdadeiro.A mãe já acompanhavae apoiava sua filha,mas o pai não aceitavaum trans em sua família.

    Repetiu suas palavrasque já tinha dito em casa.Sua filha, uma princesanão podia ter certezadas besteiras que falava.No seu coração de pai,nada lhe doía mais,nada mais lhe machucava.

    Por sua só decisãonão dava autorização.Não queria saber maisdo tal nome social,e saiu da reunião.Mas a mãe ali ficou,deu um abraço na filhae conversou com a gestão.

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    Como havia um decretoque pregava esse direito,Luzmarina teve apoioe soube que era corretotodo o seu requerimento.Como a mãe autorizouratificando o pedido,a escola o aceitou.

    Tudo foi um desafio.Tudo foi convencimento.Alteração nos sistemas,nas pautas, no regimento.Mas o principal de tudo:mudar o comportamentoe convencer que a alunatinha o seu discernimento.

    Luzmarina respirouum bocado aliviadaquando foi ao protocoloformalizar o pedidode seu nome social.Percebeu que a servidoraque lhe atendeu no guichêfoi bastante cordial.

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    Aos poucos o seu processofoi tramitando na escola,com avanços, retrocessos.Mas houve um grande esforçopra resolver os problemasque foram aparecendo,pra que tudo desse certoe terminasse a contento.

    Luzmarina dava adeusao seu nome de menina.No ano em que debutava,usar o seu nome novoera o que ela mais queria.Esse era o seu plano:debutaria menino,nasceria aos quinze anos.

    Até que chegou o dia.Após ajustes na pauta,nas provas, na carteirinha,toda a documentaçãoque era de Luzmarinafoi enfim atualizada.Luz recebeu a notíciaque era tão esperada.

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    Entrou na sala de aula,o olhar com novo brilho.Então, de cabeça erguida,olhou para a turma e disse:- Meu nome agora é Ulisses!Parte da turma sorriu,parte não compreendeue outra parte aplaudiu.

    O professor, por seu lado,um tanto encabulado,deu a mão à palmatória.Pediu ao aluno Ulisses que explicasse para elee para a turma em geralcomo é que era essa históriade ser transexual.

    Ulisses, com a palavra,explicou com segurança:ninguém escolhe ser trans,ninguém escolhe sofrer.Ninguém escolhe viversendo vilipendiado,enfrentando preconceito,com seus direitos negados.

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    É preciso entender:ser trans não é uma escolha,mas sim uma condiçãoque é inerente à pessoa.Também não é uma doença,não existe tratamento,nem cura, conjuramento.Ser trans é pra vida toda.

    Por isso a sociedadetem de ter a consciênciade que o transexualé uma pessoa igual,um cidadão com direitoà vida e dignidade,ao convívio, ao respeitopela sua identidade.

    Tá na Constituição,nossa lei mais soberana,a nossa lei principal:direito fundamentalda dignidade humana,independente de sexo,de gênero, raça ou crença,ou de origem social.

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    A turma compreendeu,pediu mais explicação.Ulisses foi ensinandoo que aprendeu nesses anosde sua transformação.Numa inversão de valor,nesse dia o alunoé que foi o professor.

    Explicou que o Brasilé campeão mundialde uma categoriade que ninguém sente orgulho:nosso país é, no mundo,aquele que mais maltrata,mais assassina, mais mataquem é transexual.

    E já na aula seguinte,quando foi feita a chamada,a professora olhou,viu Luzmarina sentadasem responder a presença.Antes que ela repetisse,bem alto a turma lhe disse:- O nome dele é Ulisses!

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    Assim foi acontecendo.Toda aula, a cada diaera mais um que aprendiae se esforçava bastantepra aceitar a novidade.Ulisses já se sentiaum cara reconhecidona sua diversidade.

    Até se tornou goleiro.E nos jogos interclassesfoi escalado primeirono meio de outros rapazes.Se tornou o pioneiro,o primeiro trans goleiro,mas não ficou nesse postopois era muito frangueiro.

    Mas de tudo fica um pouco,Como dizia o poeta.Até hoje inda tem genteque não encontrou motivopara entender que o mundotem pessoas que não sãopertencentes ao binômiomasculino/feminino.

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    Que essa classificaçãobinária, dura, padrão,não traduz a realidadedas sexualidadesque não têm conformação.São pura diversidade,fogem à definição,sem fronteira que as separe.

    Isso também justificaum problema corriqueiroque atormentava Ulisses:era o uso do banheiro.Para fazer um xixivivia sempre um dilema,no restaurante ou barzinho,na escola, no cinema.

    Essa questão que pareceser um problema pequenoganha proporção enormepara o transexual.Fazer uso do banheiropode acabar em conflitoou em intimidaçãoe violência verbal.

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    A escolha de Ulissesquando estava na escolaera usar o masculino.Porém, só ia ao banheiroque estava mais afastado.Pra evitar disse-me-disse,só entrava no recintoquando ele estava vazio.

    O fato é que a vida passacom a dor de cada dia.Nem sempre os que estão mais pertofazem melhor companhia.E Ulisses foi seguindoestudando, dando durocursando o ensino técnicoprojetando seu futuro.

    Usou como aprendizadoas agruras que sofreu,os perrengues que passou,e ficou agradecidoa quem o tinha ajudado.Da mesma forma entendiaquem não o reconheciaapós ter se assumido.

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    E chegou a formatura,momento mais esperado.No meio da cerimôniateve seu nome chamadona hora de colar grau.Ulisses, com muito orgulhorecebeu o seu canudocom seu nome social.

    E assim termina a história,ou, talvez, nunca termine.Como disse no iníciodesses versos amadores,tudo tem seu recomeço:vida, vitórias, amores.Ulisses seguiu em frentefoi pra um lugar diferente.

    O menino, na verdadepor pura dedicação,estudo, concentração,foi pra universidadepública e de qualidade:passou numa federal.Com certeza será sempreum aluno especial,

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    engajado, atuante,defendendo a sua causa,combatendo o preconceito,mostrando que é direitoviver a diversidade,porque na realidadetodo mundo é diferente,cada um tem o seu jeito.

    Dedico este cordela cada pessoa transque luta por seu lugarna escola, na família,no mercado de trabalho,matando um leão por diaem uma sociedadeque o invisibiliza.

    Por final, eu agradeçocada uma das pessoasque prestou o seu relato,que fez seu depoimento,deu sua visão dos fatos.Sua contribuiçãoé parte desta jornada.De coração, obrigada!

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    Quem gostou que bata palmas.Quem não gostou eu lamentoseu tempo que foi tomado,mas mando mais um recado:vamos mudar a cabeça,aplicar ao ser humanoum princípio valioso:o respeito é para todos.

    Toda discriminaçãoé uma forma atentatóriaaos grupos minoritários,é racismo social.Nós somos seres humanos,todo mundo é seu igual.Cada um tem sua história,todas o mesmo final.

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    Versos tomados por empréstimo

    A arte imita a vida.Aristóteles

    A vida imita a arte.Oscar Wilde

    É melhor cair das nuvensque de de um tereceiro andar.Machado de Assis

    Como dois e dois são quatro,sei que a vida vale a pena.Ferreira Gullar

    Mesmo com sol encoberto, Todos sabem quando é dia.Cecília Meireles

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    (...)fases de andar escondida,fases de ir para a rua.Cecília Meireles

    (...)assim como o Dante disse,o céu não vale uma história.Paulo Leminski

    Mas de tudo fica um pouco.Carlos Drummond de Andrade

    Nem sempre os que estão mais pertofazem melhor companhia.Cecília Meireles

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    MINUTA

    REGULAMENTO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE DO IFES – CAMPUS COLATINA

    Estabelece a criação e a regulamentação do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Negex) do Campus Colatina do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes).

    CAPÍTULO IDA NATUREZA E DA FINALIDADE

    Art. 1º O Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Negex) do Campus Colatina do Ifes, a ser instituído por Portaria instituída pelo Diretor-Geral campus, é uma instância propositiva e consultiva que estimula e promove ações de Ensino, Pesquisa e Extensão orientadas à temática da educação para a diversidade de gênero e sexualidade. Art. 2º O Negex tem por finalidades, entre outras que venham a ser estabelecidas:

    I - implementar políticas de educação para a diversidade de gênero e sexualidade no âmbito do Campus Colatina, com vistas à promoção do direito à diferença, à equidade, à igualdade e ao empoderamento dos sujeitos;II - subsidiar a discussão acerca das temáticas de corpo, gênero e sexualidade e seus atravessamentos no campo da educação;

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    III - atuar na difusão e promoção de estudos e pesquisas relacionadas às temáticas nas quais o Núcleo se propõe em diversas áreas e concepções teóricas do conhecimento; IV - problematizar as temáticas referentes a gênero e sexualidade e como elas têm sido abordadas em diferentes espaços, em especial, no âmbito institucional; V - atuar na prevenção e no combate às diferentes formas de violências de gênero e sexual;VI – trabalhar colaborativamente com os setores responsáveis pela articulação com a rede de proteção na prevenção e encaminhamento de situações de violências de gênero e sexual;VII - promover parcerias com os movimentos sociais na luta em prol de políticas públicas para a promoção da equidade de gênero;VIII – propor momentos de capacitação para os/as servidores/servidoras do campus conforme demanda, por meio de articulação com outros setores; IX - apoiar as atividades propostas pelos/pelas servidores/servidoras e pela comunidade no que se refere às finalidades do Núcleo.

    CAPÍTULO IIDA VINCULAÇÃO, DA COMPOSIÇÃO, DA COORDENAÇÃO,

    DA ELEIÇÃO E DO MANDATO Art. 3º O Negex está vinculado à Diretoria de Ensino do Campus Colatina. Art. 4º O Negex poderá ser composto por servidores/

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    servidoras do Campus, estudantes e seus familiares, estagiários/estagiárias e representantes da comunidade externa. Art. 5º A coordenação do Negex deverá estar sob a responsabilidade de um(a) servidor(a) efetivo(a) e de um membro na condição de secretário(a), com os(as) respectivos(as) suplentes.

    Parágrafo único. A carga horária do(a) coordenador(a) e dos(as) demais membros a ser atribuída para a atuação no Negex será definida pelo Diretor-Geral na portaria de nomeação do Núcleo. Art. 6º O(a) coordenador(a) do Negex deve ser eleito(a) pelos seus pares.

    Parágrafo único. O período de mandato na coordenação será de 2 (dois) anos, podendo haver recondução por mais um mandato de igual período. Art. 7º A escolha do(a) coordenador(a) e do(a) secretário(a) deverá ser feita na reunião de instalação do Negex por meio de eleição direta entre seus(suas) membros.

    Parágrafo único. Os(as) segundos(as) colocados(as) da eleição serão considerados(as) suplentes de cada cargo. Art. 8º Em caso de vacância ou ausência, os(as) suplentes substituem os(as) respectivos(as) titulares.

    Parágrafo único. Em caso de renúncia ou de afastamento do(a) coordenador(a) ou do(a) secretário(a) por prazo

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    superior a 6 (seis) meses, deve ser realizada nova eleição para o período de vacância dos respectivos cargos. Art. 9º O(a) coordenador(a) e/ou secretário(a) do Negex perde o mandato se:

    I. contrariar as disposições legais, regulamentares e regimentais e/ou faltar sem justificativa por 3 (três) reuniões consecutivas ou 5 (cinco) alternadas;II - afastar-se do campus por período igual ou superior a 6 (seis) meses.

    CAPÍTULO III

    DAS COMPETÊNCIAS E DAS ATRIBUIÇÕES Art. 10. O Negex terá como atribuições, além de outras que venham a ser definidas pelo Campus Colatina em concordância com os membros do Núcleo:

    I - desenvolver ações de Ensino, Pesquisa e Extensão voltadas às temáticas de gênero, sexualidade e educação, fomentando a participação dos diversos segmentos da instituição;II - atuar na articulação de pesquisadores(as), representantes de movimentos sociais e comunidade interna e externa para constituir grupos de estudos e desenvolver estratégias de ação no âmbito institucional; III - atuar como instância consultiva nos processos de elaboração e implementação de políticas de ações afirmativas nas temáticas de gênero e sexualidade.

    Art. 11. São atribuições do(a) coordenador(a) do Negex:

    I - coordenar a equipe do Núcleo, participando do

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    planejamento e da implementação das ações;II - divulgar e promover a visibilidade das ações desenvolvidas pelo Núcleo;III - articular com os membros do Núcleo a elaboração de calendário de reuniões ordinárias;IV - coordenar as reuniões;V - representar o Núcleo nos diferentes espaços da Instituição;VI - estimular a participação dos membros do Núcleo em seminários, simpósios e afins.

    Art. 12. São atribuições do(a) secretário(a) do Negex:

    I - subsidiar a coordenação em suas atividades, bem como sugerir e apresentar demandas e propostas;II - organizar os expedientes e avisos, dando conhecimento a todos os membros;III - organizar a pauta das reuniões;IV - manter registro de frequência nas reuniões e justificativa em caso de ausências;V - requisitar o material necessário ao funcionamento do Núcleo;VI - redigir as atas;VII - manter atualizado o acervo do Núcleo.

    Art. 13. São atribuições dos demais membros do Negex:

    I - subsidiar a coordenação, apresentar demandas, sugestões e propostas de ações de Ensino, Pesquisa e Extensão que venham a contribuir com o Núcleo;II - participar das reuniões e auxiliar no planejamento, na execução e na avaliação do Núcleo;III - divulgar as atividades do Núcleo à comunidade e auxiliar nas demais atividades;

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    IV - participar e estimular a participação da comunidade escolar nas ações desenvolvidas pelo Núcleo e em parceria com outras instituições.

    CAPÍTULO IVDAS REUNIÕES

    Art. 14. As reuniões ordinárias devem ocorrer 1 (uma) vez por mês, exceto nos meses de férias escolares, e podem ser abertas à comunidade. Parágrafo único. As reuniões extraordinárias podem ocorrer por iniciativa e convocação do(a) coordenador/(a), por demanda da Gestão ou por solicitação da maioria simples dos membros do Negex.

    CAPÍTULO VDAS DISPOSIÇÕES FINAIS

    Art. 15. O Negex deve dispor de suporte administrativo e apoio da Direção do Campus para o pleno desenvolvimento de suas atividades. Art. 16. Os casos omissos neste regulamento devem ser encaminhados por meio da Direção de Ensino para consulta junto ao Conselho de Gestão do Campus Colatina. Art. 17. Este regulamento entra em vigor após sua aprovação pelo Conselho de Gestão do Campus Colatina.