O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão · Ao pesquisar como a visão do...
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA UNIMEP
FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
O Mito Cristo contra Guaixar e os outros diabos.
Educao e converso Sculo XVI e XVII
Sady Carnot
Piracicaba, SP.
2006
2
O Mito Cristo contra Guaixar e os outros diabos
Educao e converso Sculo XVI e XVII
Sady Carnot
Orientador: Prof. Dr. Jos Maria de Paiva
Piracicaba, SP.
2006
Tese apresentada Banca Examinadora do Programa de
Ps-Graduao da UNIMEP obteno do ttulo de Doutor em
Educao.
Prof Dr. Jos Maria de Paiva
Prof. Dr. Luiz Francisco Albuquerque de Miranda
Prof. Dr. Edivaldo Jos Bortoleto
Prof. Dr. Amarilio Ferreira Junior
Profa. Dra. Marisa Bittar
3
Agradecimentos:
Ana Cludia, a luz que tem iluminado tantos caminhos...
Homenagem:
Aos meus filhos Gustavo, Rodrigo e Leonardo, com todo
amor que possa existir neste mundo.
Para aqueles que no puderam esperar e se encontram hoje
nos meus mitos e em minhas lembranas, Alice, minha me
e Holmes, meu pai.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da
COORDENAO APERFEIOAMENTO DE PESSOAL DE
NVEL SUPERIOR CAPES
BRASIL
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RESUMO
Por entender que a anlise de uma cultura mais englobante que outra
feita de forma mitolgica e espiritual, foi buscado neste trabalho entender como
essa espiritualidade leva o olhar para o centro do universo, fazendo com que tudo
seja olhado a partir desse prisma. Trata-se aqui dos resultados da converso dos
indgenas durante o perodo jesutico, das coisas boas trazidas aos indgenas
pela educao portuguesa e do confronto de culturas na busca pela verdade de
um e de outro desse embate de mitos, de tabus e pecados, de Deus e de
demiurgos.
Ao pesquisar como a viso do Orbis Christianus era a traduo do
viver na Europa quinhentista e seiscentista encontra-se que a f em Deus era a
nica verdade. Todos deveriam estar nela ou serem levados por ela ao nico
mundo verdadeiro, fora do qual tudo o mais seria injria e aberrao. O natural
no era mais a natureza do homem e sim que a palavra de Deus, tal qual
transmitida pela f crist, chegasse aos confins da terra conhecida e das terras a
se conhecer.
O homem , nesse momento histrico, ator cultural de uma complicada
relao originria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido
em sua realidade cotidiana, no podendo conhecer ou pensar no Bem, sem antes
pensar no Mal, pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combat-lo,
pela glria e triunfo do Redentor sobre o Tentador.
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Era gerado ento o grande embate de mitos, baseado na saga de dois
heris de polaridades contrrias, o europeu e o indgena, Cristo e o Diabo, So
Loureno e So Sebastio de um lado, contra Guaixar e Aimber do outro, o
Orbis Christianus versus a viso arquetpica e o esprito cosmognico indgena.
tratada aqui, a ferramenta dessa educao imposta aos indgenas,
onde os jesutas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a lngua indgena,
a Lngua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os
conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indgena.
A educao e sempre foi um caleidoscpio, que mostra os mais
diversos e belos desenhos e formas, mas que as peas que so sempre as
mesmas, esto presas numa caixa. Claro a educao tambm se baseia no mito
cultural.
A funo dos mitos no denotar uma idia herdada, mas sim, um
modo herdado de funcionamento, que corresponde maneira inata pela qual o
homem nasce e se relaciona em sua vida vivida. A educao exatamente isso,
uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver. O
homem o todo de suas relaes, pois recebe as mesmas influncias
arquetpicas que todos os homens de seu grupo social recebem, mesmo sendo
individual e possuindo caractersticas nicas. Se perder essa participao
arquetpica de seu mundo, o homem est morto, mesmo que no fisicamente, ele
agora um defuncto que no possui mais funes perante a vida.
A didtica da catequese, trazia a definio do demnio ou do Diabo s
mentes indgenas, e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha s
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mentes desavisadas da existncia do Bem e do Mal dos cristos.Nesse embate
cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma
transformao de brancos em ndios e de ndios em brancos, mas isso no foi
possvel, pois ao final, o mito cristo, derrotou Guaixar, Aimbir, Saravaia e todos
os outros diabos, levando com eles, at Dcio e Valeriano.
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RESUMEN
Por entender que la analice de una cultura mucho ms englobante que
otra es hecha de una forma mitolgica y espiritual, se busco en este trabajo
entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo,
haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma. Trata-se ac de los
resultados de la conversin de los indgenas durante el perodo jesutico, de las
cosas buenas tradas a los indgenas por la educacin portuguesa y del
confronto de culturas en la bsqueda por la verdad de uno y de otro en ese
embate de mitos, de tabus e pecados, de Dos e de demiurgos.
Al pesquisar como la visin del Orbis Christianus era la traduccin del
vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Dos era la nica verdad.
Todos deberan estar en ella o llevados por ella al nico mundo verdadero, afora
del cual todo lo ms seria incuria e aberracin. El natural no era ms la
naturaleza Del hombre y si que la palabra de Dos, tal cual transmitida por la fe
cristiana, llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer.
El hombre es, en ese momento histrico, actor cultural de una
complicada relacin originaria de una dicotoma entre el representado mticamente
y el vivido en su realidad cotidiana, no teniendo permisin para conocer el pensar
el Bien, sin antes pensar en el Mal, pues, sin embargo era tiempo de se reconocer
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el enemigo para poder combate a ello, por la gloria y triunfo del Redentor por
sobre el Tentador.
Era generado entonces el embate de mitos, con base en la saga de dos
hroes de polaridades contrarias, el europeo y el indgena, Cristo y el Diablo, San
Lorenzo y San Sebastin de un lado, contra Guaixar y Aimber del otro, el Orbis
Christianus versus la visin arquetpica y el espritu cosmognico indgena.
Es tratada ac, la herramienta de esa educacin imposta a os
indgenas, donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua
indgena, la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de
transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura
indgena.
La educacin es y siempre fue un caleidoscopio, que muestra los ms
diversos y bellos dibujos e formas, mas que las piezas que son siempre las
mismas, estn presas en una caja. Claro la educacin tambin hace su base en el
mito cultural.
La funcin de los mitos no es denotar una idea recibida, pero si, un
modo de funcionamiento, que corresponde a la manera innata pela cual el hombre
nace e se relaciona en su vida vivida. La educacin es exactamente eso, una
manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se
vivir. El hombre es el todo de sus relaciones, pues recibe las mismas influencias
arquetpicas que todos los hombres de su grupo social reciben, mismo siendo
individual e teniendo caractersticas nicas. Se perder esa participacin
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arquetpica de su mundo, el hombre esta muerto, mismo que no fsicamente, ello
ahora es un defuncto que no pos ms funciones a delante de la vida.
La didctica de la catequice, tenia en si la definicin del demonio o del
Diablo y la meta en las mentes indgenas, y eso se haca por la pedagoga del
terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del
Mal de los cristianos.
En ese embate cultural una cierta profeca prcticamente si confirmaba
que habra una transformacin de blancos en indios y de indios en blancos, pero
eso no fue posible, pues al final, el mito cristiano, derrot Guaixar, Aimbir,
Saravaia y todos los otros diablos, llevando con ellos, hasta Dcio e Valeriano.
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SUMRIO
RESUMO _________________________________________________________ 4
RESUMEN ________________________________________________________ 7
SUMRIO _______________________________________________________ 10
Introduo _______________________________________________________ 11
Captulo 1 - A educao como transmisso de cultura, que ensina e altera
costumes.________________________________________________________ 36
Captulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46
Captulo 3 - O mito Cristo___________________________________________ 72
Captulo 4 - Como o Europeu Cristo compreendia os indgenas e a concepo
que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76
Captulo 5 - Como os indgenas teriam recebido a pregao crist e as dificuldades
encontradas na misso de converter ___________________________________ 93
Captulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119
O Auto de So Loureno Guaixar e os outros diabos_____________ 126
Concluso - O resultado do embate desses mitos na educao e na cultura
brasileira________________________________________________________ 145
Apndices ______________________________________________________ 151
Apndice 1 O Auto de So Loureno Jos de Anchieta ________________ 152
Apndice 2 - A missa e os smbolos culturais de transformao do homem____ 197
Apndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208
Apndice 4 - Uma proposta de interpretar psicolgica e miticamente a Trindade 228
Referncias Bibliogrficas:__________________________________________ 238
Outras referncias bibliogrficas:_____________________________________ 239
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INTRODUO
Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos
os fios de sua obra. A abelha me odiosa e o mel para mim o
produto de um roubo
Papini, Un homme fini
Entendendo que, concludo o Mestrado em Histria e Educao,
trabalhando atravs da teoria de Carl Gustav Jung a relao jesutica com os
indgenas no sculo XVI, mostrando a destribalizao da alma indgena atravs da
imposio cultural, deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e
sob a mesma lente.
Pesquisei tericos, filsofos, educadores e historiadores que pudessem
comprovar a tese a ser apresentada.
Busco, no sentido da vida desses homens jesutas, em suas relaes
com os indgenas, a prpria vida desses padres, experienciada e tornada viva
atravs de seus mitos e crenas.
Entendo que a anlise de uma cultura, elaborada por outra muito mais
englobante como no caso da cultura portuguesa em relao dos indgenas,
feita de forma mitolgica e espiritual. Essa espiritualidade leva o olhar para o
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centro do universo, fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma,
conforme j pude demonstrar em A Destribalizao da Alma Indgena , objeto de
minha dissertao de mestrado.
Por entender o trabalho jesutico uma tarefa herclea, composta de
uma saga herica na luta contra a resistncia indgena converso e
catequese, busco a simbologia e a interpretao dessa saga.
Por entender que, mesmo sabendo dos resultados dessa converso no
sentido de destruir a alma indgena, houve como resultado desse confronto de
culturas, um embate pela busca da verdade, de sentido, de significao atravs
dos tempos que alimentavam as mentes ainda brias de medievalismo e das
experincias da alma do mato , busco essa mtica, esse relato de embates.
Embate de mitos. Embate de tabus e pecados, de Deus e de deuses. Enfim, da
experincia de vida.
Quando utilizo a palavra embate em vrios momentos deste texto,
posso estar sendo at mesmo mal compreendido, pois muitos leitores podero
afirmar que as culturas quando se encontram, se permeiam, se harmonizam.
Podero afirmar que sempre no encontro de duas culturas, sobrar para os dois
lados, aculturaes, costumes, expresses lingsticas, lendas antigas e as lendas
que surgiro desse encontro. Claro que sim, no tenho dvidas quanto a isso.
Mas, no essa a inteno. Minha proposta a de deixar claro que em
se tratando dos mitos culturais, em se tratando do cristo europeu, ainda o
portugus mais ameno que o espanhol, houve sim um embate de mitos, isto , um
choque impetuoso de culturas, composta de oposies e resistncias (s vezes
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mais passivas ou pacficas, porm no menores), porm sempre se forma a
comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenas dos indgenas
brasileiros.
Por mais que resistissem os brasis, o Orbis Christianus era violento
quanto natureza real do homem.
A viso do Orbis Christianus era a traduo do viver na Europa
quinhentista. A f em Deus era a nica verdade. Todos deveriam estar nela ou
serem levados por ela ao nico mundo verdadeiro, fora do qual tudo o mais seria
injria e aberrao. O natural no era mais a natureza do homem e sim que a
palavra de Deus, tal qual transmitida pela f crist, chegasse aos confins da terra
conhecida e das terras a se conhecer.
Atravs dessa viso de mundo pudemos assistir instituio de novos
contedos simblicos nas terras recm-descobertas, articulados de maneira
extremamente eficaz, entre a realidade crist e o imaginrio europeu quinhentista.
Os guardies do sagrado , como foram chamados os clrigos,
devotam suas vidas com o nico intuito de uniformizar as conscincias e converter
as almas pertencentes a Sat e seus ajudantes, garantindo a hegemonia das
crenas e a desculturao de qualquer povo que no vivesse os bons costumes
e no pertencesse ao rebanho de fiis .
O sculo XVI denotou, na viso crist, que o mundo se encontrava
dividido em duas partes bastante distintas:
Os que cultivavam o Bem e as virtudes
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Os que cultivavam o Mal e seus vcios
Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginrio cristo :
O mundo se orienta como o portal de uma igreja gtica: no
alto e no meio encontra-se Deus, rodeado de um coro de anjos, com
os santos e os justos prestando-lhes homenagem; abaixo esto os
mortais e, na parte inferior ou espreita, os espritos malignos, que
possuem formas horrveis ou, pelo menos, enigmticas e cmicas.
(NOGUEIRA, 2000: 39).
O homem , nesse momento histrico, personagem de uma complicada
relao originria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido
em sua realidade cotidiana, no podendo conhecer ou pensar no Bem, sem antes
pensar no Mal, pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combat-lo,
pela glria e triunfo do Redentor sobre o Tentador.
Em contra-partida a essa postura mtica crist, surgem nas relaes os
contedos da psique primitiva dos indgenas brasileiros, gerando costumes,
padres de comportamentos, remexendo as sombras 1 jesuticas, influenciando
1 A Sombra enquanto arqutipo -Conforme nos orienta M.L. von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizao da Alma Indgena (CARNOT, Sady, 2005.p.55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido, descendo s profundezas do nosso prprio mal, e tornando o indivduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras, nada inocente nem tolo, mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgir.O arqutipo Sombra , de todos os contedos arquetpicos, o que fica mais prximo ao Ego, cuja essncia, est mais em contato com a tona, mais superficial, sendo formada por componentes que j fizeram parte um dia do presente do indivduo, j fizeram parte do seu cotidiano, mas que foram reprimidos por no pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente, ou por no terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a conscincia e permaneceram em latncia dentro do Inconsciente Pessoal.
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com suas resistncias de aculturao, todo um contedo arquetpico europeu, que
veio dar origem cultura brasileira.
Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros,
cartas de jesutas a seus superiores e irmos da Companhia de Jesus, alm da
utilizao das simbologias mticas de nossos indgenas na elaborao de tticas
de converso, presentes nos aldeamentos, na supremacia dos sacramentos, na
pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta, que os mostra atravs dos
autos, como o de S. Loureno e o da Pregao Universal, entre outros.
Nesses autos, nota-se claramente a noo de bem e mal que era
passada de forma determinista aos indgenas:
O Bem, representando o fiel, o santo, o heri, o salvador, os padres ou
abar, a personagem Karaibeb, grande cacique, que aliado de Tup e dos abar
na defesa das novas leis e dos novos costumes, mostram o erro de seguir os
maus costumes das tradies e das falas de Guaixar e Aimbir.
O Mal, representado tambm por grandes chefes como Guaixar e
Aimbir, o diablico, o prprio demnio, bebedor de cauim, que gosta de fumar e
defender os costumes da tradio como danar, enfeitar-se, tingir o corpo de
vermelho do urucum ou do preto da jemona (una = preto).
Enfim, grande embate de mitos, baseado na saga de dois heris de
polaridades contrrias, o europeu e o indgena, Cristo e o Diabo, So Loureno e
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So Sebastio de um lado, contra Guaixar e Aimber do outro, o Orbis
Christianus versus a viso arquetpica e o esprito cosmognico 2 indgena.
Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experincia,
definido como um conhecimento que nos transmitido pelos sentidos, como um
conjunto de conhecimentos individuais ou especficos que constituem aquisies
vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade, quer no sentido
metafsico, quer no sentido de aculturao.
A cada experincia o indivduo se expe e soma a si o resultado do
ocorrido, do fato, do resultado. Assim, experincia a soma das situaes que
influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histria da
humanidade.
Na imposio cultural do portugus do sculo XVI sobre o indgena,
muitas vezes a renovao era feita sob presso, sob coero, em que o algo
transformado, o indivduo transformado era sem que a experincia pudesse ser
acumulada e sim imposta, no permitindo ao gentio a interao com sua prpria
vida e em relao ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver.
Essa soma, que Dewey chama de renovaes, so a extenso da
experincia do indivduo e da espcie, no entanto vida, para o ser humano,
consiste em costumes, crenas, instituies, vitrias e derrotas, isto a
experincia .
2 do grego kosmogonia - A origem ou formao do mundo, do universo conhecido. Parte de uma cosmologia, que trata especificamente da criao e formao do mundo. Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo.
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Poderia dizer que o homem vive em comunidade, nas relaes
pessoais, em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade o meio
pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns. No entanto, na relao entre
mitos indgenas, total e completamente inserido, no que falaremos mais tarde, no
mito filosfico e a imposio do mito cristo, considerado numa relao com a
racionalidade, pouco de comum havia entre esses dois povos to distintos. Por um
lado, o aguerrido, o natural, o nu e o livre e, do outro, dogmas, pecados brios de
medievalidade, impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam .
A educao como forma de transmisso de cultura suprime a distncia
entre as idias dos mais velhos e a nsia de conhecer e modificar dos mais novos
e imaturos. No entanto, perguntaria a esses indgenas se as idias dos
considerados mais velhos, mais importantes, at mesmo com poderes divinos,
como se os tivessem os padres jesutas, no tinham uma distncia to grande de
suas prprias idias a ponto de que essas idias no pudessem ser entendidas,
tal como as noes de pecado, de cu e inferno ou mesmo de um deus to cruel a
ponto de matar toda uma tribo atravs da gripe ou da varola, para mostrar que
esse Deus deveria ser louvado.
No por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo
mesmo fim comum, que se pode dizer que um indivduo vive em comunidade,
necessrio que se possua o conhecimento desses fins comuns, sejam eles seus
deuses, seu governo, seus costumes e seus anseios. Isso sim forma uma
comunidade. Uma comunidade aquela que vive no mesmo mito, mito esse que
lhe explica a vida no explicvel.
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Toda comunicao educativa, pois receber comunicao, receber
educao adquirir experincia que vir a modificar seu modo de vida. Quando o
modus faciendi de um indivduo modifica o modus vivendi de sua comunidade, ele
est fazendo cultura, ele est educando. Ensinar a caar educar, ensinar a
danar educar, fazer um indivduo receber um novo mito educar, assim,
ensinar a roubar e a matar tambm educar, fazer adorar a um novo deus,
tambm educar.
Quando se fala em educao formal, porm, estamos falando de como
examinar se as aptides daquilo que foi passado de um indivduo para outro para
habilit-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum. na
educao formal escolar, que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa
vida comunitria, isto se o indivduo est adaptado e atuando na vida comum, se
est avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica
ainda a eficcia dessa transmisso.
A educao formal em suma avalia a eficcia daquilo que foi passado
em contedo programtico, e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e
contar criada pelos jesutas no Brasil Colnia.
No entanto, nas sociedades tribais ou grupos sociais menos
desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal, porm
encontramos vivncias de ritos de passagem, nos quais os mitos so fortes
ferramentas dessa educao que considero tambm formal, porm no seriada e
programada.
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Como ferramenta dessa educao imposta aos indgenas, os jesutas
foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a lngua indgena, a Lngua Geral
de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua
cultura e de demonizar os conceitos da cultura indgena.
Novamente afirmo ter clara a interpenetrao de valores e as tradues
desses valores em ganho e perda para ambos os lados, no entanto, tento mostrar
aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a lngua indgena como ferramenta de
catequese, como uma forma de acesso e penetrao na educao indgena e da
possibilidade com isso, da imposio de conceitos da Europa seiscentista.
Habilidade houve tambm por parte desse jesuta quando criou atravs
dos autos, a experincia vivida pelo indgena durante os espetculos teatrais
substituindo at mesmo a lngua falada, por idias contidas na gestualiadade
conforme nos mostra os parmetros do teatro greco-romano3, base dos autos de
Anchieta. O corar, o sorrir, franzir o cenho, os movimentos expressivos que
3 Pelo teatro greco-romano, (CALLOIS, 1985) a influncia aplicada platia a seguinte: Morphos: a relao do ator com o espao cnico e com a platia, pois Morphos a regra, a forma e o teatro, o jogo de transformar. Mimsis: a relao do ator e da personagem com o prover a si mesmo, pois Mimsis a mmica, a representao. Define a bandeira, o lado pelo qual se defende ou ataca, personagem versus platia, ator versus ator, personagem versus personagem, ator versus platia e personagem versus platia. Agon: a relao da personagem com a agressividade, pois o Agon o dilogo, a luta, o estranhamento entre dois lados, novamente, personagem versus personagem, personagem versus platia, platia versus personagem. Lusus: a relao da personagem com o que alimenta, pois Lusus a iluso, o sonho. onde se tem a idia de que quando o "meu lado" ganha ou perde, quem ganha ou perde sou eu.Ilinx: a relao da personagem com a loucura, onde Ilinx a vertigem, o risco, o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus platia, etc. Ala: a relao da personagem com o material, com o fsico, com os resultados, na qual o Ala, o aleatrio, o randmico, o que no nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda. Platia versus personagem, personagem versus platia, ou personagem versus personagem, etc.
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realmente comunicavam as idias a serem transmitidas, incluindo-se a formao
espiritual profunda, onde o mito e crenas crists tiveram uma grande participao
na formao e definio do rol de atividades da comunidade que se formava a
partir da.
Devo considerar que a comunidade, o meio social se envolve com o
meio ambiente e digo que educar de certa forma um ato ecolgico, pois fora os
laos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo . Quem deu
certo na relao brasis e portugueses? Seria ecologicamente correto seguir os
costumes da Santa F Catlica, afinal, era tudo uma questo de sobrevivncia
para o indgena, mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos
colonizadores.
No poderia considerar essa falta de interesse dos indgenas pelas
coisas de Deus ou da Coroa, como incapacidade para entender o que era Lei, F
ou Rei, mas como uma imaturidade, como uma capacidade a ser desenvolvida.
Sendo a educao vinda da cultura portuguesa, originria de um
depositum
fechado e definido como correto o seu saber, necessrio realmente
que o indivduo que aprende seja um recipiente dependente e plstico, pois aos
moldes da Filosofia escolstica, tudo o que se recebe, se recebe aos moldes do
recipiente . Os indgenas eram esse recipiente.
No entanto, os indgenas no eram essa argila mole, ao menos no
todos, pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitao dos novos
costumes impostos. O homem se acostuma a qualquer situao e se adapta a
qualquer meio ambiente, mas muitas vezes, antes que isso ocorra, o desconforto
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e a resistncia, a aceitao pura e simples, ficam evidentes. Essas resistncias
ficaro mais claras no captulo mais adiante em que mostro como os indgenas
teriam recebido a pregao crist.
Outro ponto importante a ser mostrado quanto aos aldeamentos
jesuticos, onde o ndio foi obrigado a uma adaptao , a essa citada aceitao de
costumes. Os jesutas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela
concepo de bons propsitos, fidelidade de interesses e reciprocidade de
simpatia, mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivncia
daqueles que j no eram mais ndios e no conseguiram, pela aculturao
imposta, serem tambm brancos e portugueses, onde a homogeneidade cultural
no existiu e no existe at hoje nas tribos de nossa atualidade.
Como afirma Dewey, (1936: p.132), uma sociedade indesejvel a que
interna e externamente cria barreiras para o livre intercmbio e comunicao da
experincia. A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicao
da experincia, isto , o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as
coisas e a manuteno desse poder a qualquer custo.
H que se entender que enquanto o portugus do sculo XVI trazia a
verdade revelada recebida atravs de leis instveis, isto , aquelas que podem ser
mudadas conforme a deciso do grupo social que as criou, os gentios seguiam
as leis estveis, as lei naturais, que os fazia pensar o conhecimento de forma
distinta de seus protetores . A filosofia explica o mundo para o filsofo que a
pensa, respondendo s suas prprias perguntas. As respostas s perguntas do
filsofo atendem aos anseios do grupo e da poca em que ele vive, pois a
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resposta s perguntas de uma sociedade, de uma cultura, e, se o conceito
persiste, porque persistem as perguntas na conscincia dessa sociedade.
A verdade revelada era imposta, pois era atravs de um novo mito que
se dava o novo conhecimento ao gentio . O mito no um mito, e sim a prpria
verdade 4. Essa era a nova experincia em que o indgena do sculo XVI se
encontrava, experincia essa que para ter valor real, deveria fazer os brasis se
afastarem da dor ou se aproximarem do prazer. S essas duas coisas movem um
indivduo no Universo a que pertence.
Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a
que pertencia em relao nova natureza apresentada, foi necessrio ao indgena
criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade, afinada
com seu prprio conhecimento de mundo. Um novo mito em que ele deveria
chamar o padre de pai e de salvador. No havia para o indgena, a diviso entre o
mundo real e o mundo mtico, e sim um nico olhar que se espalha em todas as
direes de sua existncia, atravs de sua vida vivida e possvel.
Assim viviam suas vidas, da forma que lhes foi possvel, entre um
arremedo de branco e uma caricatura de ndio.
No homem o possvel se imprime sobre o real.5
4 GUSDORF, 1959: p.13 5 GUSDORF, 1959: p.15
23
No parece que esses homens chamados gentios tivessem o
interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esttica
para trabalhar com suas fantasias e esperanas subjetivas, isto experienciar.
O homem moderno, atravs de seu racionalismo, sentiu aos poucos o
esfriamento de sua psique primitiva e, por conseqncia, perdeu muitas de suas
iluses, pois no mais entra em contato com suas experincias que so o conjunto
e de conhecimentos, individuais ou coletivos, especficos ou no, e que constituem
aquisies vantajosas, que foram acumuladas historicamente por toda a
humanidade, sejam elas mticas ou racionais.
Jung nos ensina em suas obras, que estamos envolvidos, por exemplo,
com a experincia de Deus de uma forma to profunda e universal, que por mais
que venhamos a questionar esse mito ou essa crena, temos a imagem dessa
experincia dentro de ns e por isso, no temos como acreditar ou deixar de crer
nessas imagens. O mesmo acontecia com o Cristo portugus quinhentista, mas
claro e bvio, que essa experincia era distinta para os indgenas dessa poca.
Por mais que se quisesse impor uma esttica cultural, deveramos perguntar:
Tup era um deus diferente de Deus ou a experincia era a mesma?
Mas o portugus do Sculo XVI que trazia em suas caravelas e
bagagens, todos os conceitos culturais, mitos e crenas, impem aos brasis,
parmetros novos de vida, cumprindo a qualquer custo uma misso herica de
semear a palavra de Deus pela Terra, fazendo cumprir uma profecia, dentro de
concepes mentais rgidas, inflexveis, racionais e complexas.
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Vir o tempo, em um futuro longnquo, em que o mar
Oceano quebrar as suas correntes; e uma vasta terra ser revelada
aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se
chamava Tifis, e que foi o guia de Jaso, descobrir um novo mundo;
ento Thule (a Islndia) no ser a ltima das terras.
LUCIUS ANNAEUS SNECA, Media, Sculo I da era crist6.
As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e
frustraes sobre o imaginrio portugus e espanhol dos sculos XV e XVI, mas
tambm a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraso
Terrestre,
...o lugar onde a Divina Providncia havia plantado o
Paraso Terrestre, mito essencial e fundamento doutrinrio dos
mundos judaico-cristo e mulumano, lugar inicial onde o Criador
havia decidido criar a espcie humana.7
A faanha dessas descobertas, tanto tcnica como humana, carregava
dentro das caravelas, a crena de que os atores sociais dos descobrimentos
haviam encontrado o pas das lendas, o Paraso Terrestre, o reino das Amazonas,
as minas do Rei Salomo, as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso
palcio com telhados de ouro de Cipango9.
6 Magasich-Airola& Beer, 2000, p.15 7 idem p.34 8 O vocbulo Armagedon composto de duas palavras: Ar em hebraico significa Plancie e Megiddo uma localidade ao Norte da Terra Santa, prxima ao monte Carmel onde, antigamente Barrack derrotou os exrcitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal. (Apo. 16:16, 17:14; Juizes 4:2-16; 1 Reis 18:40). A luz destes eventos bblicos, Armagedon simboliza a derrota das foras anti-religiosas por Cristo. Os nomes Gog e Magog no captulo 20, lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invaso de Jerusalm por um nmero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das
25
Acreditava-se entre os portugueses e espanhis que os mitos dessas
terras se encontravam agora, mo de quem navegasse, de quem ousasse terras
longnquas e enigmticas, desvelar seus mistrios e atravessar o mare oceano
innavigabile . Dessa forma muitas das histrias fantasiosas que povoavam a
mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a
serem conquistadas e vieram, juntamente com o mito cristo, com o Diabo, dentro
das caravelas, misturadas ao desejo de expanso do comrcio e da busca de
riquezas, povoando as sombras desses conquistadores.
Apenas como lembrana, os mitos agem sobre a mente humana de
forma a incitar aes e desencadear moldes de conduta, de pensamento e de
sensibilidade. Foi dessa forma, portanto que os conquistadores partiram para suas
buscas. Uma busca baseada no comrcio e expanso, sim, mas de forma latente,
na busca de seus mitos.
Assim, cada terra descoberta, cada povo encontrado, cada riqueza
desvelada, era considerado de propriedade da natureza e por isso, era de quem
encontrasse, quer por pirataria, quer por ordem de um reino, quer passando a ser
propriedade de um rei como descendente direto do divino, quer ad majorem Dei
gloriam, mesmo que isso significasse um etnocdio de nmeros altssimos durante
terras de Magog (sul do mar Cspio; Ezeq. cap. 38 e 39; Apo. 20:7-8). Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias. No Apocalipse, o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (i.e, da Igreja) e a destruio destes regimentos pelo fogo Celestial, deve ser entendida pela derrota total das foras contrrias a Deus, humanas e demonacas, pela segunda vinda de Cristo. (Obtida em http://2112hp.yoll.net/apocalipse2.htm em 25/04/05) 9 antigo nome da ilha do Japo, antes de conhecido pela Europa crist
http://2112hp.yoll.net/apocalipse2.htm
26
todo os anos quinhentistas, conforme j pude demonstrar em A destribalizao da
Alma Indgena Brasil Sculo XVI uma viso junguiana.10
Obviamente, essas faanhas dos descobrimentos, trouxeram ao Orbis
Christianus grande avano tecnolgico no ramo dos transportes, da navegao e
do comrcio, mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento
geogrfico e cartogrfico do planeta de ento, cujos mapas, por mais atualizados
que estivessem, baseavam-se to somente na geografia bblica da Idade Mdia.
Era o Velho Mundo, nos sculos XV e XVI, vido de modernidade, mas
persistia na mente dos portugueses e espanhis, a impregnao de mitos. Existia
como produto social, uma turva fronteira entre o real e o imaginrio, causada pela
verdade revelada das Escrituras. H que se entender, que aqueles autores
primeiros, que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de
desertos e de reas inspitas e tiveram a viso de um local ednico como sendo
de frteis terras, de guas abundantes, onde tudo nascia e crescia sob a mo de
um jardineiro celestial:
Ento plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do
oriente, no den; e ps ali o homem que tinha formado. E o Senhor
Deus fez brotar da terra toda qualidade de rvores agradveis vista
e boas para comida, bem como a rvore da vida no meio do jardim, e
a rvore do conhecimento do bem e do mal.
E saa um rio do den para regar o jardim; e dali se dividia
e se tornava em quatro braos. O nome do primeiro Pisom: este o
que rodeia toda a terra de Havil, onde h ouro; e o ouro dessa terra
bom: ali h o bdlio, e a pedra de berilo. O nome do segundo rio
10 CARNOT, 2005
27
Giom: este o que rodeia toda a terra de Cuche. E o nome do terceiro
rio Tigre: este o que corre pelo oriente da Assria. E o quarto rio
o Eufrates.11.
Mas tambm proibiu, aps a expulso de Ado, o homem de encontrar
esse Jardim ednico:
O Senhor Deus, pois, o lanou fora do jardim do den para
lavrar a terra, de que fora tomado. E havendo lanado fora o homem,
ps ao oriente do jardim do den os querubins, e uma espada
flamejante que se volvia por todos os lados, para guardar o caminho
da rvore da vida.12.
Encontraram? Vejamos um relato de Cristvo Colombo:
...So esses grandes indcios do paraso terrestre, porque
o lugar conforme ao que pensam os santos e os sagrados telogos.
E os sinais so igualmente muito conformes, pois jamais li ou ouvi
dizer que tamanha quantidade de gua doce pudesse estar no meio
da gua salgada ou na sua vizinhana; vem ainda em apoio a tudo
isso a temperatura extremamente agradvel. E se essa gua no vem
do Paraso, seria ainda maior maravilha, porque no creio que se
conhea no mundo rio to grande e to profundo.13.
Chegaram a um local admico sim, com vegetao abundante, com
guas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu
11 (Gnesis, 2, 8-14) 12 (Gnesis, 3, 23-24) 13 Magasich-Airola& Beer, 2000, p.57
28
conhecia. Talvez um arremedo do Jardim, mas enfim, um jardim, bom para a
explorao, e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo.
Corpos diferentes e muitas vezes nus, exuberantes como os indgenas
da Ilha de Vera Cruz, com msticos costumes, com lendas fabulosas, porm
distintas daquelas que o imaginrio cristo pudesse relatar. Nem cinocfalos14,
nem hordas malditas, mas guerreiros aguerridos, em parte dceis e prontos para
serem convertidos em ovelhas do Senhor, em parte bravios e indispostos a serem
conquistados.
No se pode numerar nem compreender a multido de
brbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil;
porque ningum pode pelo serto dentro caminhar seguro, nem
passar por terra onde no ache povoaes de ndios armados contra
todas as naes humanas, e assim como so muitos permitiu Deus
que fossem contrrios uns dos outros, e que houvesse entre eles
grandes dios e discrdias, porque se assim no fosse os
portugueses no poderiam viver na terra nem seria possvel
conquistar tamanho poder de gente.15
Ou ainda:
E so muito inclinados a pelejar, e muito valentes e
esforados contra seus adversrios, e assim parece coisa entranha
ver dois, trs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes
assobios e grita frechando uns aos outros; e enquanto dura esta
14 Homens com cabea de co, seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo, (citados em Apocalipse, 20, 7-8) 15 GNDAVO,1980:p.12)
29
peleja nunca esto com os corpos quedos meneando-se de uma parte
para outra com muita ligeireza para que no possam apontar nem
fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes
as frechas pelo cho e servi-los enquanto pelejam. Gente esta muito
atrevida e que teme muito pouco a morte, e quando vo guerra
sempre lhes parece que tm certa a vitria e que nenhum de sua
companhia h de morrer. E quando partem dizem, vamos matar: sem
mais considerao, e no cuidam que tambm podem ser vencidos. 16
Era muito comum, porm que o conquistador tivesse a viso de que os
povos dessas terras recm descobertas os vissem como sendo de origem divina.
Colombo, assim contava:
Disseram-se muitas outras coisas que no pude
compreender, mas pude ver que estava maravilhado com
tudo...(dirio, 18.12.1492)... so crdulos, sabem que h um Deus no
cu, e esto convencidos de que viemos de l ... (dirio,
12.11.1492)... achavam que todos os cristos vinham do cu, e que o
Reino de Castela ali se encontrava, e no neste mundo...(dirio,
16.12.1492) 17.
Ou como escrevia Nbrega em suas cartas:
Todos querem e desejam ser Cristos; mas deixar seus
costumes lhes parece spero. Vo, contudo pouco a pouco caindo na
verdade.18
16 idem, p.13 17 TODOROV, 2003, P.57 18 NBREGA, 1988: p. 114 Carta aos Padres e Irmos - 1551
30
Os Gentios aqui vm de muito longe a ver-nos pela fama, e
todos mostram grandes desejos. muito para folgar de os ver na
doutrina, e, no contentes com a geral, sempre nos esto pedindo em
casa que os ensinemos, e muitos deles com lagrimas nos olhos.19
Esto espantados de ver a majestade com que entramos e
estamos, e temem-nos muito, o que tambm ajuda. 20
Falamos do europeu, do portugus e do espanhol, porm nosso foco,
deve e est voltado para o cristo portugus.
Esse portugus que no sculo XVI tinha essa imaginao fervilhante,
cheia de contedos mticos, que possua um falar livre sem os rebuos dos
letrados, enfim, o povo portugus quinhentista, que seguia leis severas de um
reino corporativo, onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907), As cominaes
penais no conheciam piedade. A morte expiava crimes tais como o furto do valor
de um marco de prata. Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo, e o
confisco de todos os bens 21
Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada
com referncia ao sagrado e aos preceitos da Santa F Catlica, onde a presena
ou onipresena divina acontecia em toda e qualquer circunstncia, em qualquer
situao.
19 NBREGA, 1988 : p. 115-116 Carta aos Padres e Irmos - 1551 20 NBREGA, 1988: p. 75 carta ao Padre Mestre Simo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU, 1907-2004:p.46)
31
Essa organizao cultural se dava sob a forma de um corpo social
definido como o Reino, que se entrelaava com outro corpo formado pela Igreja,
onde qualquer mediao seria feita por esses corpos sociais e em ltima instncia,
Deus era a referncia. Paiva22 nos coloca que essa constituio social se dava
como um corpo, em graus superpostos: o corpo social, o corpo mstico de Cristo, o
universo.
Culturalmente, a sociedade portuguesa do sculo XVI se
caracterizava pela cimentao religiosa de todo o seu fazer. A ltima
explicao do por que as coisas eram tais quais eram estava na
religio, ou seja, na sua referncia ao sagrado. O poder do rei, a
organizao da sociedade, as instituies, os valores, os costumes,
as expresses, tudo enfim tinha sua razo de ser na sacralidade, tudo
tinha um carter religioso. 23
Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa, pois tudo,
absolutamente tudo, o comrcio, os estudos, as conquistas, todos ordenavam
seus esquemas atravs da dogmtica e da apologtica religiosa, onde se
chamava de Cincia, rainha de todas as rainhas, a Teologia.
Os valores, os costumes, a compreenso de vida estava imersa no mito
cristo, onde a ltima realizao se d em Deus 24, mito que ao longo da Idade
Mdia europia se elaborou, fundado na compreenso de uma ordem nica que
se funda em Deus, do qual todas as instncias, subordinadamente, se plenificam,
22 Religiosidade e Cultura : Brasil, Sculo XVI, uma chave de leitura 23 PAIVA, 2002: p. 3 24 Religiosidade e Cultura : Brasil, Sculo XVI, uma chave de leitura
32
assim se pondo25, garantindo ao Rei o direito a proeminncia e conquista e
sujeio de qualquer povo de qualquer terra conquistada.
Ficava assim mais fcil se compreender o Poder, pois ele estaria
concebido fundado na Vontade de Deus e por conseqncia na do Rei.
O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justia e o rei perfeito
era o juiz perfeito. Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa
dinastia nunca gerava um mau rei e, portanto um bom representante de Deus na
Terra.
Porm, a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o
tempo, dando at mesmo possibilidades de trocas de reis por no se cumprir um
bom reinado. Era a forma de garantirem a permanncia no reinado ou a
legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro, principalmente se o anterior
regia sem competncia, com tirania ou descaso. Ao levantar essa situao de
troca de rei, ou de afirmar-se no reinado, invocavam o Direito das Gentes 26.
Dessa forma, o direito tambm sujeitava o Rei s leis, leis essas que na verdade
ao receber a coroa, jurou defender, como nas Ordenaes Afonsinas, por
exemplo:
Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim
razoaveis, como aquellas, que carecem de razom, non quis que
fossem iguaes, mas estabeleceo, e hordenou cada hua sua virtude, e
poderio de partidos, segundo o grao em que as ps; bem assy os
25 idem 26 XAVIER & HESPANHA, 1992, p.128
33
Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger, e
governar o povo nas obras que ham de fazer, assy de Justia, como
de graa, ou mercees devem seguir o exemplo daquello, que ele fez,
e hordenou, dando, e distribuindo non a todos por hua guisa, mais a
cada huu apartadamente, segundo o gro e condion, e estado de
que for.27
Essas mesmas Ordenaes dividiam a sociedade em estratos: os
defensores, os que defendem o povo; os que rogam pelo povo, os oradores;
dividindo ainda em estados limpos (letrados, lavradores e militares) e estados vis
(oficiais mecnicos, ou artesos) e dos privilegiados (que pela milcia ou pela Arte
se livraram das profisses srdidas) 28.
Em todo esse universo religioso que estavam os fatos gerados por
seus atores sociais, seus costumes, seus ritos e smbolos, suas vestimentas e
linguagem, tudo fazendo a cultura do portugus cristo quinhentista.
O pensamento social, poltico medieval dominado pela
idia da existncia de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os
homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objetivo
ltimo, que o pensamento cristo identificava como o prprio
Criador29.
A sociedade portuguesa, para a glria e satisfao de um imaginrio
eminentemente cristo, estaria no mundo para realizar os planos do Criador,
portanto, tudo e todos que no pudessem caber na inquestionvel obedincia e
27 XAVIER & HESPANHA, 1992, p.128 28 idem, p.132 29 idem, p.122
34
pertena ao cristianismo, somente poderiam ser avaliados como inferiores, como
infiis e hereges, tal qual as bruxas, os rabes, os judeus, to mancomunados
com o Diabo.
Chega ento esse Portugal s Terras Braslicas, com o esprito avivado
com relao aos sentimentos de cumprir a misso de propagar a f crist, com um
intuito exorcista de eliminar os demnios e fantasmas que, atravs de milnios
teriam povoado estes mundos remotos, onde a fora de Deus se batia com as
artimanhas do Diabo e ocupada por seres infiis e de prticas pags, mas ligado
ao racionalismo portugus que se desenvolvia, prometia ainda essa terra, o
fornecimento de material para explorao e o comrcio.
A convivncia do europeu com os nativos da frica, sia e
Amrica significou, para esses povos, castrao e imposio cultural,
tal o etnocentrismo que a caracterizava, tal a racionalidade que
conduzia sua poltica, tal sua fora militar.30
Chegam ento esses portugueses, fedentos e escalavrados de feridas
de escorbuto31 com a inteno de transformarem indgenas esplendidos de vigor e
beleza32 em querubins, caciques em Guaixar e jovens adolescentes em outros
tantos diabos , pois que se defrontam com formas diferentes de amor, de mundo,
de vida e morte e, acreditavam piamente que essa era uma forma diablica de
30 PAIVA, 2002: p. 46 31 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro
A Formao e o Sentido do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 32 idem
35
viver, uma ofensa obra de Deus na terra, por isso no podia deixar de ser banida
e extirpada como um tumor que ameaava a Glria do Senhor 33.
33 CARNOT, 2005, p.120
36
CAPTULO 1 - A EDUCAO COMO TRANSMISSO DE CULTURA, QUE ENSINA E ALTERA
COSTUMES.
Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de
mestrado, por ter vindo de uma rea de investigao como a Psicologia, parto do
princpio que a converso e na educao transmitida aos indgenas houve
diversas falhas, como j pude mostrar em a Destribalizao da Alma Indgena,
falhas essas que existiram pelas vivncias dos atores sociais em seu tempo e em
resposta a suas ansiedades. Tenho constantemente pensado que entre essas
falhas, qual a mais importante na educao, na converso e na catequese.
Seria um erro didtico? Seria um erro baseado no depositum
da
verdade revelada onde o jesuta professava suas concepes e conceitos?
Ser que esse erro se encontra no indgena, no receptculo desse
depositum que talvez no estivesse apto a receb-lo?
Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vcuo.
No como uma tabula rasa, mas como um vcuo disponvel a descobertas, a
formas e cores, a necessidades, a curiosidades. Seriam a curiosidade e a
necessidade, o prprio vcuo?
37
Parto desse ponto para afirmar que os vcuos pr-existem, para que as
formas e contedos possam vir a existir. O vcuo a Idia, a Concepo Primeira,
a Fecundao Csmica, assim como Primeiro foi o Verbo .
C.G. Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais
psquicos que existem na conscincia de um indivduo, inclusive as percepes
sublimais34 e, principalmente, aqueles materiais que no alcanaram o limiar da
conscincia, mas que serviro para que o indivduo receba tudo aquilo que poder
advir com a aculturao que vir a acumular em sua vida.
A educao seja ela a de transmisso de cultura ou a educao formal,
escolar, com a funo de nos colocar em frmas , nos d preenchimento desse
vcuo, sem que faa entender a necessidade ou que nos permita buscar a
curiosidade de desvelar o vu que cobre o universo das coisas, as essncias. O
homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma
necessidade.
Assim a educao, nos oferece importantes informaes e conceitos,
sem que nos provoque a busca.
Em Les secrets de la maturit, Hans Carossa (Apud Bachelard-1990, p.7)
diz: o homem a nica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior
34 sublimais
origem sublimao = lat. sublimato,nis 'ao de elevar, exaltar', pelo fr. sublimation (1274) 'elevao, exaltao', (1856) 'ao de purificar', (1904) - modificao da orientao originalmente sexual de um impulso ou de sua energia, de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade; transformao de um motivo primitivo e sua colocao a servio de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa, artstica e intelectual so exemplos tpicos de sublimao.
38
de outra . A palavra vontade usada por Carossa, me faz buscar outros conceitos
como desejo, curiosidade, af, teso, necessidade. essa vontade de olhar para
o interior das coisas que torna a viso aguada, penetrante, pronta para descobrir
uma inteno, uma utilidade, uma funo. o violar o segredo, tal qual uma
criana que abre seu brinquedo para ver o que h dentro. Ns adultos, por falta de
memria de nossa infncia, queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma
inteno destrutiva. Mas a criana, o humano em ns, busca ver alm, ver por
dentro, em suma, escapar a passividade da viso 35.
O homem aculturado, educado , olha para essa estrutura externa e
no v a profundeza do brinquedo, mas a criana, possuidora de um vcuo ainda
no preenchido pela histria, faz com o brinquedo o que a educao no sabe
fazer e a imaginao realiza magistralmente, seja como for, descobre sua
profundidade, sua substncia, seu oculto.
Capta a criana, imagens to numerosas, to variveis e to confusas
que despertam cada vez mais as nuanas sentimentais de sua curiosidade. Toda
doutrina da imagem acompanhada, em espelho, por uma psicologia do
imaginante 36.
Assim, encontro um dos enganos da educao, o no preencher o
vcuo humano com o desejo, com a vontade e sim com o que as concepes
adultas pensam ser importantes.
35 BACHELARD, 1990,p.8 36 idem
39
Mas, se procurarmos outras falhas com relao ao ensinar e ao
aprender, esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da
profundidade das coisas de forma dogmtica, que tolhe brutalmente toda
curiosidade voltada para o interior das coisas 37. Para esses filsofos da educao
que assim pensam, a profundidade das coisas iluso, que a criana pergunta,
mas que no deseja realmente saber e que, se lhe explicarem superficialmente,
satisfaro sua necessidade.
Em verdade, essas questes no perturbam esses filsofos. Nessas
questes que a a educao no sabe fazer amadurecer, a filosofia condena o
homem a permanecer, como ele diz, no plano dos fenmenos .38 Tudo no passa
de aparncia. Intil ir ver, mais intil ainda imaginar, mas se esquece que a
natureza esconde como funo primria da vida, protege, abriga, guarda,
reserva e, esse interior tem funes de trevas, de guardar aquilo que a curiosidade
ou a necessidade necessitam iluminar.
Magie, uma personagem de Henri Michaux39, em um de seus conselhos
diz: ponho uma ma sobre a mesa. Depois ponho-me dentro dessa maa. Que
tranqilidade . Flaubert40 dizia a mesma coisa: a fora de olhar um seixo, um
animal, um quadro, senti que eu estava neles .
Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas.
No poderia ser a educao uma poesia?
37 idem, p.9 38 idem, p.9 39 BACHELARD, 1990 apud, p.11 40 BACHELARD, 1990 apud, p.11
40
Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma;
Proponho a todos a abertura dos alapes interiores, uma viagem na espessura
das coisas, uma invaso de qualidades, uma revoluo, ou uma subverso
comparvel quela operada pela charrua ou pela p, quando, de repente e pela
primeira vez, so trazidos luz milhes de fragmentos, lamelas, razes, vermes e
bichinhos at ento enterrados .
A educao e sempre foi um caleidoscpio, que mostra os mais
diversos e belos desenhos e formas, mas no me conta que por mais que mude,
as peas que so sempre as mesmas, esto presas numa caixa. A mim, agrada
mais o microscpio ou a luneta, que so instrumentos da curiosidade.
A educao conserva em si a manuteno da verdade revelada da
Idade Mdia, onde no se podia buscar o cerne das coisas, acredita ainda hoje
que o cisne de esplendorosa brancura todo negrume no interior
... Essa
verdade medieval, que permanece nos conceitos da escola, do ensinar, do
aprender, teria sido quebrada atravs de um pequeno e simples exame, para
saber que ... o cisne no muito diferente, em suas cores, do interior do corvo.
Se apesar dos fatos, a afirmao do negrume intenso do cisne to amide
repetida, por satisfazer a uma lei da imaginao dialtica. As imagens que so
foras psquicas primrias so mais fortes que as idias, mais fortes que as
experincias reais .42
41 BACHELARD, 1990 apud, p.10 42 BACHELARD, 1990 p.17
41
Como disse Jean Paul Sartre, preciso inventar o mago das coisas,
se quisermos um dia descobri-lo.
No sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significncia da
idia do preenchimento do vcuo atravs de uma educao que olhe para dentro
das coisas. Quando falo de dentro das coisas no estou com isso falando de
interior to somente, mas da essncia, do mago. Veja este exemplo: certa vez,
caminhando com meu filho, que tinha ento quatro anos, pelas ruas do bairro
onde resido, ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande
com a natureza, pude brincar de investigar .
Andvamos por uma dessas ruas, quando eu encontrei pegadas de um
cavalo. Conhecendo esse esprito de investigao e da curiosidade que emana do
meu filho, mostrei a ele as pegadas. Imediatamente ele disse: que legal... voc
descobriu essas pegadas do cavalo branco... . Perguntei como ele poderia saber a
cor do cavalo que havia passado por ali. Sua resposta foi simples: vamos seguir
as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo... Aceitei a proposta e samos
seguindo as pegadas. Em alguns pontos onde a terra estava mais firme, as
pegadas sumiam, mas ele como toda sua curiosidade, buscava novas evidncias
e encontrava as pegadas seguintes. Andamos lentamente e olhando para o cho
das ruas de terra por mais ou menos duas horas, sem que ele desistisse ou
mostrasse sinais que no mais se importava com a brincadeira. Andamos
precisamente quatro quilmetros at chegarmos a um local onde se localizam
algumas baias e l estavam alguns cavalos. Havia um branco e ele se convenceu
e, quase me convenceu tambm, de que estava certo.
42
Esse vcuo da curiosidade foi preenchido, a perspectiva de intimidade
da coisa, do evento, mostrou um interior maravilhoso, um interior esculpido de
fantasias, da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino
houvesse sido revelado.
dessa qualidade de vcuo que falo e que a educao no capaz de
preencher, no por falta de contedo ou de forma, mas da maneira de trabalhar a
curiosidade e a necessidade. No basta a natureza conter formas incrveis na
molcula da gua ou no floco de neve, conter eflorescncias, arborescncias e
luminescncias se no for possvel dar o desejo dessas descobertas. Repito, a
educao no sabe fazer isso, mas a imaginao faz com perfeio a alquimia
das descobertas.
Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da
profundidade das substncias43 busca do self atravs do mergulho no
inconsciente. Se o alquimista fala do mercrio, ele pensa exteriormente no
argento vivo, mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um esprito escondido
ou prisioneiro da matria
44.
A curiosidade como um sonho de descoberta das virtudes secretas
das substncias, ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade, a
essncia das coisas, como sonhar como o secreto em ns. Os maiores
43 No aristotelismo e na escolstica, realidade que se mantm permanente sob os acidentes mltiplos e mutveis, servindo-lhes de suporte e sustentculo; aquilo que subsiste por si, com autonomia e independncia em relao s suas qualificaes e estados . Algo que est alm, sob as aparncias. 44 cf. Jung.Psychologie und Alchemie, p.399 . apud Bachelard, p. 39
43
segredos de nosso ser esto escondidos de ns mesmos, esto no segredo de
nossas profundezas 45.
exatamente a partir da curiosidade sobre essas essncias, sobre
essa alquimia, que pesquiso meu trabalho em Educao, Histria e Cultura. Minha
tese, vem responder a esse meu anseio, entender o mito que fazia com que
homens sassem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras
novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicao da vida estavam
baseadas em outros mitos.
Vejo o mito como um sistema de conhecimento, velado, porm, mesmo
assim, exaustivo, do inefvel e do divino. o mito a curiosidade aliada
necessidade da explicao de si e sua relao individual com o Universo.
Acontece, porm, que a catequese, a imposio de cultura, a educao,
negam a individualidade do homem, negam seus vcuos e seus mitos, gerando
vcuos novos e que no podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade
daquele que foi conquistado. O mito no um mito, e sim a prpria verdade
46.
Negar essa individualidade um absurdo e a criana sabe disso. O
homem por mais que no queira aceitar, pois tenta se proteger de sua
incapacidade de buscar as essncias tem pleno conhecimento que a conscincia
individual, que a busca individual, que a curiosidade individual e que ela faz
parte da substncia e da coisa em si .
45 Bachelard, p.39 46 GUSDORF, 1959, p.13
44
Mas para o homem quando despido de suas aculturaes e carapaas
de defesas contra suas emoes, a coisa em si precisa ser explicada. O que lhe
resta ento estruturar essa explicao sob a forma de representao. Para
representar colhe do externo e divino e interioriza tal representao em sua
essncia. Novamente o mito criado.
Em todo o tempo de bancos escolares, infelizmente no tive a ateno
que poderia ter em relao mitologia. Tive uma idia precria de tal assunto, que
no me mostrou quanto essa fora criadora que norteou o rejuvenescimento
constante dos mitos na esfera grega, assria, egpcia e como essa atividade do
esprito antigo agia de modo essencialmente potico e artstico, da mesma forma
que para o homem moderno, tem a cincia contribudo para nossa evoluo.
Assim, novamente digo que a questo a ser respondida com esta
pesquisa de como vivia o povo indgena com essa experincia que chamo o
mito de Deus , quer fosse o Deus Cristo, quer fosse o deus ande ru Pa-Pa
Tenod47
Por isso, o objeto a ser trabalhado nesta tese o mito como
instrumento educacional de transmisso de cultura, fazendo uma anlise de como
o mito cristo era entendido pelos portugueses e jesutas no sculo XVI e imposto
violentamente aos indgenas desse mesmo tempo.
A pesquisa desta temtica buscar a relao do mito cristo em unio
com mitos e lendas do povo rabe, invasor da pennsula ibrica, alm dos mitos e
47 Em lngua ancestral Tupi, o abaeenga, significa nosso Pai Primeiro
45
lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasio dos descobrimentos, quando
marinheiros narravam histrias fantsticas de Homens-cavalo, homens
gigantescos de um nico p, ciclopes e amazonas, e, outros mitos do mirabilis no
mundo conhecido do sculo XVI, de encontrar as diferenas e semelhanas com
os mitos europeus.
Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmisso
de cultura, atravs da narrativa, da educao falada e contada, amplamente
utilizada pela pedagogia jesutica que utilizou todos os conceitos, tanto de mitos
como de pecados e tabus, para catequizar e converter os indgenas Santa F
Catlica.
Essa minha busca atravs da curiosidade, mostrar que a educao s
poder ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos, os mitos do
descobrir, os mitos de desvelar, o mito do vcuo.
46
CAPTULO 2 - O MITO
No atual quadro do desenvolvimento cientfico, cada mais comum se
falar em interdisciplinariedade , conceito que traduz um modo novo de lidar com
os objetos de estudo, com os planos terico e metodolgico da pesquisa, e,
especialmente, com o papel do cientista diante do universo que busca
compreender e/ou explicar.
Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vo da Psicanlise
Antropologia e Arte, da Sociologia Filosofia e Histria, os estudos em
Educao fazem um percurso que recoloca a questo epistemolgica do prprio
estatuto da cincia de transmisso de cultura.
Onde buscar respostas?
Como opo de caminho, busquei as respostas na ontologia clssica e
no mito como bases, como alicerces do que pretendo construir no que tange
Educao como transmisso de cultura.
O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de
conhecimento do mundo, dos fatos de conhecimento do mundo, dos fatos naturais
e sobrenaturais, organizada de modo alegrico, a ponto de mostrar poeticamente
a relao entre homem e universo; ou um modelo, um arqutipo, que, mesmo
47
mudando de vez em quando de acordo com contedos histricos e geogrficos
peculiares, tem sempre a mesma estrutura formal, ligada ao mecanismo de
funcionamento da psique humana; ou, enfim, um mtodo religioso de aproximao
da concepo sagrada da existncia em que o mito tido como um sistema de
conhecimento, velado, porm, mesmo assim, exaustivo, do inefvel e do divino.
No importa se o mito define o incio do mundo ou o mundo define o
incio do mito, O que importa enfim que o mito nasce com o humano, pois tudo o
que existe no mundo visto sob o olhar do humano.
Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura
ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos, ou da
escurido, todos os humanos reconhecem sua identidade atravs da natureza e
das coisas humanas.
Durante toda sua vida, os homens que so igualmente homens,
nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma, no entanto, no
s com caracterstica fsicas diferentes, no s com valores diferentes, com
definies espirituais diferentes, com mitos diferentes, mas todos explicam essas
igualdades e diferenas atravs do mito.
A funo dos mitos no denotar uma idia herdada, mas sim, um
modo herdado de funcionamento, que corresponde maneira inata pela qual o
homem nasce e se relaciona em sua vida vivida.
O ser humano no nasce com papis em branco como uma tabula rasa,
ao contrrio, estava preparado para as experincias da vida humana, do mesmo
48
modo que os pssaros estavam, de maneira inata, prontos para construir ninhos
ou a fmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde
nasceu para l botar os prprios ovos. Mas algumas muitas das situaes tpicas
do homem, relativas condio humana so representadas pelos mitos
apreendidos e esses mitos do ao homem a predisposio para experimentar os
conceitos de me, pai, filho, Deus, Grande Me, velho sbio, nascimento, morte,
renascimento, separaes, rituais de cortejo, casamento, e assim por diante.
O mito se forma sob as caractersticas de imagens primordiais, de fatores e
motivos que coordenam os elementos psquicos do homem, que s podem ser
reconhecidos como formadores do mito aps terem efeito na vida do homem.
Dessa forma, os contedos mticos pertencem estrutura psquica dos
indivduos enquanto ... possibilidades latentes, tanto como fatores biolgicos
como histricos...
48
Os mitos no se difundem apenas pela tradio, linguagem ou migrao.
Eles podem surgir de forma espontnea em qualquer tempo ou lugar sem serem
influenciados por transmisso externa. Pode-se considerar, portanto, que em cada
psique existem verdadeiras prontides vivas ativas, que embora inconscientes,
influenciam o sentir, o pensar e o atuar do homem mtico. Essas imagens de
prontido so imagens arquetpicas que na mente consciente, desenvolvem um
jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre presso pessoal e
cultural do tempo e do lugar em que esto inseridas.
48 JACOBI, 1991, pg.39.
49
Por esse motivo, o mito normalmente milenar e universal ao grupo
social em que atua, parte do inconsciente coletivo, pois so disposies
herdadas pela humanidade. Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos. Os
contedos do inconsciente pessoal so aquisies da existncia individual, ao
passo que os contedos do inconsciente coletivo, so arqutipos que existem
sempre e a priori.
A definio de mito , basicamente, a concepo de homem
plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno. O homem o
todo de suas relaes, pois recebe as mesmas influncias arquetpicas que todos
os homens de seu grupo social recebem, mesmo sendo individual e possuindo
caractersticas nicas.
Essa a relao mgica do mito. O homem cr que vai chover para
molhar sua plantao e realmente chove. Chove por condies climticas, mas
para o homem envolvido no mito, chove porque os deuses assim o permitiram,
no s para ele, mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito. Dentro
do mito, o homem opera sobre o existente e sobre sua conscincia de mundo. No
mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo, no como uma soma de
partes, mas como uma parte representando o todo.
Ontologicamente, o mito traz consigo a misso de mostrar em termos
gerais a existncia do ser, no deste ou daquele ser concreto, mas do ser em
geral, pois o homem sempre buscou e buscar as respostas de quem , de onde
vem, para onde vai, se que vai para algum lugar ou condio.
50
Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a
que pertence, foi necessrio ao homem, criar uma linguagem que pudesse dar
conta de transcrever sua realidade, afinada com seu prprio conhecimento de
mundo.
No entanto, sempre foi tarefa impossvel, tanto ao homem primitivo
como ao homem da modernidade, definir o que o homem, o que o ser, ou
mesmo quem ele .
Cada vez que tentamos definir o homem como um ser, deparamos com
outros conceitos a serem elaborados, pois a cada qualidade de homem, a cada
origem cultural ou geogrfica, de cada poca, os conceitos se modificam, as
definies se tornam mais errneas, caso se tente colocar o homem dentro de um
s conceito.
Claro que sabemos o que o homem, claro que o homem conhece a si
mesmo, porm, ao perceber-se diante do outro, diante de desejos e anseios to
diferentes entre si, associados a coisas to distintas, se obriga novamente a uma
anlise de si e do todo.
nesse anseio que o homem se pergunta quem , no deixando de
perguntar quem o outro na relao de troca, de parceria, de mutualidade.
O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim
escatolgico49.
49 Da escatologia, doutrina que trata do destino final do homem e do mundo; pode apresentar-se em discurso proftico ou em contexto apocalptico.
51
Necessita o homem agregar valor s definies, quer com objetos que
se agregam dando qualidade s coisas, quer transformando os objetos ideais em
personificaes.
A fortaleza do deus sol era construda sobre esplndidas
colunas, e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes. O
fronto superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante, e os
portes duplos eram de prata, ornamentados com impressionantes
relevos esculpidos por Hefastos, representando a terra, o mar e o cu
com seus habitantes.50
Hlio, vestido com um manto de prpura, estava sentado
sobre o seu trono, ornamentado com esmeraldas. sua direita e
sua esquerda estava o seu sqito, o Dia, o Ms, o Ano, o Sculo e
as Horas. Do outro lado a Primavera, com sua coroa de flores, o
Vero com suas espigas de cereais, o Outono com uma cornucpia
cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve.51
Sem que se fique preso a definies religiosas de uma ou outra crena,
necessita ainda o homem buscar respostas atravs dos mitos, que possam
confirmar sua percepo de mundo. Eu existo, o mundo existe, os deuses
existem e as coisas existem . Mas existem sem mim? Existem independentes de
minhas representaes? Ao perceber-se distinto ao olhar o outro, ao reconhecer-
se em outro, o homem mtico percebe existirem definies diferentes para o ser
50 Mito de Faetonte Ovdio
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
- nov2005 51 idem
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
52
em si mesmo e o ser o outro , o que sugere as relaes e o obriga a entrar em
contato com o real e suas representaes de mundo, e suas explicaes para
esse mundo.
Esses dois significados equivalem a estes outros dois: a
existncia e a consistncia. A palavra ser , significa tambm consistir,
ser isto, ser aquilo. Quando perguntamos: que o homem? Que a
gua? Que a luz? No queremos perguntar se existe ou no existe
o homem, se existe ou no existe a gua ou a luz. Queremos dizer:
qual a sua essncia? Em que consiste o homem? Em que consiste
a gua? Em que consiste a luz... 52
Dessa forma, para que uma estrutura mental possa ser montada, o
homem tentar buscar no mito a essncia de sua vida, do porqu do sol e de
como surgiu, do porqu das chuvas da boa e da m colheita, da boa e m sorte na
caa, do existir do dia e da noite e, mesmo depois de cientificamente ter certezas
de suas definies, guarda dentro de si sob a forma do pensamento da criana, o
homem primitivo que cr e vive o mito. O mito da essncia, da origem no divino e
da busca de sua existncia.
Honrado pai, na terra todos me ridicularizam e respondem
minha me Clmene. Afirmam ser falsa a minha origem divina,
dizendo que sou filho bastardo, de um pai desconhecido. por isso
52 MORENTE, 1930: 62.
53
que estou aqui, para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que
sou seu filho. 53
Cria ento, o homem, um mito para mostrar sua existncia, pois o mito
a prpria representao do real, no estando fora da realidade e sim formulando
um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a ao . 54 No se
pode encarar o mito como constitudo de um puro e simples pensar de forma
fabulosa, anloga ao sonho, ao devaneio ou poesia.
A conscincia mtica desenha a configurao do primeiro
universo 55
A imagem do mundo desenhada por essa conscincia mtica, pela
conscincia da essncia do ser e sua existncia, se afirma e se reafirma atravs
de uma paisagem do grupo social, paisagem esta que no se prende somente a
uma configurao geogrfica ou mesmo fsica, mas envolvida por uma viso moral
e espiritual do povo.
A filosofia, ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigncia
do bater do corao do homem, reconhece nos milnios da evoluo social e
humana, o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo, sem saber,
53 Mito de Faetonte Ovdio
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
- nov2005 54 GUSDORF, 1960: 22. 55 GUSDORF, 1960: 51.
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
54
que em verdade j sabia a diferena entre a fsica e a metafsica. prprio do
mito, pois, dar sentido ao universo .56
Porm, o homem mtico se depara com outra pergunta: por que somos
to distintos? Porque os seres possuem qualidades diferentes, que os transforma
em outros? Se todos tm a mesma origem no divino e se os deuses so como
so, por que criaram nos seres tantas diferenas?
Entende o homem, que independente de sua percepo de universo e
as explicaes que pode dar sobre deuses, sobre as horas e sobre os tempos e
as colheitas, ainda havia que tentar evidenciar as diferenas e as qualidades das
coisas chamadas por ele de seres.
A carruagem descia cada vez mais e, passado um instante,
j estava perto de uma montanha. O solo ento se abriu por causa do
calor e, como todos os lquidos secassem subitamente, comeou a
arder. As pastagens ficaram amarelas e murchas, as copas das
rvores das florestas incendiaram-se, logo o fervor chegou plancie,
queimando as colheitas, incendiando cidades, pases inteiros ardiam
com sua populao. Picos, florestas e montanhas estavam em
chamas, e foi ento que os povos da Etipia ficaram negros. A Lbia
tornou-se um deserto.57
Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres.
Definem as diferenas de hbitos, de raas, de culturas, de deuses a serem
adorados e demnios a serem rechaados, de bem e mal, de batalhas, de povos a
56 GUSDORF, 1960:52. 57 Mito de Faetonte Ovdio
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
- nov2005
http://www.victer.hpg.ig.com.br/mitologia/mitologia.htm
55
serem dominados ou convertidos, de deuses de conquistadores que se
transformam em demnios para os povos conquistados. Que fazem ricos
imperadores serem deuses e pobres escravos mortais.
Onde estaro essas explicaes? No topos ouran s58 ? Nos mundos
sensvel e inteligvel definidos por Parmnides? Por Scrates, por Plato ou
Aristteles?
O homem mtico necessita mostrar que os sentidos, o espetculo
heterogneo do mundo com seus variados matizes no o verdadeiro ser, mas
antes um ser posto em interrogao, um ser problemtico que necessita
explicao ,59 explicao sobre as coisas sensveis e por trs delas o intemporal e
o eterno.
O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo
desenhado pelo homem. Tudo est diante de ns, todas as coisas esto exposta e
ns tambm fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compe e
constituem o real.
O que se pode afirmar, no entanto que atravs do mito o homem se
relaciona com o outro, pensa os deuses, vive e conhece as relaes da
comunidade que habita. Define tarefas coletivas e individuais, na defesa e na
guarda da comunidade, na coleta, na caa e na colheita, dando a tudo isso a
forma estruturada do partilhar vivncias e para vivenciar a mutualidade.
58 O mundo dos deuses. Tambm chamado de topos noet s o mundo das idias 59 MORENTE, 1930: 97.
56
A relao com o coletivo serve s necessidades biolgicas de alimento
de si e da prole, da procriao e da guarda do patrimnio gentico, mas serve
tambm para atender, com base numa estrutura psquica, ao esprito em suas
necessidades de viver ou estruturar a experincia tribal. Para Hollis (1998), Quem
a pessoa , define-se em parte por de quem ela
a quem ou com qual
propsito est comprometida .
Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central, se
esvai a essncia psicolgica preciosa. O homem perde o sentido de seus
contedos mticos e se reativam seus contedos primitivos, onde os valores
diferenciados so substitudos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria
e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero.
O mito central de to vital importncia que sua perda acarreta uma
situao apocalptica, quebrando-se o crculo mgico em que o homem est
inserido, rompendo-se a relao do ego com seu criador, tendo esse indivduo que
perguntar novamente e seriamente: qual o sentido da vida? No h sentido na
vida, pois a vida deve ser vivida e no sentida, no entanto, isso s pode ocorrer e
as perguntas serem feitas, se o crculo mtico estiver circundando a existncia do
homem.
a perda de nosso mito continente que est na raiz de
nossa angstia individual e social, e nada, a no ser a descoberta de
um novo mito central, vai resolver o problema para o indivduo e para
a sociedade.60
60 EDINGER, 1999: p.11.
57
Se o mito no a prpria ontologia, a prpria metafsica61, , com
certeza a saga do heri chamado ser humano em sua luta ontognica62. Esse
heri mtico usa suas armas para viver a vida a ser vivida. Usa suas quatro armas,
o saber, o ousar, o querer e o calar, para tal qual Faetonte, obter a resposta do
deus criador, mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana.
Faetonte, com os cabelos em chamas caiu como uma
estrela cadente. E o rio P recebeu sua carcaa carbonizada, ante o
olhar estupefato de seu pai. As niades daquela terra depositaram
seu corpo num tmulo e nele gravaram o seguinte epitfio:
"Aqui jaz Faetonte: Na carruagem de Hlio ele correu; E,
se muito fracassou, muito mais se atreveu .
A finitude humana vem da mesma origem da idia de universo, uma
noo adquirida, recebida como herana cultural atravs de sucessivas
descobertas, determinaes e invenes promovidas pelo homem, tal qual sua
noo de espao e de tempo.
O homem primitivo no v o espao como algo simplesmente
continente, mas como um lugar absoluto. No o espao ou o tempo tidos como
61 met t physik
metafsica
alm das coisas fsicas - estudo do ser enquanto ser e especulao em torno dos primeiros princpios e das causas primeiras do ser. 62 ntos: ente - Ontogonia: Histria da produo dos seres (entes) organizados sobre a Terra.
58
racionais ou funcionais, mas como partes estruturais de uma realidade, criando a
definio de um acontecimento, de um mbito.63
Esse contato com o universo, com a finitude e com o espao mtico o
prprio princpio da experincia, o sentido de realidade envolvida e revestida com
smbolos, figuras, intenes humanas, sejam agradveis ou desagradveis, gentis
ou aversivas, com o sagrado ou o profano, enfim a prpria experincia da
realidade humana.
Porm, o espao mtico primitivo ou mesmo das sociedades clssicas,
tinham seu espao vital como o altar, o espao do sagrado, onde esse espao
mtico o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque o ponto de
apoio do mundo social e do mundo espacial
64. Por esse motivo o homem mtico
organiza seu espao vital em torno, ao redor do espao sagrado, espao esse,
no um marco de uma existncia possvel, mas sim como um lugar de uma
existncia real e que lhe d sentido, pois ali moram seus deuses, moram seus
mortos, seus pensamentos e desejos.
nesse espao mtico, o espao sagrado, que o homem realiza seus
rituais para uma boa marcha pelo mundo, a a que faz suas splicas, realiza
seus sacrifcios e sua magia propiciatria, onde suas foras vitais se encontram e
se concentram.
Dessa forma, o homem mtico tem, deve e precisa estar sempre em
contato com seu espao, tempo e mbito, onde se encontra o outro e com ele vive
63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF ,1959: p.55
59
o grupo social, pois fora dessa relao tecida com o grupo social, o homem
reduzido a si mesmo, est aniquilado, pois perdeu seu lugar ontolgico e as
referncias que lhe outorgavam figura e equilbrio 65. E assim, encontra a morte,
mesmo que no sentido figurado, pois morrer miticamente a cessao das
relaes com o grupo social. O morto, o defunto, aquele que se livrou de suas
obrigaes frente comunidade
66, que no possui mais funes perante a vida
(defuncto).
Vejamos o pensamento de Jung67:
Mal terminei o manuscrito, quando me dei conta do que
significa viver com um mito e o que significa viver sem ele... [O
homem] que pensa que pode viver sem mito, ou fora dele, como
algum sem razes, no tem nenhum vnculo verdadeiro nem com o
passado, ou com a vida ancestral que continua dentro dele, nem com
a sociedade humana contempornea. Esse seu brinquedo racional
nunca capta o lado vital.
Nesse espao mtico que se encontra o sagrado e esse sagrado
tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem.
Diz Gusdorf:
65 Gusdorf,1959:p.92 66 Gusdorf,1959:p.92 67 apud Rollo May, 1992:p.47
60
Porque a natureza, junto com a sobrenatureza, desvela ao
ser toda sua totalidade. Consagra o estabelecimento ontolgico da
comunidade, pelo vnculo da participao fundamental entre o homem
vivente, a terra, as coisas, os seres e ainda os mortos, que continuam
freqentando a morada de sua vida68
Viver no espao mtico viver no sagrado, pois o lugar, no mais um
lugar, e sim onde a vida acontece. Ali esto seus deuses, suas foras espirituais,
os antepassados, a vida, o alimento, etc.
Os portugueses do Sculo XVI ao virem para o Brasil, trouxeram
consigo seu espao mtico e necessitaram sacralizar o novo territrio, construindo
imediatamente aps sua chegada, capelas, casas ao seu estilo, locais de
reunies, alm de cristianizar o espao em que viveriam. O espao uma das
expresses da concepo de vida do homem, da cultura do homem, das relaes
sociais. Gostaria de afirmar que todos os povos, desde o incio dos tempos, tm
seu espao sagrado, quando no todo ele.
No mundo mtico, tudo mtico no s o homem, a natureza mtica,
as pessoas, a floresta, a chuva, o mar e as mars, os astros, cada qual com sua
funo, cada qual com sua participao, mas tudo fazendo parte do universo do
homem mtico. Se desejarmos por esse motivo, ver atravs da razo, a lgica
disso, no conseguiremos, pois o sentido do mito ou da vida, no existem, pois a
vida como nos diz Campbell, no tem sentido, pois vida no para ser sentida e
68 GUSDORF.1959: p.55-56
61
sim para ser vivida, assim como no justa, no certa, pois s vida e no
justia ou certezas.
O mundo um processo daquilo que creio, diz o homem mtico. Pedir
ao homem mtico que explique o mundo, o mesmo que pedir ao peixe para
explicar a gua em que nada. O ser mtico talvez tenha uma compreenso mais
profunda da vida, sem permitir o questionamento da racionalidade, pois explicar o
mtico saber que tudo uma presena real.
O homem racional atende suas necessidades atravs de possibilidades
conhecidas. O homem mtico reconhece que o mundo feito de possibilidades e
busca por elas, mesmo no as conhecendo, as observa, as testa e aps tomar
conscincia delas, as utiliza.
O homem mtico sabe que no est sozinho, pois est conectado a tudo
que o cerca. Ele um criador efetivo do mundo, infiltrando esse mundo, de idias
e pensamentos. Vejamos por exemplo que a Terra um planeta totalmente
dominado por religies. Deus uma forma de explicarmos as experincias que
temos no mundo que de alguma forma, so sublimes e transcendentais. Ele a
superposio dos espritos de todas as idias. Amamos aos deuses pois temos
que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida.
Do ponto de vista antropolgico-cultural, passou-se, de uma viso do
mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuda s cadei