O Mito Do Político

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O Mito do Político Características do reinado de Krónos “Conta-se que eles [o sol e os outros astros] desapareciam lá onde hoje nascem e que se levantavam a partir do ponto oposto” (269a) “Os homens de antanho nasciam da terra e não se geravam uns aos outros” (269b) “o deus mesmo o acompanha (sumpode geî) em sua marcha e em sua revolução” (269c) “todas as partes do mundo se achavam distribuídas entre deuses que as regiam” (271d) “não existia espécie selvagem e uma espécie não devorava a outra; não havia guerra nem revolta de qualquer natureza” (271e) “Como esse deus os pastoreava, os homens não tinham constituição política e não possuíam nem mulheres nem crianças” (272a) “tinham em abundância frutas que as árvores davam, além de uma rica vegetação, frutos que cresciam, sem que houvesse necessidade de os cultivar, pois a terra os produzia espontaneamente” (272a) “usufruindo lazer abundante e a faculdade de entabular conversação, não somente com os seres humanos, mas também com os animais” (272b) Inversão

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Seminário sobre o mito do Político de Platão por Patrícia

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O Mito do Político

Características do reinado de Krónos

“Conta-se que eles [o sol e os outros astros] desapareciam lá onde hoje nascem e que se levantavam a partir do ponto oposto” (269a)

“Os homens de antanho nasciam da terra e não se geravam uns aos outros” (269b)

“o deus mesmo o acompanha (sumpodegeî) em sua marcha e em sua revolução” (269c)

“todas as partes do mundo se achavam distribuídas entre deuses que as regiam” (271d)

“não existia espécie selvagem e uma espécie não devorava a outra; não havia guerra nem revolta de qualquer natureza” (271e)

“Como esse deus os pastoreava, os homens não tinham constituição política e não possuíam nem mulheres nem crianças” (272a)

“tinham em abundância frutas que as árvores davam, além de uma rica vegetação, frutos que cresciam, sem que houvesse necessidade de os cultivar, pois a terra os produzia espontaneamente” (272a)

“usufruindo lazer abundante e a faculdade de entabular conversação, não somente com os seres humanos, mas também com os animais” (272b)

Inversão

“então, por si mesmo, o universo se põe a girar no sentido contrário” (269c)

“o mundo é, ora acompanhado por uma causa estranha, um deus, e que adquire então de novo a vida recebendo de seu demiurgo uma imortalidade restaurada, ora, quando ele foi deixado a si mesmo, segue seu impulso próprio, quando foi largado, no momento oportuno, para percorrer em sentido inverso vários milhares de revoluções, pois o universo, cujo tamanho é enorme e perfeitamente bem-equilibrado, segue repousando sobre um pé extremamente pequeno” (270a)

[ “é perfeitamente possível, como pensa SCHUHL, que, em tudo isso, Platão tinha no espírito uma esfera armilar 1, repousando sobre um suporte de extrema pequenez e suspensa em um gancho por um fio; quando a mão coloca a esfera em movimento, o fio se torce; quando a esfera é abandonada pela mão, o movimento

1 Referente a armila ou armela: “ARMELA, s.f. Argola onde se enfia o ferrolho da porta ou a asa da caldeira; argola de puxar as portas e de as fechar com cadeado; parafuso com cabeça em argola; (ant.) manilha; bracelete” (BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. RJ: FAE, 1986).

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continua ainda por algum tempo no mesmo sentido, já transformado, entretanto, pela tendência do fio em se destorcer, ele não tarda a tomar uma direção inversa daquela que lhe comunicou a mão”.]

“Não sabemos que os seres vivos dificilmente suportam a produção simultânea das inversões importantes, numerosas e diversas?” (270c)

“A idade que tinha cada um dos viventes começou a parar em todos, e tudo o que existia de mortal cessou de evoluir, no sentido de aparecer sempre mais velho; depois, recomeçando a evoluir, mas em sentido contrário, eles se tornavam, pelo assim dizer, mais jovens e mais tenros. Isto é, os cabelos brancos daqueles que eram mais velhos começaram a escurecer; da mesma forma, os rostos daqueles que tinham barba começaram a ficar lisos, conduzindo cada um à flor fenecida de sua primavera; quanto àqueles que estavam na puberdade, tornando-se mais lisos e menores de dia em dia e de noite em noite, retornavam ao estado de recém nascido, conformando-se sua alma e seu corpo a esse estado. A partir daí, seu declínio indo, então, até ao seu termo, eles desapareciam completamente. Quanto àqueles que morriam de morte violenta, nesses tempos, seu cadáver sofria rapidamente a mesma série de afecções e se desagregava rapidamente, até tornar-se invisível em poucos dias” (271a)

“aqueles que estavam mortos e que jaziam na terra, eram reconstituídos lá e retornavam à vida” (271b)

“É bem claro, com efeito, que a inversão, que afeta os astros e o sol, se produz por ocasião de cada uma dessas duas mudanças de direção” (271c)

“então aquele que é o piloto do universo, após ter, por assim dizer, deixado a barra do leme, se retirou de seu posto de observação, enquanto uma inclinação predestinada e nativa colocava o mundo em marcha no sentido inverso. Então, portanto, todos os deuses, que região por região, partilhavam o poder com a divindade mais importante, compreenderam o que de ora em diante se produziria e abandonaram, por seu turno, as partes do mundo onde se exercia sua supervisão” (272e-273a)

Ocorre um “enorme tremor, provocando, desta vez ainda, uma nova destruição de todos os tipos de seres vivos” (273a) e depois “o mundo seguiu num movimento ordenado seu curso habitual (...) porque se lembrava, na medida em que podia, do ensinamento que recebera daquele que era seu demiurgo e seu pai. No começo, portanto, ele se configurava com bastante exatidão, e de uma maneira mais confusa no final. A causa dessa deriva reside no que concerne ao caráter corporal de sua composição” (273b)

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“quanto mais o tempo passa e mais o esquecimento se instala nele, mais se afirma a ausência de harmonia que marcava sua condição primitiva e que, no fim, recomeça a florir” (273c-d)

“corre o risco de destruir a si mesmo e as coisas que estão nele” (273d)

Então o deus “temendo que, sacudido e deslocado pela tempestade, ele [o mundo] soçobre no oceano indeterminado da dessemelhança, volta a sentar-se perto do leme” (273d)

“Com efeito, aqueles viventes que, em razão de sua extrema pequenez, iriam desaparecer, começaram a crescer, enquanto os corpos, que acabavam de nascer da terra com os cabelos brancos, conheceram de novo a morte e entraram novamente na terra” (273e)

“como estava prescrito ao mundo de ser o senhor de sua própria marcha, e mesmo às suas partes também estava prescrito, na medida em que era possível, conceber por elas mesmas, engendrar e alimentar-se pelo efeito de semelhante impulsão” (274a)

“não podiam mais contar com a providência do demônio, que nos possuía e nos pastoreava” (274)

“nos primeiros tempos, eles permaneceram desprovidos de indústria e de técnica (...) Eis por que esses dons, que uma antiga tradição evoca, foram dados pelos deuses, que lhes juntaram o ensinamento e a aprendizagem indispensáveis: o fogo por Prometeu, as técnicas por Hefesto e por aquela que é sua associada nesse domínio [Atena] (...)” (274c)

Dificuldades da leitura

“como é o caso agora, por lugares, todas as partes do mundo se achavam distribuídas entre deuses que as regiam” (271d)

E, por outro lado: “E tudo que contribuía para a vida humana emergiu dessas coisas, uma vez que o cuidado dos deuses, como foi dito agora, abandonou os seres humanos, e eles tiveram de dirigir sua própria existência e tomar cuidado de si mesmos por si mesmos, como todo o cosmos, que imitamos e acompanhamos por todo o tempo...” (274d)

Após falar do tempo em que os homens estavam entregues a si mesmos, diz que “Com efeito, quando o mundo se pôs a girar no sentido que levou ao modo de geração atual”,

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dando a entender que estamos em um período com cuidados dos deuses. Logo depois, entretanto, diz que nesse período “não podiam mais contar com a providência do demônio, que nos possuía e nos pastoreava” (274).

Problemas

Se “o universo possui ou não uma natureza teleológica, e se deveríamos esperar que ele proporcionasse uma base de conhecimento para a política” (Carone, 191).

“como ter a perspectiva do melhor tipo de política quando o próprio universo percorre a senda rumo à dissolução?” (Carone, 192)

Interpretação tradicional ou predominante (Cornford, Skemp e outros)

Intervenção divina

Marcha dos astros

Marcha dos tempos

Reinado de Krónos

O deus dirige Do Oeste ao Leste

Velho depois jovem

Reinado de Zeus (presente)

O deus abandona

Do Leste ao Oeste

Jovem depois velho

Interpretação de Brisson

1. Criação do mundo e o reinado de Krónos2. O mundo entregue a si mesmo3. O reinado de Zeus

Interpretação de Carone

1. Criação do universo por deus o ordenando2. Ciclo inverso 3. Era de Cronos4. Ciclo inverso5. Era de Zeus

“poder-se-ia argumentar que o contraste com a era ideal de Cronos parece insinuar que a política ocorre num universo sem deus, no qual não recebemos mais cuidado direto de uma divindade” (Brisson, p. 210).

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“sob o reinado de Krónos, a marcha do tempo se fazia na mesma ordem que agora”, “em um mundo sem deus, como aquele que teria antecedido ao reinado de Zeus, essa marcha estava invertida” (idem, p. 247)

“o reinado de Zeus começa em uma condição de mal maximal, lá onde se interrompe a revolução de um mundo sem deus no ponto de se deslocar” (idem, nota à tradução do mito, p.255)

Assim, enquanto a interpretação tradicional supõe que o ciclo inverso que sucede a era de Cronos pertence à era atual, de Zeus, para Brisson e Carone, a era de Zeus segue a mesma direção da era de Cronos (Brisson, p.247; Carone, p. 202).

Para Brisson, contudo, o movimento de retorno à vida de 271b6-7 acontece no mesmo período de inversão de 279b-271b , o “movimento contrário ao presente”. Para Carone, este movimento representa um novo período, no qual ocorre “uma outra” (allên) destruição dos animais e crescente desordem cósmica.

Para Brisson e Carone, nosso atual universo é governado por deus, entretanto não por dáimons, como na era de Cronos. Zeus “ainda cuida da revolução de todo o universo, ainda que não tenhamos mais divindades secundárias se encarregando de suas respectivas regiões”.

a) A presente forma do movimento do universo tem sua causa em deus e sugere sua presença (269e-270a) [onde há movimento causado, há deus]; a presente era (ton nuni) é caracterizada como a de Zeus (272b-2-3); é dito que deus cuidava do universo “como agora” (hôs nun) (271d4); A direção do envelhecimento segue a direção dos cosmos. Assim, na era de Cronos como na de Zeus os indivíduos “caem na terra como semente (spermata)” (272e3) [caso contrário, teríamos que viver o ciclo inverso ou na era de Cronos haveria o ciclo normal: o primeiro caso é impossível, o segundo incoerente com o texto do mito, pois no ciclo inverso não cairíamos na terra como semente, mas sim desapareceríamos (exaphanizesthai) – leitura que combina com Hesíodo]; no movimento definido como “contrário ao presente” há “destruição dos animais” e o “tornar-se mais jovem do velho”.

Carone nega “o retorno de deus à direção como uma descrição de um evento que está ainda por acontecer” (hipótese de uma promessa de um novo reino de Cronos): “nosso ciclo se tornará progressivamente pior, mas então deus se compadecerá e voltará novamente” (192). A estrutura dos ciclos cósmicos se repete: “Pois bem, sobreveio agora e sobrevirá ainda (268e)” e, portanto, não haveria vida política (Carone, 193).

Lane: autogoverno do universo/o universo tem inteligência.

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Carone: De fato, “deus é mais propriamente o ajudante do movimento do universo que o seu agente exclusivo”. Contudo, a inteligência não convive com o governo do corpóreo 2. A inteligência do universo lembra por muito pouco tempo do ensinamento do deus.

- Ser governado por deus não implica perda da “autonomia humana e do pensar independente”. A política para Platão não ocorre “nem num universo ideal onde o nous de deus teria tanto poder, nem em seu oposto sob a predominância da necessidade (anankê), mas em nosso mundo real onde coexistem nous e necessidade” (Carone, p.210). A estrutura dos ciclos com isso não pode ser repetitiva. O próprio cosmos aparece como uma “projeção da polis ou mesmo da vida humana individual” (idem, p.228), “o universo é o que os seres humanos e a polis devem ser” (idem, p.234).

Era áurea = capacidade interior

Bibliografia:

BRISSON, Luc. Interpretação do mito do Político (268-274) e tradução do mito. Em: Leituras de Platão. Trad. de Sonia Maria Maciel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

CARONE, Gabriela Roxana. Invertendo o mito do político e Drama cósmico e humano no Político. Em: A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas. Trad. de Edson Bini. SP: Loyola, 2008.

2 - “A causa (aition) dessa deriva reside no que concerne ao caráter corporal (to sômatoeides) de sua composição” (Político, 273b). O corpo é a natureza antiga do mundo (tês palas pote physeos) e a epithymia do mundo. Leva à confusão (thorubos), desordem (tarachê), esquecimento (lêthê), negligência (ameleia).