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135 L M Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 5 N.10, VERÃO 2008 * Mestre pela UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE, Doutorando pelo Programa Integrado de Filosofia UFPB- UFRN - UFPE. O MOMENTO ENCICLOPÉDICO DA REAL FILOSOFIACOMO RECUPERAÇÃO DO PARTICULAR, NO INTERIOR DO PROGRAMA SISTEMÁTICO DE HEGEL Recebido em mai. 2008 Aprovado em jul. 2008 PATRICK DE OLIVEIRA ALMEIDA * RESUMO Este artigo trata-se de uma consideração do movimento metodológico da constituição da ciência, enquanto constituição sistemática, tal como a entende Hegel. Em especial, é focalizado aqui o momento enciclopédico da “real filosofia”, no sentido de explicitar o significado geral de tal momento como recuperação do particular, e como ele se encontra inscrito no interior do projeto sistemático de Hegel como um todo. PALAVRAS-CHAVE Enciclopédia. Ciência. Metodológico. Sistema. ABSTRACT This article is about an account to the methodology movement of the constitution of science, like a systematic constitution, as understood by Hegel. In particular, the focus in this paper is the encyclopedic moment of the “real philosophy”, to explain the general significance of such a time as a particular recovery and how it is registered in the systematic project of Hegel as a whole. KEYWORDS Encyclopedia. Science. Methodological. System.

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* Mestre pela UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE, Doutorando peloPrograma Integrado de Filosofia UFPB- UFRN - UFPE.

O MOMENTO ENCICLOPÉDICO DA “REAL FILOSOFIA” COMO

RECUPERAÇÃO DO PARTICULAR,NO INTERIOR DO PROGRAMA SISTEMÁTICO DE HEGEL

Recebido em mai. 2008Aprovado em jul. 2008

PATRICK DE OLIVEIRA ALMEIDA *

RESUMOEste artigo trata-se de uma consideração do movimentometodológico da constituição da ciência, enquantoconstituição sistemática, tal como a entende Hegel. Emespecial, é focalizado aqui o momento enciclopédico da“real filosofia”, no sentido de explicitar o significado geralde tal momento como recuperação do particular, e comoele se encontra inscrito no interior do projeto sistemáticode Hegel como um todo.

PALAVRAS-CHAVEEnciclopédia. Ciência. Metodológico. Sistema.

ABSTRACTThis article is about an account to the methodologymovement of the constitution of science, like asystematic constitution, as understood by Hegel. Inparticular, the focus in this paper is the encyclopedicmoment of the “real philosophy”, to explain the generalsignificance of such a time as a particular recovery andhow it is registered in the systematic project of Hegelas a whole.

KEYWORDSEncyclopedia. Science. Methodological. System.

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08I INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA EXPOSIÇÃO E A VALIDADE DO

METODOLÓGICO

No prefácio de 1812 da Ciência da lógica, Hegel nosinforma sobre as duas partes que integrariam o seu

pretendido “Sistema da Ciência”1. A primeira se constituida Fenomenologia do Espírito, entendida aqui por Hegelcomo parte integrante do próprio sistema e não somentecomo propedêutica ou como introdução ao sistemamesmo do saber. A segunda parte, Hegel reporta à Lógica,a qual seria acompanhada das “reais ciências [realeWissenschaften] da filosofia”2, quer dizer, da Filosofia daNatureza e da Filosofia do Espírito. A realização dapretensão sistemática anunciada por Hegel permaneceráaquém da forma expositiva própria da ciência enquantotal, no que se refere à segunda parte. Às ciências reaisfilosóficas ou, simplesmente, a essa real filosofia, não seráconcedido o necessário acabamento que exige o princípiocientífico quanto ao “desenvolvimento exaustivo das idéiassegundo o seu conteúdo”3, pelo menos no que diz respeitoà comparação daquelas com a Lógica, cuja perfectibilidadeda apresentação provocou a exigência de uma publicaçãoseparada. As filosofias da natureza e do espírito, momentosconseqüentes do desenvolvimento necessário do conceito

1 HEGEL, G. W. F. Wissenschat der Logik I. Frankfurt: Suhrkamp,1986. S. 18. (A informação bibliográfica completa será dada naprimeira ocorrência de cada obra, a partir da segunda ocorrência areferência figurará conforme abreviação indicada na seção “fontesbibliográficas”).

2 Ibidem, loc. cit.3 HEGEL, G.W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas I. Tr.:

MENESES, Paulo. São Paulo: Loyola, 1995. p. 13.

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0. concreto, contudo, padecerão desse déficit no status de

perfectibilidade que aproxima a apresentação da coisa àforma expositiva própria da ciência enquanto tal.

A consciência da relativa inadequação dos escritos(enciclopédicos) da “real filosofia” com a forma expositivado conceito explica o fato de que Hegel entenda aEnciclopédia, que tem sua primeira edição em 1817, comoum Grundriss, isto é, como um “traçado fundamental”4.O caráter do Grundriss está dado no enfoque dos“conceitos fundamentais [Grundbegriffe]” que seapresentam no interior da arquitetônica enciclopédica.

4 Para o presente texto faço uso da tradução proposta por MarcosMüller, pois que ela ressalta a diferença semântica entre Grundrisse Kompendium, em contraste com as traduções brasileira de PauloMeneses para o primeiro prefácio da Encilopédia das ciênciasfilosóficas e portuguesa de Manuel J. Carmo Ferreira para o prefáciodas Lições sobre filosofia do direito de 1820, nas quais o termoGrundriss é traduzido por “compêndio”, tornando patente aindistinção. Müller atenta para a distinção dada pelo próprio Hegel,nos parágrafos iniciais da Filosofia do direito, entre o “compêndiopropriamente dito” (eingentliches Kompendium) e o “traçadofundamental” (Grundriss). Segundo Hegel, o compêndio pressupõea ciência em seu acabamento dado, caracterizando-se como umaespécie de súmula dos momentos essenciais que compõem atotalidade da mesma. O Grundriss, por sua vez, guarda em si a idéiade uma pretensão em elevar, do ponto de vista da intensividade, asdeterminações fundamentais da verdade da coisa da ciência ao fatodo conhecimento elaborado, sem esgotar, no entanto, toda adeterminidade própria à coisa. A esse respeito pode-se conferir:MÜLLER, Marcos Lutz. Nota preliminar a esta tradução. In:“Introdução à filosofia do direito”. Tr.: MÜLLER, Marcos Lutz. SãoPaulo: IFCH/UNICAMP, 2005. p. 35; HEGEL, G. W. F. Prefácio dodireito natural e ciência do estado em compêndio. In:“Prefácios”. Tr.: FERREIRA, Manuel J. Carmo. Lisboa: ImprensaNacional-Casa da Moeda, 1990. pp. 173-204 e HEGEL, G. W. F.Enciclopédia das ciências filosóficas I. Tr.: MENESES, Paulo. SãoPaulo: Loyola, 1995. pp. 13-15.

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08Não obstante a Enciclopédia não levar a cabo o

“desenvolvimento minucioso”5 da particularização daciência, a ordem em que se encontra posta a apresentaçãodo conteúdo constitui, do ponto de vista metodológico, odesdobramento imanente necessário que a verdade doconceito requer. Eis a razão por que Hegel dista suaenciclopédia daquela vulgar que é compreendida comomera reunião externa (Sammlung) de materiais dispersos,como um agregado (Aggregat) de conhecimentos. Poroutro lado, devido ao enfoque pontual que condensa osmomentos conceituais da exposição, a Enciclopédia seráobjeto de uma constante implementação (Ausführung),e isto pode ser observado de duas maneiras. A primeiramaneira dá-se através do “preenchimento” e reelaboraçãoda letra, no sentido de enriquecer o movimento lógicotornando mais explícitas as determinações mediativas dademonstração, esta complementação é o que se realiza acada reedição da obra escrita sem com isso alcançar odetalhamento necessário.6 A outra maneira realizou-seatravés de um aprofundamento do caráter “abstrato” dosparágrafos pelo acrescentamento de adendos, pois que ésabido que inicialmente a Enciclopédia tem em vista serum roteiro, um fio condutor (Leitfaden) para as preleçõesorais de Hegel. Tal finalidade externa à coisa da ciência,assim como a “incompletude” que acomete a exposiçãoenciclopédica são talvez os principais motivos que levam

5 ECF, § 16.6 Podemos entender as obras posteriores de Hegel, tais como a

Linhas fundamentais da filosofia do direito e as Lições (sobre históriada filosofia e sobre filosofia da história), como fazendo parte destemovimento de “preenchimento” e desdobramento interno daexposição.

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0. Hegel a entender sua própria obra como um ensaio

(Versuch).Não importa aqui se deter na discussão sobre a

inconformidade do princípio científico com a forma deexposição. Para a abordagem que aqui ora se anuncia,serve como ponto de partida o reconhecimento, porparte de Hegel, sobre a validade da inteligibilidademetodológica que estrutura a Enciclopédia e, em especial,o momento da “real filosofia”. Este pequeno texto sedestina a explicar o sentido que assume o referidomomento no interior do movimento de constituiçãosistemática da ciência, tal como pensada por Hegel.Explicar o sentido implica mostrar o lócus do momentona sua pertinência e conexão necessária com ometodológico. Do ponto de vista do método, o momentoenciclopédico da filosofia aparece em sua necessáriacontinuidade com respeito ao projeto sistemático e, adespeito do problema da exposição, não pode serdesautorizado, na medida em que dá prosseguimento aoautomovimento do conceito.

O lócus sistemático da real filosofia deve serinicialmente definido na sua relação com a Ciência dalógica e no desenvolvimento necessário que essemomento enciclopédico dá consecusão, desenvolvimentocuja especificidade será mais adiante indicada.

II A PASSAGEM DA CIÊNCIA DA LÓGICA PARA O MOMENTO

ENCICLOPÉDICO DA “REAL FILOSOFIA”

A Ciência da lógica apresenta a unidade eidéticapor meio da exposição dos momentos que compõem auniversalidade per-feita do conceito. Primeiramente o

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08ser aparece como a imediatidade simples depreendida

do resultado produzido pela superação das determinaçõesfenomenológicas. A essência concede o momento damediação e da relação ao conceito, o qual efetua a per-feição desta “evolução” na determinação daautoconsciência absoluta, isto é, no conceito enquantotal. Porquanto este movimento da idéia opera auniversalização concreta que condiz ao ser-aí verdadeirodo conceito, obedecendo a uma progressão queenriquece a imediatidade inicial por meio dedeterminações necessárias e advindas conforme omovimento interno de desdobramento, mostra-se, então,o movimento antes anunciado, como um movimento de“complexificação” e, por conseguinte, como um movimentode “des-abstração” do conceito, pois que tem comoprincípio de orientação, precisamente, o afastamento, oumelhor, o comportamento “refutativo” para com asimplicidade e imediatidade do começo lógico. Destaforma, o desenvolvimento do saber lógico-especulativocoincide obrigatoriamente com a constituição daconcretude essencial do conceito7. Por outro lado,enquanto o lógico puro apresenta a “estrutura de totalidade”do pensar sob a “forma” de “essencialidades puras”8 (reine

7 Para Hegel, a refutação (Widerlegung) é o que impele o conceitoà sua progressão (Fortgang) e ao seu desenvolvimento, refutaçãoesta que tem sua fonte ou seu fundamento na constituiçãocontraditória da idéia, que, por meio do elemento negativo que elacontém em si, põe a necessidade do “ir-adiante” (Fortgehen) e domovimento que se realiza no sentido contrário ao que éabstratamente simples e indiferenciadamente universal.

8 HEGEL, G. W. F. Ciencia de la lógica (primeira parte). Tr.: MONDOLFO,Augusta y Rodolfo. Buenos Aires: Librería Hachette, 1956. p. 39.

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0. Wesenheiten) compete, também, ao lógico, tal como

reconhece Hegel, sua dimensão “relativamente abstrata”.9

Enquanto concretização do universal, odesenvolvimento especulativo que nos oferece a lógicaefetua, antes, a “des-particularização” do conceito, namedida em que os momentos particulares correspondentesaos momentos da universalidade ainda inconclusa, poisainda não absolutamente concreta, a saber, o universal sere o universal essência, são negados em detrimento do“momento particular” no qual reside a reconciliação per-feita do particular com o universal: a absolutez concretado conceito propriamente. Em verdade, não compete àlógica, ainda, o movimento que consiste na recuperaçãodo particular, e que será o desígnio da Enciclopédia. Osaber em seu substrato essencial, em sua unidade quese construiu em leis gerais do pensar puro, seabstrairmos da expressão “leis do pensar” o aspectoinstrumental e subjetivo que possa transparecer, é o quenos apresenta a exposição da Ciência da lógica.

Enquanto o puramente especulativo presente naCiência da lógica nos mostra os momentos do universalconcreto através da conexão essencial das determinaçõesdo ser, da essência e do conceito, a real filosofia estabelecea relação necessária entre o saber especulativo e asciências particulares, deste modo, “reconhece o universaldessas ciências – as leis, os gêneros, etc. – e o utiliza paraseu próprio conteúdo; mas também, além disso, nessascategorias introduz e faz valer outras”10. Assim, após aconstituição do ponto de vista do saber puro pela

9 ECF III, § 377, adendo.10 Ibidem, § 9.

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08Fenomenologia, e a apresentação das “determinações de

pensamento”11 inerentes a este saber puro pela Lógica,o percurso sistemático da exposição da ciência exige queseja contemplada esta terceira etapa metodológicabaseada no acolhimento explícito, pela especulaçãofilosófica, das ciências que se encontram, ainda, comoque “dispersas” em seus diversos “registros”12 e em suamultiplicidade ainda não ordenada e não recambiada àunidade sistemática do saber absoluto.

Obviamente a organização expositiva da Enciclopédiapermanece em prosseguimento em relação ao cursometodológico da Lógica. A elaboração do sistema do saber,que prescinde também das formas científicas particulares,submete a recuperação do particular ao mesmo “ritmoimanente dos conceitos”13, que não é senão o “pulso vital”

11 A expressão “determinação-de-pensamento” (Denkbestimmung)Hegel a retoma de Schelling. Nesta expressão está contida acompreensão de que as determinações do pensar não são somenteos produtos da atividade intelectiva da subjetividade restrita, masconcernem também às determinações das coisas (Dinge). Por essemotivo, a categorialidade de tais determinações tem uma valêncialógico-real. Toda determinação-de-pensamento – entenda-se comisso algo subjetivo ou objetivo, ou mais acertadamente, algosubjetivo-objetivo – é imanente à totalidade do lógos.

12 Termo utilizado por Marcos Lutz Müler na apresentação de suatradução para a introdução da obra Linhas fundamentais da filosofiado direito. Na apresentação da referida tradução, argumenta LutzMüller: “este é o título da obra (Enciclopédia das ciências filosóficas)que procura sistematizar os conceitos fundamentais e os princípiosracionais que articulam os modos de explicação dos diferentessaberes nos seus respectivos registros e no todo do saber, conceitose princípios que são, para Hegel, ao mesmo tempo, asdeterminações essenciais da realidade efetiva” (MÜLLER, MarcosLutz, op. cit., p. 5, grifo nosso).

13 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tr.: MENESES,Paulo. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 54.

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0. (Lebenspuls) da coisa mesma. O tratamento dado às

formas diversas do saber, ou o ato de coligir que o métodoespeculativo implica, distancia-se, pelo motivo acimaexplicado, do procedimento enciclopédico vulgar queconsiste na construção de uma “arquitetônica” doconhecimento que se baseia na mera disposição earregimentação externa das ciências particulares, quenada mais é que “um agregado das ciências, que sãoacolhidas de modo contingente e empírico, e entre asquais há algumas que de ciência têm apenas o nome,embora elas mesmas sejam uma simples coleção deconhecimentos”14.

O liame extrínseco que a conexão enciclopédicanão-especulativa introduz na dispersão dos registroscientíficos resulta do acolhimento imediato que elaefetua dos saberes, sem que o conteúdo dos mesmostenha se sujeitado à atividade de negação e de elevaçãoprópria à “consideração pensante” (denkendeBetrachtung) do saber filosófico. Esta unidade dadapela simples reunião não promove nenhuma alteraçãona relativa autonomia que os múltiplos saberesestabelecem entre si e, sobretudo, não produz anecessária “mudança das categorias”15, quer dizer,permite que os conceitos abstratos, com os quaistrabalham as ciências empíricas e formalizantes,permaneçam inalterados em seu estatuto lógico. Sema purificação (Reinigung) e o reconhecimento doconteúdo de tais saberes, o princípio enciclopédiconão produz nada mais que uma operação de agregação

14 ECF I, § 16.15 Ibidem, § 9.

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08das diversas espécies (Arte) do conhecer de

entendimento16.

III O PROCEDER DAS CIÊNCIAS DE ENTENDIMENTO

Ora, o conteúdo do conhecer em geral apareceprimeiramente à consciência como um dado(Vorhandenes), isto porque a matéria do conhecimentoestá previamente dada no sentimento e na intuição,antes de ser formatada em gênero ou numa noçãouniversal. Nesta relação entre a subjetividadecognoscente e o objeto, o produto do conhecimentoconsiste numa transformação do imediato que se opõeà consciência. A elaboração, processada pelasubjetividade, da matéria dada, de forma a constituirconceitos universais, que a rigor, são somente noçõesgenéricas, é o que se entende comumente porconhecimento. Entretanto, através deste método deconhecer, o imediato mesmo, ou, por assim dizer, a“matéria bruta” não acede mais ao âmbito do

16 Ao final da introdução da Enciclopédia, Hegel chama atençãojustamente para a má-compreensão que pode resultar do fato de sepensar o desenvolvimento do conceito a partir da noção de “divisão”(Einteilung). O movimento da idéia recupera em cada momento deseu desenvolvimento a sua totalidade sob uma determinidadeespecial, isto se distancia da compreensão que reparte a idéia emmomentos independentes, uns em relação aos outros, pois que cadamomento, ou círculo, como denomina Hegel, contém em si anecessidade da passagem para um outro, sendo incorreto “colocaras partes ou ciências particulares umas ao lado das outras, como sefossem apenas imóveis e substanciais em sua diferenciação” (cf.ibidem, § 18).

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0. conhecimento tal como era originalmente, a saber, pura

imediatidade, mas corresponde ao produto da atividademediativa do conhecer, como algo que sofreu ainterferência da subjetividade. Por essa razão, oentendimento se reduz a produzir representações dascoisas, e o saber que assim procede é, em essência, teoriarepresentacional dos objetos. O conhecimento, nestecontexto, se apresenta como a atividade unilateral de umsujeito filosofante que tem fora de si o conteúdo a sertransformado em determinação pensada. Esta apropriaçãouniversalizante do “mundo” constitui, como o afirmaHegel, o “poder absoluto”,17 na medida em que submete amultiplicidade infinita à categorialidade e universalidadedo pensar e, deste modo, a divide e a determina. Por outrolado, enquanto esta universalidade respeitante ao“conceito” do entendimento põe-se como “representaçãoabstrata que pode ser atribuída aos casos singulares quelhe estão subsumidos”18 ou como a “nota comum”19 dossingulares, ela se limita ao estatuto de noção genérica e,como tal, se estabelece ao lado de infinitos outrosconceitos, com igual justiça também genéricos, portanto,limita a universalidade à condição de particular. “Ouniversal, tomado formalmente e posto ao lado doparticular, torna-se ele mesmo também algo particular”20.Trata-se, aqui, para Hegel, da produção do gênero(Gattung) pela reflexão subjetiva, a qual representa, em

17 HEGEL, G. W. F. Phänomenolgie des Geistes. Frankfurt: Suhrkamp,1986. S. 36.

18 Cf. MÜLLER, Marcos Lutz, op. cit., p. 8.19 Idem, ibidem, loc. cit.20 ECF I, § 13.

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08última instância, apenas o primeiro movimento do

pensar, aquele atinente à primeira negação daconsciência frente ao imediato.

A relação consciência-”mundo”, ou melhor,subjetividade-empiria nos mostra que, primeiramente, oconteúdo do conhecimento é “captado” sob o modo dosentimento ou da intuição sensível, contudo, na medida emque a universalidade é o elemento da ciência21, a mediaçãoda atividade cognitiva opera negativamente em relação aeste primeiro conteúdo e confere ao mesmo a formarepresentativa do gênero, ou a do universal deentendimento. Ao julgar ser esta conexão sensível, presentena relação imediata da consciência com os objetos, umaconexão original do conhecimento, o entendimento, o queé mais patente nas filosofias ditas empiristas, acabaidentificando o conhecer e o representar, já que a elevaçãodo conteúdo do sentimento e da intuição não é senão anegação do imediato que subsiste fora do pensar.

A preocupação da razão não está em negar estaoriginalidade do conhecimento, quando se considera ocondicionamento da consciência na experiência. De fato, oconhecer, do ponto de vista da consciência tem seu começo,ou sua “origem primeira” (erste Entstehung) na experiência,esteja esta referida externa ou internamente à consciência.O problema é que este começo não constitui aoriginariedade absoluta do pensar, mas representa apenas,como o diz Hegel, “a relação para com o sujeito, enquantoeste quer decidir-se a filosofar”22. Sob esta perspectiva

21 Como expressa Hegel: “além do que, por residir a filosofiaessencialmente no elemento da universalidade – que em si inclui oparticular [...]” (FE, Prefácio, p. 21).

22 ECF I, § 17.

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0. da subjetividade finita, a relação de conhecimento

encontra-se instalada no âmbito da cisão, Hegel chamaatenção para fato de que nesta relação da consciênciacom o objeto está presente somente “o primeiro conceito– e, por ser o primeiro, contém a separação, que o pensaré objeto para um sujeito filosofante (de certo modoexterior)”, ou seja, à consciência se oferece previamenteo ponto de vista segundo o qual o pensar se encontracindido na forma de um objeto que é para o sujeito. Emdecorrência disso, pode-se dizer que a consciência se põea conhecer, certamente, por meio da excitação e doestímulo externo23.

A representação emerge como a expressão últimadeste conhecer que pressupõe fora de si o conteúdofigurado na forma de um “fato de experiência” (erfahreneTatsache), de um fato da consciência: o puro dado(Gegebenes). Mas enquanto o dado não pode porfiar-sena condição de um mero algo pré-existente encontrado-aí pela consciência, sob pena de que para o pensar seconstitua a contradição de um conhecer finito, que temante si um elemento alógico, então à consideraçãopensante, isto é, à razão, é dada a tarefa de subsumir estacisão na imediatidade do conceito, subsumir este queaparece como uma segunda negação, a negação danegação.

23 Diz Hegel: “o nascimento da filosofia [...] tem a experiência, aconsciência imediata e raciocinante, por ponto de partida. Excitadopor ela, como por um estímulo, o pensar procede essencialmentede modo a elevar-se acima da consciência natural, sensível eraciocinante ao sem mistura elemento de si mesmo, e outorga-se,assim, inicialmente uma relação negativa de afastar-se, para comesse começo” (ibidem, § 12, grifos de Hegel).

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08A segunda negação, por significar a auto-

estruturação absoluta da razão, se investe contra aquiloque o entendimento construiu de modo a recolhercriticamente o universo de representações no qualculminou o seu (do entendimento) agir.

O agir de entendimento encontra na multitude defenômenos da experiência o liame essencial e auniversalidade que lhe concerne, reduzindo aexperiência intra e extra consciencial, conforme apotência da produção do gênero que lhe é ínsita, aomundo das leis e das causas universais24. O escopouniversalizante do entendimento acaba transformandotodas as determinações de pensamento em conceitosfixos e autônomos, de modo que a diferença de cadaconceito é determinada de forma absoluta em suarespectiva unilateralidade.

A ciência de entendimento, ao lançar mão desseformalismo abstratamente universalizante, divide arealidade em interior e manifestação, tal como expõedetalhadamente Hegel na Fenomenologia quando fala deforça e exteriorização. A duplicação do mundo emfenômeno e lei que repõe, claramente, a lógica darepresentação, está estruturada com base na relação deconceitos cujos teores já são pressupostos imediatamentede maneira rígida e formal no momento da investigação.É o caso, por exemplo, da física moderna que outorga leisuniversais à natureza baseada numa concepção abstratade espaço e de tempo, conceitos nos quais se revelam,

24 De acordo com Bourgeois, no apêndice à tradução brasileira daEnciclopédia (pp. 375-443), o entendimento age “seguindo aidentidade redutora da diversidade do conteúdo”.

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0. quando relacionados estruturalmente em teoremas,

somente o aspecto quantitativo de suas significações. Acrítica de Hegel à ciência de entendimento, ao se dirigirao procedimento de construção de conceitos da última,problematiza, assim, os elementos basilares dasustentação axiomática das ciências, mormente namodernidade, tendo em vista que o axioma não é senãouma relação entre conceitos.

Com a crítica à dimensão axiomática da ciênciade entendimento, Hegel pretende pôr em cheque orecolhimento imediato das determinações pensadasdiretamente da representação e, assim fazendo,reivindicar a necessidade de um saber de totalidade querecupere em sua unidade, de um modo orgânico, adiferenciação processada pelo entendimento e,“mediante o suprassumir dos pensamentos determinadose fixos, efetivar e espiritualizar o universal”25.

Uma ciência particular, ao se autonomizar frentea outras ciências particulares de igual direito, institui suaunidade disciplinar através do mero ordenamento de seusteoremas sem que suas próprias pressuposições semostrem como justificadas segundo a necessidade, o que,para Hegel, só se dá quando a elaboração do saberpersegue o nexo imanente do movimento do princípiocientífico, buscando estabelecer cada saber “regional” emseu locus determinado conforme a progressão dodesenvolvimento do conceito. Dissociadas da unidadeconceitual que concede a cada qual sua posição(determinidade) na organização total do saber, asciências ditas particulares, tanto aquelas que contêm um

25 FE, Prefácio, p. 39.

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08momento explicitamente empírico em seu proceder,

como é o caso da física, da química e da biologia, quantoaquelas que operam numa dimensão abstratamenteformal, tal como a lógica e a matemática, estabelecementre si uma relação puramente externa. Isto porque sãomanifestações do conhecimento que, por se manteremdispersas, carecem de uma estruturação una que legitimea especificação de seus objetos e leis, estruturação queHegel só admite enquanto uma teoria onto-lógica do ser,isto é, uma metafísica especulativa que acolha em seuinterior as distintas configurações do saber em si.

As ciências formais e empíricas mostram-seisentas da dimensão propriamente fundante do saber,pois que seus princípios e leis são provenientes dooperar representativo do entendimento. A ausência doprincípio científico que viria a dar uma unidade àdiversidade dos conhecimentos ressalta, muito notadamente,da separação promovida entre empiria e metafísica,principalmente com o desenvolvimento do empirismo e docriticismo modernos. Esta separação atinge sua maiorclareza com a ratificação da concepção construtivista daciência por Kant, segundo a qual

a razão só entende aquilo que produz segundo seuspróprios planos, que ela tem que tomar a dianteiracom princípios, que determinam os seus juízossegundo leis constantes e deve forçar a natureza aresponder às suas interrogações em vez de se deixarguiar por esta; de outro modo, as observações feitasao acaso, realizadas sem plano prévio, não seordenam segundo a lei necessária, que a razãoprocura e de que necessita. A razão, tendo por um lado

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0. os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenômenos

concordantes a autoridade de leis e, por outro, aexperimentação, que imaginou segundo essesprincípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser poresta ensinada, é certo, mas não na qualidade de alunoque aceita tudo que o mestre afirma, antes na de juizinvestido nas suas funções, que obriga as testemunhasa responder aos quesitos que lhes apresenta26.

Nesta afirmação de Kant, a natureza apareceidentificada ao conjunto de fenômenos naturais, e não ésenão um outro termo equivalente à empiria, cujas leisnão expressam mais que a verificação experimental daspressuposições prévias do entendimento, e que têm porbase a mesma fixidez acima indicada. O procedimentoda construção abre margem, por isso, à arbitrariedade econtingência daquilo que é hipotetizado, se resumindoà mera constatação corroborativa ou não do objeto. Anatureza, considerada desta maneira, torna-se o grande“laboratório” do entendimento, ou seja, é transformadano espaço de legitimação “das pressuposições easseverações”27 de uma dada teoria e interpelada combase no pré-conceito do entendimento. Além de que, naformulação da lei está enunciado um relacionamentoestritamente analítico de conceitos, isto porque o seuconteúdo é a expressão tautológica na qual a conexão éfundada numa falsa diversidade, na oposição abstrata28.

26 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tr.: SANTOS, ManuelaPinto dos; MORUJÃO, Alexandre Fradique. 5 ed. Lisboa: CalousteGulbenkian, 2001. p. 18.

27 ECF I, § 1.28 Hegel tem em vista principalmente, com a crítica ao mundo

abstrato das leis que o entendimento forja, as ciências [Continua]

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08Assim, o movimento de demonstração da lei aparece

como o resultado acidental a partir de uma consideraçãoexterior29.

Neste procedimento ingênuo da ciência deentendimento, principalmente aquelas que contêm uma

[Continuação da Nota 28] modernas da natureza, que naelaboração do conhecimento não chega a mostrar o nexo imanentedos conceitos relacionados na lei e, quando pretende explicar(erklären) a “realidade fenomênica” da natureza, não faz mais quedeixar as coisas na oposição indiferenciada (“o frio é a ausência decalor”), ou definir o objeto tomado em consideração pela mera re-denominação de sua mesmidade (“o peso é a força que atrai oscorpos para baixo” / “os corpos caem porque são dotados de peso”).Sobre essa discussão da relação entre força e exteriorização,podemos nos remeter ao excelente acompanhamento expositivofeito por Hyppolite (cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura daFenomenologia do espírito de Hegel. Tr.: ROSA, Sílvio (coord.). SãoPaulo: Discurso Edirorial, 1999. pp. 133-154).

29 Esta crítica ao construtivismo da ciência do entendimento é bemexplícita no pensamento de Hegel, principalmente quando estecritica o procedimento demonstrativo da matemática e dageometria, as quais fundamentam suas conclusões e resultados porum método (caminho) que se revela externo à própria coisa de quese partiu. A propósito, na Fenomenologia (pp. 43-46), Hegel chamaatenção, a título de exemplo, para a demonstração do teoremamatemático que põe em relação os catetos e a hipotenusa dotriângulo, teorema que é demonstrado com base numprolongamento e projeções das semi-retas que compõe a figura dotriângulo, sem que tal construção contenha em si uma necessidadeimanente expressa, embora ela resulte numa conclusão correta, oque evidencia, para Hegel, a arbitrariedade do procedimentodemonstrativo. Afirma Hegel: “sem dúvida, como resultado, oteorema é reconhecido como teorema verdadeiro. Mas essacircunstância, que se acrescentou depois, não concerne ao seuconteúdo, mas só à relação para com o sujeito. O movimento daprova matemática não pertence àquilo que é objeto, mas é um agirexterior à coisa” (cf. ibidem, p. 43, grifos de Hegel).

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0. dimensão expressamente empírica, o que se faz notar é

o condicionamento ao dado e ao previamente achado, eo conhecimento se produz, como já dito mais acima,através de uma elaboração representativa do imediatooferecido pela experiência, sendo digno do estatutorestrito de uma simples elaboração teórica pautada nos“pensamentos sobre o dado”30. Mas, se o dado é o “pré-encontrado”, o “achado-aí”, então, o conhecer assume dechofre a significação de ser uma operação imediata daconsciência, e a sua necessidade não pode ser legitimamenteapreendida, que dizer, não pode ser mostrada a mediaçãoque está implicada neste operar31.

O conhecimento, circunscrito à representação,ainda que opere a negação da multiplicidade “infinita”da empiria, produzindo as identidades dos juízosgenéricos, abandona o conteúdo da ciência aorelacionamento externo, o que pode ser observado nocaráter fixo de tais universalidades construídas eestabelecidas em suas autonomias relativas, deixando-as figurar umas ao lado das outras, como identidadesestáticas. O limite deste conhecer, então, está posto nesteesquadrinhamento abstrato do ser-aí da realidadeimediata que a consciência experimenta. Hegel reservaao entendimento, em razão desse seu procedimento, oepíteto de “tabelador”, por se obstinar nesta produçãoilimitada de definições e compara a sua obra (do

30 ECF I, § 7.31 Pois, afirma Hegel, “esse pensar da maneira filosófica de conhecer

precisa, ele mesmo, tanto de ser apreendido segundo suanecessidade como também de ser justificado por sua capacidade deconhecer os objetos absolutos” (ibidem, § 10).

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08entendimento) “a um esqueleto, com cartõezinhos

colados, ou uma prateleira de latas com suas etiquetaspenduradas num armazém”32. Esta mesma estaticidadedas determinações finitas do entendimento é o que“cristaliza” e retém no isolamento e na oposiçãoconceitual os objetos supra-empíricos do pensar, para oqual se endereça o supremo interesse do pensar (finito,infinito, forma, conteúdo, sujeito, objeto, Deus, mundo,alma, substância, universal, particular, etc.). Este domíniometafísico do pensar não pode ser considerado tal comoa consciência considera as realidades imediatamentesensíveis e a multiplicidade de fenômenos que a empiriacomporta.

O conhecimento representativo situa-se, para opensar verdadeiro, no âmbito da cisão e da separaçãoentre a subjetividade e a objetividade, pois se revela narelação entre o elemento cognoscente e a imediatidadedada. A representação, enquanto se funda numaalteração (Veränderung) do que é dado, deixa subsistir oindeterminado fora do conhecer, se limitando a uma“interpretação” cognitiva das coisas. Os pensamentosrepresentados valem por subtrações (abstrações), nosentido de determinações desprendidas da totalidadeorgânica do conceito. A representação encontra suafinitude por ter como ponto de partida a referidaseparação, pois que o sujeito de conhecimento lidaprecisamente com fatos da consciência. Mas a separaçãonão é senão a manifestação do próprio conceito numdeterminado momento de seu automovimento, pois oque é concreto, como diz Hegel, “só porque se divide e

32 FE, Prefácio, p. 49.

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0. se faz inefetivo é que se move”33. A representação é,

portanto, a síntese ainda imperfeita, mas necessária, desujeito e objeto, em relação a qual o conceito, em suaforma própria, aparece como o perfazimento da unidade.

IV CONSIDERAÇÕES FINAIS: A RECUPERAÇÃO DO PARTICULAR E O

“FECHAMENTO” DO PERCURSO SISTEMÁTICO DA CIÊNCIA

Embora o procedimento representativo dasciências de entendimento tenda a finitizar os objetossupremos do pensar em noções genéricas, conduzindoo próprio pensar a antinomias, graças ao limite opositivoa que chega o entendimento, constitui essa atividadeabstrativa a posição do primeiro conceito – ainda quena forma representativa, como “metáfora dos pensamentose conceitos”34 mesmos – “e, por ser o primeiro, contém aseparação, que o pensar é o objeto para um sujeitofilosofante (de certo modo exterior)”35. A reflexão doconceito está condicionada à necessidade destaduplicação de si opositiva, como condição de suadiferenciação interna e de seu retorno. A subjeto-objetividade atinge perfeição sintética, tendo comomomento de sua realização o pôr-se do próprio conceitocomo objeto do conhecimento, destarte, como alteridadea ser recuperada em sua efetividade concreta. “O ato livredo pensar é isto, colocar-se no ponto de vista em que épara si mesmo, e por isso se engendra e se dá seuobjeto”36.

33 Ibidem, loc. cit., p. 38.34 ECF I, § 3.35 Ibidem, § 17.36 Ibidem, loc. cit.

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08A ciência de entendimento, em seu trabalho,

expressa em seu conhecimento representativo estemomento do recorte infinito que só ulteriormente apareceintegrado à organicidade do todo; atividade de recorte37

que deve ser tomada como particularização – aindaabstrata, é certo, pois que não aparece imediatamente emsua associação substancial com a universalidade concreta– do conceito posto como conhecimento e, ao mesmotempo, como submissão inicial da “multiplicidade dispostalado a lado”38, fornecendo, por esta via, o material sobre oqual a razão opera a síntese especulativa.

As ciências empíricas, de um lado, não ficam no perceberdas singularidades do fenômeno; mas, pensando, elaselaboram o material para a filosofia, enquantodescobrem as determinações universais, os gêneros eas leis: preparam assim aquele primeiro conteúdo doparticular para que possa ser acolhido pela filosofia39.

Para a apropriação representativa, o conteúdo dopensar funciona ainda como o “seu”, ou seja, comodeterminação produzida por uma reflexão da consciênciasobre a coisa dada, por esse motivo, como conceito finito,

37 O termo “recorte” parece muito apropriado para exprimir osignificado do agir de entendimento, na medida em que tal atividadeconsiste no destacamento, isolamento e fixação das determinaçõesdo pensar, na medida também em que nos remete à compreensãode um operar instrumental e repetitivo, assim como à limitadaperspectiva de seu foco: “o entendimento lança uma vista geralsobre o todo, e vem pairar sobre um ser-aí singular do qual fala;quer dizer, não o enxerga de modo nenhum” (FE, Prefácio, p. 51).

38 ECF I, § 12.39 Ibidem, § 12.

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0. conceito do entendimento, como uma alteração

subjetiva da coisa, permanecendo a universalidadeproduzida como identidade formal que deixa subsistir oimediato. Eis a razão por que Hegel afirma que “orepresentado se torna propriedade da pura consciência-de-si; mas essa elevação à universalidade em geral não éainda a formação cultural completa: é só um aspecto”40.

As ciências do entendimento, enquanto lançam mãodeste identitarismo formal, só podem ser chamadas departiculares no sentido negativo do termo; deve-se, antes,dizer que elas se encontram “particularizadas”, isto é,isoladas e externadas umas das outras, não lhe competindouma autêntica particularidade, tendo em vista que lhes faltaa reunião na totalidade orgânica de uma saber sistemático,que é a expressão verdadeira do conceito que a si mesmomove, pois a pretensão de ser saber particular carregaineliminavelmente em si a relação de pertencimento aosaber mesmo, sem outras determinações, ou se se quer, aosaber de totalidade. As ciências do entendimento não sãopor si só capazes de se darem essa unidade, primeiramentepela essencial particularidade que lhes compete, que dizrespeito à determinidade de seus objetos, segundo, porqueesta unidade é dada na própria auto-fundação do saber, oque, devido a tais ciências ter na representação o seu pontode partida, não pode ser efetuado sem que elas decaiamnuma dogmática ou numa axiomática teórica.

A tarefa da Enciclopédia, em especial a realfilosofia, se justifica na retirada das manifestaçõesdeterminadas do conhecer do conceito desta dispersão,e no acolhimento, por meio de uma negação conservadora

40 FE, Prefácio, p. 39.

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08(Aufhebung) do que foi abstratamente particularizado, do

concreto do conceito que, até então, só acedeu à forma darepresentação. Esta negação não é a destruição plena douniversal do entendimento, mas a universalizaçãoconcreta dos conceitos unilaterais, na forma de umaidentificação que supera a fixação opositiva. Estanegação pressupõe uma recompreensão41 dos significadoslimitados dos conceitos do entendimento e o estabelecimentoda referência das determinações pensadas ao universalverdadeiro, enquanto este é o lógico que perpassa a totalidaded’o que é, o conceito (razão) do “conceito” (entendimento).

41 Esta “recompreensão” atinge todo o domínio dos saberes que setornaram reféns do entendimento, e se pauta na reelaboração dosestatutos lógicos dos conceitos representativos, reelaboração que Hegeldenomina de reconhecimento. Antes de tudo este reconhecimento operaa passagem (Übergang) de uma determinação estabelecida peloentendimento à determinação oposta correspondente, de modo que,por exemplo, finito-infinito, subjetividade-objetividade etc., são elevadosa uma unidade concreta, não sendo possível à razão manter estasdeterminações em suas oposições limitantes, ou considerá-lasindividualmente em suas relativas autonomias, sem desembocar emantinomias. Na lógica, esta unidade se processa entre forma e conteúdo,propiciando sua superação enquanto saber puramente formal einstrumental. Na matemática, o que Hegel põe em cheque é ainefetividade de seus conceitos e objetos, na medida em que esta ciênciase atém ao que Hegel denomina de “sensível abstrato e carente-de-ser-aí” (ECF I, § 19, adendo 2). Nas ciências da natureza, principalmente nafísica moderna, Hegel problematiza os conceitos de tempo e espaço eo modo como estes são empregados no relacionamento equacionárioda lei, onde suas diferenças qualitativas não são observadas. Mas oque há de comum, e o que perpassa todo esse domínio do saber carentede razão, é a finitude que a “conceitologia” do entendimento incute nasdeterminações do pensar. O agir do entendimento pode ser resumidonas seguintes palavras de Hegel: “o pensar enquanto entendimentofica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação à outradeterminidade; um tal abstrato limitado vale para o pensar enquantoentendimento como para si subsistente e essente” (ECF I, § 80).

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0. O trabalho enciclopédico da real filosofia consiste

na assunção crítica das determinações concretas doconhecer do conceito que o entendimento reteve narelação exterior.

O acolher desse conteúdo – no qual, graças ao pensar,são suprassumidos a imediatez ainda aderente e oser-dado – é ao mesmo tempo um desenvolvimentodo pensar a partir de si mesmo. Enquanto a filosofiadeve, assim, seu desenvolvimento às ciênciasempíricas, dá-lhes ao conteúdo a mais essencialfigura da liberdade (do a priori) do pensar e averificação da necessidade em lugar da constataçãodo achado, e do fato-de-experiência; de maneira queo fato se torna a apresentação e a reprodução daatividade originária e perfeitamente autônoma dopensar42.

Trata-se de um desenvolvimento do pensar a partirde si mesmo, precisamente porque o entendimentoconstitui um momento da própria autoconstituição daracionalidade do conceito. A permanência na abstração ea decorrente contradição que acomete o pensar que sedemora no entendimento, põe a necessidade mesma dapassagem dialética para o momento positivo daespeculação, realizada na identificação dos opostos, comodestituição de suas unilateralidades, logo, de seus estatutos“conceituais” fixos43. Por aqui se processa a reivindicada

42 ECF I, § 12.43 A propósito, diz Hegel: “a dialética é esse ultrapassar imanente,

em que a unilateralidade, a limitação das determinações doentendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todofinito é isto: suprassumir-se a si mesmo. O dialético [Continua]

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08alteração das categorias e a introdução das “formas

peculiares”44 do conceito.Este “acolher do conteúdo e de suas determinações

(do pensar)”45 representa, em verdade, um segundoacolhimento pelo pensar, portanto, deve-se dizer maisexatamente que se trata de um re-colhimento, ou melhor deuma recuperação do particular presente nas manifestaçõesdo conhecer, enquanto saberes determinados, dispersos emseus registro e abstratamente particularizados e que,doravante englobados e “trans”-situados no locus especulativoque o conceito impõe a cada um, aparecem, por fim, comodiz Bourgeois, como “particularização interior”46 datotalidade.

Em contraste com a particularização externada doentendimento, a Enciclopédia apresenta a particularizaçãoimanente do conteúdo, o que para Hegel equivale àautodeterminação do conceito em seu movimento dedesenvolvimento próprio. Nesta autodeterminação estãoimplicados o re-ordenamento e a re-significação daspróprias ciências comumente denominadas de particulares,pois que a transformação do sentido da particularização leva

[Continuação da Nota 43] constitui, pois, a alma motriz doprogredir científico; e é o único princípio pelo qual entram noconteúdo da ciência a conexão e a necessidade imanentes, assimcomo, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – nãoexterior – sobre o finito” (ibidem, § 81).

44 Ibidem, § 9.45 Ibidem, § 12, parêntese nosso.46 BOURGEOIS, Bérnard. A enciclopédia das ciências filosóficas

de Hegel. Tr.: MENESES, Paulo. Loyola: são Paulo, 1995. p. 410.(Texto contido no apêndice da tradução brasileira de Paulo Menesesda Enciclopédia das ciências filosóficas).

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0. consigo a exigência de adequação à seqüência verdadeira dos

momentos particulares do conceito, como já o dissemos maisacima, de modo que não só as “rubricas” dos saberes devemser recompreendidas e, quando necessário, atéredenominadas – é o caso, por exemplo, da Psicologia, a qualHegel afasta da compreensão de uma mera teoria empíricadas faculdades relativas à alma, aproximando-a muito mais,com as devidas distinções, da Pneumatologia clássica, queHegel denomina de Psicologia racional. O saber que o conceitoabrange e “posiciona”, então, não é a disposição exterior earbitrária da simples ordem, nem, igualmente, o recolhimentodesordenado da totalidade dos saberes positivos, mas oreconhecimento da particularidade positiva de suaefetividade. Em suma, “todo” saber é conduzido, pelaEnciclopédia, aos círculos, ou aos ciclos, que expressam acorreta “determinização” do saber aos particulares reais: osaber do saber na natureza (Filosofia da Natureza), e o saberdo saber no espírito (Filosofia do Espírito).

A organização enciclopédica mostra-se como omomento em que o saber assume internamente em suaexposição a concretude que para a consciência apareciacomo um outro de si. No processo da construçãosistemática, este terceiro momento se apresenta emprosseguimento ao primeiro momento da superação dafinitude da consciência estritamente empírica, marcadapor uma subjetividade unilateral, efetuada na Fenomenologia,e ao segundo momento, onde é efetuado a tematização dasdeterminações puras do universal, condizente à Ciência dalógica, onde o saber se expõe na dimensão depuradaenquanto “idéia da idéia”47.

47 Bourgeois, Bernard, op. cit., p. 420.

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08O princípio que ordena este percurso sistematizante

da ciência permite que, oportunamente, possamos nosremeter à conhecida compreensão platônica do processometodológico necessário e destinado ao filosofar que tempor verdade ser a ciência (epistéme) do absoluto (idéa).O método dialético tão bem delineado em sua formametafórica por Platão, através da narrativa alegórica dacaverna, parece consistir no próprio caminho tomadopor Hegel, isto de acordo com a inteligibilidade que aseqüência dos momentos de formação do sistema, nafilosofia do segundo, revela.

Assim, poderíamos dizer que a constituição daciência, em Hegel, contém aquele duplo movimentoapresentado na República, de ascensão e descensãodialéticas ou, como nos faz lembrar o próprio Platão, adupla passagem: “da luz à sombra, e da sombra à luz”48.Correspondendo a Fenomenologia ao momento daascensão, da saída da caverna, promovendo a destituiçãoda fenomenalidade e da perspectiva finita atinente àconsciência presa às representações, às sombras, assimcomo também é posto fim na separação entre mundofenomenal (caverna), e realidade efetiva (o sol). AEnciclopédia e o momento da real filosofia, por sua vez,nos mostra a descensão da filosofia e o retorno ao mundofinito, mas neste retorno o representar é posto em seulimite, enquanto produção imagética do verdadeiro, –lembremos que Hegel confere à representação aqualidade de metáfora do conceito –; porém, a descidaresgata o representado, negando a finitude abstrata que

48 PLATÃO. República. Tr.: ROCHA, Maria Helena da. 9 ed. Calouste:Lisboa, 2001. Livro VII, p. 320.

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0. lhe impede a transformação em conceito, iluminando o

mundo escuro da contradição nadificante (o entendimentopersistente)49. Na “articulação” destes dois momentos“situa-se”, necessariamente, a própria contemplação do sol,o momento da forma (idéa) suprema, condizente com aCiência da lógica, na qual o conceito se apresenta comototalidade da forma, o conteúdo absoluto em suasimplicidade.

A comparação efetuada, contudo, tem uma funçãomeramente “pedagógica” e ilustrativa, como écaracterístico, aliás, da utilização da imagem paracompreensão do conceito, já que “a ciência [...] só podeser julgada a partir do conceito, enquanto sobre oconceito repousa”50; o imperfeito que reside nestaexplicação imagética do verdadeiro método é a reduçãodo movimento conceitual a uma figuração topológica, enão apresentar os momentos do conceito como divisãoque se funda em sua atividade imanente dedeterminação, enquanto ele é subjetividade infinita.51

49 Para fazer um paralelo ainda mais preciso entre o momentoenciclopédico e a descensão platônica, podemos nos reportar àsseguintes palavras da República: “depois já compreenderia (ohomem que retornou à caverna), acerca do sol, que é ele que causaas estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é oresponsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo” (Idem,ibidem., loc. cit., p. 318).

50 ECF I, Prefácio à segunda edição, p. 31.51 Para Hegel, na filosofia clássica, embora considerada já como

reflexão especulativa, não se encontra postulada a identidade desubstância e sujeito e, portanto, não se chega, nela, à compreensãode um absoluto pensado como processo e como sujeito de suaprópria efetivação. Mesmo Platão, segundo Hegel, teria permanecidonuma dialética negativa, quer dizer, chegando somente [Continua]

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08Podemos concluir, então, que ao momento

enciclopédico da real filosofia cabe, portanto, a tarefa deacabamento do edifício sistemático da ciência, e de darcumprimento ao estabelecimento do saber de totalidadepretendido por Hegel. O reconhecimento do elementometodológico interno à Enciclopédia, ressaltadofreqüentemente pelo próprio Hegel, “no que concerne àstransições que só podem ser uma mediação a efetuar-se pormeio do conceito”52, é o que interessa à presente explanação.O problema da perfectibilidade expositiva não impossibilitauma profícua discussão, a qual é apresentada aqui, em seustraços fundamentais, sobre o movimento metodológico deconstituição da própria ciência, pois que, como nos alerta Hegel,

a ciência que recém começa, e assim não chegou aoremate dos detalhes nem à perfeição da forma, estáexposta à crítica por isso. Caso porém tal crítica devesseatingir a essência mesma da ciência, seria tão injustaquanto seria inadmissível não querer reconhecer aexigência do processo de formação cultural [Bildung]53.

[Continuação da Nota 51] a mostrar a indissociabilidade dasdeterminações do pensar (uno, múltiplo, ser, não-ser, mesmo, outro,movimento, repouso etc), e que elas não poderiam ser pensadasem seus isolamentos sem resultar em contradição. Não se encontra,ainda, em Platão, como quer Hegel, a síntese absoluta, expressão daespeculação efetuada. O tão celebrado Parmênides, que contém aexposição das relações contraditórias do que Platão denomina de“gêneros do pensamento”, pode ser posto em paralelo, no que dizrespeito ao seu resultado, com a Crítica da Razão Pura, na medidaem esta última obra também teve, para Hegel, o mérito de mostrara finitude que compete às determinações do pensar quandopensadas sob a perspectiva do “fixismo” abstrato.

52 Ibidem, loc. cit., p. 14.53 FE, Prefácio, pp. 27-28.

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0. O que é o mais importante, então, consiste na

evidenciação da necessidade desse trajeto que orienta afilosofia hegeliana, assim como a consideração destemovimento metodológico enquanto automovimento doconceito, que tem o significado de ser o desenvolvimentopróprio do filosofar que quer se tornar saber efetivo,“posse” da coisa, e que para tanto deve: ultrapassar afinitude imediata do empírico, progredir nas determinações“universalíssimas” do pensar e retornar aos conteúdos daconsciência reflexiva finita de modo a reconhecê-los em suadimensão de verdade, quer dizer, trans-formar estesconteúdos em determinações imanentes do conceito.

No mais, há que se desculpar Hegel fazendo usode suas próprias palavras:

o autor, considerando a magnitude da tarefa, teve quese dar por satisfeito com o que pôde fazer, na situaçãode uma necessidade exterior, da inevitável distraçãodevida à magnitude e à multiplicidade dos interessesda época e, inclusive, com a dúvida se o tumultuosoruído do dia e a ensurdecedora loquacidade daimaginação, que se jacta de limitar-se a isso, deixa,todavia, lugar para o interesse dirigido até à serenacalma do conhecimento puramente intelectual54.

54 CL, Prefácio-1831, p. 55.

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08V FONTES BIBLIOGRÁFICAS

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______ . Phänomenologie des Geistes. Frankfurt: Suhrkamp,1986.

______ . Enciclopédia das ciências filosóficas I. Tr.: MENESES,Paulo. São Paulo: Loyola, 1995. [ECF I].

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______ . Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direitonatural e ciência do estado em compêndio (A sociedade civil).Tr.: MÜLLER, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/UICAMP,2000.

______ . Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direitonatural e ciência do estado em compêndio (Introdução). Tr.:MÜLLER, Marcos Lutz. 2 ed. São Paulo: IFCH/UICAMP, 2005.

HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologiado espírito de Hegel. Tr.: ROSA, Sílvio (coord.). São Paulo:Discurso Editorial, 1999.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5 ed. Lisboa:Calouste Gulbenkian, 2001.

PLATÃO. República. Tr.: ROCHA, Maria Helena da. 9 ed.Calouste: Lisboa, 2001.

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