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O MOVIMENTO ESTUDANTIL ENQUANTO FORÇA DE TRANSFORMAÇÃO LOCAL: A HISTÓRIA ORAL COMO UM CAMINHO DE PESQUISA. Vinícius de Almeida Peres 1 INTRODUÇÃO: PANORAMA SOBRE O MOVIMENTO ESTUDANTIL Identificado como um ativismo na área da educação 2 ou como movimento social organizado por jovens 3 que se enquadram na categoria 4 de estudantes, o movimento estudantil brasileiro é reconhecido por suas lutas em prol de questões educacionais. Porém, crítico a estruturas e conjunturas, o movimento estudantil extrapolou em variados momentos os muros das instituições de ensino, fazendo suas reivindicações irem além de questões internas, para dialogar com questões socias, políticas e econômicas em voga na sociedade, levando os estudantes se somassem às fileiras de outros setores ou que protagonizassem ações isoladas e/ou próprias, tendo com isso, deixado marcas na história do Brasil. O interesse e a participação dos estudantes pelas decisões da/na vida política, social e econômica no Brasil passam a tomar corpo no século XIX, após a implantação de escolas de nível básico e superior em decorrência da vinda da família real de Portugal para o Brasil, a qual, trouxe consigo parte da corte e a sede administrativa do império para nosso país, gerando a necessidade de qualificação técnica e intelectual no território. Vale apontar que mesmo alguns acontecimentos envolvendo a ação de estudante serem registrados no Brasil desde o século XVIII, não podemos falar ainda de um real movimento estudantil, compreendido enquanto movimento social, 1 Mestrando em História, Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS, [email protected]. 2 Nesse caso, da educação formal, ou seja, aquela desenvolvida em instituições oficiais de ensino, a exemplo de escolas e universidades. Marcamos tal ponto, pois os processos educativos não são restritos a esses espaços, eles podem se desenvolver em espaços não-formais ou informais e de modo também não-formal ou informal, ou seja, externos às instituições oficiais de ensino e alheios a seus currículo e métodos. 3 Consideramos aqui como jovens as pessoas na faixa etária entre 14 e 29 anos, abarcando assim as nomenclaturas de adolescentes-jovens, jovens-jovens e jovens-adultos. 4 Utilizamos aqui categoria de forma associada a definição de “classe” de E. P. Thompson.

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O MOVIMENTO ESTUDANTIL ENQUANTO FORÇA DE

TRANSFORMAÇÃO LOCAL: A HISTÓRIA ORAL COMO UM

CAMINHO DE PESQUISA.

Vinícius de Almeida Peres1

INTRODUÇÃO: PANORAMA SOBRE O MOVIMENTO ESTUDANTIL

Identificado como um ativismo na área da educação2 ou como movimento

social organizado por jovens3 que se enquadram na categoria4 de estudantes, o

movimento estudantil brasileiro é reconhecido por suas lutas em prol de questões

educacionais. Porém, crítico a estruturas e conjunturas, o movimento estudantil

extrapolou em variados momentos os muros das instituições de ensino, fazendo suas

reivindicações irem além de questões internas, para dialogar com questões socias,

políticas e econômicas em voga na sociedade, levando os estudantes se somassem

às fileiras de outros setores ou que protagonizassem ações isoladas e/ou próprias,

tendo com isso, deixado marcas na história do Brasil.

O interesse e a participação dos estudantes pelas decisões da/na vida política,

social e econômica no Brasil passam a tomar corpo no século XIX, após a implantação

de escolas de nível básico e superior em decorrência da vinda da família real de

Portugal para o Brasil, a qual, trouxe consigo parte da corte e a sede administrativa

do império para nosso país, gerando a necessidade de qualificação técnica e

intelectual no território.

Vale apontar que mesmo alguns acontecimentos envolvendo a ação de

estudante serem registrados no Brasil desde o século XVIII, não podemos falar ainda

de um real movimento estudantil, compreendido enquanto movimento social,

1 Mestrando em História, Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, [email protected]. 2 Nesse caso, da educação formal, ou seja, aquela desenvolvida em instituições oficiais de ensino, a exemplo de escolas e universidades. Marcamos tal ponto, pois os processos educativos não são restritos a esses espaços, eles podem se desenvolver em espaços não-formais ou informais e de modo também não-formal ou informal, ou seja, externos às instituições oficiais de ensino e alheios a seus currículo e métodos. 3 Consideramos aqui como jovens as pessoas na faixa etária entre 14 e 29 anos, abarcando assim as nomenclaturas de adolescentes-jovens, jovens-jovens e jovens-adultos. 4 Utilizamos aqui categoria de forma associada a definição de “classe” de E. P. Thompson.

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anteriormente ao século XX. Estas ações inaugurais dos estudantes nos dois séculos

que antecedem a criação, em 1901, da Federação dos Estudantes Brasileiros,

possivelmente uma precursora do que viria a ser a União Nacional dos Estudantes

(UNE) – fundada apenas em 1937 –, ainda não eram estruturadas como movimento

de categoria, mas sim como manifestações de pequenos grupos específicos,

desconectados e dispersos. (FIEGENBAUM; SCHNEIDER; MACHADO, 2012)

É durante o século XX que o movimento estudantil tem seu período de ouro de

mobilizações. Ele foi significativo na campanha “o petróleo é nosso” de fins dos anos

1940 e início dos anos 1950, agitaram o país com o movimento dos “caras-pintadas”

nos protestos contra o ex. Presidente Fernando Collor e, talvez como marco mais

importante de suas ações, foram símbolo de resistência na oposição ao governo

ditatorial entre 1964 e 1985, entre outras.

As ações e mobilizações provenientes de universidades públicas, em especial

as localizadas em capitais e grandes centros urbanos, foram as que marcaram tanto

a memória coletiva como a historiografia sobre o movimento estudantil. Junto a isso,

também a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade maior de representação

da categorial estudantil em território nacional, consolidou sua imagem de liderança e

ideóloga frente aos posicionamentos e ações dos estudantes que se engajavam nas

mais diversas lutas.

A entidade contribuiu para a força adquirida pelo movimento até o período da

redemocratização, para a manutenção da – muitas vezes frágil – coesão dos

estudantes e para a continuidade de lutas que seguem até a atualidade, como a

destinação de verbas do PIB e Royalties do petróleo para a melhoria da qualidade do

ensino e de infraestruturas educacionais, discussões visando o fomento, a defesa e a

ampliação de direitos sociais e de políticas públicas na área da educação, a exemplo

da garantia e extensão de programas diversos de assistência estudantil.

Contudo, é importante que a UNE não seja idealizada ou superestimada, ainda

que seja de relevância evidente para o movimento estudantil. Como um espaço

político, a entidade era (e ainda é) atravessada, influenciada e disputada por partidos

políticos e tendências ideológicas que nem sempre tinham os mesmos horizontes.

Isso levou a momentos de fragmentação interna devido a tais dissidências, e que,

junto a perseguições externas e a repressão sofrida, em especial durante a ditadura

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civil-militar, onde passou por períodos de desmontes forçados e de ilegalidade, fez

com que UNE não pudesse ser onipresente em todas as ações estudantis e lutas

políticas da categoria.

Esse quadro talvez se agrave quando consideramos a situação das fundações

educacionais e faculdades privadas isoladas, as quais foram surgindo e se

estruturando ao longo das décadas de 1960 e 1970 como fruto dos acordos MEC-

USAID, dos interesses privatistas, mas também das pressões sociais tensionadas

pelo processo de urbanização que se desenrolava (CUNHA; GÓES, 2002). Ou seja,

instituições que se estruturam durante o período de maior dificuldade às

manifestações estudantis.

Luiz Antônio Cunha e Moacyr de Góes (2002), no livro O Golpe na Educação,

ajudam a compreender melhor sobre as negociatas que tinham a educação no país

como alvo durante o período, as quais não são nosso foco no momento. De todo

modo, os autores afirmam que

Os Acordos MEC-USAID cobriram todo o espectro da educação nacional, isto

é, o ensino primário, médio e superior [...] Só mesmo a reação estudantil, o

amadurecimento do professorado e a denúncia de políticos nacionalistas com

acesso à opinião pública evitaram a total demissão brasileira no processo

decisório da educação nacional. (CUNHA; GÓES, 2002, p.32)

Assim, ainda que entre as bandeiras da UNE a educação pública e gratuita

tivesse muita força, a luta também era para que todos os brasileiros pudessem ter

acesso à educação, expansão esta que foi acordada e realizada entre o desinteresse

do governo pela educação pública e pelo interesse privatista da educação como

mercadoria, fazendo com que na rearticulação do movimento estudantil, pelos anos

de 1975, o ensino pago fosse um realidade estabelecida, a qual o movimento precisou

se adequar para incorporar e contemplar também esses estudantes (SANTANA,

2007).

Vale esclarecer que mesmo a nomenclatura “movimento estudantil” abarcando

secundaristas e universitários, e que ambos os níveis apresentem pautas concretas e

ações de relevância, o foco de nossas reflexões terá como base os estudantes do

ensino superior. Deste modo, o esforço a se realizar no presente artigo se desenvolve

no sentido de demonstrar como o movimento estudantil pode ser uma força de

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transformação e renovação social local. Para tal, pretende-se expor a relevância das

ações do movimento estudantil em tal escala e determinar como a história oral vem a

corroborar com tal percurso.

As análises e reflexões terão por base a realidade que tem se encontrado em

uma pesquisa para dissertação de mestrado sobre o as lutas políticas dos estudantes

do Centro de Ensino Superior (CES) da Fundação Universitária do Desenvolvimento

do Oeste (Fundeste) entre 1977-1985. Acredita-se que apesar da especificidade do

recorte, as problematizações e constatações possam contribuir para elucidações além

dele, seja em generalizações conforme os métodos científicos solicitam, seja em

provocações para a observação de contextos parecidos, seja de outras formas.

Com a pesquisa ainda em andamento, onde a questão da História oral se

constituiu como uma hipótese fértil ao trabalho, mas sem ter havido ainda o início de

tal etapa devido à burocracias e cuidados que antecedem às entrevistas e ao contato

com os possíveis entrevistados, nos apegaremos à discussão bibliográfica para

pontuar nossas expectativas e os risco que podem ser enfrentados na presente

pesquisa, mas também em outras que adotem a História oral de forma parecida.

O MOVIMENTO ESTUDANTIL EM ESCALA REDUZIDA: PORQUÊ OLHAR A

AÇÃO LOCAL

Devemos lembrar, conforme afirma Maria da Glória Gohn (1995; 2011) que os

movimentos sociais questionam estruturas vigentes e com seu caráter crítico e

inovador, propõe novas formas de organização à sociedade e a suas relações. Assim,

em um cenário regional indicado por alguns autores como um celeiro de movimentos

socias – ainda que em relação aos ligados à questão da terra, como é o caso do oeste

catarinense –, em que movimentos de atingidos por barragens, camponeses, sem-

terra, indígenas, etc., já têm visibilidade e relevância na produção de transformações

(PAIM, 2006), pode ser importante também visibilizar o movimento estudantil,

enquanto mais uma face das lutas existentes no interior.

Esses movimentos e suas lutas estão intrinsecamente conectadas com as

identidades socias dos sujeitos que compõe a sociedade, mas que nem sempre estão

estabelecidos nela, e com as disputas pelas memórias e representações do passado

que subsidiam os projetos de futuro.

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O fato de o movimento estudantil se configurar como parte de uma nova

realidade em constituição em Chapecó (e região) a partir de 1950, com a

intensificação dos processos de industrialização e urbanização, faz com que

desenvolva suas ações em um momento onde as transformações estão em plena

estruturação, podendo contribuir para a compreensão da construção de novas

relações e disputas socias em andamento, assim como agregar elementos de como

se fundamentou a participação social nas novas realidades impostas pela vida urbana.

Eric Hobsbawn (1998) diz que a convivência existente nas sociedades

humanas de indivíduos mais jovens com outros mais velhos – e aqui podemos pensar

também na troca entre experiencias anteriores/passadas e atuais – leva ao

desenvolvimento de uma consciência do passado, o qual ele considera como o

período prévio aos episódios registrados na memória do próprio indivíduo, ou seja, tal

consciência é fruto de um compartilhamento de memórias que produz uma vivência

indireta do passado. Tais vivências e a consciência sobre o passado da própria

comunidade podem ser significativas para perpetuar memórias de [r]existências

(resistência, existência e reexistência) de lutas e movimentos na cidade e na região.

Para GOHN (1995) os movimentos sociais foram essenciais para a construção

e configuração do Brasil, para a delimitação da cidadania e de espaços (de poder, de

disputa, de ocupação) dos agentes e grupos históricos, especialmente do século XX

em diante. Assim, olhar para um espaço ainda pouco explorado [academicamente] (o

movimento estudantil do interior), pode contribuir na promoção de identificações,

inspirações e potencializar ações de jovens que se encontram submissos e/ou

desamparados frente à grupos e poderes político-econômicos, sem saber como lutar

por seus direitos e como expressar suas visões e ideais, sejam eles sociais, políticos

e/ou pessoais.

No campo da educação, isso traz luz aos caminhos percorridos para que

direitos que usufruímos hoje tenham sido conquistados e garantidos, ressaltando

inclusive o papel de todo indivíduo como sujeito de transformação de seu próprio

destino e da sociedade em que se insere.

Retornando a HOBSBAWN (1998, p.22)

[...] Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu

passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é,

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portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um

componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da

sociedade humana. [...]

Perceber e compreender as recorrentes disputas pela defesa de interesses e

direitos nos diferentes momentos históricos e localidades geográficas, os quais

promovem o agrupamento de pessoas, vez ou outra mais parecidas ou mais distintas,

mas que se identificam com uma ideologia ou em prol de uma causa, também é algo

significativo, se não essencial, para a compreensão das dinâmicas da sociedade, e o

movimento estudantil pode ser representativo nesse ponto.

Conforme nos lembram ESTIVALET e KOETZ (2011), o movimento estudantil

tem como peculiaridade, frente a outros movimento sociais, a marca da

transitoriedade de seus participantes, além de ser policlassista, poliétnico, poligênero,

polietário – ainda que em proporções muito diferentes conforme sua localização no

tempo e no espaço –, elementos que fazem com que ele se renove constantemente,

seja em relação aos integrantes, seja em relação a suas visões de mundo e de si.

Como sabiamente lembra, Lilia Moritz Schwarcz logo nas primeiras linhas da

apresentação à edição brasileira de Apologia da História ou o Ofício de Historiador ao

mencionar um provérbio árabe, “os homens se parecem mais com sua época do que

com seus pais” (BLOCH, 2001, p.07). Diante disso, tal renovação e pluralidade não

se dão de forma aleatória, pois são reflexos da dinâmica da sociedade e do

tensionamento de suas estruturas.

Atentarmo-nos ao movimento estudantil em uma escala local, valorizando suas

especificidades e despendendo cuidados nas verificações de como ele pode

reproduzir, negar, ou simplesmente elucidar variados espectros da sociedade em que

se insere, ainda que com algumas dificuldades, tem valor e relevância social tanto

histórica como para a atualidade, ou mesmo para o futuro.

A HISTÓRIA ORAL COMO UM CAMINHO DE PESQUISA SOBRE O MOVIMENTO

ESTUDANTIL LOCAL

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Entre os desafios que os historiadores5 podem enfrentar em suas atividades, a

escassez de fontes pode ser uma realidade frustrante. As causas para tal, podem

variar de acondicionamento precário ou tragédias como incêndios e alagamentos que

levem a grave deterioração ou a destruição por completo de acervos inteiros, até a

“simples ausência de registros” sobre determinado evento, entidade, grupo social, etc.

É possível que ao apresentar um fator como “simples ausência de registro”, um

sentimento de desconfiança nos leve a suspeitar sobre reducionismos inocentes ou

propositais. Evidentemente, existem explicações analíticas para tal. A ciência histórica

possui sua própria história, e ao longo de sua trajetória, suas preocupações e objetos

passaram por renovações e ampliação.

Nesse sentido, os focos das pesquisas atuais em história e objetos que

julgamos importantes, no passado, podem não ter sido vistos da mesma forma,

ficando marginalizados ou mesmo excluídos da história, ocasionando tal ausência de

registro, e exigindo que a criatividade e persistência dos historiadores encontrem

alternativas para burlá-la.

Por sua vez, ao considerar a realidade brasileira, suas dimensões continentais

fizeram com que o processo de colonização ocorresse de forma muito heterogênea,

legando a diferentes localidades quase que a vivência em temporalidades distintas, o

que contribuiu para também distintas condições da burocracia estatal e privada

produzirem registros e preserva-los. O mesmo pode ser dito sobre os indivíduos e

grupos sociais. Pode-se somar a isso, a má vontade política ou o (des)interesse

ideológico ou econômico da (des)memória (BACELLAR In: PINSKY, 2010).

Os registros aos quais estamos nos referindo aqui são registros escritos dos

seus mais variados tipos, porém, não desejamos a essa altura sermos positivistas a

ponto de acreditar que a história se faz apenas pelo documento. Sem dúvidas, outros

vestígios foram deixados aos olhos e ao faro dos historiadores. Temos, por exemplo,

ricas possibilidades ao explorar a cultura material e a história ambiental, para citar o

mínimo.

5 Por questão de facilidade linguística adotamos aqui o gênero masculino, mas a intenção é de que se contemple todos gêneros ao pensar sobre os desafios impostos pelo campo da história às pessoas que se dedicam a ele.

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Entretanto, promissora também é a história oral, pois ela “[...] é hoje um

caminho interessante para se conhecer e registar múltiplas possibilidades que se

manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais,

em todas as camadas da sociedade. [...]” (ALBERT In: PINSKY, 2010, p.164).

Verena Alberti (In: PINSKY, 2010, p. 155) explica que “A História oral é uma

metodologia de pesquisa e de constituição de fontes [...]. Ela consiste na realização

de entrevistas gravadas com indivíduos que participam de, ou testemunharam,

acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. [...]”. Ela surgiu a partir de

renovações no campo e nos paradigmas da história decorrente da expansão da

história social e o advento da história “vista de baixo”. Inicialmente sua busca foi pela

voz daqueles tradicionalmente excluídos da historiografia e ignorados enquanto

agentes dela, os quais podemos denominar como “populares” (ALBERTI In: PINSKY,

2010).

Ao utilizar a história oral como forma de superar a precariedade ou escassez

de fontes para desvelar os movimentos estudantis locais, também temos a

possibilidade de desenvolver novas concepções sobre a experiência história ao incluir

nela novos e diversificados agentes, aprofundando nossa compreensão de como

pessoas e grupos experimentaram o passado, o que possibilita o questionamento de

generalizações (ALBERTI In: PINSKY, 2010). Nas palavras de HOBSBAWN (1998,

p.219) “[...] ao rememorar a história da gente comum, não estamos meramente

tentando conferir-lhe um significado político retrospectivo que nem sempre teve;

estamos tentando, mais genericamente, explorar uma dimensão desconhecida do

passado. [...]”.

Considerando o contexto de Chapecó, município emancipado político-

administrativamente em 1917, e que hoje configura-se como um polo regional,

formado por meio da colonização baseada em imigrantes, em que a representação da

vocação (ou Ethos) do trabalho foi construída e aceita pela maioria da população.

Onde a urbanização se viu sustentada e orientada pelo sucesso da agroindústria e a

educação, por vezes, se desenvolveu dentro de um projeto controlado conforme os

interesses privados (PAIM, 2003; 2006). Questionar diretamente e analisar as

percepções de quem vivenciou tal conjuntura, foi alvo dela, e talvez até lutou por ou

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contra ela, como no caso do movimento estudantil originário do CES/Fundeste, tem

potencial de trazer a luz, elementos estruturais da sociedade chapecoense.

A superficialidade das fontes disponíveis, o vazio historiográfico sobre o tema

e a distância cronológica que possibilita o contato com os sujeitos que vivenciaram o

momento, também favorecem e incentivam ao uso da história oral, que utilizada de

forma estratégica, acaba por corrigir outras perspectivas, assim como outras

perspectivas também a corrige (PRINS In: BURKE, 1992).

Desta forma, tendo em mente que no contexto geográfico e contemporâneo à

Fundeste, há a presença ativa de movimentos sociais diversos, em sua maioria

ligados a questão da terra, a história oral pode vir a acrescentar novos atores aos

quadros da relevância das ações sociais em Chapecó, mas também na região ou de

modo geral, nos interiores do país.

Junto a isso, mesmo com todo o controle do governo da ditadura militar sobre

a educação, além das especificidades do ensino superior chapecoense, não podemos

descartar possibilidades de divulgação e penetração de ideias consideradas

subversivas nas instituições de ensino do município e de ideais de resistência tanto

ao governo como a todo um sistema, elementos relativamente comuns em muitos

espaços universitários nacionais, e que podem estar fixados na memória das pessoas

que viveram nesse contexto e a partir da história oral, serem trazidos a luz.

Diante disso, e de diversos outros pontos que poderiam ser levantados,

cabíveis à realidade da Fundeste Chapecó, mas possivelmente a outros locais onde

o movimento estudantil, ou outros movimentos, tornou-se “história/memória de

segunda categoria”, ou seja, desprezado e espoliado de sua relevância, contribuições

e do próprio passado, e ainda que hajam dúvidas frente a sugestão de Verena Alberti

(2004, p.23), em seu livro “Ouvir Contrar”, de que “[...] Só convém recorrer à

metodologia de história oral quando os resultados puderem efetivamente responder a

nossas perguntas [...]”, a história oral permanece virtualmente fecunda, já que

buscando respostas sobre a sociedade, nada nos parece melhor do que partilhar da

experiência dos próprios cidadãos agentes ou testemunhas da história.

Todavia, não sejamos inocentes, a história oral também exige diversos

cuidados e pode reservar armadilhas ao historiador. A percepção dos seres humanos

sobre os acontecimentos é bastante subjetiva, assim como o funcionamento da

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memória individual. Deste modo, ao utilizar-se da história oral, não devemos tomar os

relatos como a história pronta (ALBERTI, 2004).

Devemos também ter consciência de quem são as pessoas entrevistadas e as

disputas que envolvem o tema de interesse. Por exemplo, no caso de entrevistas

realizadas com militantes, como no caso do movimento estudantil, ao infiltrarmo-nos

em um terreno permeado por paixões ideológicas e político-partidárias, devemos estar

atentos a distorções do passado, propositais ou inconscientes, que acompanhem os

relatos dos entrevistados. Estas por sua vez, não devem ser ignoradas ou

descartadas, mais sim, incluídas nas análises e compreendidas em seus signos.

Em complemento, Verena Alberti (In: PINSKY, 2010, p.170) alerta que

Em geral o entrevistado, assim como os leitores ou os ouvintes de uma

entrevista, partilham a crença na vida como trajetória progressiva que faz

sentido. Cabe ao pesquisador estar atento ao fato de significados

atribuídos a ações e escolhas do passado serem determinados por uma

visão retrospectiva, que confere sentido às experiências no momento em

que são narradas.

Lembramos ainda, que na entrevista existem no mínimo dois autores, o

entrevistado, mas também o entrevistador (ALBERTI In: PINSKY, 2010). Assim, a

fonte construída como resultado da entrevista guarda um pouco de ambos, e as

paixões e partidarismos do entrevistador também dever ser tomadas como pontos a

serem zelados.

Eric Hobsbawn, receoso, também adverte que

[...]certos tipos de material dos movimentos populares não suscitaram ainda

suficiente reflexão metodológica. A história oral é um bom exemplo. [...] Mas,

em minha opinião, jamais faremos uso adequando da história oral até que

formulemos o que pode funcionar mal na memória, com o mesmo cuidado

com que hoje sabemos o que pode não dar certo na transmissão de

manuscritos por meio de cópias manuais. [...]

[...] a maior parte da história oral é memória pessoal, um meio notadamente

escorregadio de se preservar fatos. A questão é que a memória é menos uma

gravação que um mecanismo seletivo, e a seleção, dentro de certos limites,

é constantemente mutável. [...] (1998, p.221)

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Mesmo assim, vale ter em mente que “[...] Conceber o passado não é apenas

selá-lo sob determinado significado, construir para ele uma interpretação; conceber o

passado é também negociar e disputar significados e desencadear ações. [...]”

(ALBERTI, 2004, p.33), elementos estes que combinam bem com a essência dos

estudantes e do movimento estudantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas buscas realizadas por informações sobre a organização dos estudantes do

CES/Fundeste e das ações realizadas por eles, foi possível, até o momento, perceber

a existência de uma organização estudantil estruturada e desenvolvida nos moldes do

tradicional movimento estudantil, onde ainda que nebulosamente indica articulação de

informações com a UNE e que, coincidentemente ou não, se apresenta hora mais,

hora menos alinhada com suas pautas.

Assim, no CES/Fundeste de Chapecó, a questão da qualidade de ensino

esteve em voga no discurso do movimento por vários momentos, pauta esta, que

possivelmente também esteve em todas as outras localidades onde se desenvolveram

movimentos estudantis. Entretanto, o valor das mensalidades, pauta característica

dos estudantes do ensino pago e que passa a figurar no movimento estudantil após

sua rearticulação (de 1975 em diante) acaba sendo recorrente e, por vezes, o grande

elemento gerador de mobilização em nossa realidade, junto a subsídios diversos à

manutenção da educação superior no município.

Questões referentes à infraestrutura da própria instituição de ensino também

foram identificadas nas discussões e ações dos estudantes, inclusive, sendo

conquista da pressão exercida pelos mesmos sobre poderes públicos e privados ou

de ações práticas, dos estudantes e entre eles, de arrecadação financeira para

contratação de serviços, a melhoria ou aquisição de elementos como alojamentos,

pavimentação de acessos, iluminação, placas informativas e revitalização de ruas.

O movimento também apresentou reivindicações relacionadas a

disponibilidade de linhas de ônibus e a quantidade deles durante a maior parte do

período de recorte, elemento que se relaciona com as questões de mobilidade urbana,

provavelmente ainda em estágios iniciais no município. É possível que tudo isso

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tivesse como foco os arredores do centro de ensino ou os trajetos utilizados pelos

estudantes, entretanto, tais melhorias são também um serviço à sociedade municipal,

a qual, acaba de alguma forma se beneficiando das conquistas.

Todavia, ainda que alguns arquivos demonstrem o quadro acima, as vastas

lacunas e a superficialidade das fontes deixam mais perguntas do que respostas em

meio a um vazio sobre a história e a memória da educação no município, de suas

lutas e disputas, de seus atores ou excluídos, entre outras.

Deve ser levado em conta que o próprio CES/Fundeste entra em

funcionamento apenas em 19726 e sua primeira entidade representativa dos

estudantes, fundada no ano seguinte, já nasce sob o signo da repressão, afinal, os

decretos e leis que jogaram a UNE na ilegalidade e dificultaram as manifestações

estudantis em instituições do pais inteiro foram revogados apenas em 1979 no

mandato de João Figueiredo. Assim, a juventude da instituição pode acabar por

refletir-se em “imaturidade” em seu movimento estudantil ou simplesmente em

inexperiência7 a ser superada com o tempo.

Entretanto em uma região considerada celeiro de movimentos sociais pela

terra, como se desenvolveram as lutas por justiça social no ambiente urbano?

Podemos conceber uma tradição militante na região? Onde estavam, quem eram e

com o que se preocupavam os estudantes? Além de pautas comuns em grande parte

do país, tinha o movimento em Chapecó particularidades e reinvindicações próprias

dentro das singularidades regionais? Como os estudantes dialogam com a

comunidade e podem ter contribuído para o desenvolvimento social, econômico e

político de Chapecó?

Em um contexto geral, e já confirmado nessa primeira etapa da pesquisa,

sabemos que os estudantes existiram enquanto categoria organizada no

CES/Fundeste, desenvolvendo posicionamentos e debates, e em alguns casos lutas,

6 Originário de clamores populares pelo ensino superior na cidade, conhecido como movimento pró-universidade, mas também dentro dos planos de interiorização da educação que se desenvolveram durante a ditadura e sobre a chancela de grupos privatistas. 7 Não queremos aqui que os estudantes fossem imaturos ou que não pudessem ter alguma experiência em movimentos e mobilizações sociais, mas sim que esta área de atuação poderia ser uma novidade a eles.

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que sob a liderança do DCE da instituição, tiveram potencial para extrapolar os muros

da instituição e atingir outros locais e espaços sociais.

Não sabemos, ainda, o seu alcance, sucesso e os impactos produzidos. Nem

possuímos ainda clareza acerca da visão, representação e compreensão que se tem

sobre o movimento e o desenrolar das pautas, mas com a história oral, talvez, eles

próprios possam, de algum modo, nos responder sobre isso e muito mais.

O movimento estudantil em seu nível local e a história oral podem contribuir a

geração de novas fontes, possibilitando nossas problematizações sobre o passado e

ampliando as possibilidades e os próprios conhecimentos sobre ele e, talvez, acima

de tudo relembrar a força e potência que um grupo de pessoas unidos por ideais

comuns, tem de transformar realidades e modificar estruturas, começando pelo seu

micro-espaço social.

REFERÊNCIAS:

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BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologias da História, ou, o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jahar, 2001.

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