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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 25, n. 2: 109-130, jul./dez. 2009 O MÉTODO CONCRETISTA DA CONSTITUIÇÃO ABERTA CONCRETISTIC METHOD OF THE OPEN CONSTITUTION Renata Possi Magane * RESUMO Este artigo tem como objetivo tecer considerações acerca do método con- cretista da “Constituição aberta” desenvolvido pelo constitucionalista alemão Peter Häberle. Primeiramente, será abordado o fenômeno da aber- tura das Constituições democráticas que ocorreu no final da Segunda Guerra Mundial, com o fracasso do formalismo jurídico. Posteriormente, faremos uma breve síntese dos métodos de interpretação da Constituição, acentuadamente o método Tópico-problemático, donde originou-se o método concretista tratado neste artigo. Após esse sumário, passaremos a expor o método desenvolvido por Peter Häberle, que, em poucas palavras, democratizou o processo de interpretação constitucional, alargando o círculo de intérpretes da Constituição, em sua obra Hermenêutica consti- tucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, para, por fim, verificar sua aplicação na Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: Constituição aberta; Pluralismo político; Democracia participativa; Sociedade aberta; Interpretação constitucional; Constituição Brasileira de 1988. ABSTRACT This article aims to make considerations about the concretistic method of the “open Constitution” developed by the German constitutionalist Peter Häberle. Firstly, we shall address the phenomenon of the opening of demo- cratic constitutions which occurred at the end of the 2nd World War, with the failure of the legal formalism. Later, we will make a brief summary of * Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, SP, Brasil. Correspondência para / Correspondence to: Rua Professor João Arruda, 365 – apto 13, Perdizes, 05012-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]. 05_Renata Possi.indd 109 05_Renata Possi.indd 109 24/5/2010 15:19:22 24/5/2010 15:19:22

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O MÉTODO CONCRETISTA DA CONSTITUIÇÃO ABERTA

CONCRETISTIC METHOD OF THE OPEN CONSTITUTION

Renata Possi Magane*

RESUMO

Este artigo tem como objetivo tecer considerações acerca do método con-cretista da “Constituição aberta” desenvolvido pelo constitucionalista alemão Peter Häberle. Primeiramente, será abordado o fenômeno da aber-tura das Constituições democráticas que ocorreu no fi nal da Segunda Guerra Mundial, com o fracasso do formalismo jurídico. Posteriormente, faremos uma breve síntese dos métodos de interpretação da Constituição, acentuadamente o método Tópico-problemático, donde originou-se o método concretista tratado neste artigo. Após esse sumário, passaremos a expor o método desenvolvido por Peter Häberle, que, em poucas palavras, democratizou o processo de interpretação constitucional, alargando o círculo de intérpretes da Constituição, em sua obra Hermenêutica consti-tucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, para, por fi m, verifi car sua aplicação na Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: Constituição aberta; Pluralismo político; Democracia participativa; Sociedade aberta; Interpretação constitucional; Constituição

Brasileira de 1988.

ABSTRACT

This article aims to make considerations about the concretistic method of the “open Constitution” developed by the German constitutionalist Peter Häberle. Firstly, we shall address the phenomenon of the opening of demo-cratic constitutions which occurred at the end of the 2nd World War, with

the failure of the legal formalism. Later, we will make a brief summary of

* Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, SP, Brasil. Correspondência para / Correspondence to: Rua Professor João Arruda, 365 – apto 13, Perdizes, 05012-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

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the interpretation methods of the Constitution, mostly of the Topic proble-

matic method, from which the concretistic method discussed in this article

was originated from. Following this summary, the method developed by

Peter Häberle will be explained, which, in a few words, democratized the

process of constitutional interpretation, widening the circle of interpreters

of the Constitution, in his work Constitutional hermeneutics: the open so-

ciety of interpreters of the Constitution: Contribution to the pluralist and

“procedural” interpretation of the Constitution, by fi nally, verifying its

application in the Federal Constitution of 1988.

Keywords: Open Constitution; Political Pluralism; Participatory Democracy;

Open Society; Constitutional Interpretation; Brazilian Constitution of 1988.

Consenso resulta de confl itos e compromissos entre participantes que susten-

tam diferentes opiniões e defendem os próprios interesses. Direito Constitu-

cional é, assim, um direito de confl ito e compromisso1.

INTRODUÇÃO

O tema proposto apresenta-se como objeto de grande discussão no consti-tucionalismo contemporâneo. No Brasil, duas grandes obras tratam especifi ca-mente, e com profundidade, sobre o assunto: A Constituição aberta, de Paulo Bonavides e A Constituição aberta e os direitos fundamentais, de Carlos Roberto Siqueira Castro. Internacionalmente, a abertura do processo de interpretação da Constituição tem sido objeto de estudos do Professor Peter Häberle, que desde 1975 tem publicado sobre o tema “A sociedade aberta dos intérpretes da Consti-tuição” e despertado grande interesse e discussão na literatura jurídica. É com base na análise dos três citados autores que desenvolveremos o presente artigo.

André Ramos Tavares propôs uma classifi cação bastante didática acerca da discussão teórica envolvendo a abertura das constituições. Dessa forma, para esse autor, o tema poderá ocupar-se: (i) da abertura hermenêutica da norma consti-tucional; (ii) da abertura normativa expressa ao direito internacional e, no caso europeu, ao direito comunitário; (iii) da abertura ao caso concreto; (iv) da aber-tura epistemológica; e (v) da abertura de conteúdo2.

Em que pese todas essas possibilidades de abordagens sobre o assunto, res-tringiremo-nos neste artigo a revelar a primeira dimensão dessa abertura, ou seja, a abertura hermenêutica da norma constitucional.

1 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Safe, 1997.

2 TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta. Disponível em: <http://multimidia.opovo.com.br/revista/andre-ramos-tavares.pdf/>. Acesso em: 10 out. 2008. p. 327.

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Esse fenômeno de abertura da interpretação constitucional é o tema central de estudo neste artigo, tendo em vista que os autores retro mencionados preocu-param-se em alargar o círculo de intérpretes da Constituição, num verdadeiro fenômeno de democratização da interpretação constitucional, propugnando pela sua abertura e buscando novos métodos de interpretação em detrimento dos métodos tradicionais propostos por Savigny, insufi cientes ao atendimento da dinamicidade e constante na evolução em que a Constituição se insere.

Ressalte-se, no entanto, as palavras de André Ramos Tavares:

É preciso, contudo, tratar de evitar o esgarçamento das constituições em

defesa de um ideal de abertura, como ocorre a certas posturas do realismo

jurídico norte-americano, muito próximas de admitirem a Constituição

ela próxima como mera abertura (justifi cando um ativismo da Justiça

Constitucional em grau máximo)3.

Na mesma esteira, o alerta apresentado pelo jurista Paulo Bonavides:

Esse alargamento extremo, que faz de todos, no pluralismo democrático

da sociedade aberta, a um tempo objeto e sujeito da ordem constitucional,

se de uma parte representa a verticalidade da refl exão que vai atingir

camadas mais profundas não alcançadas pela metodologia clássica, dou-

tra parte pode conduzir, pela sua radicalização, a um considerável afrou-

xamento da normatividade e juridicidade das Constituições, como tem

sido observado e criticado com respeito a todos os métodos tópicos e

concretistas4.

Desse modo, portanto, a busca por novos métodos de interpretação consti-tucional se faz necessária, como veremos na doutrina dos defensores da teoria concretista da abertura da Constituição, havendo, porém, perigos que devem ser observados quando da radicalização dessa teoria, o que procuraremos enfrentar e revelar neste estudo.

O PROCESSO DE ABERTURA DAS CONSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS

A temática envolvendo a abertura da Constituição apoia-se numa vertente principiológica e antiformalista do constitucionalismo contemporâneo e propug-na uma grande contribuição para a hermenêutica constitucional, pois tem, entre outros aspectos, a fi nalidade de democratizar o processo de interpretação das normas constitucionais e reformular a metodologia jurídica tradicional, que, como assinala Häberle, esteve muito vinculada ao modelo de uma sociedade fechada.

3 Idib., p. 328.4 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 509.

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A concepção de uma sociedade fechada, no que tange à redução dos intér-pretes da Constituição, concentrando-se a investigação apenas na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados, foi um processo inerente ao positivismo jurídico, decorrente da Revolução Francesa, que, objeti-vando tornar o direito o mais cognoscível possível, identifi cou o direito com a lei, tendência confi rmada com as codifi cações, iniciadas com o Código Civil napoleô-nico de 1804, como forma de trazer ao ordenamento mais segurança jurídica, justifi cado pelo trauma dos desmandos do Antigo Regime. Surge nesse contexto, o Estado legalista, fundado na ideia de supremacia da lei formal escrita e de um direito exclusivamente estatal.

Dessa forma, no discurso desta Ciência do Direito de caráter puramente formal, a interpretação jurídica tornou-se um momento particularmente incô-modo do direito. Desse modo, o problema da interpretação foi tratado de dois modos distintos: primeiramente, pretendeu-se reduzir o processo interpretativo a uma forma, ou seja, ao formalismo dos procedimentos interpretativos metodi-camente garantidos (Escola da Exegese; Jurisprudência dos Conceitos); e, num segundo momento, o problema da interpretação foi descartado do campo da Ciência Jurídica, exatamente por considerar-se que a interpretação, por si, não se deixava reconduzir à forma do dever-ser.

O grande expoente do positivismo jurídico normativista foi, indubitavelmen-te, Kelsen (1881-1973), fundador da “teoria pura do direito”, que, como o próprio nome sugere, procurou retirar do direito tudo quanto não pertencesse ao seu objeto, pretendeu libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos, em especial a psicologia, a sociologia, a ética e a ciência política.

A concepção do direito, segundo o modelo do positivismo normativista, esvazia o direito de qualquer conteúdo, o que signifi ca que passa a ser justo tudo o que está na lei, na medida em que qualquer decisão positiva, se válida, é uma decisão possível e, como decisão jurídica, é justa.

Para Kelsen, a Ciência do Direito pode ocupar-se da interpretação jurídica apenas na medida em que esta se presta a traçar a “moldura” das interpretações possíveis de uma norma jurídica, pois reconhece o caráter indeterminado das normas jurídicas, o que as tornaria sempre sujeitas à interpretação.

O positivismo jurídico passou a ser acusado por seus críticos de ser uma epistemologia legitimadora de ordens jurídicas totalitárias, passando a ser reputa-do responsável pelas mazelas que a humanidade conheceu em meados do século passado.

As tragédias e atrocidades ocorridas dentro do Estado Nazista, entre outros, demonstraram o fracasso da teoria positivista, acusada de justifi car e legitimar os desmandos de Hitler, que agia em conformidade com a lei. O Estado legalista mostrou-se, pois, insufi ciente ao alcance dos ideais de justiça e valores intrínsecos à sociedade.

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A experiência histórica demonstrou que tanto as doutrinas clássicas do direito natural como o positivismo jurídico clássico falharam. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, inúmeras foram as tentativas de superar a miséria jurídica herdada do nacional-socialismo. Dentre elas cuidou a hermenêutica jurídica.

A partir de meados de 1960, ocorre a chamada “virada hermenêutica” da Teoria Jurídica que, ao contrário do positivismo, colocou o problema da interpre-tação no centro da própria concepção de direito e despontou como uma via de superação dos limites do formalismo jurídico que caracterizou a teoria jurídica dos séculos XIX e XX.

“O direito natural e o positivismo tinham prescrito: um conceito objectivista de conhecimento, um conceito ontológico-substancial do direito (da lei), a ideologia da subsunção e a ideia de um sistema fechado. A hermenêutica declara bater-se contra todos estes dogmas”5.

A Hermenêutica Jurídica avançou ao reconduzir o direito à sociedade, supe-rando a “purifi cação” positivista e colocando a questão da interpretação como fundamental no debate jurídico contemporâneo.

Citando alguns exemplos trazidos pelo Professor Paulo Bonavides sob a égide, em grande parte, da Nova Hermenêutica, o constitucionalismo de renova-ção da segunda metade do século XX, encabeçado principalmente por juristas alemães, tendo por base a Tópica, tais como: Theodor Viehweg, Martin Kriele, Joseph Esser, Friedrich Müller, H. J. Kosh e H. Ruessmann, Horst Ehmke, Ulrish Scheuner e Peter Häberle, já oferece os seguintes resultados:

a criação científi ca de um novo Direito Constitucional, ou, pelo menos,

a reconstrução desse ramo da ciência jurídica; a formação de uma teoria

material da Constituição, fora dos quadros conceituais do jusnaturalismo

e das rígidas limitações do positivismo formalista (...); a elaboração de

duas novas teorias hermenêuticas: uma de interpretação da Constituição,

mais ampla, e outra de interpretação dos direitos fundamentais, mais

restrita, ambas, porém, originais e autônomas; (...)6.

A ideia de abertura constitucional ganha corpo na doutrina publicista dos anos 1990, tendo como referência maior os penetrantes estudos de Häberle de-senvolvidos 20 anos antes na Alemanha acerca da “Constituição aberta” a sua vez inspirados na obra sociológica da Karl Popper sobre a sociedade aberta7.

5 KAUFMANN, Arthur. Filosofi a do direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 67.6 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 598-599.7 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Ensaios

sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 30.

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Siqueira Castro atribui o fenômeno da abertura das Constituições a duas razões fundamentais: de um lado, a insurgência do Estado Social e, de outro lado, a ampliação e a universalização do modelo democrático, contando com o pionei-rismo das Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de Weimar, de 1919.

Peter Häberle, ao defender a democratização do processo de interpretação das normas constitucionais, discute a importância de se incluir uma nova questão na teoria da interpretação constitucional: a abordagem relativa aos participantes da interpretação, perguntando-se sobre os agentes conformadores da “realidade constitucional”. Desse modo, deve-se considerar o tema “Constituição e realidade constitucional”, exigência de incorporação das ciências sociais e métodos de inter-pretação voltados para o atendimento do interesse público e do bem-estar geral.

MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Antes de adentrarmos na análise do método concretista da “Constituição aberta” formulado por Häberle, faz-se necessária a apresentação, ainda que su-cintamente, dos métodos conhecidos de interpretação da Constituição.

O método jurídico (método hermenêutico clássico)

É o método tradicional de origem civilista que parte do pressuposto de que a interpretação da Constituição segue a mesma regra de qualquer outra lei (tese da identidade).

O método clássico de interpretação, de acordo com a escola de Savigny, compõe-se de quatro elementos interpretativos: fi lológico (gramatical), lógico (sistemático), histórico e teleológico.

Consoante o elemento gramatical, busca o intérprete determinar o sentido da norma mediante a análise dos signos linguísticos que integram o enunciado prescritivo. O ponto de partida de qualquer interpretação jurídica é sempre o elemento literal, ou seja, a letra da lei. Celso Ribeiro Bastos entende que o elemen-to gramatical constitui o ponto de partida obrigatório e o limite último do intér-prete e, em seu caráter absoluto, torna-se totalmente inoperante, não garantindo a solução da problemática surgida8.

Pelo elemento sistemático, a norma deve ser interpretada como sendo parte integrante de um todo, ou seja, pertencente ao sistema jurídico e não isoladamente. É um dos elementos mais importantes da interpretação jurídica.

De acordo com o elemento histórico, deve o exegeta buscar na vontade do legislador a determinação do sentido da norma, ou seja, deve-se atribuir à lei a

8 BASTOS, Celso S. Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: IBDC/Celso Bastos Editor, 2002. p. 111.

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vontade do legislador que a elaborou, confi gurando-se a concepção subjetiva da interpretação jurídica. Ressalte-se, contudo, a crítica apontada por Celso Bastos quanto ao instrumento histórico: “não se pode querer reproduzir os meandros da mente do legislador, mesmo porque nos regimes democráticos, são muitos os legisladores, quase sempre reunidos em colegiados em que são apresentadas inú-meras modifi cações aos projetos originários.” E conclui: “Tal constatação torna este enunciado uma meta praticamente inatingível”9.

Finalmente, por meio do elemento teleológico busca-se a ratio legis, a razão da lei. Neste, o intérprete procura conhecer a fi nalidade, o valor que se encontra por trás do enunciado prescritivo.

A articulação dos elementos interpretativos conduzirá a uma interpretação jurídica em que haverá a tutela da normatividade da Constituição (predomínio do princípio da legalidade), pois, de acordo com Forsthoff10, a aplicação do mé-todo tem como “ponto de partida a tarefa de mediação ou captação de sentido por parte dos concretizadores das normas constitucionais”, e o “limite da tarefa de interpretação, pois a função do intérprete será a de desvendar o sentido do texto sem ir para além, e muito menos contra, o teor literal do preceito”11.

O método tópico-problemático

Segundo a defi nição conferida por Canotilho12, o método tópico problemá-tico, parte das seguintes premissas: a) caráter prático da interpretação constitucio-nal; b) caráter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; c) preferência pela discussão do problema em virtude da open texture (abertura) das normas constitucionais que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo.

Tendo em vista que o método concretista da “Constituição aberta” tem raí-zes no método tópico problemático, pois Peter Häberle sofreu infl uências do es-tilo de “pensar por problemas”, retomado por Theodor Viehweg, teceremos mais comentários acerca desse item.

Depois de longo período de esquecimento, a tópica ressurge na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, com o intento de superar a crise do positivismo suplantada pelos regimes totalitários.

A tópica é um estilo de pensamento voltado para a práxis jurídica, que se in-surge contra o raciocínio axiomático-dedutivo, de tipo silogístico, rejeitando a

9 Ibid., p. 119.10 Defensor do método jurídico no plano da interpretação constitucional, na sua polêmica contra o

chamado método científi co-espiritual da interpretação. 11 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1163.12 Ibid., p. 1164.

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concepção legalista e estatizante do direito, expressão da vontade arbitrária de um poder soberano, que nenhuma norma limita e não é submetido a nenhum valor13.

O estilo tópico foi retomado por Theodor Viehweg, em sua obra Topik und Jurisprudenz publicada pela primeira vez em 1953, reacendendo o debate sobre a estrutura do pensamento jurídico, que para o autor deve ser voltado para o problema, em oposição ao pensamento sistemático, próprio da lógica dedutiva.

O autor parte inicialmente das considerações relativas aos procedimentos científi cos feitas em 1708 por Gian Battista Vico em sua dissertação denominada De nostre temporis studiorum ratione, em que procura analisar a conciliação entre dois métodos científi cos de estudo: o antigo (tópico) e o moderno (crítico).

Posteriormente aos estudos em Vico, Viehweg passa a examinar os funda-mentos da tópica em Aristóteles e Cícero.

O termo “tópica”, técnica de pensar por problemas, foi atribuído por Aris-tóteles no seu texto Tópica. Nessa obra, o autor se ocupa da antiga arte da dispu-ta, domínio dos retóricos e sofi stas, que constitui o campo do meramente oponí-vel, ou seja, da dialética14.

No que consiste a tópica, pretendeu Aristóteles construir uma teoria da tópica, situada no campo fi losófi co, ao passo que a tópica de Cícero estava to-talmente vertida para sua utilização prática. O trabalho de Cícero consiste em uma coletânea de topois (“pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam em favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”) voltados para sua aplicação prática, e não de uma ordenação teórica dos topois, como fez Aristóteles. Para Cícero, a tópica con-siste na arte de buscar argumentos. A tópica ciceroniana está voltada para a práxis15.

O método tópico infl uenciou Häberle na construção de sua teoria acerca do método concretista da “Constituição aberta”, uma vez, que na busca de novos meios que respondessem aos anseios de uma sociedade aberta ao pluralismo po-lítico e democrático que possibilitasse a aproximação do cidadão no processo de interpretação da Constituição, o método tópico rompeu com o paradigma do formalismo jurídico que vigorava até a metade do século passado e propugnava um pensamento jurídico sistemático, em que a abertura vislumbrada por Häber-le seria impensável naquele contexto de rigidez formal.

13 LEITE, George Salomão. Interpretação constitucional e tópica jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001. p. 95.

14 Ibid., p. 97.15 Ibid., p. 99.

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O método hermenêutico-concretizador

Parte da ideia de que a leitura da lei se inicia pela pré-compreensão do intérpre-te. Não fugindo a Constituição a esta mesma regra. O intérprete possui uma ativida-de prático-normativa, concretizando norma a partir de uma situação histórica concreta. Segundo Canotilho, esse método tem os seguintes pressupostos interpre-tativos: a) pressupostos subjetivos, dado que o intérprete desempenha um papel criador (pré-compreensão) na tarefa de obtenção do sentido do texto constitucional; b) pressupostos objetivos, isto é, o contexto, atuando o intérprete como operador de mediações entre o texto e o contexto com a mediação criadora do intérprete, trans-formando a interpretação em “movimento de ir e vir” (“círculo hermenêutico”)16.

O método científi co-espiritual

As premissas básicas do chamado método científi co-espiritual baseiam-se na necessidade de interpretação da Constituição dever ter em conta: a) as bases de valo-ração (ordem de valores, sistema de valores) subjacentes ao texto constitucional; e b) o sentido e a realidade da Constituição como elemento do processo de integração17.

A metódica jurídica normativo-estruturante

De acordo com análise proferida por Canotilho18, os postulados básicos da metódica normativo-estruturante são os seguintes: a) investigar as várias funções de realização do direito constitucional (legislação, administração e jurisdição); b) para captar a transformação das normas a concretizar numa “decisão prática” (a metódica pretende-se ligada à resolução de problemas práticos); c) a metó-dica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e com as funções jurídico-práticas; d) elemento deci-sivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; e) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo, em geral, ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); f) mas a norma não corresponde apenas o texto, antes abrange um “domínio normativo”, isto é, um “pedaço de realidade social” que o programa normativo só parcialmente con-templa; e g) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal

16 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 1164.17 Ibid., p. 1165.18 Ibid., p. 1165.

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da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investi-gação do referente normativo (domínio ou região normativa).

A “CONSTITUIÇÃO ABERTA” DE PETER HÄBERLE

Peter Häberle parte da perspectiva conceitual de Theodor Viehweg que inau-gurou o método tópico de interpretação constitucional, com a publicação, em 1953, de Tópica e jurisprudência (Topik und Jurisprudenz), retomando o pensa-mento tópico aristotélico, tendo sido seguido, além de Häberle, por juristas de envergadura como Martin Kriele, Friedrichi Müller e Konrad Hesse.

A infl uência da tópica entre os constitucionalistas coincide com o impulso que alcançou na Alemanha a teorização material da Constituição. Embora se reconhe-ça a Carl Schmitt e Rudolf Smend as contribuições precursoras para o desenvolvi-mento da teoria, verifi ca-se que o fl orescimento dos novos métodos de hermenêu-tica constitucional entre os alemães é de ser creditado a Viehweg e Joseph Esser.

É perceptível a conexão entre a tópica, enquanto teoria da argumentação jurí-dica orientada predominantemente para o problema, ou seja, para o caso concreto, com a teoria material da Constituição, que intenta uma compreensão pluridimen-sional e integral da Constituição. A tópica tende a resgatar todos aqueles aspectos materiais e axiológicos que o formalismo afastava.

Segundo Paulo Bonavides: “O método concretista da Constituição aberta é fruto, portanto, da revolução metodológica que desde a tópica se observa no campo do Direito Constitucional. Com ela a teoria material da Constituição se converteu defi nitivamente na hermenêutica do Estado Social”19.

Entretanto, variadas são as versões de incorporação da tópica à hermenêuti-ca constitucional e nem todas chegam ao ponto temido pela crítica, o de reduzir norma e sistema constitucional a topoi, ante o primado do problema. Isto é, pen-sar o problema não signifi ca, necessariamente, dispensar a norma e o sistema.

Segundo Bonavides, apenas Peter Häberle, teórico do método concretista da “Constituição aberta”, levou a tópica às últimas consequências, mediante propostas, tais como o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição, além dos órgãos estatais e entes públicos, o cidadão participativo da sociedade democrática, plura-lista e aberta, ou seja, a publicização da interpretação. Para o constitucionalista brasileiro, essa expansão desmesurada pode conduzir, se radicalizada, ao afrouxa-mento da normatividade e juridicidade das Constituições; outrossim, implicando consenso democrático, traria o método potencial de risco especialmente nos Estados pouco desenvolvidos, diante da instabilidade das instituições e do corpo social20.

19 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 517.20 Ibid., p. 509.

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O método tópico consiste antes de tudo “pensar o problema” e aloca-se na teoria da argumentação como forma de demonstrar a insufi ciência do argumen-to dedutivo próprio da lógica formal, perfeitamente recepcionado naquele mo-mento, pois, como bem ressaltou Paulo Bonavides:

Haviam sido muitas as esperanças depositadas naquele movimento, pois o positivismo jurídico por todas as suas escolas e correntes parecia sub-merso numa impotência doutrinária, simbolizada pelas descrenças postas na sua metodologia. Em grande parte essa metodologia estava a refl etir um racionalismo que já se exauria, inclusive em formalismos estéreis, como haviam sido os do normativismo levado às suas últimas consequências. A insufi ciência do positivismo explica o advento da tópica na medida em que lhe foi possível abranger toda a realidade do direito, valendo-se, conforme ressaltou Kriele, de normas positivas, escritas ou não escritas, em vincula-ção com as regras de interpretação e os elementos lógicos disponíveis21.

Para juristas que vislumbram um constitucionalismo contemporâneo, ou seja, com visão antiformalista do direito constitucional, entre eles Häberle, os métodos clássicos de interpretação de origem civilista, propostos por Savigny, presentes na jurisprudência dos séculos XIX e XX, já não se acomodavam tran-quilamente ao seu objeto – a Constituição – devendo, portanto, ser substituído por outras “regras interpretativas correspondentes a concepções mais dinâmicas do método de perquirição da realidade constitucional”22.

A insufi ciência da interpretação sistemática nos moldes clássicos, já manifes-tada mesmo no âmbito do direito privado, onde teve origem, torna-se patente na interpretação constitucional. A Constituição, como demonstra a teoria material, é infensa a uma redução a termos estritamente lógico-normativos, devido à rique-za do seu conteúdo e o excepcional horizonte de signifi cações ideológicas, socio-lógicas e políticas que ela consubstancia.

Desse modo, o modelo tópico de interpretação constitucional chegou ao exato momento para suprir a necessidade que se constituía em virtude da existên-cia de uma sociedade dinâmica e uma estrutura aberta e pluralista, impossível de se realizar mediante um sistema fechado e meramente dedutivo e representou “na Alemanha as direções e correntes mais empenhadas em renovar a metodologia contemporânea de interpretação das regras constitucionais”23.

Um dos métodos de interpretação constitucional que mais sofreu infl uência pela tópica foi o método concretista da “Constituição aberta”, desenvolvido pelo professor alemão Peter Häberle, importante constitucionalista atual, que levou a

21 Ibid., p. 492. 22 Ibid., p. 494.23 Ibid., p. 496.

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tópica às últimas consequências, propondo um grau máximo de democratização

do processo de interpretação das normas constitucionais.

Para o autor alemão, a teoria da interpretação constitucional tradicional tem

colocado até aqui apenas duas questões essenciais: as tarefas e objetivos da inter-

pretação e a questão sobre os métodos, que envolve o processo da interpretação e

suas regras. Porém, não tem dado importância fundamental para uma terceira

questão basilar que envolve os participantes da interpretação da Constituição.

Genericamente, pode-se constatar a existência de um círculo muito amplo de

participantes do processo de interpretação constitucional, o que por si só já seria

razão sufi ciente para despertar o interesse científi co e doutrinário sobre o tema.

Dessa forma, ao propor novo questionamento e tese acerca dos participantes

da interpretação constitucional, Häberle propugnou em sua obra A sociedade

aberta dos intérpretes da Constituição a passagem de uma “sociedade fechada dos

intérpretes da Constituição para uma interpretação pela e para uma sociedade

aberta”24.

Nesse contexto, Häberle procura construir uma tese que relacione a Consti-

tuição e a realidade constitucional, por meio de um processo de interpretação

constitucional, destacando-se o papel fundamental exercido por todos aqueles que

vivem a Constituição e, portanto, conformam tal realidade.

Desse modo, no processo de interpretação constitucional devem estar poten-

cialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos

os cidadãos e grupos, não sendo possível o estabelecimento de um número limi-

tado de intérpretes da Constituição, que deverá ser mais aberto quanto mais

pluralista for a sociedade.

Häberle justifi ca sua tese com a seguinte afi rmação: “quem vive a norma

acaba por interpretá-la ou pelo menos por cointerpretá-la”25. Isso porque o autor

distingue a interpretação da Constituição em sentido estrito e em sentido lato.

A interpretação, em sentido estrito, refere-se à interpretação consciente e

intencionada, própria dos juízes e tribunais, que se utilizam dos métodos tradi-

cionais enunciados por Savigny.

A interpretação lata é aquela realizada por meio da atuação de cidadãos e

grupos, órgãos estatais, sistema público e opinião pública, atuando, nitidamente,

pelo menos, como pré-intérpretes, funcionando como uma verdadeira “democra-

tização da interpretação constitucional”.

24 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 12.

25 Ibid., p. 13.

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Como assevera Paulo Bonavides, “a interpretação da Constituição nessa acepção lata é realmente interpretação, visto que serve de ponte para ligar o cida-dão, como intérprete, ao jurista, como hermeneuta profi ssional”26.

Não menospreza com isso a responsabilidade da jurisdição constitucional, que deve subsistir, e dar a última palavra em matéria de interpretação, mas deve sempre levar em conta a vontade manifestada pelo que chamou “pré-intérprete”, pois, para Häberle, a teoria da interpretação deve ser garantida sob a infl uência da teoria democrática, o que quer dizer que deve sempre contar com a participa-ção ativa do cidadão e das potências públicas mencionadas.

Para Häberle, não há de se cogitar monopólio da atividade interpretativa dos intérpretes jurídicos da Constituição, pois não são os únicos que vivem a norma, assim são suas palavras:

Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com

este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa

norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do

que pode se supor tradicionalmente, do processo hermenêutico27.

Logo após explicitar sua tese e o novo questionamento proposto, Häberle tra-tará de demonstrar quem são efetivamente os intérpretes da Constituição, ou melhor, o que ele chamou de participantes do processo de interpretação constitucional.

Isso porque, a teoria da interpretação constitucional tradicional sempre cuidou do tema com certa ofi cialidade e formalismo, ou seja, participam do pro-cesso de interpretação constitucional exclusivamente os “juristas especializados”. Nesse sentido, o constitucionalista alemão intenta inovar, uma vez que propugna alargar-lhe o âmbito, “de sorte que dela participem potencialmente todas as forças da comunidade política”28.

Häberle acredita que o processo de interpretação constitucional está poten-cialmente vinculado com a teoria democrática, pois, na concepção de uma socie-dade aberta, estão abrangidos os ideais de uma sociedade aberta consagradora dos pluralismos político, econômico, científi co e cultural, em que o povo, a partir da concepção de um Estado Democrático de Direito, é soberano e titular do Poder Constituinte Originário, e, portanto, tem o direito de participar da construção da ordem jurídica, interpretando e aplicando as normas constitucionais.

Sugere o autor alemão, na tentativa de sistematizar os participantes da inter-pretação constitucional, um catálogo provisório, que abrange quatro esferas: os

26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 510. 27 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição

– contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 15.28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 512.

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que exercem funções estatais29, os participantes no processo judicial, legislativo e executivo30, a opinião pública democrática e pluralista, e o processo político como grandes estimuladores31 e a doutrina constitucional que tem um papel especial por tematizar a participação de outras forças e, ao mesmo tempo, participar nos diversos níveis32.

Esclarece o autor, que esse catálogo tem o condão de demonstrar que a in-terpretação constitucional não é um processo exclusivamente estatal, devendo acessá-lo “todas as forças da comunidade política”, não podendo imperar mais a ideia de que o processo de interpretação constitucional está reduzido aos órgãos estatais ou aos participantes diretos do processo, pois é uma “atividade que, po-tencialmente, diz respeito a todos”.

No que tange ao processo político, Häberle sustenta sua importância para a interpretação constitucional e equipara-o a um motor que impulsiona esse pro-cesso, pois nele se verifi ca o movimento, a inovação, a mudança, que representam importantes elementos para o fortalecimento e para a formação do material da interpretação constitucional que, posteriormente, será desenvolvida, criando-se verdadeiras realidades públicas, que poderão integrar o próprio conteúdo da Constituição.

O legislador, enquanto intérprete da Constituição, também possui um poder de conformação, assim como o juiz constitucional. A diferença existente se situa no plano qualitativo, ou seja, ao juiz é assegurado um espaço na interpretação cujos limites decorrem de argumentos de índole técnica. Todavia, sob uma pers-pectiva quantitativa, não existiria, segundo Häberle, diferença fundamental entre as duas situações.

O autor alemão continua seu raciocínio, buscando demonstrar a legitimação das forças participantes do processo interpretativo. Primeiramente, ele reconhece as possíveis objeções e críticas em relação à sua tese. A principal delas traduz-se na constatação de que uma teoria constitucional defensora do postulado da uni-dade da Constituição, assim como da produção de uma unidade política, deve reconhecer o risco de a interpretação constitucional acabar se dissolvendo em um número excessivamente elevado de intérpretes e de interpretações, o que levaria à redução do elemento normativo.

29 Tribunal Constitucional e demais órgãos do Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo.30 Autor, réu, recorrente, testemunha, parecerista, associações, partidos políticos, peritos, experts,

dentre outros.31 Mídia (imprensa, rádio e televisão), jornalistas, leitores, igrejas, teatros, editoras, escolas,

pedagogos etc.32 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição

– contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 23.

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Os críticos da teoria häberliana, defendem a restrição dos legitimados à in-terpretação constitucional, tão somente àqueles que detêm competência formal pré-estabelecida pela própria Constituição.

Porém, Häberle, rebate essa crítica afi rmando que a estrita correspondência entre vinculação (à Constituição) e legitimação para a interpretação perde sua força a partir do momento em que consideramos um novo fator a orientar a her-menêutica constitucional: o reconhecimento de que a interpretação é um proces-so aberto, em que não há mais espaço para um processo de passiva submissão e a ampliação do círculo de intérpretes decorre da necessidade de integrar a realidade no processo interpretativo.

Nessa perspectiva, portanto, faz-se necessário conjugar refl exões sob a ótica da Teoria da Constituição e da Teoria de Democracia, pois, segundo Häberle: “A própria abertura da Constituição demonstra que não apenas o constitucionalista participa desse processo de interpretação! A unidade da Constituição surge da conjugação do processo e das funções de diferentes intérpretes”33.

Sob o ponto de vista da Teoria da Constituição, estão legitimados para par-ticipar da interpretação constitucional todos os que vivem a Constituição, pois “representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição”. Consti-tuição esta que não estrutura apenas o Estado, mas a vida em sociedade, devendo, portanto, realizar a integração necessária entre Estado e sociedade.

Outra refl exão que Häberle leva em conta para justifi car a abertura consti-tucional é a legitimação sob a perspectiva democrática. Via de regra, os cidadãos e os grupos em geral não possuem legitimidade para a interpretação da Consti-tuição em sentido estrito. Porém, para esse autor, a democracia não se desenvolve apenas no âmbito da delegação formal do povo para os seus representantes eleitos, mas “numa sociedade aberta, ela se desenvolve por meio de formas refi nadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, espe-cialmente mediante a realização dos Direitos Fundamentais”34.

Sobre a relevância da teoria democrática para a teoria de Häberle, vale a transcrição dos comentários tecidos por Bonavides:

A interpretação concretista, por sua fl exibilidade, pluralismo e abertura,

mantém escancaradas as janelas para o futuro e para as mudanças median-

te as quais a Constituição se conserva estável na rota do progresso e das

transformações incoercíveis, sem padecer abalos estruturais, como os de-

correntes de uma ação revolucionária atualizadora. Mas para chegar a

tanto faz-se mister uma ideologia: a ideologia democrática, sustentáculo do

33 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constitui-ção – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, p. 32.

34 Ibid., p. 36.

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método interpretativo da Constituição aberta, concebido por Häberle, e

que serve de base portanto a uma hermenêutica de variação e mudança35.

Talvez resida neste ponto o maior problema desta teoria concretista da “Cons-tituição aberta”, desenvolvida por Häberle, ou seja, na ideologia democrática, que deve servir de alicerce ao modelo interpretativo que expande o círculo de intér-pretes da Constituição e estreita a relação Estado-Sociedade, fazendo o cidadão se aproximar das decisões sobre o sentido da Constituição.

Isso porque a “Constituição aberta” levanta a discussão acerca da legitimida-de do modelo da democracia representativa, clássica e tradicional, de natureza presidencialista. Há autores, como Bonavides, que entendem que seus resultados “não foram bastantemente idôneos para debelar as crises do sistema”36, e que não possui meios de manter os titulares do poder no exercício de uma autoridade efetivamente identifi cada com os interesses da cidadania. Para esse autor, a “Cons-tituição aberta” somente se institucionalizará em sociedade inteiramente corpo-rifi cada pela supremacia popular.

Carlos Roberto Siqueira Castro, na mesma esteira de Peter Häberle e Paulo Bonavides, autores consagrados na defesa da abertura da Constituição, assim se posicionou:

Nessa perspectiva de direito constitucional comunitário, que correspon-

de à ideia de sociedade e de constituição aberta, é natural que a própria

interpretação da constituição deixe de representar monopólio dos agentes

estatais ou dos intérpretes ofi ciais, especialmente dos juízes e operadores

orgânicos da ordem jurídica, passando a respeitar o papel da opinião

pública enquanto fonte popular legítima de pronunciamento do sentido

ou dos novos sentidos da Carta Política. Os destinatários do sistema

constitucional, ou seja, o conjunto de indivíduos, de grupos sociais e

instituições de toda espécie que integram a comunidade política, são os

participantes ativos, conquanto não ofi ciais, do processo hermenêutico

aberto. O sentimento do povo acerca da compreensão das normas cons-

titucionais, a traduzir o sentimento constitucional da nação, corporifi ca

o grau de recepção popular dos enunciados supralegais, legitimando ou

deslegitimando, no plano da efi cácia social, os comandos da Constituição.

Numa sociedade aberta, pluralista e democrática é impensável a exegese

da Lei Maior fazer-se nos canais estritamente públicos e ofi ciais, deixan-

do à margem do processo de construção diária e dinâmica da operância

da Constituição o homem da rua, o trabalhador, e os protagonistas da

cidadania ativa, de quem, em última análise, depende a integridade e o

35 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 515.36 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 15.

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destino da comunidade política. A Constituição, em realidade, habita e

sobrevive muito mais nas ruas e espaços do convívio social cotidiano do

que nos gabinetes dos juízes ou plenários dos tribunais. O processo in-

terpretativo é, bem por isso, não excludente e participativo37.

A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E O MÉTODO CONCRETISTA DA “CONSTITUIÇÃO ABERTA”

Para que uma Constituição seja analisada do ponto de vista da teoria concre-tista da “Constituição aberta”, com a fi nalidade de verifi car a sua aplicação naque-le ordenamento objeto da análise, faz-se necessário identifi car em seu bojo dispo-sitivos que assegurem o pluralismo e a democracia participativa, elementos indis-pensáveis à concretização da abertura hermenêutica da Constituição.

No que tange a Constituição Federal de 1988, observa-se, primeiramente, inúmeros dispositivos consagradores do pluralismo:

a) Preâmbulo – caracteriza a sociedade brasileira de pluralista;

b) Art. 1º, V – pluralismo político como princípio fundamental da Repú-blica Federativa do Brasil;

c) Art. 3º, IV – constituem objetivos fundamentais da República Federati-va do Brasil promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

d) Art. 5º – dentre os direitos e garantais fundamentais a previsão da in-violabilidade de consciência e de crença, bem como a livre manifestação de pensamento, artística, cultural, intelectual e de comunicação e a li-berdade de reunião e associação;

e) Art. 170 – livre-iniciativa e livre concorrência;

f) Art. 206 – pluralismo de ideias e das instituições de ensino;

g) Art. 215 – pluralismo cultural;

h) Art. 220 – pluralismo de informação.

Desse modo, portanto, pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988, consagradora do pluralismo, nesse aspecto coaduna-se com a teoria concretista häberliana da “Constituição aberta”, apresentando-se como uma sociedade plural, dinâmica e multicultural.

Ademais, os mecanismos de democracia participativa presentes na Carta Magna que garantem efetiva participação dos cidadãos e tornam instrumental-mente efi cazes à vontade soberana do povo são encontrados nos seguintes dispo-sitivos, sem exclusão de outros que possam ser encontrados:

37 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, p. 44-45.

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a) Art. 5º, XXXIV, “a” – “o direito de petição aos Poderes Públicos em de-fesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”;

b) Art. 5º, LXIX – “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for au-toridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”;

c) Art. 5º, LXXIII – “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entida-de de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio am-biente e ao patrimônio histórico e cultural, fi cando o autor, salvo com-provada má fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”;

d) Art. 14 – O dispositivo consagra inúmeras formas de exercício da sobe-rania popular, a saber: sufrágio universal, voto direto e secreto, plebis-cito, referendo e iniciativa popular;

e) Art. 31, § 3º – “as contas dos Municípios fi carão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei”;

f) Art. 37, § 3º – “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, (...)”;

g) Art. 61, caput, § 2º – “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”;

h) Art. 74, § 2º – “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindi-cato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.

Desse modo, demonstra-se, uma vez mais, que, ao menos juridicamente, a Constituição assegura em inúmeros dispositivos a participação direta dos cidadãos na vida pública, consagrando-se a democracia participativa e efetivando-se, do ponto de vista teórico, a possibilidade de aplicação da teoria concretista da “Cons-tituição aberta” ao ordenamento jurídico brasileiro.

Recente trabalho publicado na Revista de Direito Constitucional e Interna-cional38, autoria de André Pires Contijo e Christiane Oliveira Peter da Silva, analisou o instituto do amicus curiae previsto no art. 7º, § 2º, da Lei n. 9.868/99, como ins-trumento de participação do cidadão no âmbito do processo constitucional, como

38 Ano 16, n. 64, jul./set. 2008. Artigo intitulado: “O papel do amicus curiae no processo constitucional: a comparação com o decision-making como elemento de construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal”.

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forma de realização da participação de forças sociais no processo de tomada de decisão e forma de exercício pleno e efetivo da cidadania e pluralismo político, protegidos pela Constituição, como mencionamos anteriormente.

Os autores objetivam sistematizar e revisar a doutrina da teoria do processo constitucional, com base na teoria de Häberle, “da legitimação dos intérpretes pelo procedimento adequado, demonstrando o papel fundamental do amicus curiae no processo de formação da decisão do poder na Jurisdição Constitucional, indicando caminhos e aberturas sistêmicas para concretizar a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”.

Importante são as palavras à guisa de conclusão deixada pelos autores:

Portanto, as potências públicas e pluralistas integrantes da sociedade aberta de intérpretes não devem apenas reivindicar a concretização da garantia institucional do amicus curiae, mas devem zelar pela preservação do instituto, atuando de forma combativa e opinativa nos assuntos de interesse público de toda a sociedade, pois o amigo da Corte (como ins-trumento legitimador das decisões do STF e em meio a uma garantia institucional em defesa do cidadão) representa nos dias atuais um ‘embrião’ contido na Lei 9.868, que pode fl orescer e se tornar um forte e saudável ‘fruto’ da sociedade aberta39.

Esse trabalho coaduna-se com nosso posicionamento acerca da necessidade de fortalecer mecanismos de aproximação do cidadão ao processo de interpreta-ção constitucional, dos quais o amicus curiae deve ser mais bem desenvolvido no alcance desse objetivo, assim como outros, que no nosso modo de entender, mesmo após a ampliação do número de legitimados a instaurar o contencioso de constitucionalidade na via da ação direta, continuou restringindo o acesso da cidadania, não se alcançando o alargamento preconizado no processo de abertu-ra da sociedade desenvolvido por Häberle, para quem a ampliação do círculo de intérpretes é apenas a consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação.

Essa assertiva coaduna-se com o pensamento de Roberto Siqueira Castro conforme assinala:

Assim sendo, cremos poder concluir (...) com o reconhecimento de que a

Constituição brasileira de 1988, a despeito de imperfeições pontuais que

possam merecer oportuno e responsável aprimoramento, constitui docu-

mento de organização social e política altamente meritório e sobremodo

sensível às realidades injustas que prevalecem em nossa País, afi nando-se

39 Ano 16, n. 64, jul./set. 2008. Artigo intitulado: “O papel do amicus curiae no processo constitucional: a comparação com o decision-making como elemento de construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal”, p. 84.

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com o constitucionalismo pós-moderno e, dentre este, com os melhores

modelos de constituição aberta nesta antevéspera do terceiro milênio40.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não resta dúvida de que a teoria concretista da “Constituição aberta”, desen-volvida por Peter Häberle a partir da nova hermenêutica e os anseios por novos métodos interpretativos que respondessem às necessidades de uma sociedade plu-ralista e aberta, mostra-se condizente e democrática, uma vez que o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição, incluindo todos aqueles que vivem a norma constitucional, integrando o processo interpretativo em sentido lato, é a melhor forma de alcance de uma sociedade pluralista e democrática.

O sistema constitucional, por refl etir a dinamicidade da sociedade, reclama o emprego de métodos interpretativos que possam acompanhar a evolução da realidade constitucional, como bem observou André Ramos Tavares:

Percebe-se, portanto, que é a abertura das normas constitucionais que

possibilita a evolução do Texto Constitucional, o acompanhamento do

desenvolvimento da realidade, permitindo sua permanência, superando-se,

assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um

sistema (cognitivamente) fechado, conforme vigorou no positivismo

formalista, em que predominava a infantil crença de que as leis constan-

tes do Codex eram sempre aplicáveis a toda e qualquer situação, por mais

nova, estranha ou rara que fosse41.

O novo método de interpretação concretista da “Constituição aberta”, como podemos observar, foi um aprimoramento da Nova Hermenêutica na busca de novos métodos interpretativos em detrimento dos tradicionais métodos juscivi-listas que já não mais atendiam aos anseios do desenvolvimento da Ciência do Direito Constitucional, atenta à realidade social, e possibilita, pela abertura da Constituição, que ela esteja sempre renovada ao seu tempo, perdendo seu viés estatizante, obra do formalismo jurídico, apresentando-se dinâmica e acompa-nhando a evolução e o desenvolvimento da realidade social.

O Constitucionalismo moderno que conhecemos no fi nal do século XVIII, com a Declaration of Rights, do Estado de Virgínia, de 1776, e a Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que trouxeram como principais

ideiais: a tripartição dos poderes, harmônicos e independentes, garantia dos

40 Ano 16, n. 64, jul./set. 2008. Artigo intitulado: “O papel do amicus curiae no processo constitucional: a comparação com o decision-making como elemento de construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal”, p. 130.

41 TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta. Disponível em: <http://multimidia.opovo.com.br/revista/andre-ramos-tavares.pdf>. Acesso em: 10 out. 2008. p. 333.

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direitos individuais, crença na democracia representativa, demarcação entre a sociedade civil e o Estado, e ausência do Estado no domínio econômico (Estado absenteísta), em que pese sua fundamental importância para o desenho constitu-cional que conhecemos, já não se mostrava sufi ciente.

Surge, portanto, o que alguns doutrinadores têm chamado de “constitucio-nalismo da pós-modernidade ou contemporâneo”42, que, a partir de 1970, alguns ordenamentos têm caracterizado-se por uma extrema abertura do ponto de vista material, retratando, dessa forma, uma assimilação das complexas relações sociais do fi m do século, em que se pode afi rmar que o

Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura

constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano. É assim,

uma instituição de ilimitada absorção das aspirações e conquistas sociais,

que faculta os canais pacifi cadores da mediação jurídica à generalidade dos

focos de tensão e dos multiformes projetos de dignifi cação humana43.

Os autores que visitamos neste artigo, sobretudo Peter Häberle, precursor dos estudos acerca da Tópica e da teoria concretista da “Constituição aberta”, baseando-se na moderna teoria da democracia, erigiram uma teoria democrati-zante da interpretação constitucional, incluindo a participação do cidadão como fundamental no papel de intérprte da Constituição.

As críticas apresentadas ao modelo interpretativo desenvolvido por Häberle devem servir aos órgãos estatais que têm o escopo de valer-se dos novos instru-mentos no processo interpretativo, como bem observou Paulo Bonavides, condi-cionando, dessa forma, o sucesso do novo modelo hermenêutico proposto, garan-

tindo-se a democratização do processo interpretativo:

O bom êxito da moderna metodologia fi cará porém a depender de um

não afrouxamento da normatividade pelos órgãos constitucionais judi-

cantes na medida em que estes fi zerem uso dos novos instrumentos

hermenêuticos, nascidos da necessidade de maior adequação da consti-

tuição com a realidade, bem como do dinamismo normativo do Estado

social, o Estado que constrói o futuro da sociedade democrática44.

REFERÊNCIAS

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42 Entre eles, Carlos Roberto Siqueira Castro.43 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, p. 19.44 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 517.

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R. P. Magane

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Data de recebimento: 15/05/2009

Data de aprovação: 02/12/2009

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