O MUNDO ATLÂNTICO DO LADO DE CÁ, DO LADO DE LÁ: AS ... · sublinhou o apoio à...
Transcript of O MUNDO ATLÂNTICO DO LADO DE CÁ, DO LADO DE LÁ: AS ... · sublinhou o apoio à...
O MUNDO ATLÂNTICO DO LADO DE CÁ, DO LADO DE LÁ: AS NEGOCIAÇÕES
DAS IDENTIDADES NEGRAS NA COLEÇÃO AFRICANA DO MNBA
GABRIELLE NASCIMENTO
RESUMO: As nações, tal como sugere Benedict Anderson (2008), são "comunidades
imaginadas", por isso cabe refletir como era imaginada a África e os africanos no pensamento
brasileiro, no contexto político dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart. Este trabalho
também tem como propósito compreender os empreendimentos da aquisição da Coleção
Africana Gasparino Damata, do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), comprada em
1964, durante a política de aproximação do Brasil com a África. Será utilizado como suporte
metodológico as narrativas do diretor José Roberto Teixeira Leite e do colecionador
Gasparino Damata, a partir de artigos de jornais, do período de 1961 a 1964.
Palavras chaves: África; Brasil; Coleção Africana; MNBA.
Introdução
Como todo objeto é testemunho do seu tempo e conta uma história, tal como afirma
Peter Burke (2004), as narrativas sobre a África, no contexto estudado, é o primeiro passo
para se refletir sobre quais foram os interesses políticos e institucionais na aquisição da
Coleção Africana, pelo MNBA.
Durante muito tempo no imaginário ocidental, a África foi considerada um lugar
selvagem, cheio de mistérios e segredos, um território "fantástico” com imagens de seres
zoomórficos e também antropofágicos, a qual a Europa acreditava ter o dever de civilizar
(COSTA E SILVA, 2012). Aliás, Appiah (2014) afirma que o conceito de “raça” foi
inventado no mesmo momento em que os europeus também inventaram a “África”. E nesse
jogo de construções se moldavam identidades: de um lado, uma identidade europeia, de
homens brancos e civilizados. E de outro, uma identidade africana, de negros “selvagens” e
Graduação em História da Arte (UFRJ) com especialização em História e Culturas africanas e afro-brasileira
(IPN); Mestranda na linha de Imagem e Cultura, no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (UFRJ), com
bolsa CNPq. Orientação: Professora Doutora Carla da Costa Dias (PPGAV/ UFRJ).
2
“primitivos”, que viviam em “tribos”, onde os habitantes compartilhavam da mesma língua,
cultura e crença, de maneira homogênea.
Essa África engendrada era a terra habitada por "homens de pele negra" e, logo, de
seres inferiores, já que na percepção cristã, no simbolismo das cores, tal como afirma
Guimarães (2012:11), "o negro significava a derrota, a morte, o pecado; enquanto o branco
significava o sucesso, a pureza e a sabedoria". Mary Del Priore e Renato Venâncio (2004:56)
também discutem a terminologia da palavra negra e diz que "a cor negra, associada à
escuridão e ao mal, remetia no inconsciente europeu, ao inferno e às criaturas das sombras. O
Diabo, nos tratados de demonologia, nos contos moralistas e nas visões das feiticeiras
perseguidas pela Inquisição, era, coincidentemente, quase sempre negro".
No que se refere a representação dos africanos nas produções literárias e artísticas, do
século XVIII aos primeiros anos do século XX, os africanos eram descritos pelos europeus
como “preguiçosos, volúveis, estúpidos, supersticiosos, mentirosos, inconstantes,
dissimulados, ladrões, gananciosos, violentos, rancorosos, vingativos e traiçoeiros” (COSTA
E SILVA, 2012:13). Essas ideias ainda prevalecem, portanto, ser negro e africano já
representa alguma coisa para algumas pessoas e, em parte, essa identidade é produto de um
olhar sobrevivente do imaginário ocidental (APPIAH, 2014).
Pode-se afirmar, assim, que a noção que se construiu da África, dos africanos e dos
negros foram antes de tudo invenções ocidentais, marcadas por distâncias, diferenças e
estranhezas. Além disso, acreditou-se durante séculos que a África não podia ser objeto de
estudo dos historiadores, primeiro, devido à ausência de códigos escritos e a predominância
da tradição oral e, segundo, por ser classificada como uma sociedade tradicional, estando
fadada a um eterno imobilismo.
Mesmo no século XIX, no momento da "partilha" do continente africano pelos
europeus, e da "descoberta" de elaborações complexas na arte estatuária, a ideia da "África
sem história" sobrevivia. Tem-se como exemplo a explicação dos europeus sobre as origens
da técnica estatuária usada pelos iorubas, da arte do Benin e da arquitetura do Zimbabwe. De
acordo com os discursos da época, essas produções seriam frutos de interferências de outras
civilizações na África Negra, e que portanto, não eram criações africanas (OLIVA, 2004).
É somente a partir de meados do século XX, com a reformulação da Escola dos
Annales, que a África passa a ser vista por outro viés: a investigação dos historiadores deixa
de se restringir somente aos documentos e outras fontes são utilizadas como, história oral,
fotografia, jornais, inventários, entre outras. É neste momento também, que a produção
3
historiográfica da África não estava mais vinculada à presença estrangeira no continente e os
africanos passam a construir uma historiografia sobre si mesmo; há um investimento na
desconstrução dos discursos coloniais, principalmente sobre as diferenças “raciais”, e na
construção de uma nova história que pudesse servir como instrumento de luta ideológica e
política contra o colonialismo.
De forma geral, esse período era um momento de reformulação na África: os países
estavam se descolonizando e tornando-se independentes da Europa. Nesse contexto, começa-
se a forjar "sentimentos de pertencimentos" às nações e, por isso, reinventava-se a África e
suas tradições1; discutia-se as fronteiras dos países africanos impostas pela Europa, inclusive
os conflitos que a colonização provocou entre os grupos etnolinguísticos. Foram criados
também centros de estudo e universidades em alguns países africanos e foram organizados os
primeiros congressos sobre o estudo do passado no continente, dentre os quais o Primeiro
Congresso Internacional de Africanistas, ocorrido em Acra, 1962. Publica-se também livros e
jornais com pesquisas de intelectuais africanos. Em síntese, movimentos como o Pan-
africanismo e a Negritude foram importantes nessa ressignificação da identidade africana,
inclusive na articulação e na influência dos movimentos negros do outro lado do Atlântico.
Quanto ao Brasil, o historiador José Flávio Sombra Saraiva (1993) afirma que em
1961, no governo iniciado pelo Presidente Jânio Quadros, em 1961, e continuada pelo
Presidente João Goulart, até março de 1964, se tentou construir, tanto no campo diplomático,
como no campo econômico, projetos que estimulassem a expansão das fronteiras e das
influências políticas do país no cenário africano.
Para alcançar tais objetivos, o Brasil declarou-se contra o colonialismo e o racismo e
sublinhou o apoio à autodeterminação dos povos da África. O governo brasileiro construiu
uma série de estratégias, dentre elas criou o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-asiáticos
(IBEAA), em 1961, e fundou o Centro de Estudos e Cultura Africana da Universidade de São
Paulo, em 1963. No intuito de se construir uma imagem de um país perfeito racialmente,
nomeou um professor negro da Universidade da Bahia, o professor Milton Santos, para servir
na Casa Civil da Presidência da República; e indicou o negro Raymundo de Souza Dantas2
1 Para Appiah (2014), a ideia de tradições africanas deve ser sempre relativizada, as sociedades tradicionais se
encontram abertas e, em grande parte das vezes, absorvem os impactos causados pelas mudanças sem maiores
transtornos. 2 No diário do embaixador Raymundo de Souza Dantas, publicado como livro em 1965, cujo título é África
difícil: missão condenada, o autor revela as dificuldades enfrentadas enquanto embaixador: primeiro devido ao
abandono do Itamaraty que não cumpria com o assessoramento na embaixada de Gana; segundo pela sua tomada
de consciência de classe e de raça que, pela primeira vez, ele passa a ter de si mesmo. No diário, a discussão
4
para ser embaixador em Acra, no país de Gana. Também concebeu acordos culturais para o
Senegal, Gana e Nigéria e ofereceu bolsas de estudo brasileiras a estudantes africanos.
Sobre o período estudado, os anos iniciais da década de 1960, a realidade do negro
brasileiro no cenário nacional aponta que mesmo após 70 anos do fim da escravatura, o negro
ainda estava à margem e era o mais afetado com o desemprego, pobreza, analfabetismo,
mortalidade infantil, expectativa de vida e homicídio (SKIDMORE, 2013). E mesmo que
mais de 4 milhões de negros escravizados tenham sido trazidos da África para o Brasil, nos
séculos anteriores, pouco se sabia sobre esse continente, pois políticas de Estado foram
criadas com o propósito de se apagar essa memória negra, tal como discute a autora Lilia
Schwarcz (2012) no livro Nem preto nem branco, muito pelo contrário. A título de
comprovação, a obra Redenção de Cam3, de Modesto Brocos (1895), configura-se a teoria do
branqueamento, segundo a qual os negros brasileiros desapareceriam em algumas décadas
através da miscigenação. Assim, acreditou-se, no Brasil, que através da hibridação da “raça”
branca superior com a “raça” negra inferior se eliminaria a herança africana e se constituiria
uma “raça” superior para nação.
O Brasil estava muito mais preocupado em contar a história brasileira pelo viés da
história da civilização europeia, do que pela contribuição da força do trabalho do negro no
período colonial. Não é à toa que em 2003 a Lei 10.639/03 foi implementada com o objetivo
de reparar esse erro, obrigando as escolas a incluir nos currículos, o ensino da história e da
cultura afro-brasileira. Ou seja, se no início do século XXI foi preciso de uma lei que
garantisse que essa memória e história fosse estudada, nos anos iniciais da década de 1960 a
África ainda era um continente distante do imaginário brasileiro e pouco se sabia sobre ele.
Como bem lembra José Flávio Sombra Saraiva (2009:226):
O País continuava a viver uma séria falta de conhecimento da realidade africana da
época, sem falar da história daquele continente, depois que os brasileiros romperam,
gradualmente, o tráfico atlântico de escravos. O verdadeiro ‘silêncio’ sobre os
assuntos africanos que a elite brasileira havia cultivado após o final da escravidão
persistia nas instituições de ensino superior e na educação em geral no Brasil.
sobre a discriminação racial é tratada como um conflito central e explícito. Dantas escreve sobre suas impressões
do que é ser um embaixador, especialmente quando se é negro. Diz que se sentia um “estrangeiro” quando estava
com outros embaixadores brasileiros, que o tratavam com desprezo e indiferença e não o consideravam
capacitado para o cargo pelo simples fato dele ser um homem negro. 3 Nesse quadro, há uma cena com quatro personagens em que uma negra idosa ergue as mãos para os céus,
agradecendo a Deus pelo neto branco que a filha, uma "mulata" clara, acaba de ter com um branco pobre. O
título da obra remete a uma passagem do Gênesis, em que Cam, por ter olhado para o pai, Noé, nu e bêbado, é
castigado, tornando-se, ele e seus descendentes, escravos de seus irmãos, Sem e Jafet.
5
Ainda, foram nomeados adidos culturais para Lagos (o escritor Antônio Olinto e,
depois, o esportista Adhemar Ferreira da Silva) e para Acra (o antropólogo Vivaldo Costa
Lima e, em sua sucessão, o escritor Gasparino Damata). Essas informações são importantes,
uma vez que a coleção africana estudada aqui foi adquirida neste período, por Gasparino
Damata, enquanto secretariou o embaixador Raymundo de Souza Dantas, em Gana.
É também nesse contexto, em 1961, que José Roberto Teixeira Leite é indicado e
selecionado para ser diretor do MNBA, no Rio de Janeiro, com a incumbência de renovar o
espírito desse Museu Oitocentista e torná-lo mais moderno. José Roberto Teixeira Leite foi o
responsável pela compra da coleção africana. Com o intuito de despertar a atenção do público
para essa coleção, ele promoveu uma série de eventos com temáticas relacionadas à África,
como seminários e palestras, forjando ainda mais essa aproximação entre Brasil e o continente
africano, colaborando assim para estreitar as margens do Atlântico. O MNBA transformou-se,
dessa forma, em uma grande arena.
Notas sobre Gasparino Damata e a Coleção Africana
Na década de 60, em meio às transformações que a sociedade brasileira enfrentava,
sobretudo relacionado às políticas de aproximação com a África, Gasparino atuou durante 20
meses como adido de imprensa da Embaixada do Brasil, em Gana, do embaixador Raymundo
de Souza Dantas.
Durante esse período, Gasparino percorreu diversos países da África, dentre eles,
Gana, Togo, Nigéria, Benim, Costa do Marfim, Guiné e Senegal. Além de adido, exerceu
também a função de “viajante aventureiro em terras estrangeiras” — essa era a denominação
dos jornais da época —, recolhendo por conta própria objetos de diferentes grupos étnicos
africanos, com o propósito da formação de uma coleção de arte.
Em um artigo do Jornal do Brasil (20 dez. 1963), Gasparino afirma que em 1963 os
colecionadores de arte chegavam a pagar fortunas por uma peça de bronze do Benin ou por
uma escultura de madeira do Congo e, por isso, tratava-se de uma “grande corrida”. Dessa
maneira, constata-se que Gasparino Damata já tinha uma ideia do que significa esses objetos
para o mercado de arte brasileiro e também uma noção sobre os seus valores. Em outro
trecho, o discurso de Damata aproxima ainda mais os objetos africanos dos cânones europeus
e das categorias ocidentais de apreciação de arte, e justifica que os interesses dos museus, das
galerias e dos colecionadores é justamente na autenticidade e na originalidade das formas
6
africanas. Para ele, foi exatamente isso que inspirou na renovação das ideias modernistas na
Europa, influenciando as mudanças nas artes plásticas, principalmente na pintura e na
escultura.
Com o objetivo de formar a sua coleção, Damata percorreu uma diversidade de
lugares recolhendo peças das culturas Ashanti, Baulê, Senufo, Ioruba, Fon, entre outras,
reunindo esculturas em madeira e bronze, joias, tecidos e tapeçarias, que chamou de “arte
africana ocidental”. Sobre a maneira que adquiriu as peças, ele conta que as conseguiu nas
próprias “tribos” africanas, lançando-se no interior do continente, nos vilarejos mais distantes,
no coração da floresta, ou em regiões áridas, quase inabitáveis, sem o uso de condução
própria, utilizando transporte nativo, como pau-de-arara. Em inúmeros relatos, Damata
descreve a ausência de recursos monetários governamentais na aquisição da coleção,
custeando a compra dos objetos com dinheiro próprio, ou trocando-os por objetos pessoais,
como sapato e roupas.
Ao regressar ao Brasil, em meados de 1963, Gasparino expôs os objetos da sua
coleção africana no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em Salvador, com
patrocínio do Jornal do Brasil. Com o título de “Arte Tradicional Africana”, a mostra foi
apresentada também em Recife, Belo Horizonte e Brasília. Logo em seguida foi exposta no
Rio de Janeiro, no MNBA, e foi integrada ao acervo desta Instituição. Apesar da coleção ter
sido avaliada em 10 milhões de cruzeiros, Gasparino vendeu-a ao MNBA por dois milhões,
na condição do seu nome ser atribuído à coleção (Diário de Pernambuco, 17 mar. 64). Apesar
de ter sido procurado por diversos colecionadores particulares, tendo podido arrecadar um
valor muito maior, preferiu vender ao MNBA. Seu intuito era que o conjunto das peças
ficassem em um museu de visibilidade e, assim, o povo pudesse entrar em contato com as
peças, adquirindo um maior conhecimento sobre “arte africana”.
Sobre a ideia de “arte africana”, entende-se que os objetos adquiridos por Gasparino
Damata ao serem deslocados da outra margem do Atlântico para o Brasil, perderam seus
significados para ganharem outros, os do mundo ocidental. Ou seja, nesse deslocamento na
rota do Atlântico, objetos que muitas vezes não eram produzidos com o intuito de serem artes,
ao adentrarem em museus e galerias, foram artificados, sendo destituídos de seu sentido
original, adquirindo sentidos absolutamente distintos de seu contexto social. Em muitas
sociedades não ocidentais, tais como as africanas, a produção da cultura material é definida
como parte integrante dos processos que socializam as pessoas na forma de ver as coisas, nas
crenças e na compreensão sobre o mundo, sobre a vida e a morte (BEVILACQUA e SILVA,
7
2015). Diferente do Ocidente, em que é depositado uma série de valor estético no objeto,
como beleza, harmonia e equilíbrio e valorados a partir de sua autenticidade, unicidade e
originalidade ( BENJAMIN, 2012).
2. O diretor entra em cena: José Roberto Teixeira Leite e os “anos de chumbo”.
Como foi discutido, no início da década de 60 havia projetos políticos que investiam
na aproximação do Brasil com a África. De maneira geral, foi também um momento em que
os museus e galerias passaram a olhar para os objetos africanos com entusiasmo,
principalmente porque a arte ocidental parecia estar esgotada (BELTING, 2012). No mundo
da arte brasileiro, por exemplo, alguns colecionadores legitimados, tal como a colecionadora
Ema Klabin, deram início a compras de coleções de arte africana. Na IV e na V Bienal de São
Paulo (1957 e 1959) ocorrem mostras de esculturas negras, e o Museu de Arte Moderna do
Rio promoveu uma exposição de esculturas africanas (1956), entre outros eventos.
Entende-se, dessa forma, que é necessário refletir sobre a figura do diretor José
Roberto Teixeira Leite, o personagem que adquiriu a coleção africana e a incluiu no acervo do
MNBA, a fim de compreender os interesses que motivaram a compra da coleção, os valores
atribuídos aos objetos, os discursos entoados e as disputas e conflitos que ocorreram durante
esse processo de mercantilização. E também refletir todas essas questões inserindo-as no
contexto em que foram produzidas, de modo a compreender a mentalidade vigente e os pilares
sob os quais se estruturavam todo o universo da qual o diretor fazia parte.
José Roberto Teixeira Leite trabalhou no Serviço de Documentação do Ministério da
Educação, em 1961, e como narra no texto Anos de Chumbo (2009), foi através de um
telefonema recebido que foi notificado por Ferreira Gullar, na época assessor especial para
assuntos de cultura da Presidência da República, que tinha sido indicado pelo presidente Jânio
Quadros ao cargo de diretor do MNBA. O objetivo era que substituísse o ex-diretor Oswaldo
Teixeira, atualizasse, modernizasse e dinamizasse o Museu de acordo com características de
outros museus no mundo.
Houve, por parte da crítica, algumas hesitações em relação a essa indicação,
considerando “um atentado à arte ‘clássica’ brasileira” (LEITE, 2009). Em uma das notas no
Jornal do Brasil (21 mai. 1961), o escritor Manuel Bandeira escreve sua posição:
A mocidade de Teixeira Leite, o seu gosto pelas formas mais vivas da arte
inquietam um pouco, mas se ele compenetrar do que representa na evolução
das artes o patrimônio do passado, poderá corresponder plenamente ao
8 crédito de confiança que lhes estamos fazendo, que lhe fez, nomeando-o, o
presidente Jânio Quadros.
Ao assumir o cargo, José Roberto estabeleceu o seu plano de ação e, como medida
inicial, abriu os portões laterais do Museu com o intuito de atrair um público maior e mais
diversificado, visto que o MNBA era um museu que atraia somente a elite, excluindo assim a
camada mais popular — ainda vestígio dos projetos nacionalistas do século anterior. No
jornal Correio da Manhã (13 out. 1964), o jornalista Jayme Maurício diz que antes do diretor
assumir o cargo, havia uma frequência de 500 visitantes por mês no Museu e, nos anos
seguintes, passou-se a ter uma estimativa de 10 mil por semana.
Com a renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961, José Roberto
Teixeira Leite diz que a constante troca de ministros na pasta da Cultura desfavoreceu o
MNBA, isso porque tornou-se impossível dialogar com os ministros e esperar qualquer
providência ou ato que o beneficiasse. Com exceção do ministro Júlio Sambaqui, personagem
importante na reflexão da escrita deste trabalho que, além de destinar verbas para reformas do
MNBA, concordou em liberar dinheiro para a compra da “coleção de arte da África Negra”,
dos países da África Ocidental.
Como conta José Roberto, ele tinha interesse em comprar a “coleção de arte” trazida
por Gasparino Damata da África, no entanto, como o Museu não dispunha de “um só tostão”,
recorreu ao ministro Sambaqui:
Escolhi entre as peças oferecidas duas ou três esculturas mais vistosas, e
acompanhado do funcionário Sylvio Manhães - um negro imponente em seus quase
dois metros de altura - irrompi com elas gabinete do ministro adentro, explicando-
lhe que seria imperdoável perder uma oportunidade daquelas de enriquecer o
acervo com obras de tamanha qualidade (LEITE, 2009:257).
Justifica que a aquisição desta coleção não nasceu de um impulso, antes se insere
dentro de um projeto idealizado por ele, que objetivava tornar o Museu não só o das “belas
artes”, mas de todas as artes, com representação dos diversos segmentos étnicos que
contribuíram para a formação da nacionalidade, como a arte popular e a arte indígena. Assim,
durante sua gestão, de 1961 a 1964, adquiriu não só a coleção africana do Gasparino Damata
como também uma coleção de cerâmica do Mestre Vitalino, e de outros artistas populares, do
colecionador Renato Miguez4, e comprou algumas xilogravuras e literatura de cordel.
No que tange a sua ideia sobre África, verificou-se em diversos jornais consultados a
4 Renato Miguez foi professor na Escola de Belas Artes da disciplina de Folclore. Em 1960, iniciou a montagem
de sua coleção com peças de viagens do Brasil e de outros países. Ele doou grande parte da sua coleção (1.366
peças) para o Museu Dom João VI, em 2012, durante a direção da professora Carla da Costa Dias.
9
participação do diretor José Roberto Teixeira Leite em conferências e cursos sobre “arte
africana”. Em 1962, por exemplo, ofereceu um curso de “arte africana” no Instituto Brasileiro
de Estudos Afro-Asiáticos. No mesmo ano, publicou na Revista Senhor, em maio de 1962,
uma matéria sobre política e “arte africana”, junto do escritor Cândido Mendes de Almeida.
No ano de 1963, José Roberto Teixeira Leite escreveu algumas notas nos jornais
brasileiros sobre a África e os objetos africanos, contribuindo dessa maneira com a construção
do imaginário nacional sobre a África. Para ele, não se tratava de “peças etnológicas” e sim de
“obras de arte” com uma “elevada carga estética”.
Na sua maneira limitada de só ver a arte segundo um padrão pré estabelecido, no
caso o ideal grego de arte, o europeu que cedo visitou a África Negra não viu arte na
obra de arte africana: só viu o ídolo religioso, a figura fetichista, e como tal seu
lugar era nas salas frias de etnologia dos Museus da Europa. No começo deste
século, porém, ela começou a despertar a atenção dos colecionadores particulares e
de um grupo de artistas plásticos de renome, e graças a eles se tornou conhecida e
admirada pelo grande público, não mais como peça etnológica, mas como obra de
arte (jornal do Brasil, 20 dez. 1963).
James Clifford (1988) lembra que antes do século XX os artefatos africanos não eram
arte nem para os africanos, tampouco para os europeus. É somente após a “descoberta” de
Picasso, nas primeiras décadas do século XX, que esses objetos são recontextualizados de
exóticos para objetos de arte, perdendo dessa maneira o estatuto de artefato5. Por isso, pode-se
entender que são alguns agentes, tal como o diretor José Roberto Teixeira, que criam os
significados e sentidos para esses objetos, transformando-os em “arte africana” no
deslocamento da África para o Brasil, na rota do Atlântico.
Em 1964 promoveu no MNBA uma exposição de “arte africana”, com centenas de
obras do Institut Français de l’Afrique Noire (Instituto Francês da África Negra), de Dacar,
convidando o então presidente do Senegal, Leopold Sedar Senghor6, para inaugurar a
exposição, palestrar sobre os significados das peças e falar sobre a África. É importante
destacar que Senghor não era somente uma figura política africana, ele foi o idealizador e
criador do Movimento da Negritude, que tinha como propósito discutir a identidade e a
consciência negra, incluindo aí os africanos na diáspora. Essas ideias refletiram na militância
5 No livro Arte Primitiva em centros civilizados, Sally Price (2000) debate a oposição entre arte e artefato,
apontando que em muitos contextos não-ocidentais, os artefatos não estão separados dos demais domínios da
vida social, nem se constitui em objeto de pura contemplação estética. No entanto, a valorização da dita “arte
primitiva”, se dá justamente na descontextualização desses significados. 6 Leopold Sedar Senghor nasceu no Senegal no ano de 1906. Ele estudou e foi professor universitário em Paris;
em 1945 foi eleito Deputado do Senegal e governou como presidente entre 1960 e 1980. Foi eleito membro da
Academia Francesa de Letras no ano de 1983. Visitou o Brasil mais de uma vez, tendo recebido, em 1964, o
título de Doutor em Honoris Causa pela UFBA.
10
negra brasileira principalmente nas décadas de 60 e 70, fazendo com que os ativistas
estudassem sobre as reminiscências africanas no país, assim como os movimentos de
libertação na África.
O uso da palavra “negro”, por exemplo, foi incluído no nome da organização que
lutava contra o preconceito e a discriminação racial — Movimento Unificado Contra a
Discriminação Racial (MUCDR) passa a se chamar Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR) — por proposta de Abdias Nascimento, a partir dos
reflexos das discussões pan-africanista. Segundo Abdias Nascimento (ALMADA, 2009:130),
Negro traduzido da forma com que eu encaro, quer dizer alguém que tem origem no
continente africano e que sabe que a palavra ‘negro’ sozinha não quer dizer muita
coisa. É preciso situar esse negro, porque do contrário fica parecendo que ser negro
é uma questão só de cor de pele. É uma questão histórica e cultural que nos remete
à África e à diáspora.
O que se percebe com o gesto do diretor José Roberto é que o “lugar de fala” era algo
importante para ele. Ao invés dele falar da cultura dos africanos e dos significados daqueles
objetos, era melhor que um africano falasse de si mesmo, de sua história e de sua cultura. É o
que Sally Price (1996) sugeriu ao afirmar que a melhor saída para a construção da alteridade
era ouvir as histórias que os outros povos têm para contar de si e, dessa maneira, compreender
que suas produções não podem ser caracterizadas como “artes dos povos sem história”, mas
sim as “artes dos povos com outras histórias” (PRICE, 1996:224). Ou seja, o diretor
transformava o MNBA em uma “zona de contato”7, tal como discorre Clifford (2006) no texto
Museus como Zona de Contato.
José Roberto fez várias viagens ao continente africano, inclusive para escolher as
peças para a exposição “Arte Negra Africana”. Na nota do jornal Diário de Notícias (30 jul.
1964), é dito que o diretor José Roberto Teixeira Leite foi ver as “coisas pretas” a convite do
governo africano, no intuito de providenciar uma exposição de esculturas negras no Rio de
Janeiro. Foi o próprio diretor que selecionou as máscaras, as estátuas, os objetos funerários, os
instrumentos musicais, os ornatos e os utensílios de povos e países diferentes. Essa foi a
primeira vez que os objetos foram deslocados da África e, pela segunda vez, retiradas do
Museu Etnográfico do Institut Français d'Afrique Noire.
7 “Quando os museus são vistos como zona de contato, sua estrutura organizacional enquanto coleção se torna
uma relação atual, política e moral concreta - um conjunto de trocas carregadas de poder, com pressões e
concessões de lado a lado (CLIFFORD, 2006, p. 14).
11
Para José Roberto Teixeira Leite, essa foi a exposição de arte negra mais importante e
completa da América Latina por conter peças autênticas utilizadas pelos africanos durante
seus cultos. Para ele, era exatamente isso que determinava a “aura” e o valor dos objetos
africanos: o seu uso original e primeiro, além da ideia de não serem cópias. Segundo ressaltou
o diretor do Museu no jornal do Correio do Amanhã, no dia 22 de setembro de 1964,
algumas peças foram utilizadas inclusive em sacrifícios religiosos, apresentando vestígios de
sangue.
De acordo com Walter Benjamin (2012), toda produção material carrega uma
memória tanto física como simbólica, a qual não pode ser desprendida do original, de seu
passado e de seu local de criação. Segundo o autor, as cópias jamais terão aura, portanto não
são autênticas, pois perdem suas qualidades intrínsecas, como memória e testemunho
histórico. Influenciado pelas teorias do ocidente a respeito do “autêntico”, percebe-se que essa
concepção é defendida não só por Teixeira Leite, como pelos mais importantes museus,
marchands e outros colecionadores, ainda que se trate de objetos produzidos em outros
contextos, condições e objetivos.
É claro que o diretor embora tivesse uma outra concepção de África e de “arte
africana”, foi tomado por uma série de critérios estéticos definidos por museus de arte,
quando precisou selecionar qual objeto faria parte, ou não, da exposição. Para o levantamento
da escrita deste trabalho, não foi possível ter acesso ao texto curatorial escrito para a
exposição, mas fica aqui o questionamento a respeito dos significados que foram enfatizados,
das narrativas históricas e políticas atribuídas aos objetos — ainda que o presidente e ativista
Leopold Sedar Senghor tenha sido convidado para a abertura da exposição — e também sobre
como o público recepcionou a exposição, já que a história do Brasil sempre foi marcada pela
questão do apagamento da história negra e também pelo racismo.
Todavia, é importante lembrar que objetivo deste texto não é refletir sobre esta
exposição especificamente, mas como esta foi a única mostra africana organizada durante o
seu mandato — tal como constatado nos documentos dos arquivos do MNBA8 — é possível
verificar que, mesmo após a compra da Coleção Gasparino Damata, o diretor José Roberto
Teixeira Leite continuou envolvido com a temática de “arte africana”. Além do mais, o
presidente do Senegal doou 4 peças ao MNBA, que foram integradas à coleção de “arte
africana”. 8 Exposições do Museu Nacional de Belas Artes. Disponível em: <http://mnba.phlnet.net/cgi-
bin/wxis.exe?IsisScript=phl82.xis&cipar=phl82.cip&lang=por>. Acessado em 10 de março de 2017.
12
No dia 1 de abril de 1964, o governo de João Goulart foi deposto a partir de um golpe
de Estado, instalando-se no Brasil o regime militar. O ano de 1964 foi também o ano em que
o diretor José Roberto Teixeira Leite foi afastado do cargo, no dia 7 de outubro, sendo
substituído pelo pintor Alfredo Galvão, que manteve-se no cargo por mais 6 anos (1964-
1970).
Sobre a política com a África, a partir de abril de 1964 outros discursos políticos
começaram a ser construídos e desconstruídos, tal como apresentado por José Flávio Sombra
Saraiva (1993). Não cabe aqui, nas reflexões finais deste texto, apontar quais discursos eram
esses. No entanto, vale lembrar que a Ditadura Militar censurou e perseguiu os oposicionistas,
dentre eles o Movimento Negro, alegando que o movimento se tratava de uma ligação com a
esquerda comunista (ALMADA, 2009:93). Foi criado o Plano Nacional de Cultura e os
militares passaram a intervir e controlar os discursos culturais, o que pode ter causado a
demissão do diretor e a possível maneira como essas peças foram apresentadas ao público nos
anos seguintes: somente no início da década de 80, no período de redemocratização do Brasil,
que a coleção foi novamente exposta ao público e tombada. Em síntese, outros silêncios
começavam a ser formados em relação à África e à coleção Gasparino Damata.
CONCLUSÃO
Nos caminhos que o Oceano Atlântico proporcionou ao encontro do Brasil com a
África, nos anos de 1961 e 1964, percebeu-se que os interesses econômicos e políticos
estiveram no centro dessa aproximação. Nesse sentido, os países africanos independentes,
como Gana, apareciam, aos olhos dos formuladores da política como uma arena favorável na
qual o Brasil poderia estabelecer sua estratégia de se tornar cada vez mais autônomo no
cenário internacional.
Nesse contexto, foi nomeado o primeiro embaixador negro para atuar no país de
Gana, Raymundo de Souza Dantas, servindo principalmente de exemplo na imagem que se
construía de um Brasil perfeito etnicamente. Enquanto secretariava o embaixador brasileiro,
Gasparino Damata iniciou a montagem de sua coleção, recolhendo objetos junto a inúmeros
povos africanos. O diretor José Roberto Teixeira Leite comprou a coleção africana no mesmo
período em que o museu passava por reformulações ideológicas. Apesar de ter tido o cuidado
de não atribuir significados da sua cultura ocidental aos objetos das culturas africanas,
demonstrou que tinha ideias claras sobre o que determinava o valor dos objetos. Além de
13
caracterizá-los como arte, mesmo não sendo essa a visão que os povos africanos tinham de
suas produções. No mais, ao negociar a compra da coleção e inseri-la dentro de um museu de
arte, ele também contribuiu com a artificação desses objetos, visto que o papel dos museus é o
de definir o que é e o que não é arte (BECKER, 2010).
Os objetos dessa coleção possuem uma história, uma trajetória e uma biografia. Na
rota do Atlântico negro, os objetos atravessaram da África para o Brasil, do mundo dos
artefatos para o mundo das artes e dos museus, de maneira arbitrária. Esse deslocamento foi
resultado de relações políticas, econômicas e interculturais investidas no contexto do governo
de João Goulart e Jânio Quadros sobre a África e na própria circunstância da história da arte.
REFERÊNCIAS
ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento: retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo Negro,
2009.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2104.
BECKER, Howard. O mundo da arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.
BELTING, Hans. O fim da História da Arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva; SILVA, Renato Araújo da. África em artes. São
Paulo: Museu Afro Brasil, 2015.
BURKE, Peter. Testemunha Ocular. São Paulo: EDUSC, 2004.
______, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
BELTING, Hans. O fim da História da Arte. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
CLIFFORD, James. Museus como zonas de contato. Periódico Permanente, 6, 2016, pp.1-37.
______, James. The Predicament of Culture. Cambridge: Harvard Univerity Press, 1988.
COSTA E SILVA, Alberto. Imagens da África. São Paulo: Penguin, 2012.
14
DANTAS, Raymundo de Souza. África difícil: missão condenada. Rio de Janeiro: Editora
Leitura, 1965.
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato. Ancestrais: uma introdução à história da África
Atlântica. Rio de Janeiro, Campus, 2004.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Preconceito racial: Modos, Temas e Tempos. São
Paulo: Cortez, 2012.
LEITE, José Roberto Teixeira. Museu Nacional de Belas Artes: os anos de chumbo. In.
Anuário do Museu Nacional. Nova Fase. Rio de Janeiro, volume 1, 2009.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África em Perspectiva. Revista Múltipla, Brasília,
junho – 2004.
______, Anderson Ribeiro. A Invenção da África no Brasil: Os africanos diante dos
imaginários e discursos brasileiros dos séculos XIX e XX. Revista África e Africanidades -
Ano I - n. 4, 2009.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009.
PRICE, Sally. A arte dos povos sem história. Salvador: Afro-Ásia (UFBA), n. 18, 1996.
______, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.
SARAIVA, José Flávio Sombra. Construção e Desconstrução do Discurso Culturalista na
Política Africana do Brasil. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 30, n.118, 1993.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto nem branco, muito pelo contrário. São Paulo: Claro
Enigma, 2012.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.