O mundo de alice
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Volume 03 - Ano 02
Revista Plural
São Paulo, 2014
Esta edição, de 100 exemplares artesanais,
foi composta nas fontes Times New Roman Georgia
e impressa pela Gráfica Print Paper em papel branco
75g/m2 no mês de maio de 2014 em São Paulo.
Todos os textos aqui publicados são de
responsabilidade de seus respectivos autores.
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Próxima Edição
27 | novembro | 2014
76
aos quarenta
Anne Sexton
Pensava num filho. O ventre não é um relógio nem um sino que toca, mas no décimo primeiro mês da sua vida sinto o Novembro do corpo assim como o do calendário. Daqui a dois dias será o meu aniversário e como sempre a terra terá entregue a sua colheita. Neste tempo procuro a morte, a noite para a qual me inclino, a noite que desejo. Bem, pois então — fala dele! Durante todo este tempo esteve no ventre.
77
02
CARTA AO LEITOR | Mariel Fernandes
A os covardes do amor, cem anos de so-
lidão. Que vivam nas sombras das su-
as desculpas razoáveis, cheias de bom
senso e justificativas plausíveis. Os
conspiradores sabem por quem os sinos dobram e
os abandonam, transformando a si mesmos em
fantasmas da terra do nunca. Não se aventuram,
por isso não se perdem. Evitam desafios maríti-
mos, por isso não naufragam. Se acreditam à sal-
vo das tempestades, por isso transformam a vida
em sonhos de uma noite de verão.
Aos covardes do amor, uma certeza: vivem em
guerra e paz com eles mesmos, são um estado de
alma e escolhem ver a vida no cartão postal por
acreditar que podem abrir mão da paisagem.
Crendo nisso, se condenam a uma existência
menor e seguem sorrindo em direção à outras
vidas secas.
Aos covardes do amor a consciência de que crime
e castigo andam juntos, mas não como pensam.
Crime é abrir mão. Castigo é apenas sentir em
rotina sonolenta o tempo e o vento passando.
03
CARTA AO LEITOR | Mariel Fernandes
Aos covardes do amor, mil e uma noites rechea-
das do sempre, esse que elege eterno tudo aquilo
que não dura, se transformando no oposto da
chama. Aos covardes do amor, a minha alegria
perene. Sou o náufrago. Vivo em cidades invisí-
veis.
Acho paris uma festa. Existo súdito de um peque-
no príncipe. Escrevi cartas ao amor distante. Em-
barquei num bonde chamado desejo. Enfrentei mil
léguas submarinas, acredito em histórias extraor-
dinárias e num admirável mundo novo. Sobretudo
não troco meu naufrágio real pela irreal que sepa-
ra o velho e o mar.
No fundo, prefiro ser um estrangeiro num mundo
simpático aos miseráveis.
04
Personagem | Anne Sexton
"Já que me pergunta, a maioria dos dias não pos-so lembrar. Caminho vestida, sem marcas dessa viagem. Desde a quase inominável lascívia re-gressa"... são esses os versos que abrem um dos mais
cruéis poemas, escrito em língua inglesa por uma voz
acanhada, que passou a acontecer porque Anne Gray
Harvey seguiu o conselho de um médico chamado Mar-
tin Ocre — seu terapeuta — que a encorajou a escrever
como maneira de libertar-se dos desconfortos que carre-
gava em seu íntimo, consequência de uma vida bastante
conturbada...
05
Amor! Essa rubra doença – Ano após ano, David,
deixa-me mais furiosa! David, Susana, David, David!
roliço e desgrenhado, assobiando na noite,
sem nunca envelhecer, esperando sempre por ti
no alpendre… ano após ano, minha cenoura, meu repolho,
ter-te-ia possuído antes de todas as mulheres,
chamando pelo nome, chamando-te minha.
06
Nascida em Newton, Massachusetts, em 9 de novembro de
1928, a poeta estadunidense é uma voz pouco conhecida no
Brasil — seus poemas têm raras traduções e seus livros di-
ficilmente são encontrados nas prateleiras das livrarias do
país.
Anne Sexton pertence à mesma "escola literária" de Sylvia
Plath, a quem acusou, após o suicídio, de roubar sua morte.
Amigas em vida... as duas acusavam os mesmos dilemas:
não se encaixavam nos ritmos sociais, não se acostumavam
à realidade e sofriam com fantasmas, comumente, inventa-
dos por uma mente em estado avançado de putrefação.
As constantes crises depressivas conduziram-na a diversas
tentativas de suicídio, seguidas de hospitalizações, até que
o sucesso acometeu seus gestos excessivos... em 04 de ou-
tubro de 1974, quando, na ocasião, Anne se trancou na ga-
ragem com o motor do carro ligado.
Personagem | Anne Sexton
A minha morte pelos pulsos, duas etiquetas com o meu nome, sangue usado como um corpete
para florescer, uma à esquerda e outra à direita:
é uma habitação quente, o lugar do sangue.
Deixa a porta aberta sobre as dobradiças!
Dois dias para a tua morte e dois dias até à minha.
Tradução de Jorge Sousa Braga
Personagem | Anne Sexton
Aos 45 anos, Sexton morreu por intoxicação de
monóxido de carbono, deixando parte de suas afli-
ções e pensamentos registrados, como se fossem
um testamento.
Sua voz é muito marcante na poesia estaduniden-
se. Dona de um estilo único — confessional —
sua escrita é feita na primeira pessoa do singular,
permitindo-nos um olhar através de sua anatomi-
a... ao mesmo tempo que nos possibilita sentir os
eufemismos que nortearam a existência de uma
figura feminina que viveu em uma época na qual
se acreditava que todos os males que acometiam
as mulheres seriam sanados com o casamento.
Anne casou-se com Alfred Sexton II — mas as
constantes ausências do marido e o nascimento
das filhas ajudaram a aumentar as angústias e as
crises depressivas... em paralelo a tudo isso, acon-
tecia sua escrita.
07
08
D esde menina escrevo poesia. Bonito isso, podem
dizer. Mas eu não li tanta poesia como deveria,
até porque a leitura para mim significava aven-
tura, histórias onde fugir. Além disso, não me
embrenhei pelas letras, fui ser terapeuta. O que me dava li-
berdade para continuar ‘poetando’ por aí, sem regras.
Até o dia em que resolvi assumir meu lado escritora. Meu
primeiro livro -de poesias- saiu em agosto de 2012, sem cor-
tes, sem edição. Não porque não quisesse, mas pela minha
total ignorância. Confesso. Pronto. Foram também nascendo
meus textos, contos e prosas em meu blog, e fui atrás de
cursos que me dessem base para escrever melhor, como pro-
fissional.
2013 foi o ano em que aprendi algo sobre técnicas literárias,
e sobre escrever e reescrever mil vezes o mesmo texto, refi-
ná-lo, limpá-lo. Mas isto se limitava aos meus textos corri-
dos. Nunca pensei em fazer isto com poesia.
Então fui convidada a participar do projeto “exemplos”, da
Scenarium Plural. Escolhi cinquenta poesias para apresentar
a Lunna. E ela um dia me convidou para ‘editar’ as poesias.
Lá fui eu, num dia de feriado qualquer, sem saber muito que
esperar da ‘edição’. Colocar as poesias em ordem para o li-
vro? Decidir se teriam títulos ou não? Não sabia.
Descobri naquele dia que poesia também pode e deve ser re-
escrita, refinada, polida, para os olhos do leitor. A primeira
pergunta que ela me fez foi: “você já editou alguma vez tuas
poesias?”
A ARTE DE CORTAR EXCESSOS
Drops | Por Ana Claúdia Marques
09
Eu respondi: não. Ela perguntou: “por que?” Respon-
di: porque nunca soube que podia... e caí na risada.
Ela me apresentou minhas poesias: riscadas, cortadas,
faltando pedaços que eu deveria completar — ou não.
E também havia aquelas que não entrariam de forma
alguma.
Confesso, nos primeiros dois minutos — e foram dois
minutos — pensei que eu teria que me despir do senso
de propriedade. Eu queria publicar, então, teria que
editar. Como eu aprendera para romances, para con-
tos. Igual. Respirei fundo, e fiquei pronta para apren-
der. Me desprender. Poesia é texto. O menos é mais
em poesia também. Repetição é chato em poesia —
também. O leitor não é burro. Talvez nós o sejamos,
para termos que repetir dez vezes a mesma coisa, mas
não o leitor. Respeite-o.
Aprendi que poesia também precisa ter tensão. Pala-
vras fortes e fracas. Compridas e curtas. Diretas e su-
tis. Olhava um poema de trinta linhas sendo reduzido
a cinco, sete. Me forçava a ler como se fosse do vizi-
nho, e, surpresa! Ficava melhor com as sete linhas que
sobraram...
Foram oito horas de edição, e dos cinquenta poemas,
restaram quarenta e dois. Tinha que encontrar, em ca-
sa, mais oito... peguei cadernos de mais de vinte anos
de poesia. Poemas que sempre achei horrorosos, mas
que tinham ‘aquele pedaço’ que me comovia. Cortei,
criei, editei e, enviei. Aprendi a lição.
Confiar num editor não é tarefa para qualquer um. O
escritor deve realmente querer ser profissional. Saber
que cortar o texto ou poesia é o caminho para aperfei-
çoar e alcançar o leitor. É como aquela bonita história
de se jogar nos braços do pai, mesmo no escuro, acre-
ditando que ele irá te pegar.
Drops | Por Ana Claúdia Marques
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Drops | Por Ana Claúdia Marques
Aprendi a editar minhas poesias, o que, sinceramente,
mesmo com todo o desprendimento, foi o mais difícil.
Agora estou dando um novo passo. Começo a editar a
poesia de outros autores. Não digo que é fácil. Exige
respeito pela criação original do outro — não pode-
mos lhe mudar as ideias, o sentido — mas podemos e
devemos fazer seu trabalho chegar burilado para o lei-
tor.
Meu conselho para quem se intitula escritor (amador,
profissional, marginal, ou seja qual subtítulo queira):
desprenda-se da sua cria, da sua obra. Se achá-la per-
feita, logo de cara, algo está errado. Ou é você, ou é a
obra. Jogue fora o narcisismo e aprenda com o editor.
Ele quer o mesmo que você: uma obra boa e
“ventável”.
Escritores estrangeiros, e os poucos brasileiros que
ganham o mercado internacional, usam e abusam das
técnicas de escrita e de edição de texto e poesia. São
profissionais, aceitam críticas e crescem com elas. o
mundo é maior do que nossos artísticos umbigos, se-
nhores. Tenho dito.
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Drops | Por Ana Claúdia Marques
A busca de um espaço interior capaz de produzir metáfo-
ras faz da escrita um ato cercado por mitificações. Um
gesto solitário que depende do mergulho em imagens a
travar diálogo com a linguagem, um gesto que se configu-
ra na trincheira do imaginário – que chamamos criativida-
de. As primeiras palavras do alfabeto, o balbuciar de letras
na infância, as paisagens que atravessam nossa lembrança
criam peças que, encaixadas, posicionam-nos no mundo.
Aos poucos, com o tempo, formam argamassa espessa de
memória que acessamos para produzir texto: aqui visto co-
mo tessitura, gama de interconexões que ligam palavras
para reproduzir o real.
Escrever, talvez, configure-se em dois sentidos que não se
opõem, mas se diferem: para lembrar o ocorrido e para cri-
ar um novo cenário. A reminiscência tal qual Marcel
Proust inaugurou e o futuro imprevisto que George Orwell
anteviu são linhagens distintas da literatura, porém ambas
contêm o mesmo peso quanto a importância que a obra
desses autores tiveram para a sociedade. Em ambos, o ges-
to da escrita como salvação do vivido e do temor do por-
vir. Uma recusa em permanecer o mesmo. A escrita que se
move para compreensão do homem que se foi e do que
virá a ser.
Um mover-se ligado à referências e autores que nos repo-
sicione no mundo. Gire as perspectivas fixas e faça enxer-
gar outros ângulos. Escrever é mover-se em direção ao que
não tem nome. É necessário, na escrita, uma grande dose
de generosidade para com a alteridade. O leitor entra em
cena. Outros universos se descortinam frente ao escritor. E
o desafio para o leitor permanece até a última página.
PORQUE SE ESCREVE?
Drops | Por Fernanda Faturetto
Drops | Por Áurea Cristina Szczpanski
...foi a primeira pergunta de uma entrevista para a pu-
blicação de uns contos meus. Quando relutei em parti-
cipar do projeto "Retratos" alegando não ser boa com
temas fixos e prazos estabelecidos, a editora sugeriu,
condescendente, reunir textos já escritos com uma
linha em comum, que se encaixassem no tema.
Topei.
Agora, estilo literário? Como assim?
Estaquei... e eu lá tenho estilo? E eu lá faço literatura?
E o questionário esperando resposta...
Fiz como no vestibular: comecei pelas que eu (achava
que) sabia. Depois, cadeira giratória de um lado pro
outro e xícara de café na mão... voltei ao ponto inicial
e derradeiro e, tomada da minha honestidade seletiva,
respondi simplesmente: não sei.
E ponto. E os dias se passaram, como passam meus
dias (o que não vem ao caso agora). Mas, por um mo-
tivo ou outro, voltei à questão; revisitei os anos da
faculdade, remexi uns livros maculados por anotações
a lápis e marcadores de texto: Terry Ealgleton,
Antony Burguess, Antônio Cândido, Umberto Eco...
O que vem a ser exatamente estilo literário?
Primeiro seria preciso estabelecer o que é literário e se
eu poderia me arvorar a tanto. Não, nem pense
nisso! Dirão os mestres e os críticos. E por que
não? Dirão os visionários de uma época em que qual-
quer João Ninguém será lido por centenas de leitores
QUAL É SEU
ESTILO LITERÁRIO?
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13
Drops | Por Áurea Cristina Szczpanski
libertos, como os primeiros protestantes, da leitura e
análise alheias... os críticos com suas bali-
zas obsoletas, diante de uma legião de pretensos escri-
tores e leitores indiferentes aos seus vaticínios; can-
tando e andando para as suas definições.
Por fim, resta entender o que é estilo (e é preciso não
confundir com gênero) literário. E, como quem não
tem espelho em casa, pedi socorro a um meu ami-
go: prosa poética, com certeza, prosa poética – ressal-
tou por e-mail... e eu, que sou desconfiada por nature-
za e destino, achei o tom meio irônico.
Eu disse que a resposta veio tarde, porque já havia es-
cancarado meu auto-desconhecimento. Bem, minha
resposta não acrescenta nada à sua, gritou o cretino —
desculpe, meu querido, sem ofensa — de fato, escrevo
em prosa e me arrisco lá por umas alegorias bobinhas,
uma ou outra construção imagética. Tentativas nem
sempre frutíferas de arrastar o pensamento e a imagi-
nação do leitor, de acossá-lo ou fazer-lhe cócegas,
quando muito. Sem falsa modéstia, mas tenho noção
da minha insignificância e horror de que um dia a Li-
teratura propriamente dita, com L maiúsculo, desça
tão baixo pra caber numa escrita despretensiosa e ca-
penga como a minha. Mas, à merda com toda a para-
fernália teórica porque a língua é o palco da minha ir-
relevância — vá para o mesmo lugar, você tam-
bém, Saussure — e a linguagem é o modo como me
apresento.
Por isso digo que faço dela o que bem entender, pra
que você me entenda. Façamos! Dane-se o estilo!
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Drops | Por Lunna Guedes
AS PERSONAGENS QUE FUI...
...fui passar uns dias com um punhado de palavras
“minhas” e, terminei por misturá-las, não sei se por
assim querer ou não… às palavras alheias.
Nos espaços de minhas distrações, vivi essa paixão...
me vi desejando aqueles olhos belos, profundos, in-
tensos e, precisei agir. Deixar tudo de lado e ir ao en-
contro dela... trazê-la para mim – acomodá-la em meu
peito, deitá-la em meu colo — amá-la como merecia
e, desse amor, dias depois… nasceria uma história,
porque todas as coisas avançam, partindo sempre de
um ponto comum...
Nos misturamos tanto que, em determinado momento,
não sabíamos onde começava uma e, terminava a ou-
tra... satisfeitas e extasiada, na manhã de hoje nos des-
pedimos. Acenei a distancia, com os olhos maríti-
mos… cheios, tal e qual a lua e sua beleza inquietante.
Olhava pela janela. Ela lá embaixo, junto a rua, cabis-
baixa, mãos nos bolsos da calça — somos tão pareci-
das e tão diferentes — sendo apenas uma sombra jun-
to ao chão… a escorrer, se perder e nunca ser…
Hoje quando toquei sua pele, foi ao mesmo tempo, a
primeira e a última vez... e, ao fazê-lo, pensei em um
poema de Maria do Rosário Pedreira e fiquei ali bal-
buciando seus versos "nada entre nós tem o nome da
pressa. Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
15
Drops | Por Lunna Guedes
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele é
sempre a primeira vez que os gestos acontecem.
Porém se abrir uma porta para o verão, vemos as
mesmas coisas"...
Lembrei suas falas, as mais densas e também as mais
amenas. Seus gestos ariscos, a cor de seus cabelos no
começo. Sua forma sem fôrma. Seus gostos... o poe-
ma de Eliot que ela repetia, sabendo ser coisa minha.
Nos enroscamos como num beijo em que a língua
procura por caminhos dentro das masmorras da boca...
Recordei nossas brigas infinitas… ela querendo mais
e, eu oferecendo sempre menos, contendo seus movi-
mentos, evitando certos passos. Ela insistindo em ser
vento, tempestade… sempre disposta a altos voos.
E, agora que ela vai ao longe... morro!
Acabo e, não sei mais quem sou, por isso voltei a es-
crever. Ainda é Agosto lá fora… e aqui dentro tam-
bém, faz frio eu poderia morrer em paz, mas a vida
continua, como disse ali em suas linhas “a vida é de
uma crueldade infinita e insiste pela manhã”.
Agora é deixar amanhecer, abrir os olhos e esperar pe-
lo próximo personagem, enquanto isso, a realidade a-
cena, taciturna com suas horas em pares e eu sigo ten-
tando saber quem sou, o que sou... sem as persona-
gens que, durante muito tempo, eu fui!
O que mais gosto na escrita é justamente essa confu-
são entre realidade e imaginário... quando tudo se
mistura, de tal maneira que, não se sabe à quem per-
tence o reflexo no fundo do espelho.
16
Capa | No mundo de Alice
A realidade não é uma mesma coisa, embora muitos
pensem que sim... Jacques Lacan, em seus estudos, apon-
tou que o psíquico do ser humano estrutura-se em três di-
mensões, que se articulam e se entrelaçam, assim definidas
por ele como sendo: o Real, o Simbólico e o Imaginário.
O real, segundo sua formulação, não é a mesma coisa que a
realidade, pois o real — diferentemente da realidade — não
precisa de outros campos para existir.
O campo do real escapa à simbolização, portanto, ao con-
trário da realidade, existe por si mesmo, de maneira ineren-
te ao nosso desejo e ao nosso poder. Querendo ou não, o
sol se põe… a noite acontece, assim como o dia seguinte e,
tudo tem o seu devido lugar no mundo real das coisas; des-
se modo, o real escapa à subjetividade humana.
17
“Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o
livro que estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, "e de que serve um livro", pensou Alice,
"sem figuras nem diálogos?". Assim, refletia com seus botões (tanto quanto podia,
porque o calor a fazia se sentir sonolenta e burra) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o
esforço de se levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa
passou correndo por ela”.
>> Trecho do Livro: Alice no país das Maravilhas Lewis Carrol
A realidade, contudo, depende do humano e de todos os
símbolos que este coleciona ao longo da primeira infân-
cia. Por isso, não é única — mas, na verdade, múltipla
— e há muitos autores que a dizem infinita, justamente
por ser subjetiva à nossa vontade. Podemos moldá-la,
transformá-la... em alguns casos, podemos até mesmo e-
ditá-la.
Jacques Lacan afirmou que a realidade depende de como
o indivíduo é concebido para o mundo quando ocorre —
na primeira infância — a definição de seu psíquico, nes-
se instante, o individuo é influenciado pelo meio em que
vive e pelo conjunto de símbolos que esse mundo ofere-
ce.
A literatura, enquanto arte, depende justamente de todos
esses símbolos para acontecer. Logo, para um escritor
trabalhar a realidade em seus escritos, é preciso identifi-
cá-la em si mesmo, lidando justamente com o seu psico,
que também podemos chamar de, “o mundo de Alice”.
18
Capa | No mundo de Alice
Acredita-se que um escritor, justamente pela riqueza de
seu imaginário, tem mais facilidade para habitar o que
muitos gostam de chamar de o “mundo de Dionísio” –
termo esse usado por Nietzsche para definir a teoria da
arte – que anuncia: "o desejo de ultrapassar o próprio
destino, enfrentando-o, levando os heróis trágicos a
transgredirem os limites da existência, desafiando os
valores estabelecidos”.
Para ele, a arte é capaz de proporcionar experiências di-
onisíacas, sem que se seja aniquilado por elas, possibili-
tando a embriaguez sem que a perda da lucidez aconte-
ça.
Nietzsche também afirma que a realidade dionisíaca
não é para todos, por considerar que a experiência dio-
nisíaca tende a permitir respirar na “mais monstruosa
paixão e altitude”... exercício que requer saúde peculiar
(sanidade plena), uma vez que o individuo será obriga-
do a vivenciar a perigosa aventura de percorrer os limi-
tes da alma: “a saúde pertence a quem tem sede na alma
de percorrer com sua vida todo o horizonte dos valores
e de quanto foi desejado até hoje, quem tem sede de cir-
cum-navegar as costas deste ideal mediterrâneo”.
Na contramão disso tudo está o leitor... que tem sede e
bebe da inesgotável fonte criativa de seus leitores, ali-
mentando-se dessa realidade, que pode ser ou não iden-
tificada ao ser tragada no momento da leitura. Por isso,
a literatura comumente é dividida em real e fantástica.
A narrativa fantástica pega o leitor pelas mãos, condu-
zindo-o por uma espécie de mundo paralelo, onde é
possível voar, ser eterno, azul... ser metade bicho, meta-
de homem. Encontrar portas mágicas que conduzem a
realidades diversas, mundos artificiais... é possível ser a
Bela que se apaixona pela Fera. Um menino órfão que
vai viver na Terra do Nunca.
19
E, ao ter contato com esse tipo de texto, o leitor,
propenso à fantasia, acaba inserindo elementos fan-
tásticos próprios à literatura e, o próximo passo é
fazer parte de uma realidade outra, onde ele vê a si
mesmo, voando ou habitando outros cenários tão
reais quanto seu imaginário é capaz de afirmar que
sejam.
Experimentam, por assim dizer, da “embriaguez di-
onísica”, sendo preciso apenas um único gole desse
líquido sagrado.
Em paralelo a isso, existem os leitores que não con-
seguem se alimentar dessa “falsa realidade”, justa-
mente por a considerarem demasiadamente fantasi-
osa, sendo impossível para suas mentes reconhece-
rem nesse “universo” uma possibilidade ou um con-
junto de símbolos confiáveis. São seres que preci-
sam do que é palpável, objetivo e mensurável. São
os chamados leitores “pés no chão”.
A psicologia acredita que, na idade em que o mun-
do imaginário foi alimentado, algo aconteceu, im-
pedindo o acúmulo de informações. Lacan afirma
Nietzsche, considera
que para alguém
ser artista, também
é necessário esquecer
e, ignorar por que,
para além do
esquecimento
é possível
experimentar
uma segunda
inocência,
que torna o
homem
mais infantil
e, ao mesmo
tempo,
mais refinado.
20
Capa | No mundo de Alice
Ela faz arte com pedaços
de papel, cola, tesoura e
muita criatividade, fazendo da arte
do recorte e colagem
uma deliciosa combinação
de cores e magia.
que, algum tempo após o nascimento, toda imagem
do objeto ou coisa que é captada pelo bebê através
do olhar será inscrita e registrada no seu psiquismo
como pertencendo ao campo do imaginário, mas se
algo – como um trauma – se sobrepõe, o imaginá-
rio simplesmente se liquefaz e não volta, em mo-
mento algum, a se reorganizar.
Assim sendo, o indivíduo experimenta a partir de
então o que lhe é confiável: imagens reais, facil-
mente identificáveis, que lhe transmitem conforto,
tais como o rosto de sua mãe, pai ou outra pessoa
significativa para a criança. Logo, preferem narra-
tivas comuns, próximas, que permitam a eles reco-
nhecerem o que lhes são figuras familiares.
Uma rua sem saída, uma casa branca no meio do
quarteirão ou o banco de uma praça num bairro co-
nhecido de uma cidade que, mesmo tendo o nome
citado, pode ser qualquer lugar do mundo...
N ão existe uma leitura ideológica nas colagens e
desenhos de Maria Cininha, mas um reforço da
postura de felicidade que se encontra nas várias
condições de vida. Condições essas que se for-
mam pelo olhar atento às reações e às transformações do
corpo fantástico. Em suas obras, as bonecas sorriem, cho-
ram e podem chegar ao extremo do deboche. Os animais,
também, em formas mínimas ou grotescas, demonstram u-
ma produção de desejo por conta de um conforto íntimo
com seu ambiente.
As formas vazias apresentam os vazios plurais — esses
que a gente entende sem precisar de tradução. E as cores
deixam seus estados populares a fim de projetarem um lu-
gar em que o conto e o dia-a-dia se naturalizam em uma
mesma paisagem.
21
Entrevista | Maria Cininha Capa | No mundo de Alice
Ela faz arte com pedaços
de papel, cola, tesoura e
muita criatividade, fazendo da arte
do recorte e colagem
uma deliciosa combinação
de cores e magia.
HOJE É DIA
DE MARIAS
1. Como e quando apareceram as Marias?
Eu habito um mundo feminino e gostaria de falar dele, mas
de maneira diferente. Então aos poucos fui buscando uma
forma que fosse alegre, brincalhona, irreverente, colorida,
poética, as vezes seria e triste, como qualquer um de nós.
Mas que sua forma literalmente fosse inusitada; não ilustra-
ção de revista feminina, e sem apelo feminista. As Marias
são as meninas que moram dentro de cada mulher.
A primeira Maria surgiu, em 2010, pela luta por uma árvo-
re, de uma calçada do bairro onde moro. Um Ipê amarelo
que foi cimentada até o colo e subindo pelo seu tronco por
10 centímetro, e os sujeitos que fizeram isso ainda pinta-
ram o cimento de verde. Naquela situação de procurar ór-
gãos públicos, policia ambiental e até deputado nasceu a
serie “Marias” meninas atenta ao que acontece ao seu re-
dor, brincalhonas, mas que quando precisam vão à luta.
22
Entrevista | Maria Cininha
23
2. Como é a cidade das suas Marias?
A cidade das minhas Marias é São Paulo. A cidade
onde nasci que tento achar que é dispensável, mas
que esta impregnada em tudo que eu faço. Ela é o
avesso do que eu espera e sonhava dela como cida-
de, mas como diz a canção “o coração tem razão
que a própria razão desconhece”, me rendo a ela.
As Marias são as meninas que moram que mora-
ram e que ainda vão nascer nesta cidade. Quando
elas falam de calçadas, de amores perdidos, de ho-
rário de verão, de festas, da falta de água, da chega-
da da primavera, do canto do sabiá, elas falam a
partir de um lugar: São Paulo. Mas isso não que di-
zer que não seja espelho de outras tantas outras ci-
dades do mundo.
3. Você é de São Paulo e vive em São Paulo. Essa
cidade tem algum encanto especial pra você?
Costumo dizer que São Paulo é um amor bandido.
Aquele amor a quem você entrega tudo e ele não
retribuí nada. Mas, é um exagero, não é sempre
assim. Eu tentei morar fora de São Paulo e depois
de seis anos estava de volta, e pretendo nunca mais
sair.
24
Depois é a terra que meus avôs escolheram quando aqui
chegaram, a terra que nasceram meus pais e a terra que
nasceram meus filhos. A minha história esta sendo escrita
aqui. Assim nesta cidade estão minhas experiências afeti-
vas e momentos significativos da minha vida. Fora tudo is-
so eu tento me reconhecer aqui, no entorno material que se
modifica constantemente que apaga sinais, vestígios, cria
lacunas, imagens que oscilam entre a recordação e o esque-
cimento total. Sofro pela falta de políticas que preservem
espaços históricos da cidade, porque antes de tudo preser-
var significa (re)apropriar-se, resgatar um sentido. Por este
motivo estou de mudança para um Studio na Praça da Re-
publica no centro de São Paulo. Uma escolha que vem da
minha busca por um encontro afetivo, um olhar evocativo,
sonhador, por esta cidade, “minha cidade” com sentido de
“lugar de vida”.
3. Como a arte entrou em sua vida?
Eu acho que desde garota, quando o lugar que mais gostava
de brincar era no barracão de ferramentas do meu pai. Mas
a vida me levou para outros caminhos e durante anos fui
empresaria, fiz faculdade e mestrado na maturidade, as coi-
sas andam meio fora de hora para mim. Mas paralelo ao
meu caminho profissional estava à arte. Li muito fiz curso
de pintura, desenho, frequentava exposições e museus. Até
que aos com mais de 40 resolvi fazer a Faculdade de Belas
Artes de São Paulo.
O recorte e colagem vieram mais tarde. O papel sempre foi
o meu suporte preferido. A tela eu descartei logo no inicio
dos meus estudos de arte. Mas a colagem entrou na minha
vida quando fiz a dissertação de mestrado.Nela pesquisei
Entrevista | Maria Cininha
25
criatividade e envelhecimento, mas precisamente se
a criatividade diminuía com passar do tempo, ou se-
ja, se era mais uma perda do envelhecimento. Para
esta pesquisa trabalhei com obras de velhos pinto-
res que morreram com mais de 80 anos, um deles
Henry Matisse. Matisse teve um problema de saúde
que o deixou nos seus últimos 14 anos de vida em
uma cadeira de rodas ou uma cama, que o impedia
de pintar. Ele em fez de desistir e se conformar com
sua incapacidade se volta para os seus famosos re-
corte e colagem. Mesmo sem saber da sua história
de superação, o colorido, as formas desenhadas pela
tesoura de Matisse são muito fáceis de amar.
No começo fiz releituras dos recortes de Matisse,
entretanto buscando minha própria voz na técnica.
Procurei uma arte alegre, lúdica e colorida. Passei
por varias fases: bichos, passarinhos, retratos, as
Marias e outras que virão, mas sempre com o fo-
co no lúdico.
Arte feita por Maria Cininha para a Capa da Revista Plural de Agosto de 2014
26
Entrevista | Maria Cininha
A arte que crio me diverte me faz sorrir e por com seguinte
faz o mesmo com as outras pessoas. Dos cinco anos no
Flickr e nos três anos no blog, e agora no Facebook noven-
ta por cento dos comentários referem que meu trabalho
provoca sorrisos e encanta. É um feedback fantástico, não
poderia esperar nada melhor.
4. Em seu blogue encontramos uma espécie de “mundo
para as Marias” – como surgiu esse universo paralelo? Como disse anteriormente a primeira Maria surgiu, em
2010 em uma luta pela vida de uma árvore, de uma calçada
do bairro onde moro. Com o tempo foram se engajando em
outros assuntos da vida, da cidade, do contexto. “O mundo
das Marias” contêm marcas, não necessariamente biográfi-
cas, mas muito pessoais, tento dar a elas a individualidade
de um personagem literário, mas nem sempre consigo. Mi-
nha preocupação é que elas sejam lúdicas, coloridas, poéti-
cas, leves e brincalhonas, que tenham personalidades que
saibam lidar com os eventos, com suas dores e alegrias e
que provoquem em quem as conhece a lembrança da leve-
za brincalhona das crianças.
27
5. Como é o seu dia a dia criativo?
Cada dia para mim é diferente, não tenho uma roti-
na rígida. Mas há algumas constantes. Cafezinho,
leitura de paginas do livro que estiver lendo no mo-
mento, passeios com o cachorro, necessito de silen-
cio e concentração. Um trabalho de colagem fica
por dias, na minha cabeça, faço anotações, escolho
cores e texturas, às vezes faço pesquisa relativa ao
tema. Importante no caso de um trabalho criativo e
dinâmico é preservar a capacidade de admiração
quem olha. Eu pratico e exercito muito o meu “olho
de menina” e o importante não ter acanhamento.
Assim a beleza e a inspiração podem estar em qual-
quer lugar.
Vale ainda lembrar que na colagem se lida muito
com a casualidade e eu prezo muito isso. É uma
técnica espontânea, há muitas coincidências e aca-
sos e acidentes, com alguma frequência. Um recorte
que se move sobre a folha, ou o modo cai, os reta-
lhos que seriam descartados, pode mudar todo um
trabalho.
28
Crônica: A Coisa | Por Leopoldo E. Arnold
E u tenho pensado em uma coisa. Ou melhor, na
coisa. Não, não naquela coisa, mas em outra coi-
sa: tenho pensado na palavra coisa e em toda a
sua importância para o nosso vocabulário. Afi-
nal, que seria de nós não fosse a coisa?! A comunicação en-
tre as pessoas depende da coisa e, sem ela, falar e escrever
não seriam a mesma coisa.
Mas isso é coisa que ninguém dá valor.
Acha que não digo coisa com coisa? Experimente então
passar uma semana sem dizer coisa e verá o que é uma coi-
sa difícil. Sem essa palavra, nosso poder de entendimento
das coisas cairia pela metade – o que não seria pouca coisa!
É que ela, sozinha, é reserva imediata de quase todas as
coisas que podemos dizer e escrever, de forma que sobra
pouca coisa que a coisa não substitui.
E tem coisa mais prática que isso?
Essa palavra está presente, inclusive, nas coisas da política.
Quer ver uma coisa? Há políticos que fazem qualquer coisa
e, assim, deixam muita coisa ruim para trás. Já outros não
deixam nada porque não fazem coisa alguma. Uns escon-
dem as coisas que fazem e outros mostram coisas que não
fizeram. Coisa triste, isso...
A coisa é fundamental também para expressar sentimentos
de uma forma mais fácil, quando a coisa é difícil de expli-
car. Por exemplo: você pode não sentir aquela coisa toda do
amor, mas sabe que sente uma coisa boa. Aliás, coisa e a-
mor também andam de mãos dadas, pois até mesmo o a-
mor, para sobreviver, precisa de alguma coisa — quando
não se troca por qualquer coisa.
O certo é que todos precisam da coisa, e se alguém não pre-
cisa dela é porque tem coisa errada. A coisa nos socorre de
qualquer coisa. Quer ver de novo? Se não souber o nome
de alguma coisa, diga somente coisa. Não sabe o que fazer?
29
Crônica: A Coisa | Por Leopoldo E. Arnold
Faça qualquer coisa. Não sabe o que escrever? Invente al-
guma coisa. Não tem nada a dizer? Diga qualquer coisa.
Ainda criança eu conheci o verbo coisar, usado sempre que
alguém esquecia ou não sabia a palavra certa para a coisa.
Lembro-me de um colega que faltou à aula porque ficou
em casa coisando o carro quebrado do pai. E de outro que,
a pedido da professora, coisou a janela da sala por onde en-
trava muito vento.
E quando esquecem o nome da gente?! É coisa que também
acontece. Aí ouvimos coisas do tipo “Oh, seu coiso!”, “Oh,
dona coisinha!”.
Dizem que a coisa teria um sinônimo, ou coisa assim, que
seria o algo. Mas a coisa não é bem por aí, porque não se
pode exclamar “Que algo!” no lugar de “Que coisa!”, ou
então dizer “um algo é um algo, outro algo é bem outro al-
go”. Vamos combinar uma coisa: tem coisas que só a coisa
faz.
Coisa tem infinitos sentidos e formas de uso, mas a gente
sempre entende exatamente a coisa que ela quer dizer. Nas
conversas, a coisa pula de um lado ao outro como se tudo
fosse a mesma coisa. Mas não é. Uma mãe pode falar ao fi-
lho “estuda, que a vida te reserva muita coisa” e, no outro
dia, dizer que “se você não estudar, vai acabar sendo qual-
quer coisa”, sem perder o sentido da coisa.
Coisa é a rainha do nosso vocabulário. É palavra para toda
obra. E a gente faz dela o que quiser – ou seja, qualquer
coisa. Neste texto, por exemplo, usei a coisa setenta e uma
vezes, e você, leitor, que pegou bem o espírito da coisa, não
se perdeu em nenhuma delas.
Que coisa!
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Alice: Quanto tempo dura o eterno? Coelho: Às vezes apenas um segundo.
(Alice no País das Maravilhas) Lewis Carroll
Querida Alice, embora eu viva no seu mundo, você qua-
se não conhece o meu. Com exceção de uma rainha de
copas que anda rondando minha vida, em mim quase tu-
do é maravilha.
E devo isso a você.
O seu sonho adentrou dentro do meu sonho e ganhou a-
sas. O tempo, esse tão curto que o Coelho avisou, pas-
sou ligeiro por aqui. — nem vi meu filho crescer. Hoje,
olho do lado e vejo um homem naquele menino que en-
sinei as primeiras palavras — nem percebi o som da fa-
la, o bigode desenhado. Eu sempre vi ali, um menino. O
meu menino. Que ganha asas e voa pelo mundo, inde-
pendente de mim.
As paredes me apertam aqui, Alice. E sufocam meus
pensamentos na ligeireza dos dias. E beber o líquido da
vida me faz tão pequena. No mundo falta água. E vejo
aqui, onde moro, o desperdício dessa bebida tão essen-
cial. Um dia aprenderemos? — sei lá! Tenho medo! —
Acho que não.
Mas ainda assim, no dedilhar dos meus dias maravilhas
me alcançam onde passo. O riso solto de uma criança.
O voo do meu beija-flor Chiquinho que me visita todos
os dias de manhã, como se despejasse em mim no seu
cantar a maravilha de viver.
Crônica: Querida Alice | Por Mariana Gouveia
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Crônica: Querida Alice | Por Mariana Gouveia
Os animais me perseguem como a ti, Alice. Tenho aqui
no meu quintal libélulas dançantes no varal onde mi-
nhas roupas dançam para secar. Borboletas pousam
entre o aconchego de minhas mãos e na delícia dos dias
vejo uma maravilha de gente na vida. Vejo-me nas
metamorfoses das rotinas e sou invariavelmente rompe-
dora de casulos de sonhos, de vontades e de desejos.
Dentro dos meus sentidos, Alice, percebo as coisas que
acontecem ao redor como se eu fosse uma personagem
viva dessa história. Converso comigo mesmo e isso a-
contece com frequência, o que causa uma certa estra-
nheza no meu cachorrinho que procura por pessoas in-
visíveis e abana o rabo como se me considerasse louca.
Por falar em louca, me vem à cabeça a rainha de copas
que vive rondando minha vida. Mas como o próprio Co-
elho amigo seu disse: “os poços da fantasia acabam
sempre por secar e o contador de histórias, cansado ten-
tou escapar como podia: o resto amanhã... Já é ama-
nhã!”
Então, vamos lá, Alice... viver a vida esperando que o
resto seja hoje por que o eterno dura apenas esse breve
instante de viver.
32
Crônica: Ilusionismo Moderno | Por Inge Lobato
Olhe de perto, bem mais de perto. Você vê?
Os mágicos saíram dos palcos e agora estão ao nosso redor...
vendendo ilusões cada vez mais belas.
Escolha uma carta — apenas uma — pode ser qualquer
uma...
Não me diga qual carta escolheu. Eu posso adivinhá-la.
Você escolheu a carta mágica que lhe dará dinheiro e sucesso
instantâneos. Escolheu o belíssimo carro em que posa belo e
também um estilo de vida badalado no Instagram.
Acertei?
De perto, um pouco mais de perto...
Como adivinhei? Simples. É mágica!
Eu posso lhe garantir que tudo isso é possível, meu caro,
e que todos nós mágicos somos assim em tempo integral... e
sua vida será assim também se você revender o revolucioná-
rio “kit de ilusionismo moderno instantâneo”, onde tudo pa-
rece mágico e real. O que ninguém vai lhe dizer é que tudo
não passa de uma máscara para impressionar pessoas como
você.
Perto, bem mais perto.
Vamos, não seja tímido, escolha outra carta...
Vou adivinhar novamente: você deseja impressionar tanto as
pessoas que a única coisa que enxerga na vida são as pessoas
que estão o tempo todo tentando te impressionar. É um jogo
de cartas marcadas... sorria, você está sendo filmado!
Você ainda não percebeu o truque? Chegue mais perto, bem
mais perto, onde seus olhos não possam mais desviar sua
atenção... porque é preciso está perto da ilusão, e longe da
realidade. A verdade não vale nada. A mentira vende milhões.
Deixe a conta para amanhã, ignore as parcelas caras e ainda
não pagas da vida inventada que você sonha em ter.
Fotografe, escreva o que não tem, e passe pela porta.
Perto, bem mais perto...
33
Há três de mim. Há o cenário. Uma igreja pe-
quena. Os atores. Pálidos e mumificados ou-
vindo a voz do pregador. Há um perfume de
incenso e há um coro que só canta quando o
pregador acena, levanta a mão, maestro tosco.
Há um ranger de madeira de bancos velhos,
mas não ouço o ranger de almas. Minha alma
range desde que eu era menina. Hoje vivo à di-
reita de mim, livre. Já escapei do cenário. Eu
disse – Há três. Uma que todos vêem em pé,
esgueirando-se pelas paredes onduladas do
templo. Uma que está ali sem estar, a viver co-
mo uma obrigação, para não ferir quem a ama,
fica ali, ouvindo as pregações. Ajoelha, arre-
pende, reza, comunga e até canta. Há aquela
que está no limbo. Uma névoa líquida fria e es-
ponjosa que envolve em uma dança estranha,
quase bonita, quase assim aquele retrato de Isa-
dora Duncan. Voando entre o tecido, linda. No
limbo não sou feliz, no templo não sou feliz.
Só a terceira que esgueira para fora e explode o
peito de ar limpo e azul, esta que ninguém vê.
A invisível. A invisível é feliz, esta que nin-
guém conhece. Que ninguém chicoteia como
ao Cristo. Que ninguém julga: Pilatos aos bor-
botões. Esta que ninguém prega na cruz. A que
as suas sementes conhecem e a amam. Aquela
que o amado tocou, em silêncio. A terceira é o
ar o azul o pássaro a cópula o colo maternal a
misantropa. A terceira que ninguém conhece. A
terceira que só os que amam conhecem. O frio
ondulado das paredes causa artrite. Toca o sino
e a hóstia é erguida. Sacrifício. Vou ter que fi-
car aqui.
Crônica: Livros Artesanais | Por Barbara Lia
34
T enho o meu próprio mundo — como o mundo de
Alice — num universo que construo só para
mim, cheio de versos, de brilhos e aromas. Um
respiro. O momento de colocar algum caos em
toda ordem sem reverso. Ser, quem eu quiser ser. Viver a
pele de todas as personas que posso ter em mim. Estudar
cada palavra, cada gesto de forma a encontrar algo singelo
e lúdico neste coração. É mais fácil assim. Enfrento a vida
de forma mais leve. No meu caos, sobrevivo melhor à reali-
dade.
O reflexo no espelho, minhas sombras, meu corpo. Nada
fica igual quando entro neste processo na construção de u-
ma nova vida, dentro das minhas vidas já vividas. Sou uma
personagem. Danço e canto no tablado... nada era o que é,
porque tudo já é o que não é numa fração de segundos. E o
que não fosse, seria. Porque no meu mundo tudo acontece.
Como num país de eternas maravilhas, corro contra o tem-
po, o meu tempo, o seu tempo, o tempo de todos
nós. Piscando os olhos acordo de um sono profundo, renas-
cimento de uma nova casca. Com entranhas e estômagos
para respirar o alento das personas que crio dentro des-
Caos é tudo que a gente não entende | Por Tha Lopes
“É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela cintilante”.
Friedrich Nietzsche
35
te invólucro. Minhas máscaras. Como a borboleta
posso ser a mais bela das viventes, explorando
cores e suspiros, ou posso ser a morte, o medo e
tuas mais diversas formas de insegurança. Não
vejo nada, não sinto nada, e nada mais sou. Meus
olhos se cegam como a tartaruga que entra dentro
do próprio casco. Tiro férias momentâneas e me
afasto de forma espontânea deste mundo e de mim
mesma. Tudo programado, controlado. Consigo
voltar na hora em que eu bem entender. Mas me
divirto. Sou o som das batidas do meu coração.
Um parto dentro do meu próprio corpo, e daqui
parte um feixe de luz anáfana e inexplicável, que
brilha de forma intensa com uma energia surreal.
Assim de forma inexplicável, conquisto platéias e
multidões que aplaudem fielmente. Um público
seleto de gente que paga para estar alí, brincando
dentro do meu jogo, entrando na minha sintonia.
Eu dito o ritmo, aponto o caminho... e as pessoas
me seguem porque acreditam no meu conto.
Vivem a minha vida. Sentem em si as peripécias e
desventuras que apronto.
Brinco com as horas. Meu tempo é quando... e
quando tenho tempo para viver neste plano novo
— reinvento o sempre, me dou para o presente —
quero e sou. Vivo e morro. Enterro as histórias e
volto para mim. Em pé agradeço.
E assim mais algumas horas de trégua, para tudo
de novo voltar a acontecer... e em poucas horas
novamente ali estarei, o público será outro. A ener-
gia será outra, e de uma forma diferente, viverei as
mesmas coisas. Catapultando pessoas em memó-
rias passadas e futuras. Tornando esta a minha
própria história de vida. Sendo atriz. No caos, eu
me renovo, em me encontro, eu revivo, reinvento e
confesso que não entendo o que apronto.
36
De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O
médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de
alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que
não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por
destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava
chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais re-
quintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual
qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fos-
sem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não
fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nes-
ses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o
lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a es-
cola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recan-
tos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou,
sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo
O menino que escrevia versos | Por Mia Couto
37
O menino que escrevia versos | Por Mia Couto era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhi-
as. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as
meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia
versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador
entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto
morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado,
exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctri-
ca.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e,
sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houves-
se que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era
pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar
num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com en-
fado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreen-
dera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, dou-
tor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o
miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho.
Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse
sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho
aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, aca-
rinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o
moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada,
inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa
de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem
chegou a começar. O doutor o interrompeu:
38
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica
psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao
menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se
ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médi-
co aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse
na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médi-
co, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais ver-
sos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Te-
nho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderni-
nho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do
que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgen-
te.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo,
na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento.
E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico.
Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está
internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do
filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio
coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
O menino que escrevia veros | Por Mia Couto
39
C onheci o homem — no acaso do próprio acaso — não
o sabia… tampouco tinha lido suas linhas. Era um
estranho que se aproximou de mim com um sorriso
conhecido nos lábios. Confesso ter sentido certa ver-
gonha, ao apertar suas mãos. Respirei fundo meu desconforto…
sem confessar, muito menos narrar a ele, a minha desventura.
Calei-me, entregando a ele qualquer coisa de sorriso.
Ganhei em troca um punhado de palavras risonhas, um sorriso
canino e uma prosa de minutos. É certo dizer que soube primeiro
o homem, com seus movimentos comuns, em pares. Tudo tão
simples e óbvio. Nada acontecia de maneira exagerada em sua
figura longilínea. Ele era de uma calma invejável…
Conheci mais tarde… o escritor! Autor de palavras amenas, fra-
ses curtas e ferinas. Nosso primeiro encontro aconteceu através
de suas linhas: “desfiz setenta e cinco anos” que, entre outras
coisas, anunciavam sua idade… eu, que não me ocupo de linhas
temporais, procurei em sua anatomia — ainda fresca em minha
"A morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem
conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável... creio que não mais
leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma
mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que
até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais
Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim" — Rubem Alves.
Desfiz minha vida | Por Lunna Guedes
40
memória — as linhas dessa vida impressa em setenta
e cinco páginas, digo, anos… que me fez perceber a
coerência em desfazer-se dos anos, afinal, o tempo
que acumulamos em nós cabe ao dia anterior, é
passado… pertence apenas a nossa memória e, em
alguns casos, nem mesmo ela aceita esses espaços
lineares.
Li as crônicas de Rubem, como se acontecesse entre
o homem-escritor e eu… uma espécie de diálogo
comum — entre xícaras de chá e um pedaço de bolo,
debaixo de uma sombra de árvore — e o tempo em
pausas…
Eu me apaixonei por seu jeito simples de narrar
coisas do cotidiano… reconheci imediatamente qual-
quer coisa minha, alheia, de outros que não eu e, fiz
questão de lhe dizer isso à maneira antiga. Escrevi
uma missiva em linha reta… contando do canto dos
pássaros junto à jabuticabeira no fundo do quintal,
que me remetia à infância, quando o vento derrubava
suas pequenas folhas, forrando o chão, como se um
tapete de fios fosse confeccionado… e, recebi,
para minha surpresa, um envelope comum, com pin-
celadas em verde e amarelo nas laterais.
Começou assim a nossa amizade. O escritor Rubem
Alves alcançou-me, mas não tocou o meu lado auto-
ral. Não desejei em momento algum repetir seu esti-
lo… eu já tinha outros mestres no bolso da alma.
Apenas o recebi como quem encontra a um amigo,
com quem discursa coisas repetidas, antigas. Permi-
tindo uma troca natural de falas… reconhecendo-o.
Soube que o homem começava a fraquejar quando
anunciaram sua internação. Respirei fundo e,
pensei… tão cedo ainda! Ensaiei escrever, mas jul-
guei ser inútil. Suas últimas linhas já diziam quase
seis meses. Foram poucas, como se não tivesse mais
o que me dizer…
Ao final de um dia qualquer, li uma coluna sua
41
Crônica: Desfiz minha vida | Por Lunna Guedes
falando sobre a morte e me lembrei imediatamente do
que falava o Nono: “a dona Morte não manda recado,
mas gosta de prosa”. Ele insistia em dizer que aqueles
que vão morrer sabem do fim, porque a morte não é
carrasca, ela estende a mão… e nos leva para caminhar
por uma rua sem saída…
Soube de sua morte, dias depois… dentro de um sábado
e, reagi como sempre. Respirei fundo. Repeti o sorriso
nos lábios e, acenei para o vazio. Ao chegar a casa,
acendi uma vela azul no canto da sala. Fui até a prate-
leira e voltei de lá com um livro seu em mãos… “o a-
mor acende a lua”… leitura de uma hora ou um pouco
mais… terminada, apaguei a chama e, disse: “que seja
como desejou que fosse, seu melhor haicai ”.
Era o fim do homem chamado Rubem Alves, que dese-
jou, em vida, não ter uma morte súbita… e assim acon-
teceu. O homem foi vítima — aos oitenta anos — de
falência múltipla de órgãos. Não foi de maneira repenti-
na. Foi lenta. Gradativa. O corpo foi anunciando a últi-
ma linha de sua história, lentamente… como ele queria
que fosse. Talvez ele tenha olhado nos olhos da morte e
dito: “estou pronto, vamos”… e, ela tenha lhe estendido
as mãos e, em ironia, profetizou: “tão fácil inserir um
ponto final e, vocês, homens de palavras, sofrendo por
tão pouco”. Fim
A vida ganhou a simplicidade e a beleza que o Escritor
profetizou em suas linhas… Talvez, ele tenha acordado
e percebido que tudo não passou de um sonho e, agora,
ele sabe de fato quem sonha vidas… mas nós não
iremos saber, porque a morte é silenciosa e, particular.
A morte, como disse Cecília Meireles: “é uma ausência
que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se”.
42
Coluna do Embusteiro viajante | Por Emerson Braga
TEOREMA DE ALICE
“Podes dizer-me, por favor, que caminho
devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para
onde queres ir – respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir – disse Alice.
Nesse caso, pouco importa o caminho
que sigas – explicou o gato.”
Trecho da obra Alice no País das Maravilhas,
de Lewis Carrol
Em sua história, nem sapatinhos de rubi e nem estradas
douradas. Alice vivia em um buraco.
(18:32:14) Alice entra na sala...
(18:32:17) Valete de Copas entra na sala...
(18:32:18) Valete de Copas fala para Alice: boa noite o q pro-
cura alice
(18:32:19) Dodô fala para Alice: Oi. A fim de tc no reservado?
(18:32:21) Pato fala para Alice: Alice é nome de princesa! 66
(18:32:32) Alice fala para todos: alguém a fim de apenas con-
versar?
(18:32:35) queen of hearts entra na sala...
(18:32:41) queen of hearts fala para todos: alguem a fim? te-
nho local. 1.78, seios fartos, coxas grossas, morena jambo, 25
anos.
43
(18:32:49) Valete de Copas (reservadamente) fala para
queen of hearts: falou minha língua
(18:32:58) Pato fala para queen of hearts: podemso ir pro
o skype?
(18:33:11) Valete de Copas (reservadamente) fala para
queen of hearts: oi gata tc cmg
(18:33:15) Pato fala para queen of hearts: kero ve seu ma-
terial... tem cam?
(18:33:25) queen of hearts fala para Pato: yes. mim passa
ae teu nome skype
(18:33:46) Valete de Copas (reservadamente) fala para
queen of hearts: vagabunda puta piranha sua vadia escrota
deve ser travesti
(18:34:01) Valete de Copas fala para todos: a queen tem
aids e faz pograma
(18:34:07) Pato fala para queen of hearts: vc tem hiv?
(18:34:14) queen of hearts fala para Pato: tah louco?
NAUM! o valete de copas tah xateado, naum sabe ouvir
um naum. deve ser um coitado.
(18:34:21) Pato fala para queen of hearts: rrrrrrsssss. me
add...
(18:34:24) Pato fala para queen of hearts: pato-
duck.dotadao
(18:34:32) Pato sai da sala...
(18:34:35) Coelho Branco entra na sala...
(18:34:44) queen of hearts fala para Coelho Branco: oi
gozzzzztoso. a fim de perde a cabeca?
(18:34:50) Coelho Branco fala para queen of hearts: Não
tenho tempo pra isso. Preciso dela sobre meus ombros.
(18:34:57) queen of hearts fala para Coelho Branco: bi-
cha
(18:35:11) Dodô fala para Valete de Copas: Oi. A fim de tc
no reservado?
(18:35:23) Valete de Copas (reservadamente) fala para
Dodô: qts cm
(18:35:29) Dodô (reservadamente) fala para Valete de Co-
pas: 23
(18:35:42) Valete de Copas (reservadamente) fala para
44
Dodô: skipe queer.soldier1865
(18:35:49) Valete de Copas sai da sala...
(18:35:58) queen of hearts fala para Dodô: vc eh hetero ou vi-
ado?
(18:36:10) Dodô fala para queen of hearts: htro
(18:36:13) queen of hearts fala para Dodô: e p q deu em cima
do babaca do valete de copas?
(18:36:20) Dodô fala para queen of hearts: pra provar q ele eh
viado.
(18:36:29) queen of hearts fala para Dodô: rs. tbm axo
(18:36:35) Dodô fala para queen of hearts: ele acabou de me
confirmar no reservado.
(18:36:41) queen of hearts fala para Dodô: vcs combinaram
troca troca? rrrsssss
(18:36:47) Dodô fala para queen of hearts: vou marcar agora
no skype. p q?
(18:36:58) queen of hearts fala para Dodô: SERIO??? entaum
vc eh bi?
(18:37:02) Dodô fala para queen of hearts: htro
(18:37:11) queen of hearts fala para Dodô: tah bom rrrsss. vc
eh bem dotado? tem boa? quer marcar comigo tbm?
(18:37:13) Dodô sai da sala...
(18:37:14) Alice fala para todos: alguém que não esteja só a
fim de sacanagem?
(18:37:16) Caterpillar entra na sala...
(18:37:21) Coelho Branco fala para Alice: Não estou a fim so-
mente de sacanagem...
(18:37:29) Alice fala para Coelho Branco: Como saberei se vc
diz a verdade?
(18:37:33) Coelho Branco fala para Alice: Não saberá.
(18:37:44) Alice fala para todos: Precisando conversar. É sério.
(18:37:48) smilingcat entra na sala...
(18:37:55) Coelho Branco fala para Alice: Então me siga.
(18:37:58) Alice fala para Coelho Branco: ok
(18:38:05) Coelho Branco fala para Alice: Bem, por onde co-
Coluna do Embusteiro viajante | Por Emerson Braga
45
meço?
(18:38:07) Coelho Branco fala para Alice: O que te trouxe
até aqui?
(18:38:11) Alice fala para Coelho Branco: não aguento
mais minha vida. Se isso é o mundo real, prefiro viver em
um sonho. Tenho que sair de casa...
(18:38:16) Dodô fala para Alice: já tentou a porta da frente?
(12:38:24) Alice fala para Dodô: É pequena demais. Não
consigo atravessá-la
(18:38:25) DUKESA entra na sala...
(18:38:30) smilingcat fala para Alice: entaum vc é crescida
o suficiente para teclar com estranhos em uma sala adulta e
nova demais pra sair de kza?
(18:38:51) Alice fala para smilingcat: + ou – isso. Eu prefe-
riria não existir...
(18:38:58) smilingcat fala para Alice: posso te dizer como
desaparecer agora e soh reaparecer qdo as coisas estiverem
diferentes... mas, pra isso, preciso que vc rlx. vc é capaz de
sorrir diante da adversidade, Alice?
(18:39:12) Alice fala para smilingcat: Não sei mais sorrir...
(18:39:15) DUKESA fala para smilingcat: é verdade... as
vzs desaprendemos a sorrir
(18:39:17) smilingcat fala para Alice: vc precisa escolher
um caminho
(18:39:19) Caterpillar fala para Alice: alicinha, curte via-
jar? tenho doce, thc, bala, glass [email protected]
(18:39:25) Alice fala para Caterpillar: não tenho grana pra
me chapar...
(18:39:30) Caterpillar fala para Alice: aceito sexo
(18:39:33) Coelho Branco fala para Caterpillar: Deixa a
menina, cara...
(18:39:38) Caterpillar (reservadamente) fala para Coelho
Branco: ela é pequena? grande? menina? mulher? acho que
é uma perdida...
(18:39:46) Coelho Branco fala para Alice: Sei como você
se sente, Alice. É como se a gente sempre chegasse atrasado
pra tudo, sempre perdesse a vez...
(18:39:48) Coelho Branco fala para Alice: sempre*
(18:39:59) queen of hearts fala para Alice: q foi Alice? bri-
46
Coluna do Embusteiro viajante | Por Emerson Braga
gou com o namoradinho? ele tah fazendo a princesinha do pai
sofrer?
(18:40:09) Alice fala para queen of hearts: Não é isso... não fi-
co com ninguém. É que sinto como se eu tivesse caindo em um
buraco cheio de lembranças que não quero.
(18:40:12) DUKESA fala para queen of hearts: eu tbm sei o
que é cair em um buraco cheio de lembranças
(18:40:17) queen of hearts fala para DUKESA: que parar de
concordar com tudo q ela diz? saco! toda vida é 1 namoradinho!
Tudo sempre é culpa de 1 cara. porisso faço os homens perderem
a cabeça por mim, pra eu não acabar em 1 buraco, igualznha a vc
(18:40:31) Alice fala para queen of hearts: Meu pai não é bem
um namoradinho... E não tive a intenção de fazer com que ele
perdesse a cabeça por mim.
(18:40:34) Caterpillar sai da sala...
(18:40:43) Coelho Branco fala para Alice: não se distraia com o
que ela diz, Alice. Continue me seguindo...
(18:40:46) Mad Hatter entra na sala...
(18:40:55) queen of hearts fala para Alice: vc vai confiar em 1
cara com o nickname de Coelho Branco? Ele tbm soh quer te
comer, sua otaria...
(18:41:08) DUKESA fala para todos: meu pai tbm é um homem
horrível
(18:41:12) Coelho Branco fala para Alice: Eu quero ajudar
você, Alice.
(18:41:17) queen of hearts fala para Coelho Branco: sera que
eh mesmo o que vc quer, seu tarado? Vc quer eh comer a garota!
tem medo de mulher de verdade eh?
(18:41:24) DUKESA fala para todos: acredito que ela naum
teve a intençaum de fazer o pai perder a cabeça. O q vcs acham?
(18:41:31) queen of hearts fala para DUKESA: Aiiiiiinnnn!
Cala a boca!
(18:41:36) Coelho Branco fala para Alice: ela só quer atenção,
Alice. É carta fora do baralho. Estou teclando com você, somen-
te com você...
47
(18:41:43) queen of hearts fala para Coelho Branco:
kkkkkkkkkkkkkkkk! coitado
(18:41:47) Alice fala para todos: eu não sei mais quem
sou! Eu não quero enlouquecer... Quem sou eu? Quem sou
eu? Vocês pensam que é fácil existir? Não é! Não é!
(18:41:58) smilingcat fala para Alice: vc já é louca, Alice,
como todos nós...
(18:42:05) Alice fala para todos: Não aguento mais viver
assim...
(18:42:07) smilingcat fala para Alice: smile, though your
heart is aching…
(18:42:09) smilingcat sai da sala
(18:42:09) DUKESA sai da sala...
(18:42:10) Coelho Branco fala para Alice: Muitas vezes,
para chegarmos ao jardim, Alice, precisamos atravessar
um mar de lágrimas, entende? Ainda não é tarde para você,
me siga!
(18:42:21) Mad Hatter fala para Alice: o tempo tbm vai te
punir, garota, do mesmo modo que fez comigo / esquece
tudo isso / vamos sair e tomar alguma coisa
(18:42:28) Alice fala para todos: Passarei por aquela porta
nem que eu beba veneno ou coma os pedaços de um espe-
lho! Se for preciso, ficarei do tamanho de todos os mortos...
(18:42:37) queen of hearts fala para Alice: vc pinta sua
conversa furada com umas cores nada a ver, não diz coisa
com coisa...
(18:42:42) Mad Hatter fala para Alice: morrer não é tão
fácil, Alice / talvez seja mais fácil tirar coelehos de uma
cartola / Afff, já passa da hora, tenho que ir...
(18:42:43) Mad Hatter sai da sala…
(18:42:45) queen of hearts sai da sala...
(18:42:51) Coelho Branco fala para Alice: não, criança.
Tudo que você precisa é acordar. Acorde, Alice. Acorde.
(18:43:00) Alice sai da sala...
Alice tem 16 anos de idade. Contava apenas nove quan-
do descobriu que o mundo não é um lugar bonito.
48
Coluna Intensidades Múltiplas | Por Claudia Costa
E u não me chamo Alice, mas poderia... Entretanto
não foi esse o nome que minha mãe escolheu pra
mim quando nasci, mas lá pelos sete anos, quan-
do ela me presenteou com o livro de capa dura,
contendo as aventuras de Alice e umas ilustrações interes-
santes, percebi que aquela personagem tinha muito de mim.
Ou seria eu, uma Alice desencontrada no meu mundo?
Graças a Alice, pude me acalmar, depois de tantos anos, por
ter encontrado ao longo da vida, tantos chapeleiros [ou não]
loucos [...ah sim...muitos loucos que arrotavam sanidade].
Houve aquele tempo largo, demorado, em que me esqueci
da existência de Alice [e da minha própria] e me transfor-
mei, sem perceber em coelho branco, sempre correndo e
olhando para o relógio para que a Rainha de Copas não me
cortasse a cabeça...Ufa, que tempo!!
ALICE E EU,
NO FANTÁSTICO
MUNDO REAL
“Fosse eu moço, meu rapaz,
Podia os miolos afrouxar,
Mas agora já estão moles,
Para que me preocupar?
Alice no País das Maravilhas
Lewis Carrol
49
Alice e eu, somos apaixonadas por gatos e não ligamos
muito para o fato de serem risonhos ou não, ainda que
às vezes, nos assustem. Ah! Alice também me ensinou
que, não ficar “igual” por mais de dez minutos, pode
não ser assim tão ruim, que é preciso ter cuidado com
potes de veneno e que, não adianta ficar ouvindo o que
outras pessoas querem para nossas vidas.
Nós duas, temos essa mania de procurar em nossos
arquivos de memória, coisas ou pessoas que possam
nos ajudar a lidar com situações desconfortáveis. Alice
e eu, choramos muito e, quase sempre nos recrimina-
mos bastante por isso, cobrando-nos imediatas soluções
práticas para os entraves. Será que você também é
assim? Aprendemos com o gato risonho que, se nós
também não formos um tanto loucas, não nos aproxi-
maríamos de alguns lugares e tampouco de algumas
pessoas desmioladas. Gostamos de manter uma certa
pose de sobriedade e normalidade, principalmente para
que não nos julguem doidas ou mal educadas. Isso sim,
tenho certeza que vez em quando, você que está lendo,
também faz.
Caímos no buraco profundo da existência imaginária e
nos demos as mãos. Alice me ajuda a perdoar minhas
confusões, meus medos e anseios. Ralha comigo, quan-
do choro demais e gargalha junto, quando estamos feli-
zes. Alice mudou-se, cerca de dois ou três anos. Saiu
daquele jardim, que abrigava tantas aventuras e seu
novo endereço, proporciona-lhe altos e baixos, gatos
em maior número e ultimamente já prefere café aos
chás das cinco. Vez em quando, arrisca uma taça de
vinho, que a torna imediatamente, rubra. Ainda faz
conjecturas demais, mas agora, me elegeu sua parceira
constante nas aventuras. Reside dentro de mim, até que
a estória finde.
50
Coluna Me Levo por Aí | Por Ingrid Caldas
PAÍS DAS MARAVILHAS
Q uando menina li muito... sempre estimula-
da pelo meu pai, que não media esforços
para aumentar nossa biblioteca, com os
mais variados temas e autores.
Um dos livros que li foi Alice no País das Maravi-
lhas... me encantei com cada personagem, e suas
diversas características que o assemelham a um
conto de fadas, quando lido por uma criança, mas
que para adultos, ganha renovada dose de comple-
xidade, dando asas a um sem fim de possibilidades.
Um paralelo entre a ficção e a realidade é por
vezes, inevitável. Os adultos enxergam suas mons-
truosidades mais comuns, percebendo um jogo de
manipulação de um individuo sobre o outro.
Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir — respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir — disse Alice. Nesse caso, pouco importa o caminho
que sigas— replicou o gato.
Lewis Carroll
51
Na primeira cena do livro, Alice está sentada com a
família, fazendo o que era comum na Inglaterra Vi-
toriana, em que tudo se explicava através dos livros
e suas narrativas mais comuns. A menina começa a
enfadar-se por nada ter o que fazer a não ser ler um
livro sem figuras, apenas com diálogos. E o que
quebra esse sentimento? A magia que ela mesma
acalenta, mas desconhece — ao que tudo indica —
e que vem a tona através de um coelho branco...
Cada um de nós tem dentro de si um país e uma
pequena Alice, que pulsa e vibra em curiosidade e
agitação... todos nós, em algum momento, nos
sentimos esgotados, cansados e ao fechar aos olhos,
ficando em silêncio, nos deparamos com fugas
impunes que nos impulsiona ao desconhecido que
somos. Tão atrativo, mas também tão perigoso
olhar para dentro e entrar na toca do coelho...
Quando criança é tudo tão mais simples. É apenas
um jogo onde a Alice vai de encontro a um mundo
imaginário — dentro de um sonho, talvez — mas
enquanto adultos, tudo tem duplo sentido, segundas
intenções. É um constante jogo de cartas marcadas.
Os personagens que passam por nós ao longo da
vida, são figuras dissonantes. Nunca sabemos o que
serão de fato. Amigos ou inimigos. São possibilida-
des... alguns nos recebem em abraços demorados,
outros nos furam os olhos com gestos inesperados.
Exatamente como Alice e seu País.
52
E screver é um compromisso que assumo comigo há
tempos, mas sempre pensei palavras na tela ou na fo-
lha, nunca na própria pele, feito tatuagem... Talvez
seja por isso que, vez ou outra, eu fique por horas in-
teiras observando o papel em branco, a imaginar as letras e seu
percurso...
Foi como na noite de ontem, em que permaneci olhando para
dentro, tendo como horizonte o lado de fora — e me perguntei,
em meio aos desconfortos que embalo... Onde fica o mundo
de Alice? Onde foram parar as fantasias que circundam meu
universo e toda aquela leveza que — um dia qualquer — se fez
tão próxima a mim?
A personagem a que me refiro acima, “Alice no País das Ma-
ravilhas”, de Lewis Carroll, sempre simbolizou em meu imagi-
nário uma espécie de possibilidade encantadora... Um caminho
para desvendar aquilo que me gerava tamanha recusa em um
primeiro momento, pelo fato de o mundo lá fora limitar —
Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era,
mas acho que já mudei muitas vezes desde então...”
Lewis Carroll
QUANDO O IMAGINÁRIO
EMOLDURA O REAL
Coluna Textos e (com) textos| Por Tatiana Kielberman
53
quase sempre — o meu espaço a premissas específicas e
poucas.
Ler Alice em tempos outros trazia compreensão ao meu cora-
ção de garota, ainda que superficialmente, sobre por que eu
teimava em impor barreiras e empecilhos mil aos meus voos,
sendo que havia tanto a gritar... tanto por fazer... tanto para ser!
A impressão que eu tinha era de que Alice, apesar do medo que
sentia, não se furtava a percorrer seus infinitos labirintos. Ela
queria, de qualquer modo, saber o que havia do outro lado.
Arriscou-se a tecer diálogos com seres que lhe transmitiram
estranheza em um primeiro momento, mas que depois se torna-
ram seus grandes parceiros de desafios.
Guiando minha perspectiva um pouco para trás, sinto que tran-
sitei a vida toda seguindo os passos de Alice. Quis ter sua
ousadia. Sua audácia. Um jeito desajeitado, uma confiança
desconfiada de si mesma, do outro e do ambiente que a cerca,
mas que não abdica nunca de ouvir e atender a própria intui-
ção.
Hoje, olho atenta para Alice e sinto que ela também me obser-
va de volta. Espera um pouco mais do meu pulsar. Quer que eu
desabroche as lições que, na teoria, pareço ter tomado para
mim ao observá-la... Em muitos momentos, sinto o desejo
genuíno de tirar as histórias do papel e finalmente vivenciá-las.
Desprender o sentimento da ilusão e torná-lo palpável...
... mas, será que há mesmo uma fiel separação entre imaginário
e realidade? E onde fica, afinal, o meu tão sonhado mundo de
Alice em meio a esta trama?
Eis que, ao fechar os olhos por um segundo, descubro-me
inteira como nunca antes me senti. Respiro profundamente e
sinto o real e o ilusório juntos, caminhando de mãos dadas em
meu íntimo, como se deles dependesse toda a estrutura do meu
libertar... É na essência que vive Alice. E foi lá, também, que
eu me permiti começar a viver...
54
Coluna do JF | Por José Francisco Vannucchi
ALICE SOCIALYTE
D ormindo, tenho minhas melhores idéias para as
crônicas... o problema é que já não lembro delas,
quando acordo. Pensei em tomar remédio para
melhorar a memória, mas não sei se isso dará cer-
to. É que, sempre, esqueço-me de tomar meus remédios.
Resolvi dormir agarrado a um bloco de papel e um lápis...
dessa forma, assim que viessem as inspirações, bastaria que,
em sonhos, eu as anotasse, mas também não deu certo. Me
mexi e o maldito bloco caiu de um lado da cama e o lápis do
outro. Quando fui anotar, não encontrei nada, além de lembrar
que, dormindo, não sei escrever.
Enfim, o jeito é apossar-me da idéia de alguém e “mandar
ver”. Alice! Vamos falar da Alice, ilustre sonhadora e aspiran-
te a ascender na vida.
Estava Alice à janela, vendo a banda passar, quando passou ali
justamente o Alfredão, coelho safado, com um tremendo
Rolex no pulso, super apressado, que logo foi convidando
“E aí, gata! Vam’ dá um giro lá no ensaio da escola.”
Alice, que de inocente não tinha nada e sonhava ser alguém
na vida, aceitou o convite e lá se foram os dois, na Ferrari
vermelhinha do Alfredão, rodando de túnel em túnel, até
chegarem ao barracão da escola, lá perto do Morro da Cata-
cumba.
Mas, em sua cabecinha loira, pensava ela em como é que
Alfredão conseguia levar a vida, correndo de um lado para o
outro, sempre afirmando que já era tarde, tarde muito tarde,
se bem que, agora, corria dentro de sua Ferrari e não mais a
pé, como era antigamente, no tempo do Lewis Carroll, ex
presidente da escola de samba.
O fato é que, chegando à escola, encontrou um cidadão com
55
cara de maluco, com uma cartola enfiada na cabeça, justa-
mente o mestre da bateria, que perguntou se ela queria ser a
“rainha da bateria”.
“E isso dá dinheiro?”, foi logo perguntando Alice, menina
dotada de incrível praticidade.
“Dinheiro direto não. Só se você cair nas graças do Alfre-
dão, o bicheiro que sustenta a escola. Mas, como “rainha da
bateria”, você deverá receber convite para posar para a
Playboy, convite para participar do BBB, e outras vantagens
que lhe renderão muito dinheiro.”
“Oba! Eu topo!”
Pois foi ela topar e eis que surge a Tonhona, a Presidente de
Copas da escola, mulher iracunda que logo foi bradando:
“Que história é essa? Aqui, quem manda sou eu! Cortem-lhe
a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!”
Alice, apavorada, saiu correndo, correndo, correndo... até
ser alcançada pelo Alfredão: “Quéquéisso, menina! É tarde
mas nem tanto! Vam’ prum funk lá em Madureira que você
se acalma.” E lá se foram os dois.
No funk, Alice acabou conhecendo o Jorginho, jogador de
futebol recém vendido para um clube italiano pelo empresá-
rio Alfredão, e lá se foram os dois a caminho de Roma.
A história toda é meio confusa, mas, tudo que se refere à
Alice é mesmo confuso. Por isso vou diretamente ao fim, já
que se passaram dois anos.
Alice, hoje, é, de profissão, modelo. Daquelas cujos únicos
trabalhos foram posar para revistas masculinas, justamente
o que dá mais dinheiro. Não está mais com o jogador Jorgi-
nho, que foi trocado pelo jogador Marinho, que foi trocado
pelo jogador Luizinho, que foi trocado pelo jogador...
Enfim, o namorado atual, há quinze dias, é o jogador
Carlinhos, embora já tenha sido vista por aí com o jogador
Fabinho. Afinal, hoje em dia, é difícil ficar com o mesmo
namorado por mais de um mês.
E é isso. Como podem ver, Alice progrediu na vida, está
cheia de dinheiro e hoje é nota constante dos noticiários
mundanos. E viva a ascensão social! Já a minha memória...
do que era mesmo que estávamos falando? Deixa pra lá...
56
As Garatujas de Gogh | Por Marco Aurélio Cremasco Contos
"Como é que você sabe que sou louca?",
perguntou Alice.
1.
Os dois primeiros versos do poema Corres-
pondências, de Charles Baudelaire, são: “A
natureza é um templo augusto, singular,/Que a
gente ouve exprimir em língua misteriosa”.
Mas que língua é esta? Seria, por exemplo, a
poesia? O próprio Baudelaire responde: “a
poesia não pode, sob pena de morrer ou
decair, integrar-se à ciência nem à moral; a
poesia não tem a Verdade por objeto, seu fim
é ela mesma”. E o francês, em outro momen-
to, menciona: “não está distante a época em
que se compreenderá que toda literatura que
se recuse a caminhar fraternalmente entre a
ciência e a filosofia é uma literatura homicida
e suicida.” Ora, a poesia não é literatura?
Existe contradição em Baudelaire? A poesia, a
literatura, a arte – de maneira geral – restringe
-se à necessidade/sensibilidade do artista
totalmente descompromissada com a realida-
de?, a reforçar a reflexão de Lee Siegal: “a
arte nos diz que as coisas não precisam ser do
jeito que são. Ela nos diz que, apesar de meros
mortais, podemos criar do nada algo belo e
duradouro.”? A partir de então é possível
resgatar a máxima de Oscar Wilde: "A vida
imita a arte muito mais do que a arte imita a
vida".
57
As Garatujas de Gogh | Por Marco Aurélio Cremasco
2.
Ecoa-nos Hesíodo: “no início era o Caos”. Essa
coisa amorfa, confusa. Esse inominável que antecede
a criação. Esse mundo que não é mundo. Ente infor-
me não ordenado. Trevas indiferenciadas do início.
Reverbera-nos Ovídio: “antes do mar, da terra, do
céu que a tudo cobre, a Natureza tinha um só rosto,
para o qual se nomeou Caos, massa rude e indiges-
ta”. Nessa sopa, sem consistência nem sabor em que
tudo existe em potência em uma eternidade sem
tempo, Eros e Anteros digladiam-se. Eros agrega e
atrai. Anteros desagrega e dispersa. O que leva à
formação e depois à dissipação de aglomerados –
seja de partículas em um leito fluidizado ou galáxias
em nebulosas a serem descobertas – senão as forças
de atração e de repulsão? Onde estão tais forças
senão em potência inerente ao que dá forma e
energia a tais entes antes mesmo de existirem?
Pode-se prever probabilisticamente um evento, mas
não se pode garantir a sua ocorrência. O que é Eros
senão esta força de atração. O que é Anteros senão
esta força de repulsão. Não existem amor e ódio no
Caos, mas sim a essência da Natureza. O que é o ser
humano senão o espelho dessa Natureza e que mui-
tos a denominam Deus: imagem e semelhança? Este
Caos. Este turbilhão que permeia a noite e o dia por
nascerem. Que gesta montanhas, ciclones, tormentas,
vulcões. Este Caos o qual incautos associam-no à
Desordem, pondo-o em contraposição ao Cosmo,
mas mal sabem que se tratam das faces da mesma
coisa. Esta necessidade de domar o Caos, ordená-lo
em deuses e suas manias, justifica-se apenas para
dizer: sim, estamos no controle do Universo e por
isso detectamos a partícula de Deus.
58
3.
Horace Lamb, em 1932, declarou: “sou um ve-
lho agora e, quando morrer e for para o Céu,
existem duas coisas sobre as quais espero ser
esclarecido. Uma é a eletrodinâmica quântica e
a outra é a turbulência dos fluidos. E, sobre a
última, estou pouco otimista”. Sir H. Lamb
morreu dois anos após essa declaração, entretan-
to pode-se imaginá-lo, onde quer que esteja,
debruçado nas equações de Navier-Stokes,
tentando decifrar os resultados de sua não linea-
ridade e natureza dissipativa, principalmente
por, possivelmente, entender que a turbulência e
fenômenos considerados imprevisíveis são mais
regras do que exceções. Sob este aspecto, a
introdução do caos nos obriga a generalizar a
noção de lei da natureza e nela introduzir os
conceitos de probabilidade e de irreversibilida-
de. Trata-se de uma mudança radical, pois caso
se queira seguir essa abordagem, o caos obriga a
reconsiderar a descrição fundamental da nature-
za.
As Garatujas de Gogh | Por Marco Aurélio Cremasco Contos
59
4.
Tomem a série temporal do volume de muares con-
duzidos pelas estações de Rio Negro, Itapetininga e
Sorocaba, no período de 1830 a 1870; o acompanha-
mento anual do volume diário de pedido de varejis-
tas para distribuidores de combustível; as cotações
diárias, ao longo de uma década, de determinada
empresa na Bolsa de Valores; a estrutura populacio-
nal do siri-baú, Hepatus pudibundus; a identificação
de diferentes regimes de fluidização por meio de
análise temporal de dados de pressão em que não há
frequências dominantes. O que encontrarão senão
flutuações temporais incompressíveis a olhos despre-
parados?, cuja média temporal mascara sobremanei-
ra a natureza do fenômeno analisado. Tais flutuações
proporcionam a construção do espaço de fase, uma
imagem, um atrator qual novelo de lã, rabiscos de
criança, teias de aranha com fios que nunca se
tocam. Dessa massa rude e indigesta extraem-se
informações determinísticas por meio de seus invari-
antes. Ou seja: encontram-se maneiras de se ordenar
o Caos.
As Garatujas de Gogh | Por Marco Aurélio Cremasco
60
5.
Esse Caos, em que tudo é possível por existir, guarda
em si a realidade e o imaginário tal qual Eros e Ante-
ros. Johann Sebastian Bach imaginaria que a sua mú-
sica pudesse apresentar semelhança com aquela sin-
tetizada com modelos de tipo fractal? Vincent van
Gogh quando pintou, em 1889, “A noite estrelada”,
teve acesso ao Google para se inspirar na fotografia
de um ciclone tropical, em plena turbulência, tirada
por um satélite? Bach e Van Gogh sabiam de neuro-
estética, que usa técnicas da neurociência para expli-
car e compreender as experiências estéticas? Não,
né? A realidade diz “não”, porém a imaginação diz
“por que não?”. Podemos usar a arte para sobreviver
à realidade, mas a realidade pode, também, dar
sobrevida à arte. A realidade é impulsionada pelo
imaginário, assim como este pode advir da realidade
mais crua. Uma não inaugura o outro e vice-versa,
pois são manifestações da mesma coisa: do Caos
criativo que possibilita a existência do imaginário e
da própria realidade. Que caminho a seguir?
Depende de aonde quer chegar – responderia certo
gato.– Se não estiver nem aí para qual lugar, então
pouco importa o caminho.
As Garatujas de Gogh | Por Marco Aurélio Cremasco Contos
61
Contos
“Por flor tenho loucura”, cantava Cássia Eller. O
paulistano quando se dirige à zona oeste e passa pela
Avenida Dr. Arnaldo, vê as inúmeras bancas de flo-
res que alegram a calçada. Uma profusão de dálias,
gérberas gigantes, tulipas, crisântemos, orquídeas,
suntuosos arranjos, coroas fúnebres de astromélias
roxas. O perfume e as cores provocam um choque,
uma riqueza de sensações. Provando que as flores
enfeitam a vida e a morte, as bancas ficam ao lado
do muro do cemitério do Araçá. Araçá, aquela fruta
pequena, de baga amarela, que atrai pássaros. Certa-
mente havia pés de araçá nessa região onde hoje se
erguem os túmulos que ultrapassam o muro, constru-
ções monumentais, casinhas, capelas e mausoléus
que parecem feitos de granito e pedaços de ossos.
Em várias cidades como Buenos Aires e Paris os
cemitérios são pontos turísticos, verdadeiros tratados
de história. No Araçá estão enterradas algumas cele-
bridades. Para o túmulo de Cacilda Becker, a atriz,
mito dos palcos, diva vanguardista que provocou
paixões avassaladoras, eu levaria um buquê de rosas
colombianas vermelhas.
Para Francisca Júlia, a poetisa parnasiana que escre-
veu com novidade e rigor de expressão, com a calma
de um vulcão contido, poemas que celebravam a fri-
eza dos mármores e das esfinges; para aquela que
mereceu uma estátua de Victor Brecheret intitulada
“Musa Impassível”; para aquela que se perdeu entre
visões e alucinações até as raias de um suicídio sem
nenhum gemido, eu ofertaria uma camélia branca,
símbolo da beleza perfeita de uma dama.
Para Assis Chateaubriand, o Chatô, empresário dono
Flores e Cemitério | Por Raquel Naveira
62
Contos
de um império jornalístico, mecenas, escritor,
polêmico magnata da comunicação, que trouxe a
televisão para o Brasil, controverso, amado, odia-
do e temido, eu deixaria um altivo girassol plan-
tado no solo. Ali, ele viraria eternamente a cabeça
para seguir o curso diário do sol, de leste a oeste.
Naquele imenso mausoléu dos policiais mortos em
serviço, em batalhas sem glória na crueldade e
embates da violência urbana, eu colocaria cravos
de dobras estreladas, que combinam com luto e
defuntos.
Aquela figura de túnica rósea e fina, que se ajoe-
lhou curvada sobre a cruz do túmulo, a cabeça
apoiada sobre as duas mãos, representando um
momento de dor e reflexão, eu enfeitaria os seus
cabelos de escultura com os caules lenhosos de
uma coroa de madressilvas.
Por toda parte, em cada lápide que evoca sauda-
des, amor, tristeza, respeito, sofrimento, eu espa-
lharia ramalhetes de margaridas, que lembram a
inocência perdida.
Feito esse passeio, meio maluca, espalhando flores
pelas alamedas do cemitério, lá iria eu novamente,
para dentro do meu carro preto. Desapareceria
veloz entre as luzes da cidade.
63
Alice navegava, navegava como rosa etérea, flu-
indo entre estrelas dissonantes. Planava Alice ou
boiava em mar de nuvens travessas? Deslizante
em seu manto azul pontilhado por discretos cris-
tais, exala suaves cores por míticos arco-íris,
inspirando poetas ancestrais. Alice desce à lua.
Colhe fios prateados; tece o leito da manhã que
adormece. Migra de sol em sol entoando canti-
gas de ninar.
Desliza em forasteiro asteróide a lhe cruzar o
caminho. Viaja sem rumo por esferas nebulosas.
Sem atinar na estranha atmosfera, divaga, diva-
ga, confusa como nunca. Assustada, vê monta-
nhas amarelas esvaírem-se ao toque de nuvens
voláteis. Nuvens de cores mutantes. Voava Alice
ou mergulhava em miragens?
Misteriosos oceanos banham bizarras paisagens.
Fadas luminosas bailam em algas sonoras. Ema-
nam sublimes perfumes. Miríades de sílfides
fluem velozes entre grutas marinhas. Corais de
anjos a encantam ao som de ondas celestiais.
Notas mesclam-se a claves, compondo melodias
imortais. Belas crianças pairam sobre estrelas-
do-mar, colhendo conchas siderais. Seu fascínio
imana Alice, envolve-a em doces véus de luz.
Súbito, enlevada por ondas astrais, retorna à ve-
lha amiga via-láctea. Estranha sensação a en-
volve. Não deveria ser o lar familiar? Novas co-
res, novos brilhos impregnam o ar. Tudo igual,
ao mesmo tempo irreal, outra face de um espe-
lho. Sente seu olhar perpetuar a magia da brisa
A viagem de Alice | Por Aninha Santana
64
Contos
marinha. Aí ainda vagueia sua imaginação.
Entretece fios de luz em seus cabelos doura-
dos, em sua pele andarilha. Ensaia passos
levitantes, ao som de canções imaginárias, de
vozes sincronizadas a ecoarem no infinito.
Pairam leves os movimentos de Alice, pura
harmonia. Suaves madrigais em distantes
manhãs. Olhos curiosos de Alice tecem me-
mórias de antigas paragens. Seu coração se
inebria da essência mítica da criação.
Sua alma menina despe-se do casulo, poetiza
o olhar. Sonhos multicores revelam-se à men-
te aprendiz. Novas teias de emoções permei-
am a nascente inspiração. Lembranças! Ah!
Lembranças! Alice voa, voa, embarca em
naves passageiras... Jamais caminha sem o
encanto de suas barquinhas de papel.
65
Nem sempre a lápis | Por Fernando Freire
Fernando Freire, 49 anos, Poeta,
Professor de História, Diretor do Centro
de Ensino Fundamental 08 do Gama,
publicou de forma independente
os livros de poemas "Zoomboomzungu",
"Nesta Hora Incerta" e "Rua da Memória 610".
Premiado nas edições de 2004 e 2007 com o Prêmio
Carlos Drummond de Andrade de Poesia
(promovido pelo SESC-DF)
66
PEQUENO SONETO URBANO
Envelheço na cidade
na mesma velocidade
do sonho, do pensamento,
da tempestade e do vento.
Dos anos de mocidade
ficou a necessidade
de viver cada momento
sob o céu claro ou cinzento.
Todo dia a realidade,
seja cedo ou seja tarde,
me ensina o mandamento:
a vida e fogueira que arde,
que se apaga sem alarde
nas águas do esquecimento.
67
entomologia
atingida pelo inseticida
a varejeira de dorso verde
exercita a arte de morrer
sobre a negra superfície
do piso de cerâmica.
não voará mais
o infeliz inseto
nem para longe
tampouco para perto.
entre seu principio
e seu fim
nenhum parapeito existia
somente o precipício
e a vida que se partia.
pequenina criatura
de vida tão breve
no frigir dos ovos
de que te servem
teu ultimo zumbir
teu espernear derradeiro
entre as quatro paredes
deste banheiro?
Nem sempre a lápis | Fernando Freire
68
FALA QUE EU TE ESCUTO
1 brisa leve
entra janelad
entro
1 brisa leve
que jamais
chegará a vent
o
na tv pastores
vomitam trechos
da
B
í
b
l
i
a
é Jesus tornado
verbo e tábua
de salvament
o
nesta hora avançada
eu tudo é
lucro e sentimento
69
quando novembro voltar
ruas mudam de nome
pessoas mudam com os anos
casas mudam de dono
e toda a vida
é um sonho sem sono
sonhado nas casas
nos apartamentos
no berço das esperanças
no ocasos dos sepultamentos.
por sermos
ocos como o sonho
por sermos
frágeis como o tempo
invejamos a rocha
pelo estoicismo dos monumentos
pela empáfia das esculturas
e seguimos
e caminhamos
e sorrimos
e choramos
a cada novo dia
a cada vitória
ou a cada derrota
que Deus ou o acaso
levam até nossa porta.
Nem sempre a lápis | Fernando Freire
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PASSEIO PELAS RUAS
DE BRASÍLIA EM NOVEMBRO
Todos os dias, versos
sucumbem nos meus braços,
relembrando sucessos,
relembrando fracassos.
São palavras antigas
celebrando emoções,
na forma de cantigas
sem maiores ilusões.
Meninos nos sinais
se expondo por trocados,
vendem balas, jornais,
entre os carros parados.
Sob a árvore um casal
se desmancha em carinho,
num antigo ritual
de não sonhar sozinho.
São cenas de cinema
nas ruas da cidade,
visões do mesmo tema
chamado humanidade.
São imagens do mundo,
são imagens da vida,
o grito mais profundo
ecoando na avenida.
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IMPERFEIÇÃO
Navegamos por mares tão antigos
no comando de velhas caravelas
que nos conduzem sempre aos mesmos por-
tos
onde o tempo nos mostra suas velas.
Somos os comandantes desta frota
que transporta ilusões e sentimentos
e não importa o berço em que nascemos
viajamos ao sabor dos mesmos ventos.
Nas águas destes mares que cruzamos
vão também garrafas com mensagens,
pequenos testamentos que lançamos
nestes mares repletos de miragens.
Somos apenas máscaras que criamos
para dar voz a velhos personagens.
Nem sempre a lápis | Fernando Freire
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Livro de Cabeceira | Aninha Santana
Alice e o Poder da Imaginação
Lewis Carroll é o escri-
tor que melhor compreendeu
o universo infantil e o risco
que ele corria de ser domina-
do por um mundo austero e
mecanizado demais. Regras
impostas, horários rígidos,
crianças-robôs fabricadas por
uma Inglaterra recém-industrializada. Ele sentia o encanto da
infância se desvanecer, as brincadeiras prestes a desaparecer,
os garotos prestes a se transformar em réplicas de adultos.
Diante deste cenário sombrio, ele aproveitou a oportunidade
oferecida por um passeio ao lado das três filhas de seu amigo,
o Reverendo Henry Liddell, quando criou de improviso uma
história, inspirada em Alice, sua predileta entre as irmãs. A
narrativa, composta em 4 de julho de 1862, transformou-se
posteriormente em um exemplar especial editado a pedido da
menina, no Natal do mesmo ano.
Com o sucesso repentino do enredo, o autor decidiu publicar a
obra em versão ampliada, a qual se transformou em um clássi-
co da literatura universal. Carroll influenciou com este livro
os principais nomes da literatura moderna e antecipou até
mesmo conceitos fundamentais da física contemporânea,
como as potencias possibilidades exploradas pela Física
Quântica.
No País das Maravilhas ele assume o ponto de vista infantil,
tecendo a partir desta visão uma crítica avassaladora do
universo adulto, retratando-os como seres aborrecidos, enfa-
donhos, radicalmente sérios e artificiais. É assim que Lewis
73
vê o contexto de sua época, marcado pela cultura vitoriana,
mundo autoritário, desprovido de emoções, repressor e regido
pelos desmandos e pela impossibilidade de dialogar.
Nesta esfera cinzenta e sem vida, Alice representa o poder da
imaginação, a espontaneidade, a constante renovação, a meta-
morfose contínua. Ela é o símbolo da mudança, da brincadei-
ra, da incansável busca da identidade, da eterna insatisfação,
sempre à procura do novo, da compreensão daquilo que os
adultos cristalizaram e estabeleceram como regras fixas e
invioláveis.
A protagonista de Carroll revolve todos estes dogmas e
normas, instituindo o incessante questionamento que balança
as sagradas instituições da era vitoriana. Alice contrapõe seu
dom de fantasiar ao absurdo da lógica de um mundo industria-
lizado e estéril. Junto aos personagens que ela encontra na
esfera das Maravilhas, ela se depara com as próprias tensões e
imposições que se interpõem no caminho das travessuras
infantis.
É através do universo onírico que Alice encontra o País das
Maravilhas. A menina adormece no jardim, ao lado da irmã, e
em seu sonho ela segue um coelho branco que, dentro do
bolso do colete, guarda um relógio – não só o símbolo do
tempo, que nesta trama é completamente personificado, mas
principalmente a representação da própria mecanização — e
segue apressado o seu caminho. Quando dá conta de si
mesma, ela já entrou por uma toca e caiu nesta esfera surreal.
Este mundo é habitado tanto por figuras humanas quanto por
animais personalizados, que convivem lado a lado. Aí Alice se
depara com personagens como a arrogante Duquesa; o rato
que se julgava um intelectual erudito, e cuspia palavras que
ninguém compreendia; o pretensioso Dodó; a lagarta filósofa;
o medroso Chapeleiro; a irritante Marmota; a autoritária
Rainha e o Rei servil.
Neste tabuleiro em que se contrapõem sonho e realidade,
lógica e fantasia, os limites e as inúmeras possibilidades do
ilimitado, a rotina maçante e o extraordinário, as inesgotáveis
duplicidades, Carroll brinca com as características do
universo adulto de sua época, recorrendo a um arsenal sem
fim de duplos sentidos e significados.
Neologismos e jogos de palavras são ferramentas fundamen-
tais do autor para tecer este labirinto percorrido por Alice em
74
busca de sua identidade. Afinal, questiona Lewis, o que é real-
mente ser criança? Desta forma ele se vale do País das Maravi-
lhas para instaurar o mundo das brincadeiras no universo dos a-
dultos.
Carroll traça seus personagens com tamanha ironia, do privilegi-
ado ângulo em que se encontra, que não resta alternativa ao leitor
senão observá-los sob a ótica da loucura. O ícone que melhor per-
sonifica esta característica é a Rainha, sempre pronta a cortar a
cabeça dos que não concordam com suas opiniões desvairadas.
Ela certamente não hesitaria diante da oportunidade de criar um
exército de autômatos.
Corajosamente, Alice se torna sua principal adversária, demons-
trando sua total aversão por esta esfera do poder ao conquistar su-
a identidade e, deste ponto de vista, ver estes personagens como
eles realmente são, nada mais que um maço de cartas de baralho.
Esta é a suprema vitória de Lewis sobre seus contemporâneos.
Várias edições deste clássico já foram publicadas no Brasil – des-
de a traduzida por Sebastião Uchoa Leite, mais direcionada para
os adultos, até a de Maria Luísa Borges, que compôs um exem-
plar que tanto pode ser digerido por estes, quanto pelas crianças,
passando pela tradução de Ana Maria Machado, particularmente
dirigida para o público infantil.
A nova publicação, assumida pela Editora CosacNaify, é visual-
mente fascinante, recheada de cartas de baralhos inspiradas no
País das Maravilhas, com as quais o artista plástico Luiz Zerbini
compôs maquetes por ele fotografadas. Para realizar este trabalho
magnífico, ele recolheu cartas de todo o Planeta, as quais passa-
ram a integrar sua coleção particular. É de tirar o fôlego o resulta-
do de suas ilustrações para esta obra.
A tradução, por conta do escritor e professor universitário Nico-
lau Sevcenko, é certamente original e criativa. Ele consegue en-
contrar as melhores correspondências, na língua portuguesa, para
os neologismos de Carroll, um dos escritores com quem ele mais
se identifica. O tradutor cultiva por Alice no País das Maravilhas
um carinho especial, o que contribui, certamente, para sua preser-
vação do clima bem-humorado e absurdo da obra.
A versão especial deste livro, de tiragem limitada, vem aconche-
Livro de Cabeceira | Aninha Santana
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gada em uma caixa especial, particularmente compos-
ta para colecionadores. Esta edição ainda conta com
um posfácio original escrito pelo Professor de Histó-
ria da Cultura da USP, Nicolau Sevcenko, intitulado O
País das Maravilhas e o Reino das Marmotas, no qual
ele discorre sobre a influência do contexto de Carroll
em sua obra. Complementam a nova edição as biogra-
fias do autor inglês, do tradutor e do ilustrador, além
da bibliografia que discorre sobre este clássico.
Nada melhor que uma edição como esta para que o
leitor se inicie, ou mergulhe mais uma vez, neste mun-
do de ponta-cabeça, no qual é possível assumir um
ponto de vista diferente, e olhar com novas cores e sa-
bores um universo insípido que infelizmente não se
resume à paisagem vitoriana inglesa, mas contamina o
mundo contemporâneo, cada vez mais automatizado e
maçante. A leitura de Alice no País das Maravilhas
nunca foi tão atual e necessária!
Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas.
Editora Cosac Naify, São Paulo, 2009, 165 pp.
R$ 45,00. Edição Especial para Colecionadores.
SETEMBRO 25 20H00
LANÇAMENTO
SÉRIE E.X.E.M.P.L.O.S
Akira Yamasaki
Emerson Braga
Ingrid Caldas
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Save the date
Scenarium Plural