O mundo é mais do que isso capa e...

56
o mundo é mais Mediação e a complexa rede de significações da arte e do mundo o mundo é mais do que isso Cristina de Pádula Maria Tornaghi Tania Queiroz [orgs. ]

Transcript of O mundo é mais do que isso capa e...

Page 1: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

1

o mundo

é mais

do que

isso

Mediação e a complexa rede de signifi cações

da arte e do mundo

o mundo

é mais

do que

isso Cristina de Pádula

Maria Tornaghi

Tania Queiroz

[orgs.]

Page 2: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

2

o mundo

é mais

do que

isso

Page 3: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

Mediação

e a complexa rede de significações

da arte e do mundo

o mundo é mais

do que

isso

Cristina de Pádula

Maria Tornaghi

Tania Queiroz

[orgs.]

Page 4: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

O projeto de Capacitação de Mediadores, coordenado por

Maria Tornaghi e supervisionado por Cristina de Pádula e

Tania Queiroz, teve início a partir da experiência com alunos do pro-

grama Fundamentação, ambos implementados pela EAV Parque

Lage, em , com recursos da Secretaria de Estado de Cultura.

O verão daquele ano foi marcante para a EAV. Após um ano de

mudanças na sua estrutura administrativa, a escola implementou

uma série de programas de ensino com bolsas para alunos inician-

tes que buscavam uma formação básica e, por assim dizer, um pri-

meiro contato com a arte. O Plano Diretor, elaborado com a co-

laboração de artistas, críticos de arte e educadores como Adriano

Pedrosa, Ernesto Neto, Daniel Senise, Glória Ferreira, Luiz Ernesto,

Luiz Guilherme Vergara, Maria Tornaghi, Raul Mourão, Ricardo

Basbaum, Suzana Queiroga e Tunga, abriu portas para as transfor-

mações que estavam por vir.

Page 5: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

8 98 8 8 8 9999

Durante os debates, viu-se a necessidade de se construir um pro-

grama de ensino abrangente e democrático com uma sólida for-

mação nos anos iniciais e um gradativo aprofundamento nos anos

seguintes. Dessa forma, o projeto não entraria em confl ito com a

escola, mas, como sugeriu Tunga, por um processo de “contamina-

ção”, infl uenciaria o que estava em curso.

Criou-se então o programa Fundamentação, com bolsas integrais

para alunos a cada semestre. O programa foi posto em prática

com carga horária de horas semanais, distribuídas entre aulas e

palestras promovidas aos sábados. Hoje, com alunos por semes-

tre, candidatos inscrevem-se em seleções públicas e são escolhidos

pelos professores. Exige-se como pré-requisito ser estudante, regu-

larmente inscrito em instituição formal de ensino, pública ou privada,

em nível de graduação ou mesmo de ensino médio ou fundamental.

Com a implantação desse programa, verifi cou-se a necessida-

de de se criar cursos de curta duração para aqueles que buscam

uma capacitação técnica de apoio ao sistema da arte. Assim, fo-

ram implantados cursos de iluminação, design de exposição e fo-

tografi a de obra de arte, entre outros. Tais cursos têm por obje-

tivo dar início à profi ssionalização em um ambiente cercado por

artistas. Nesse sentido, nada melhor do que oferecer a formação e,

simultaneamente, proporcionar a experiência em exposições e

eventos promovidos pela escola.

O programa de Capacitação de Mediadores, outra vertente do

programa básico de formação técnica, busca familiarizar o aluno

com novas práticas de aproximação do público com a obra de arte.

Questiona as tão criticadas (e ultrapassadas) formas de recepção de

visitantes em museus, galerias e outros centros de arte. De início,

formavam-se alunos por semestre. Decidiu-se então por uma

formação mais sólida e mais abrangente, com duração de oito meses.

Hoje, cinco anos depois de sua implantação, o programa recebeu

mais de jovens, muitos dos quais trabalham em instituições

culturais como o � eatro Municipal, a Casa França-Brasil e a Casa

de Cultura Laura Alvim e mediam a importante troca entre o visi-

tante e a obra de arte.

À frente do projeto, coordenando o programa, Maria Tornaghi,

com ampla experiência e inquietante busca pelo novo, nos provoca

a cada dia. E com seu olhar ora azul, ora castanho nos pergunta:

estamos no caminho certo? Existe o certo? E conclui: ninguém está

aqui para formar, mas para levantar questões.

Claudia Saldanha

Page 6: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

este livroeste livro

Maria TornaghiMaria Tornaghi

Credo incréduloCredo incrédulo – – pressupostos de um pressupostos de um

trabalho em mediaçãotrabalho em mediação

Maria TornaghiMaria Tornaghi

o interesse do visitanteo interesse do visitante

Tania QueirozTania Queiroz

Capacitação de mediadoresCapacitação de mediadores – – necessidade necessidade

de formação, desdobramentos e experiênciasde formação, desdobramentos e experiências

Cristina de PádulaCristina de Pádula

sobre a relação entre arte e palavra (o olhar e a explicação)

Fernando Cocchiarale

seis patas

Cadu

a arte e sua relação com o espaço público

Agnaldo Farias

Conversa de anna Bella Geiger e maria tornaghi

Gosto não se discute

Eduardo Coimbra

escritos de artistas

Glória Ferreira

“os trabalhos são todos ambíguos”

Leonilson

Linha do tempo: quando os predicados nos escapam

Marcelo Campos

metamorfoses da vida e da visibilidade no mundo contemporâneo

Paulo Sergio Duarte

textos usados no Programa de Capacitação de mediadores

Sumário

43

53

59

71

73

77

81

83

89

106

13

17

21

27

Page 7: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

12 1312 12 12 12 13131313

Implantado na EAV, em , por Cristina de Pádula, Tania Queiroz e eu com o objetivo de preparar pessoal especializado para receber os visitantes dos espaços expositivos da escola, o Programa de Capacitação de Mediadores refl ete a atitu-de de indagação sobre a arte e sua prática pedagógica que mantenho desde , quando, há mais de meio século, comecei a atuar na área.

Durante muito tempo só eventualmente trabalhei na recepção de público em exposições. Na realidade até , quando fui para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, eu era radicalmente contra esse tipo de atuação. Visita guiada era, e de certa forma ainda é, para mim, um termo pejorativo.

A própria palavra “guiada” já me deixava desconfortável, mas trabalhando há tanto tempo na área, muitas vezes me vi levada a, como chamam os teóricos do ensino da arte, trabalhar com uma “obra pronta”. É, dizem eles, o que pro-fessores de música fazem quando ensinam seus alunos a tocar uma partitura composta por outra pessoa. O desafi o de transformá-lo num trabalho que eu considerasse pertinente me mobilizou e acabou fazendo com que eu passasse a me interessar pelas questões de aprendizagem da arte que surgem na relação do público com obras expostas.

Maria Tornaghi

1 Sobre o trabalho com uma obra pronta ver: WITKING, Robert W. Intelligence of Feeling. London: Hine-

mann Educational Books, .

este livroeste livroeste livroeste livroeste livro

Page 8: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

14 1514 14 14 14 15151515

Desde então tenho trabalhado sistematicamente na recepção de público em exposições. Cristina e Tania têm me acompanhado nesse trajeto e compartilha-do inquietações, descobertas, aprendizagens. O programa de Capacitação de Mediadores é o desafio do momento.

Desde suas primeiras edições, este programa despertou o interesse de ou-tras instituições que já se deparavam com a necessidade de oferecer serviços de igual natureza. Ampliado para atender essa demanda, o programa mantém, por ocasião desta publicação, parceria com a Casa França-Brasil e a Casa de Cul-tura Laura Alvim. Muitas outras instituições têm trabalhado com mediadores que passaram pelo programa: o Museu Nacional de Belas-Artes, MAM, MAC, MAR, Casa Daros, Espaço Furnas, Sesc Madureira, entre outras.

A crescente demanda por pessoal qualifi cado, resultado, talvez, do reconhe-cimento da importância de serviços educativos em museus e centros culturais, nos levou a fazer esta publicação, que visa expandir o alcance do programa e proporcionar material de pesquisa num campo tão carente de bibliografias que aliem experiência na área e conhecimento teórico.

Um diferencial da EAV é o fato de seus professores serem todos profi ssionais atuantes na área de arte. Procuramos preservar essa característica selecionando textos de profi ssionais da área para abordar aspectos que consideramos impor-tantes para a aprendizagem que surgem na relação do público com obras expos-tas. Foi neles que pinçamos o título do livro.

Junto de cada texto colocamos algumas palavras que apontam facetas do nos-so trabalho que são tratadas pelos autores desses textos. Poderiam ser muitas outras. Os textos vão, certamente, muito além dessas questões e é isso que é descoberto, de maneira sempre diferente, por cada turma. Ao escolher essas pa-lavras quisemos apenas pontuar aspectos que, em nosso trabalho, consideramos importantes para uma boa mediação, para a aprendizagem de arte.

Como o roteiro de uma visita, que pode e deve ser rasgado em função dos visitantes, de outros interesses, de outras questões, a sequência em que os textos aparecem não é a única possível e nem mesmo a que é sempre usada no curso. Escolha um caminho, leia um, leia outro, volte a um, volte a outro. Não temos dúvidas de que a cada nova leitura “novas leituras” serão feitas.

Esses não são os únicos textos usados no programa. No fi nal da publicação

há uma série de referências que foram usadas até agora. Foram sendo esco-lhidas em função das necessidades de cada turma. As escolhas são puramente circunstanciais: pensando em fatores que infl uenciam a aprendizagem em mu-seus lemos Falk & Dierking que, para tratar do assunto, falam de acomodação e assimilação, o que nos levou a um texto de Piaget e assim sucessivamente. Poderia ser qualquer outro texto, não se pretende “estudar” Piaget. Apenas refl e-tir sobre as questões levantadas. O programa e suas leituras transcorrem como uma visita, onde qualquer comentário dos visitantes pode ser um ponto de par-tida para que, de desdobramento em desdobramento, se teça uma rede de sabe-res, se construa aprendizagem.

Complementando o texto da Cristina de Pádula “Capacitação de Mediado-res – necessidade de formação, desdobramentos e experiências” estão folders que fi zemos para algumas exposições. Eles visam provocar o interesse dos visitan-tes por questões tratadas pelos artistas. Acreditamos que assim os estejamos aproximando do que é exposto e possibilitando a tão desejada construção de conhecimento.

Page 9: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

16 171717171716 16 16 16

Gostosa a situação de completa crença e completa descrença! É mobilizadora, dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa procuran-do uma estabilidade impossível, desejável e indesejável.

Assim nos sentíamos quando fi zemos os primeiros trabalhos de recepção de público em exposições e assim nos sentimos ainda depois de tanto tempo. Faz sentido o trabalho de mediação? É possível aprender alguma coisa em uma vi-sita de cerca de uma hora? O que se pode aprender? Como contribuir para esse aprendizado? Os contextos pessoais, sociais e físicos podem ser, como propõem Falk e Dierking, “as janelas pelas quais podemos ver a perspectiva do visitante”?

Trabalhos e estudos aumentaram nossas certezas e incertezas. Preservamos a atitude de questionamento, mas acreditamos hoje que o papel do mediador é criar condições para que o visitante possa ter uma relação direta (e insubstituí-vel) com as obras e saia querendo conhecer ainda mais sobre o que viu.

Criança (salvo exceções que justifi quem a regra) não é artista. Acreditamos piamente nisso. Já acreditávamos nisso quando trabalhamos no Núcleo de Crianças e Jovens da EAV. Criança não é cientista, mas quando planta o famo-so feijão no algodão e anota as observações sobre seu crescimento dia após dia procede como um cientista. Criança pode não ser artista, mas ao proceder de modo similar ao de um artista, pode ir acumulando saberes que a aproxima do universo da arte. Um artista trabalha em projetos que envolvem o que, em falta

Maria Tornaghi

Credo incrédulo – pressupostos de um trabalho em mediação

Credo incréduloCredo incréduloCredo incréduloCredo incrédulo – – – – pressupostos de um pressupostos de um pressupostos de um pressupostos de um trabalho em mediaçãotrabalho em mediaçãotrabalho em mediaçãotrabalho em mediação

Page 10: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

18 1918 18 18 18 19191919

de palavra melhor, costumamos chamar questões de arte. Identifi cando seus in-teresses e questões no Núcleo, os alunos e o professor inventavam projetos que tratavam de questões da arte. Como um recurso para desenvolver esses projetos, cada aluno tinha um portfólio no qual, além dos trabalhos e de “diários de bordo”, armazenavam todo tipo de informação que achassem pertinentes aos projetos, de referências da arte a acontecimentos do cotidiano. Um portfólio como o pro-posto por Howard Gardner: “mais um registro do processo de aprendizado do que só de trabalhos prontos”. O portfólio aberto em frente ao aluno permitia que ele estabelecesse relações entre os trabalhos e entre estes e as anotações co-letadas. A troca de ideias com outros alunos, com outras pessoas, ampliava essa rede de relações e contribuía para o aprofundamento da refl exão. Criava-se a possibilidade de aprendizagem sem se estabelecer caminhos prévios.

Esses projetos possibilitavam que, de maneira lúdica e séria, mesmo as crian-ças menores, explorando diferentes meios e materiais, se familiarizassem com a arte. Seria possível transpor essa experiência para o trabalho com visitantes de uma exposição?

Sem esquecer a atitude de indagação que tanto prezamos, tentamos a transpo-sição. Cada visita é pensada para criar condições para que os visitantes, não só crianças, mas os públicos mais diversos, desenvolvam seus “projetos” que abor-dam questões de arte tratadas na exposição. Os caminhos não são predetermi-nados. Cada grupo, cada visitante, constrói, com o mediador, seu “projeto”, sua visita. As bagagens de vida de cada um, trazidas para o grupo com seus comen-tários, e as obras que estão na exposição tomam o lugar do portfólio. A mediação acontece a partir do que se vê, se conversa, se refl ete. O mediador, um profi s-sional qualifi cado, capaz de lidar tanto com questões de arte como de educação, acompanha o visitante, levando em conta seus interesses pessoais, pontua desco-bertas, traz informações, provoca a refl exão. Pensamos em Paulo Freire – para nós, a tarefa do mediador “não é transferir conhecimento, mas criar as possibi-lidades para a sua própria produção ou a sua construção”. De troca de ideia em troca de ideia, de desdobramento em desdobramento, o grupo trabalha com os mediadores relacionando arte e vida, construindo conhecimento. Decorrendo dessa maneira, cada visita é diferente, mesmo quando é feita à mesma exposição e pelo mesmo grupo.

Quando oportuno, as visitas – seja de crianças, adolescentes ou adultos – são acompanhadas de atividades educativas que abordam questões tratadas na ex-posição e que fazem parte do dia a dia do visitante. Gerando também refl exão e troca de ideias, elas têm duplo papel de criar oportunidade para que o mediador conheça melhor o grupo, e de despertar a curiosidade e o interesse pelo que vai ser visto.

A análise de uma obra de arte requer um repertório conceitual poucas vezes encontrado entre crianças e leigos que procuram uma visita mediada. Em lugar de se deter na análise de uma obra em particular, o que essa mediação procura é levar o visitante a usar as obras e a sua organização no espaço como pistas para as pesquisas do artista, para a compreensão das razões de escolha do curador, para a visão da instituição.

Dessa forma, a mediação cria condições para que a insubstituível relação dire-ta do visitante com a obra seja preservada.

Se a visita é prazerosa, se o interesse pela exposição é estimulado, o conheci-mento específi co do que está exposto acontecerá durante e depois da visita e o visitante sairá querendo conhecer ainda mais sobre o que viu.

O visitante aprende a visitar exposições. Adquire recursos para uma aprecia-ção crítica do que está exposto e, por extensão, condições de transpor essa ex-periência para o cotidiano, para a vida. Desenvolve o prazer e o hábito de visitar exposições.

Page 11: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

20 2120 20 20 20 21212121

Um dos aspectos característicos do nosso trabalho é acreditar que o visitante sempre traz alguma experiência ou impressão relacionada ao que está sendo mostrado.

Como o artista, que trabalha e reúne sua produção em um portfólio, o vi-sitante traz consigo para o museu ou espaço cultural seu portfólio de percep-ções e conhecimentos, que precisam, apenas, ser usados. Esse portfólio precisa, apenas, ser aberto e visitado.

Identifi car o visitante, reconhecê-lo, perceber seus interesses é o ponto de partida para essa ação. Essa identifi cação se dá no primeiro momento das apresentações, do encontro. De onde vêm? Já estiveram aqui antes? O que lhes chama a atenção?

O grupo que vem da Zona Rural, por exemplo, traz um olhar impregnado de paisagens diversas das que existem nas cidades, de conhecimentos sobre a natureza; grupos que vêm de outros países trazem questões de sua cultura, há-bitos e referências que lhes permitem ter um olhar inaugural sobre nossa pro-dução; grupos de escolas trazem experiências em comum proporcionadas por aquele espaço e pela convivência cotidiana, mas também as experiências par-ticulares de seus alunos, dos locais onde moram, com acesso a diferentes bens culturais, valorizando as mais diversifi cadas manifestações. São informações preciosas, da maior importância, que devem ser consideradas durante a visita.

Tania Queiroz

o interesse do visitanteo interesse do visitanteo interesse do visitanteo interesse do visitante

Page 12: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

22 2322 22 22 22 23232323

A relação que pode ser de proximidade ou distanciamento do que trazem, do que já sabem, do que está exposto, das questões do artista ou da curadoria é estabelecida aí. A partir da vivência de cada grupo e de cada visitante, um elo se constrói.

Em toda a história da arte pode se identifi car as questões que motivaram os artistas a produzirem suas obras. Questões essas que se referem ou podem se referir a inquietações, críticas ao establishment, às diferentes condições de cada época. Os artistas as tornam visíveis, sensíveis. A arte trata, de alguma maneira, da vida.

Entendemos que sempre foi assim. Em mostras históricas, que falam de outro tempo, o resgate do que já se es-

tudou ou ouviu falar sobre este ou aquele período, as histórias de reis, deuses, de guerras, mesmo que deturpadas ou fantasiosas, podem ser resgatadas. Em algum momento estudamos, ouvimos falar, participamos de um game, tivemos brinquedos com personagens desses períodos. Cabe ao mediador levantar es-sas referências que certamente estão ou estiveram presentes na vida do visitan-te e relacioná-las ao que está sendo mostrado. Sempre se “saberá” alguma coisa.

A proposta de uma viagem pela mostra resgatando a própria ida ao museu pode ser um caminho. Como foi da sua escola até aqui? Já tinha feito esse caminho? O que observou? Como um viajante se comporta? Estas pinturas mostram realmente o que se viu? Estão impregnadas pelo olhar do viajante? E vocês? O que encontraram aqui corresponde as suas expectativas? Como e o que contarão para seus amigos?

Na mostra “O Brasil redescoberto”, que mostrava o Brasil dos viajantes, a própria visita se tornava a viagem. Os alunos eram convidados a registrarem em etiquetas adesivas suas impressões sobre as obras expostas. Cada escola visitante (e eram muitas) era representada por uma linha de cor diferente e, como os viajantes de outrora, os alunos realizavam a visita com o olhar atento de quem está descobrindo. Ao fi nal, uma grande colagem com as diversas eti-quetas interligadas pelas diferentes linhas coloridas formava os diversos per-cursos, com as imagens dos interesses e registros de cada um.

Quando pensamos em arte contemporânea esse caminho parece não apre-sentar difi culdades. Afi nal, na arte contemporânea as relações entre arte e vida se apresentam de forma bastante clara, direta. Os recursos e as imagens uti-lizadas pelos artistas para apresentação de suas ideias e elas próprias são bas-tante familiares.

Muitas vezes a proximidade com o que está sendo mostrado é de tal ordem que pode causar estranhamento ao público que não está familiarizado. Arte é o que está no museu, sacralizado, distante do senso comum e como, fre-quentemente, a arte contemporânea procura provocar o questionamento dessa sacralização promovendo ações de ruptura, identifi car algumas obras como arte pode ser mais difícil num primeiro momento. Está tão próximo que pa-rece distante. Um estranhamento que pode surgir, até, de um preconceito em relação à arte em geral.

A conversa que desfaz essa premissa é o primeiro passo para viabilizar a aprendizagem.

Enquanto procuramos estabelecer esse contato entre a experiência do vi-sitante e a obra, buscamos trazer à tona as questões do artista com e em seu tempo. O ponto de vista do artista ou da curadoria se torna, no transcorrer da visita, visível.

Identifi cada essa familiaridade entre espectador e obra, entre espectador e questão do artista ou da curadoria, a aliança se estabelece, o visitante se sente à vontade para explorar a mostra, tentando identifi car cada vez mais as ques-tões ali apresentadas. A curiosidade é despertada, e o constrangimento pela impressão de distanciamento entre obras de arte e público em geral pode ser dissipada aí.

Aprender se torna mais fácil, mais próximo. Aprendemos o que nos interes-sa; interessamo-nos pelo que conseguimos perceber e com o que nos identifi -camos, com nossas vidas e experiências.

A equipe do educativo, depois de minucioso estudo da obra do artista, da proposta da curadoria, da trajetória do artista e das suas questões, será o “faci-litador”, para o visitante, dessa identifi cação.

Se entendemos que aprendizado está diretamente relacionado ao que nos interessa, a identifi cação desses interesses e dos saberes do visitante será o

1 “O Brasil redescoberto”, curadoria Carlos Martins, Paço Imperial, Rio de Janeiro, de 6 de outubro a de

novembro de .

Page 13: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

24 2524 24 24 24

caminho para que se estabeleça a sua relação com a exposição, com o que está sendo mostrado e o consequente aprendizado.

Estranhar, desconhecer, perceber, reconhecer, conhecer mais. Pode ser esse o roteiro para a aprendizagem em exposições de arte. Nesse caminho, a media-ção busca/traz à tona o que o visitante já sabe e, como vimos, ele sempre sabe sobre o que está ali sendo apresentado. Esse saber não é organizado, consoli-dado como teoria, mas vivido, apreendido das mais diversas maneiras.

Os caminhose as estratégias simples de aproximação que utilizamos reque-rem, no entanto, que o mediador esteja bastante seguro em relação ao que está sendo mostrado, de forma a ser capaz de lidar com as mais diversas reações, observações e vivências trazidas pelo visitante. Quanto mais se conhece sobre o que está exposto, mais se consegue lidar com os diferentes depoimentos e asrelações que o público estabelece.

Os fi os que vão sendo puxados e tecidos em conjunto têm de ser capazes de trazer à superfície as questões do artista e sua relação com a vida, com as experiências e conhecimentos trazidos pelo público. Se somos efi cientes nessa abordagem, o grupo sai da visita motivado a saber mais, a conhecer mais pro-fundamente. E retorna. Cada vez mais.

25252525

Page 14: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

26 272727272726 26 26 26

Em , Tania Queiroz, à frente da Coordenação de Ensino da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, identifi cou uma demanda que se tornava urgente: como suprir a formação dos mediadores que trabalhavam nas exposições da escola?

Durante os anos de e , estudantes universitários de artes e ainda alunos da própria escola eram preparados para atuarem como mediadores. Ela enfatizava a importância de um programa educativo para as exposições da escola de modo a ampliar a formação de público de arte contemporânea e estimular o acesso aos bens culturais da cidade. Nesse momento, não havia ainda o curso formalizado, mas um trabalho continuado com um pequeno grupo de alunos, que se dava a cada nova exposição e em reuniões de preparação e avaliação.

A partir da bem-sucedida implementação, em , do Programa de Cursos Gratuitos, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura, Tania propôs em formalizar esse trabalho de modo a capacitar mediadores para atender a nossa demanda interna. Para a criação desse Programa de Capacitação de Me-diadores, ela convidou Maria Tornaghi e a mim para desenvolvermos juntas esse trabalho. O fato de Tania e eu começarmos a trabalhar com ensino de arte em sob a coordenação de Maria Tornaghi na EAV Parque Lage e no MAM –RJ nos permitiu uma sólida experiência no ensino de arte.

Capacitação de mediadores – necessidade de formação, desdobramentos e experiências

Cristina de Pádula

1 Na época o nome do programa era Incubadora de Monitores.

2 Trabalhamos no educativo do MAM–RJ entre e , além de outras mostras em outras instituições.

Capacitação de mediadoresCapacitação de mediadoresCapacitação de mediadoresCapacitação de mediadores – – – – necessidade de formação, necessidade de formação, necessidade de formação, necessidade de formação, desdobramentos e experiênciasdesdobramentos e experiênciasdesdobramentos e experiênciasdesdobramentos e experiências

Page 15: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

28 2928 28 28 28 29292929

Esse breve histórico resume nossa experiência que tem sido, em grande parte, construída em parceria. Anos de trabalho com continuidade e aprofundamento nos faz lembrar que aprender exige tempo.

Em nossos primeiros encontros para debatermos sobre o programa, a questão primeira que nos colocávamos era se seria possível capacitar jovens estudantes, ainda com tão pouca formação, em tão pouco tempo para esse trabalho. Por um lado, acreditávamos que sim, e por outro lado, pensávamos que não.

Sabemos que se tornar mediador, educador ou professor exige tempo e formação continuada. E compreendemos também que essa capacitação que realizamos é um primeiro passo a ser preenchido pela prática e formação con-tinuada. Assim, enfatizamos que as instituições devem estar atentas para a necessidade de supervisão e formação de nossos mediadores a cada nova expo-sição a que venham trabalhar.

O programa foi pensado de modo a proporcionar noções básicas de ensino e aprendizagem de arte e de mediação, complementados por estágio supervi-sionado, com preparação específi ca para que atuem em diferentes espaços e mostras. Essa é uma especifi cidade do curso.

Depois de um processo de seleção, os alunos passam por um período de atu-ação e de estudos que os capacita a criar condições para conduzir uma media-ção com diferentes perfi s de grupos e visitantes eventuais. Assim, “acreditamos que o papel do mediador é criar condições para que o visitante possa ter uma relação direta (e insubstituível) com as obras e saia querendo conhecer ainda mais sobre o que viu”.

O programa tem etapa intensiva inicial de horas, apresentando aos parti-cipantes a metodologia, estratégias de trabalho e conteúdos específi cos sobre os espaços e mostras onde aconteceram os estágios.

Em seguida, nos encontros semanais são discutidas as experiências a partir dos estágios e ainda complementamos a formação, promovendo estudos com-plementares (com textos, dinâmicas, vídeos, visitas a outras instituições, pales-tras com convidados), além de aulas especiais em que os alunos participam de

encontros com curadores e artistas para a preparação específi ca de exposições apresentadas na EAV Parque Lage.

De acordo com as características de cada turma, os interesses, as exposições e os eventos que aconteçam na cidade, reestruturamos e mudamos os textos e as atividades.

O fato de a EAV Parque Lage ser uma escola com uma programação intensa de exposições é um dado importantíssimo para o desenvolvimento do curso. Ao longo do semestre, os alunos podem ter experiências com no mínimo quatro exposições.

A carga horária total do curso é de horas, sendo horas de aula e horas de estágio. Os estágios de observação podem acontecer na EAV, na Casa França-Brasil ou na Casa de Cultura Laura Alvim. Nesse estágio semanal, o aluno permanece no espaço expositivo observando e acompanhando o mediador que já trabalha na instituição recebendo grupos e visitantes eventuais. As turmas têm, em geral, alunos, mas podem variar de acordo com o processo seletivo.

Experiências em diferentes instituiçõesComo já foi mencionado, inicialmente o nosso objetivo era capacitar mediadores para uma demanda interna, mas a partir da primeira turma de mediadores em , a procura de outras instituições por mediadores formados tem se tornado constante.

Estabelecemos uma parceria com a Casa de Cultura Laura Alvim, entre e , e com a Casa França-Brasil a partir de até o presente momento. Também fomos convidadas para implementar um programa de visitas na Fun-dação � eatro Municipal entre o fi nal de e , além de muitas outras instituições que nos procuram buscando indicação de mediadores formados pelo programa.

Cada instituição, seja pelo seu perfi l cultural, proposta curatorial e condições físicas, acaba por determinar diferentes abordagens e estratégias para a prepara-ção continuada dos mediadores e sua relação com o visitante.

Nesse sentido, em seguida farei um breve relato das características principais de cada instituição e como o trabalho vem sendo ou foi desenvolvido.3 TORNAGHI, Maria. Credo incrédulo, . [Texto integrante desta publicação].

Page 16: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

30 3130 30 30 30 31313131

Escola de Artes Visuais do Parque LageAtualmente consideramos o espaço da EAV Parque Lage um lugar fundamental para o desenvolvimento do trabalho com os mediadores recém-formados pelo programa.

Depois de formar mais de oito turmas, conseguimos identifi car que muitos dos jovens recém-formados necessitam de uma prática maior para consolidar o processo de aprendizagem proposto pelo programa.

Nesse sentido, logo que uma turma conclui o programa, procuramos integrar os alunos à equipe de mediadores da EAV.

Na EAV, o mediador interage com um público muito heterogêneo. Desde escolas e grupos sociais previamente agendados ao público em geral (adultos, crianças, famílias, turistas), que visitam o Parque e desconhecem a existência da escola e de seus diversos espaços de exposições.

Atualmente a EAV tem as Galerias e , Galeria EAV no térreo, Cavalariças e Capelinha. Essa variedade de espaços expositivos permite muitas experiências para o público e os mediadores.

Todas essas variáveis possibilitam aos mediadores novas oportunidades de lidarem na prática com o que aprenderam, sendo ainda continuamente super-visionados por nós e por Vanessa Rocha, assistente da coordenação de ensino.

Casa de Cultura Laura AlvimA EAV Parque Lage, que funciona como um centro cultural, tem, em princípio, muitas características em comum com a CCLA, que, distintamente, é um espaço de exposições, com um programa de arte contemporânea consolidado a partir de e o objetivo de ampliar e formar o público para as artes visuais. Assim, entre junho de e fevereiro de , foi estabelecida a parceria entre as ins-tituições para que implementássemos as ações educativas. Durante esse período, pudemos trabalhar a partir das curadorias de Ligia Canongia, Fernando Coc-chiarale e Glória Ferreira.

Diferentemente da EAV que, em geral, trabalha com uma equipe de me-diadores, na CCLA iniciamos o trabalho com duas (atualmente são três) que se revezam no espaço expositivo.

Temos a destacar que contamos com a presença de uma mesma mediadora desde – Patrícia Aguiar –, que foi aluna da primeira turma do Programa de Capacitação de Mediadores. Só com a continuidade e o aprofundamento do tra-balho durante um longo tempo, ela pôde revelar o seu interesse em trabalhar com programas educativos e consolidar esse desejo. Esse é um exemplo importante, pois muitas vezes, depois de algumas experiências com mediação, um jovem es-tudante procura outros estágios para sua formação e não necessariamente almeja se tornar um educador. Só o tempo poderá afi rmar ou não esse desejo. Porém, para nós que coordenamos programas educativos, sabemos que a maturidade e a experiência contam muito. Atualmente, Patrícia também trabalha na Casa França-Brasil e iniciou uma pós-graduação direcionada para arte-educação.

Voltando a tratar sobre o que tem se tornado específi co no trabalho que rea-lizamos na CCLA e, de certo modo, determinado pelas características físicas da casa, nosso principal foco tem sido o atendimento do público eventual. O espaço não permite um grupo com mais de pessoas e, ainda, sem sala de atividades para se realizar atividades educativas com escolas, acaba-se por tornar o lugar menos convidativo para grupos maiores.

Eventualmente recebemos grupos menores de escolas particulares. Realizar visitas em exposições de arte para crianças tão pequenas requer um trabalho cuidadoso e, muitas vezes, uma mostra pode não ser adequada para esse tipo de visitante – em razão de conteúdos impróprios para crianças ou simplesmente porque as obras fi cam numa altura em que não consigam ver.

Tivemos essa experiência, quando, em , foi realizada a exposição de Vik Muniz, a essa altura já um artista conhecido pelo grande público, e tivemos fi la na entrada e um enorme agendamento de visitas de escolas. Muitos dos grupos com crianças pequenas e que não conseguiam ver algumas obras. Assim, como sempre fazemos, adequamos a visita às características de cada grupo e geralmen-te não conversamos sobre todas as obras.

Muitas escolas comentaram a respeito de a visita ter sido bastante proveito-sa, porém, é curioso notar que, com a exposição seguinte, mesmo convidando

4 Realizamos alguns programas especiais, como para a própria Casa França-Brasil, antes da nossa parceria e para o � eatro Municipal como será relatado ainda neste texto.

5 Muitos de nossos mediadores trabalham ou já trabalharam para instituições como a Casa Daros, MAM-RJ, MAC-Niterói, Museu Nacional de Belas-Artes, Museu de Arte do Rio, Oi Futuro, entre outros.

Page 17: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

32 3332 32 32 32 33333333

novamente as escolas, muito poucas retornaram à CCLA. Para a exposição de Vik Muniz havia patrocínio para transporte de escolas públicas e nós, professo-res e educadores, sabemos como isso faz a diferença.

Fundação Casa França-BrasilEm , Maria Tornaghi já havia preparado o programa educativo para a mos-tra da artista Rosana Palazyan. E foi, então, em com a exposição da artista francesa Valérie Belin que iniciamos nossa parceria.

O trabalho educativo tem sido realizado com os mesmos objetivos das outras parcerias e foram ao encontro do anseio que a Presidência da FCFB e a Coorde-nação de Projetos buscavam para um trabalho dessa natureza.

Realizamos, em geral, para todas as exposições a preparação específi ca com três encontros iniciais (três horas cada), quando estudamos as referências indi-cadas pela curadoria e artista; pesquisamos e discutimos suas obras; visitamos a exposição durante a montagem para identifi carmos questões e relações entre as obras para, em seguida, encontrarmos a curadoria e artista para uma conversa.

Todo esse “material” inicial é o ponto de partida para a confi guração do traba-lho. Para todas as mostras, seja na CFB, na EAV ou CCLA, escrevo um “roteiro inicial para mediação”, no qual reúno estratégias e questões das obras e da cura-doria para uma visita mediada, além do partido geral do trabalho educativo.

Minha experiência, desde a época em que fui mediadora no MAM-RJ, me faz pensar como é importante formalizar e ter sempre à mão questões que foram pensadas e discutidas durante a preparação, e que no dia a dia podem ser esque-cidas. Por isso, sempre enfatizo que é um “roteiro inicial” a ser adaptado a cada mediação realizada.

Inaugurada a exposição, realizamos reuniões quinzenais de supervisão. No dia a dia a supervisão é realizada por Jeanine Toledo, coordenadora de Projetos, que eventualmente avalia a necessidade dessas reuniões serem semanais. Mas na prática, tem sido muito difícil conciliar horários, já que muitos mediadores ainda são estudantes.

Durante esse tempo de parceria tivemos algumas exposições com patrocínio para transporte de escolas públicas e folheto educativo.

O trabalho com escolas, além de ampliar o alcance do trabalho educativo, é para os mediadores uma fonte riquíssima de trocas e aprofundamento do tra-balho. Diferentes faixas etárias, diferentes tempos de uma visita; como realizar um atendimento quando a professora nos informa que só tem quinze minutos, pois o ônibus já vai chegar. São situações frequentes quando estamos cercados de outras instituições culturais que também recebem escolas.

A feitura de um folheto educativo para uma exposição traz sempre a questão: qual é o público-alvo? De acordo com a proposta curatorial da FCFB e pensando tanto no visitante eventual, não familiarizado com arte contemporânea, quanto nos professores, que são multiplicadores em suas escolas, temos elaborado um folheto voltado para o público adulto. Assim, o visitante pode se relacionar com a exposição recorrendo a algumas questões que são levantadas. Nesse sentido, acreditamos que podemos ajudar a relação do público com as obras expostas e ampliar as visitas a exposições de arte.

Fundação � eatro Municipal do Rio de JaneiroO trabalho realizado na Fundação � eatro Municipal foi um desafi o diferente. Mas os nossos pressupostos de trabalho não se alteram de modo algum, inde-pendentemente de ser ou não uma exposição de arte. Isso é uma questão impor-tante que enfatizamos no Programa de Capacitação de Mediadores: como fazer é fundamental, e esse fazer deve estar apoiado nas questões da curadoria seja ela de arte ou não.

Na época em que trabalhamos no MAM chegamos a desenvolver atividades em exposições que não eram especifi camente de arte como “A paisagem carioca”, com a curadoria de Carlos Martins e como no acervo dos Museus Castro Maya, mais especifi camente no Museu do Açude.

Para a implementação das visitas para a Fundação � eatro Municipal basea-mo-nos nas questões e nos objetivos da Presidência da instituição. O � eatro tem muitas obras de arte como dos irmãos Bernardelli, de Visconti, mosaicos de Facchina e muitos outros elementos decorativos fascinantes. Com o então re-cente restauro e reforma de todos os elementos em , a visita foi direcionada para esses aspectos.6 Ao fi nal desta publicação disponibilizamos alguns folhetos educativos.

Page 18: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

34 3534 34 34 34 35353535

Para esse projeto desenvolvemos um curso específi co. Maria Tornaghi e eu trabalhamos intensamente com um grupo inicial de mediadores. Durante um mês de preparação nosso desafi o foi conhecer os bastidores, conhecer cada elemento e espaço restaurados, os materiais empregados, as técnicas e a história do teatro que corrobora e se desenvolve com a história da cidade. Tivemos en-contros com a arquiteta responsável pelo restauro e reforma, e com funcionários que estavam ali há mais de 20 anos, além de diferentes profi ssionais da área de espetáculos, palco, iluminação, etc.

A cada dia descobríamos algo novo, e pensávamos: como vamos incluir isso na visita? Como dar conta de tantos assuntos? O que pode ser mais importante?

Assim como numa visita mediada, o nosso curso procurou criar uma aproxi-mação (mais aprofundada) com o que seria exposto, além de questões de ensino e aprendizagem. Estudamos, planejamos, ensaiamos. E, ao contrário de uma exposição de arte que é feita para ser visitada, a principal função do teatro é fun-cionar como uma casa de espetáculos. O nosso cotidiano de trabalho e as visitas aconteceram durante os ensaios e manutenção. Muitas vezes precisávamos fi car em silêncio absoluto. Foi um desafi o enorme e não imaginávamos que a agenda de visitas fi casse logo esgotada e com fi la de espera. Mesmo a visita não sendo gratuita, recebíamos visitantes por dia.

Ao elaborar as estratégias e os percursos, acabamos nos deparando com mui-tas limitações. Por isso as visitas tiveram de se tornar mais padronizadas do que gostaríamos. Sempre enfatizamos que num trabalho educativo a importância de lidar com o imprevisto, o acaso, ouvir as demandas dos visitantes e a necessidade de rasgar o roteiro, porque surgiu uma questão mais importante, é fundamental.

Eis um exemplo a partir de uma situação durante o treinamento dos mediado-res. Estávamos atrás do palco, na coxia. Para quem conhece, tínhamos acabado de atravessar a ponte que liga o prédio do anexo ao teatro. Eu estava em pé, con-versando com o grupo reunido a minha frente e, de repente, vi que eles estavam com os olhos arregalados, iluminados. Quando me virei, estava o palco sendo revelado, uma das varas recolheu parte do cenário e surgiam aquelas lindas lan-ternas vermelhas do cenário do Balé Nacional da China que apresentaria em breve o espetáculo. Ter aquele ponto de vista especial e aquela vivência mágica foi uma experiência que nunca esqueci.

Passado aquele momento de espanto, conversei com o grupo de mediadores que nossos visitantes iriam muitas vezes ter experiências análogas. Nesses mo-mentos, respeitar o espanto, a comoção estética e conversar sobre ela poderia ser mais importante do que dar a informação, por exemplo, de quantos metros tem o palco.

Depois de quase um ano de implementação da equipe, encerramos essa parce-ria em setembro de .

Esses três exemplos de trabalho em instituições diferentes apresentam algu-mas questões particulares a respeito da formação de mediadores e suas ações. Procurei enfatizar que um trabalho educativo sério precisa de pesquisa e apro-fundamento contínuos e que jovens mediadores não têm bagagem necessária para conduzirem sozinhos um partido educativo de uma exposição.

Page 19: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

36 3736 36 36 36 37373737

Folder educativo desenvolvido para a exposição O ser e o parecer, de Valérie Belin, Casa França-Brasil,

Rio de Janeiro, setembro a novembro de

Folder educativo desenvolvido para a exposição de Ivens Machado, Casa França-Brasil,

Rio de Janeiro, dezembro de a fevereiro de

Page 20: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

38 3938 38 38 38 39393939

Folder educativo desenvolvido para a exposição Lugar de refl exão, de Cristina Iglesias, Casa França-Brasil,

Rio de Janeiro, agosto a outubro de

Page 21: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

40 41

Page 22: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

434343434342 42

Parte considerável do público leigo considera a arte contemporânea algo de difí-cil compreensão. Espera da explicação verbal do crítico de arte, do curador ou do próprio artista o esclarecimento do sentido dessas obras, como se seus sig-nifi cados só pudessem ser apreendidos por meio da palavra escrita ou falada.

A crença absoluta no poder esclarecedor da palavra, quando se manifesta no campo da visualidade, cria frequentemente uma inversão: o público ao invés de procurar o signifi cado da obra nela própria (a partir do que vê), espera da palavra alheia do especialista uma explicação de seu sentido poético.

Em carta escrita em para Leo Ferrero (“Leonardo e os fi lósofos”), Paul Valéry problematiza a tensa relação entre arte e palavra: Não se pode resumir um poema como se resume ... um “universo”. Resumir uma tese é reter-lhe o es-sencial. Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte é perder-lhe o essencial. Vê-se o quanto essa circunstância (se se compreender seu alcance) torna ilusória a análise do esteta.

Fernando Cocchiarale

“Não se pode resumir um poema como se resume...

um ‘universo’”.

É frequentemente esperado que o discurso verbal seja a cha-

ve de comunicabilidade entre o expectador e a obra.

O mediador é solicitado a explicar o que é visto:

“o que isso signifi ca?” – é uma pergunta contumaz.

O mediador deve deixar claro para o visitante que a

palavra não pode substituir a experiência pessoal.

“Deixar que o público perceba que arte e palavra pertencem

a regimes de signifi cação diferenciados é fundamental”.

Este texto foi originalmente publicado no catálogo

da mostra “É hoje na arte contemporânea brasileira”,

Santander Cultural, Porto Alegre, 2006.

sobre a relação entre arte e palavra (o olhar e a explicação)

1 VALÉRY, Paul. Leonardo e os fi lósofos – carta a Leo Ferrero. Em Introdução ao método de Leonardo da Vinci. São Paulo: , .

Page 23: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

44 4544 44 44 44 45454545

Alexander Baumgarten (-), que usou pela primeira vez o termo esté-tica para designar a refl exão fi losófi ca sobre a arte; Gotthold Ehphram Lessing (-), autor de Laocoonte (), obra que teve grande infl uência no pensamento alemão da época e no romantismo; fi nalmente, Immanuel Kant (-), maior fi lósofo do século XVIII, autor da Crítica da faculdade de julgar, na qual investiga as possibilidades de fundamentar em bases objetivas o juízo estético.

As consequências teórico-práticas imediatas dos ideais iluministas na arte serão sua separação radical do artesanato; a diferenciação diametralmente oposta das funções do artista e do artesão; e aquela que supervalorizou os pra-zeres especiais, refi nados (arte), em detrimento dos prazeres comuns, propor-cionados pela vida cotidiana (artesanato), distinções conceituais e culturais até então impensáveis.

Segundo o historiador americano Larry Shiner, autor do livro A invenção da arte, uma história cultural, se tomarmos a tradição greco-romana veremos que:

A ideia de que os ideais e as práticas modernas são eternos e universais ou de que, pelo menos, remontam à Grécia antiga ou ao Renascimento é uma ilusão provocada em grande medida pela ambiguidade própria da palavra arte. A noção de arte deriva do latim ars e do grego techné, termos que se referem a qualquer habilidade humana, seja montar a cavalo, escrever versos, consertar sapatos, pintar vasos ou governar. Conforme os modos antigos de pensar, o oposto à arte humana não é o artesanato, mas a natureza. [ . . .] Não obstante, no século XVIII foi estabelecida uma distinção decisiva no conceito tradicio-nal de arte. Após signifi car durante dois mil anos toda atividade humana re-alizada com habilidade e graça, o conceito se decompôs na nova categoria de belas-artes (poesia, pintura, arquitetura e música), em oposição ao artesanato e às artes populares (fabricar sapatos, bordar, contar histórias, cantar canções populares).

O discurso verbal, no entanto, nem sempre funcionou como chave de igni-ção do sentido de uma obra de arte. Na Idade Média, período no qual a maio-ria da população era analfabeta, a arte religiosa ajudou, por meio de imagens e da ilustração de temas do Novo Testamento, a fi xar no imaginário dessa população a narrativa bíblica que não podia ler. A arte (imagem), então, ao contrário das expectativas da atualidade, substituía a palavra escrita.

Se para a compreensão histórica ou fi losófi ca da arte o discurso teórico é certamente indispensável, o mesmo não se pode dizer quando tratamos de obras específi cas. Tanto as explicações didáticas como os textos críticos, por complexos e sofi sticados que sejam, padecem de limitações crônicas. Não po-dem substituir a riqueza do contato direto com as obras reais, concretas. Tudo o que delas se possa dizer estará sempre aquém do sentido silencioso, am-bíguo e plural que as caracterizam. Ainda assim, desde o modernismo até a mais recente produção contemporânea, a arte nunca dependeu tanto de um acordo entre o que vemos e o que lemos (ouvimos) a seu respeito. A origem e o signifi cado dessa dependência histórica são não só conhecidos, como bem caracterizados.

Na segunda metade do século XVIII, o século das Luzes ou iluminista, a relação entre arte e palavra passa a ser indissociável. Nessa época surgem as primeiras disciplinas teóricas permanentes sobre a arte. Seus fundadores e principais representantes foram Johann Joachim Winckelmann (-), pensador alemão que lançou as bases da história da arte como disciplina in-dependente; Denis Diderot (-), editor da Encyclopédie que, graças às críticas que escreveu para os Salons da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, pode ser considerado um pioneiro da crítica de arte; e os alemães

2 O pensamento iluminista marcou a fi losofi a, as ciências, as artes e os ideais políticos da época, sobretudo na Alemanha, França e Inglaterra. Defendia a racionalidade crítica contra os dogmas religiosos, a liberdade e os direitos dos cidadãos. A independência humana decorreria da razão e do conhecimento aos quais todos teriam direito pela universalização do ensino secular

3 Principal propagadora dos ideais anticlericais, racionalistas e humanitários do Iluminismo, já que foi pen-sada como um instrumento de difusão do conhecimento entre as camadas da população tradicionalmente excluídas do reduzido grupo de intelectuais, cientistas e pensadores laicos ou do clero que concentravam todo o saber da época.

4 Terceira e última Crítica de Kant. Suas obras da maturidade são a Crítica da razão pura (), a Crítica da razão prática () e a Crítica da faculdade de julgar ().

5 Em SHINER, Larry. La invención de/ arte – una historia cultural. Barcelona: Paidós Ibérica S.A. , p. .

Page 24: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

46 4746 46 46 46 47474747

que pode reivindicar para si a autonomia não só em relação a essas atividades, como também em relação aos cânones da representação naturalista acadêmica.

A arte estética (produzida somente para a contemplação) introduziu uma dinâmica nunca antes observada na história. Do fi nal do século XVIII até a passagem das décadas de e do século XX, a arte tornou-se um campo de provas, lugar de inúmeros projetos e versões possibilitados em função de sua recém-conquistada independência.

Nos três últimos decênios do século XIX, em nome da investigação plástico formal, a produção artística abandona os grandes temas que marcaram tanto a arte clássica renascentista, quanto o romantismo e o neoclassicismo.

Do anonimato dos personagens de Courbet e Manet às naturezas-mortas de Cézanne, conteúdos esvaziados de transcendência temática tornaram-se apenas pretextos para a livre criação e para a invenção plástica. As obras tor-nam-se menos narrativas, menos literárias, menos verbais. Para suprir esse vá-cuo começam a surgir agentes intermediários (a crítica), cuja função seria a de mediar a incomunicabilidade crescente entre a produção artística e o grande público, explicando-a ou criticando-a por meio da palavra.

Outras transformações, sem dúvida, foram também essenciais para a con-solidação histórica da autonomia da arte: a substituição progressiva, ao longo do século XIX, do vínculo da encomenda (no qual o público-cliente relaciona-va-se diretamente com o artista contratado), pelo mercado de arte (que ajuda a separar o artista de seu público), justifi cava-se como adequação da arte ao universo especializado e ao mercado industrial. Mas abordá-los implicaria um desvio de rota do texto em curso.

Podemos supor que o sentido da arte estética pode ser encontrado de di-versas maneiras e pontos de vista entre dois regimes paralelos de signifi cação: o visível e o legível. Entretanto o artista moderno, em nome da autonomia da arte e da forma, desconsiderou frequentemente o papel do literário para a compreensão de sua obra, já que tinha aversão aos seus sentidos fi gurados e simbólicos. Quando muito (e para isso tanto os manifestos artísticos quanto a interpretação formalista da obra de arte foram decisivos para a instauração do texto modernista) aceitava a mediação textual desde que ela se restringisse a fazer falar a linguagem plástico-formal de suas obras.

Shiner, mostra-nos que o conceito de arte tal como o entendemos hoje em dia resultou dessa separação histórica. A arte estética (pensada como um pro-duto humano sem qualquer função utilitária, diverso do fazer ordinário e cuja existência justifi ca-se apenas por suas qualidades intrínsecas, estéticas, que nos permitem transcender a banalidade dos objetos comuns de nosso coti-diano) seria uma invenção europeia do século XVIII. Desde então passou a ser um campo específi co, cujo acesso pleno só poderia ser feito por meio da contemplação ou da refl exão estéticas.

Certo é que as ideias renovadoras dessas teorias da arte, impossíveis de se-rem concebidas anteriormente, só tiveram trânsito em função das transforma-ções que começaram a ocorrer, pouco a pouco, no interior da própria produção artística, cerca de três séculos antes, a partir do Renascimento (por exemplo, a consolidação do papel do autor e a proliferação dos estilos individuais como algo oposto ao caráter coletivo da autoria no artesanato). Se a produção artís-tica já não tivesse prenunciado e antecipado essas mudanças, muito difícil seria que elas surgissem primeiramente no campo teórico para, em seguida, serem postas em prática pelos artistas.

A separação de arte e artesanato (que é, em último caso, a separação de arte e vida) preparou o terreno para a conquista progressiva daquilo que se convencionou chamar autonomia da arte. Antes dessa separação, a arte era próxima da vida por diversas razões. Primeiramente pela predominância da função religiosa e política em detrimento da contemplação autônoma, estética. Além disso, como já vimos, até o século XVIII, os produtos utilitários (móveis, vasos, estribos, tecidos etc.), isto é, produtos pertencentes à vida diária, eram produzidos por artesãos, cujas atividades eram classifi cadas no mesmo grupo que as do pintor, escultor e músico, por exemplo.

Distinta de todas as outras formas de produção (ligadas à sobrevivência cotidiana), a arte que emerge do Iluminismo (lugar da contemplação e da transcendência) passa a ser designada no século XIX não mais como trabalho, mas, como criação: uma prática tão diferente das demais atividades produtivas

6 Quando no século XVIII a arte e o artesanato tornam-se não só conceitos como atividades opostas, a fi gura do artesão como trabalhador que produzia todos os bens utilitários de que nos servimos em nossa vida cotidiana estava com os dias contados. O surgimento das primeiras indústrias decretou a morte histórica do artesanato e o artesão será pouco a pouco substituído pelo proletário.

Page 25: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

48 4948 48 48 48 49494949

No campo da arte, a principal diferença entre o moderno e o contempo-râneo talvez esteja na crise da ideia de autonomia da arte gestada ao longo dos últimos anos. Se confrontarmos o caráter altamente especializado das vanguardas modernistas (especialização semelhante à de todas as atividades profi ssionais modernas, das liberais às tecnológicas, científi cas e industriais) com o começo da contemporaneidade, é visível como esta última transborda o campo específi co que a modernidade havia construído, em busca da reaproxi-mação e integração da arte com a própria vida.

Os artistas modernos estavam primeiramente interessados na pesquisa e invenção formais, nos elementos exclusivos das linguagens da arte (cor, luz, espaço, plano, volume, matéria, grafi smo). Daí a força adquirida pela arte abs-trata, ponto culminante do projeto de uma arte autônoma. Mas na passagem dos anos para os esses valores dão lugar a uma brusca reorientação que marca os primórdios da arte contemporânea.

Embora de modo renovado, os contemporâneos voltaram a se interessar por imagens (pop art, nouveau réalisme, otra fi guración, nova fi guração etc.), isto é, por meios favoráveis à tematização de questões políticas, identitárias, da sexu-alidade, do cotidiano. Voltaram-se, enfi m, para a produção de narrativas que só poderiam ser feitas fora do campo especializado no qual se concentraram os modernistas desde o fi nal do século XIX. Os interesses dos contemporâne-os foram sendo reorientados pouco a pouco e nos últimos anos migraram da pesquisa formal autônoma para o conteúdo, da arte para a vida (o Grupo Fluxus e as poéticas pós-neoconcretas de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, por exemplo).

Essa diferença de foco determinou uma mudança da atitude teórico-inte-lectual em relação à arte. Impedidos de produzir suas análises a partir da cla-reza classifi catória que a objetividade dos ismos modernistas e a generalidade universal dos conceitos então permitiam, curadores, historiadores e estetas contemporâneos buscam, hoje, sentidos específi cos e pontuais para situações singulares, fragmentárias já que fatalmente permeadas pela subjetividade tan-to dos artistas, quanto do público e até mesmo pela do próprio teórico.

A reaproximação da arte com a vida teve, portanto, como consequência a valorização do fragmento, de situações triviais, da esfera do vivido e da

Por outro lado, à medida que as vanguardas históricas do século XX radica-lizavam seu projeto de produzir uma arte pura (autônoma), teóricos, críticos e público, num polo oposto, reivindicavam a mediação do discurso para explicá-la.

Indissociável do projeto histórico de conquista da autonomia da arte, a ver-tiginosa sucessão dos ismos nas primeiras décadas do século XX obrigou os próprios artistas a explicarem o que propunham. O papel mediador dos ma-nifestos foi de tal sorte importante para a formação de uma nova sensibilidade e de novas teorias sobre a arte que é atualmente impossível estudarmos o perí-odo pioneiro das vanguardas históricas sem que lancemos mão da palavra de seus integrantes, fontes primárias de suas ideias artísticas.

O pós-guerra marcará a hegemonia da grande crítica de arte (Clemente Greenberg e Harold Rosenberg, Estados Unidos; Pierre Restany, França; Ro-mero Brest, Argentina; Mário Pedrosa, Brasil). Seu compromisso militante com setores das vanguardas a autorizou fazer a mediação entre as novas ideias e o público da época.

No entanto, apesar da permanência e do fortalecimento do capitalismo, sis-tema econômico que tornou possível o mundo moderno, são notáveis as trans-formações ocorridas mundialmente não só no comportamento e na rotina co-tidiana, como também no âmbito político, tecnológico e na produção cultural, a partir da segunda metade do século passado. Se a vida moderna nasceu com a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, o mundo contemporâneo começou a ser esboçado com a crise ético-política e estética causada pela Se-gunda Grande Guerra (-) e se afi rma a partir dos anos , com o desenvolvimento vertiginoso das tecnologias eletrônicas da informação.

Essas mudanças podem ser, ao menos em parte, creditadas ao novo papel so-cial conquistado pelo jovem no pós-guerra. Antes voltado para a perpetuação dos valores tradicionais da comunidade, o jovem passa agora a questioná-los seja porque esses valores não puderam evitar o genocídio provocado pela guer-ra, da qual foram as principais vítimas, seja por associá- los diretamente ao confl ito. Agentes sociais fundamentais das transformações comportamentais ocorridas tanto na vida intelectual, nos valores morais, na sexualidade, na po-lítica e na cultura, os jovens (e sua recém-inventada rebeldia) contribuíram decisivamente para o nascimento da vida contemporânea.

Page 26: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

50 5150 50 50 50 51515151

experiência. Ela contribuiu, também, para generalizar a apropriação de mate-riais, de objetos do circuito industrial do consumo e, fi nalmente, a utilização de espaços cotidianos como a cidade, suas instituições, a natureza, o corpo, o universo sonoro, o comportamento e o conceito, como suportes de situações artísticas, num inequívoco transbordamento dos meios convencionais como a pintura, o desenho e a escultura.

Essas transformações fazem com que no mundo contemporâneo a palavra e o discurso não possam mais designar ou classifi car a variedade da produção ar-tística com o rigor especializado das teorias formalistas modernas. Claro está que não mais podemos pensar a arte separada das questões mais candentes e das carências do mundo hoje.

No entanto, o esforço de reaproximação com a vida empreendido por al-gumas gerações de artistas contemporâneos não tornou a arte de nossos dias mais compreensível e comunicável do que aquela desenvolvida na era de sua autonomia. Ao contrário, a arte hoje parece ter ainda maior difi culdade de ser apreendida pelo público do que a produção moderna, e a demanda por explicações parece ter aumentado consideravelmente, basta que consideremos a positiva proliferação dos setores de educação das instituições culturais e mu-seus em escala mundial.

Muitos podem ser os motivos dessa incomunicabilidade. Talvez o principal deles decorra do fato que as obras e intervenções dos artistas sejam tão pareci-das com a vida que o público não mais as reconheça como artísticas (estéticas). Certamente, porém, a arte atual possui muitos sentidos, ainda que diversos daqueles esperados por uma sensibilidade fundada em valores que não mais correspondem à nova realidade.

A busca por explicações que fi xem sentidos unívocos, fáceis de transmitir, seguramente em nada contribui para a compreensão do público a respeito da complexa rede de signifi cações da arte e do mundo atuais. Não nos faltam cri-térios verbais, mas autoconfi ança para navegarmos nas teias que diariamente enredam nossa fragmentada subjetividade. Deixar que o público perceba que arte e palavra pertencem a regimes de signifi cação diferenciados é fundamen-tal, uma vez que têm sido tão entrecruzadas nos dois últimos séculos que nos habituamos a tomar a segunda como extensão natural da primeira.

Uma curadoria deve procurar preservar a especifi cidade da experiência visual sem reduzi-la ansiosamente (como querem muitos) à mera explicação. Isso não quer dizer que arte e palavra não possam vir juntas num mesmo empreen-dimento, nem que mediadores preparados não possam interagir com o público, mas devemos ter sempre em mente e passar para o público que uma mostra de arte não pode explicitar (ou ilustrar) discursos verbais, nem estes podem tampouco substituí-la. Nada mais perigoso, dirigista e autoritário que o dida-tismo a qualquer preço.

Page 27: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

52 5353535353

O coiote sai à noite para caçar, para abater as ovelhas do rebanho. Seu passeio deli-tuoso ocorre sob o brilho secreto da lua. Um ritual violento, mas de beleza plástica rara. Quando a morte é limpa, quando o canino trinca com precisão a garganta da vítima derramando o mínimo de sangue pelo canto da mandíbula, o crime ganha signifi cado, crucialidade, e logo abre-se espetáculo no sacrifício. Mas o predador não é bem-sucedido todas as vezes, e mais de uma vítima tomba até a manhã des-cer. Mata-se por alimento, mata-se por insurreição, não por crueldade. Portanto, no dia seguinte, o pastor não amaldiçoa a besta por seu gestos. Executa sereno a inspeção: conta os corpos, trata feridas, remenda a cerca por onde a fera invadiu. Também aproveita para separar carne para si, para colher lã e couro.

É importante sabermos que quem detém as chaves do cativeiro do coiote é o próprio pastor.

Em , os cineastas Werner Herzog e Dmitry Vasyukov viajaram para o co-ração da Sibéria com a intenção de acompanhar os preparativos para o inverno do punhado de caçadores que habitam a vila de Bakhtia. Não há estradas ou estações de trem. Chegar até a comunidade de pouco mais de habitantes só é possível de helicóptero. Barco apenas durante os meses de verão. O resultado é o documentário Happy people – a year in the taiga, um fi lme tocante sobre a bravura humana em meio à inclemência selvagem. O vilarejo parece parado no tempo. Assim como os métodos de espreita e captura empregados pelos caçado-res. Rifl es, serras elétricas e snowmobiles são um dos poucos aparatos modernos admitidos. Espólios do regime, quando a maior parte foi enviada na década de

seis patas

Cadu

52 52 52 52 52

Como o pastor e o coiote, também o papel do mediador é

procurar “equilibrar o que é apreendido pela racionalidade

com aquilo que apenas o faro retém, a fi m de desenvolver

uma espreita sofi sticada, rica, inundada de tantos odores a

ponto de torná-la incerta novamente”.

É nesse equilíbrio instável, nessa espreita novamente incerta,

que pode acontecer um processo de aprendizagem.

Page 28: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

54 5554 54 54 54 55555555

para a região com a intenção de “caçar para o Estado”. O fi m do socialismo pouco alterou suas rotinas, pois logo no primeiro ano o contato com o governo foi perdido e assim permanece até hoje.

Apesar da aparente agressividade da estação, o inverno inaugura a princi-pal temporada de caça, cujos preparativos tomam o restante do ano. Cada membro possui, para explorar, uma área de algumas centenas de quilômetros quadrados divididas ao longo do rio que corta a região. Afastam-se da vila e passam os meses na fl oresta em cabanas. Aves, mamíferos, peixes, qualquer manifestação de vida tem inestimável valor para esses homens. Suas ferramen-tas são armadilhas, varas de pescar, armas de fogo, machados e alguns cães.

“Não se é um caçador sem um cão”, afi rma um deles. É impressionante como há paz no olhar desses homens. Autossufi cientes,

contam apenas com suas habilidades e seu código de conduta disciplinar para sobreviver. Como sugere o título do fi lme, apesar da aridez do ambiente, são pessoas felizes. Em cada testemunho dado durante a película, não há um si-nal de revolta, inconformismo. A dureza do cotidiano impressiona a nós ci-tadinos; para esse seleto grupo, isto é apenas vida. Vida junto da paisagem selvagem, que para se manter exige dedicação, força física e tenacidade. Não parecem necessitar além daquilo que já têm. Tal simplicidade reverbera os ver-sos cantarolados por Henry D. � oreau enquanto cortava madeira para sua cabana em meados de :

Os homens tanto conquistaram;Vejam! Até asas tomaram – Artes, ciências,Mil exigências.E apenas do sopro do ventoO corpo tem conhecimento.

Esse convívio secular entre morte e nascimento, surgimento e desapareci-mento, relembra-me Perseu, caçador anterior, que ao tocar as águas do mar com a cabeça da Medusa, que tudo transformava em pedra maciça, provocou o

nascimento de Pégaso, o cavalo alado fl uido como o vento, e a precipitação dos corais, que enfeitam a cabeça das musas. Como uma criatura tão veloz e extraordinária, e adornos dignos dos cachos das semideusas, puderam nascer do sangue da Górgona? Porque de certa maneira essa é a dicotomia da vida. Quando houver pouca mobilidade, abuso de cristalização, é preciso olhar in-diretamente para o problema e extirpá-lo, devolvendo assim à vida o espaço para o nascimento do novo. O pastor sabe disso, por isso mantém o coiote próximo. Ele representa o lado “sombra” da arena tauromáquica, representa a espontaneidade inconsequente da primeira vez. O pastor batizou seu compa-nheiro de Caim.

Esse aprendizado, essa coreografi a entre os dois, iniciou-se ainda na juven-tude, quando prevalece o ímpeto de lançar-se à vivência de situações de gozo e punição, cujo objetivo maior é repetir, retornar à desobediência e endurecer a carne com os golpes do castigo. Não há somente inconsequência aí, ambos saíam em corridas na tentativa de saber do que eram feitos, perseguindo re-sistência, resignação, e para acostumarem-se com a solidão e perplexidade de irmãos e irmãs. Vivências em que vestiam seu Prometeu particular e iniciaram o pagamento do tributo por aquele que os infl ou de calor, inquietação, astú-cia e tolice. Pergunto-me se eram atraídos para o mito motivados apenas por ânsia de conhecimento. Buscavam mesmo saber mais que pais e mestres ou eram movidos pela nostalgia da contravenção, do questionamento da autori-dade? Por todas essas razões creio. Há generosidade e solidariedade em seus gestos, mas também o desejo de manter acesa a fogueira da inquisição infantil, da desobediência. Brasas em que foram tantas vezes lançados, mas que hoje aprenderam a andar sobre. Chamemos isso de forja.

Ao assistir a esses rituais fi ca mais fácil entender por que imitamos os movi-mentos, sons e gemidos selvagens. São tentativas de retorno a estados naturais de paixão ainda não racionalizados, que visam ao aumento do grau de repre-sentação do jogo erótico da criação e, quem sabe, de sua intensidade. Realiza-mos essas cerimônias para sair de nós mesmos, para obter algum tipo de con-ciliação ou equilíbrio entre as forças que nos habitam. Observar a Natureza é perceber que ela se encontra em contínuo devir, em simbiose desarmônica, em dilaceração, e não há nada que indique que o mesmo não se aplique a nós. 1 THOREAU, H.D. Walden – a vida nos bosques. Sã o Paulo: Global, , p. .

Page 29: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

56 5756 56 56 56 57575757

O caçador da taiga e o pastor do rebanho sabem que é necessário assumir os devires animais sem medo. Precisamos deles para abordar o mundo ins-tintivamente, tolerando manobras excêntricas, posturas nômades e a relação direta com materiais, substâncias e energias que atuam de modo subliminar e muitas vezes violento ao nosso redor. Devemos equilibrar o que é apreendido pela racionalidade com aquilo que apenas o faro retém, a fi m de desenvolver uma espreita sofi sticada, rica, inundada de tantos odores a ponto de torná-la incerta novamente. Aceitando nossa condição de espreitadores reconhecemos que não estamos sozinhos, que partilhamos, que coabitamos ao lado de outros animais com quem devemos gerar zonas de interseções. Nossa vigia é para proporcionar encontros, aproximar o pensamento do não pensamento, consti-tuir e abandonar territórios, não somente predar.

A fi gura do pastor é o lado “sol” da arena. Ele representa o protetor, aquele que evita caprichos. É a avaliação crítica sobre o desvario inaugural da experi-ência, aquele que verifi ca se o gesto é capaz de consequência construtiva após abertura agressiva. Ele nos faz lembrar que somos bestas tenras, desejosas de dominar as forças do mundo através da fagulha iluminadora da inteligência, mas também pela associação de desobediências sagazes. Anarquia com disci-plina é o que de melhor se espera de um autor.

Daí advém o poder da arte. Seu auxílio colossal a quem precisa fazê-la. Pois sintetiza a possibilidade do convívio entre contrários. A união de duas imagens aparentemente tão antagônicas, que no criador surgem apaziguadas. A arte nos ajuda a aceitar as desfi gurações da impermanência, ao mesmo tempo em que oferece a oportunidade de se erigir um mundo onde podemos permanecer e não perecer, imprimindo a ele igualmente caos e ordem. Uma tentativa de ajuste, uma afi nação que, como consequência, povoa o mundo de objetos, conceitos e sentidos. Há uma lenda judaica que diz que Deus escreveu as leis na tábua sagrada utilizando dois fogos, um branco e um negro. Com o fogo negro foram escritas as palavras, com o fogo branco foram escritos os espaços entre as letras, que possibilitaram a leitura das palavras. Durante sete mil anos o homem lerá as palavras escritas em preto, mas nos próximos sete mil anos o homem aprenderá a ler os espaços em branco. De um lado o mundo inteligível, aparente; do outro uma linguagem amorfa e latente, aguardando

por manipulação. Devemos borrar esses limites, exercer superposições, con-junções, trocas entre dados da racionalidade e da imaginabilidade. A criação nasce dessa natureza de atritos.

Mas é crucial ter em mente que essas resultantes são de arestas imprecisas, não se ajustam diretamente umas às outras, mas ainda assim complementam-se. E nunca oferecerão uma explicação, uma fi guração satisfatória. Pois nas-cem em nossas mitologias pessoais, em planos de imanência particulares, pe-los cortes do acaso. Ao alinhavarmos essas lacunas, aproximando as fendas, estabelecemos um relevo interior de topografi a complexa. Um elevado platô brocado de sonho, misticismo e convívio sem reprovação com a infância. Se confi armos e mantivermos esses movimentos continuamente, seremos capazes de atravessar as linhas da dor e da doçura, da vida e da morte, da razão e da loucura em relativa paz, com o mínimo de controle, uma vez que sempre exis-tirá a possibilidade do suspiro. Somos apenas mortais, aprendendo o instin-tivo ato da contração e da expansão, do mover e do repousar sob o silencioso brilho peregrino da quadratura. O coiote batizou seu companheiro de Abel.

Cadu, Amanhecer no ano do cavalo

Page 30: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

58 595959595958 58 58 58 58

Hoje produzimos conhecimento sobre arte, construímos escolas de arte e nos organizamos em grupos, nas mais diversas comunidades deste país. Todo esse processo signifi ca que existe um conhecimento acumulado, uma série de prá-ticas, conceitos e visões acerca de determinadas produções artísticas que cui-damos em transmitir para os alunos. Ao mesmo tempo, é curioso notar que aquilo que mais interessa na arte é exatamente o que de incerteza, de estranha-mento, ela pode nos oferecer. No campo da arte, isso não só é natural como é o seu próprio motor e é um equívoco não encará-la desse modo.

Como professor, o tempo todo procuro transmitir ao aluno que a formula-ção que estou fazendo ou utilizando é uma formulação entre outras e não “A formulação”. É preciso deixar aberto o espaço para uma outra leitura, a leitura que eu não faço. É preciso esclarecer também que toda a produção artística, assim como em qualquer conhecimento e objeto produzido pelo homem, está

a arte e sua relação com o espaço público

Agnaldo Farias

Neste texto, Agnaldo deixa bem clara a importância da

informação para se ter novas dimensões de uma obra. Como

ele diz, “É preciso, portanto, sempre deixar espaço para a

outra leitura, aquela leitura que eu não possuo”.

Cabe ao mediador, sem esquecer que seu papel, como diz

Paulo Freire, não é “transferir conhecimento”, procurar

conhecer muito bem o que está exposto para fornecer ao

visitante a informação que for pertinente.

O texto a seguir reúne trechos da palestra que Agnaldo Farias

proferiu na abertura do V Encontro Técnico dos Polos da Rede

Arte na Escola, na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em

28 de abril de 1997. Logo na introdução, ele enfatizou que,

antes de ser crítico de arte, é professor. “Na verdade, meu

trabalho como crítico e curador é um desdobramento da

minha atividade como professor”, sublinhou, relatando um

pouco da experiência de quem já lecionou filosofia no segundo

grau e vem participando ativamente do dia a dia do curso de

arquitetura da USP/São Carlos, desde sua criação, em 1985.

Page 31: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

60 6160 60 60 60 61616161

enredada na história. É necessário que o aluno saiba, ou ao menos seja cons-ciente, das genealogias dos objetos estudados, aí incluído a genealogia dos mo-dos de abordá-los. É preciso que ele considere os campos de referências de que faz uso, pois quando comentamos, julgamos e falamos, fazemos isso de um lugar teórico. Isso, dito de uma outra maneira, nada mais é do que aqueles dois versos do Fernando Pessoa: “O que em mim sente está pensando” e “Não sou eu quem descrevo, eu sou a tela e oculta mão colore alguém em mim”. Essas ideias são fundamentais e nossos alunos devem tê-las em mente.

Isto posto, quero relatar uma experiência para chegar à questão do espaço público e sua relação com a arte contemporânea. Na Documenta de Kassel, em , havia uma obra de Anish Kapoor – Descendo para o limbo – que estava chamando muito a atenção do público. Naquela altura, Kapoor era um artista de anos que ganhara a condição de estrela, afi nal, dois anos antes havia sido o representante ofi cial da Grã-Bretanha na Bienal de Veneza, onde ganhou o Prêmio Duemila e, no ano seguinte, o prestigioso Prêmio Turner. Kapoor, diga-se de passagem, praticamente estreou internacionalmente na Bienal Internacional de São Paulo de , ponto de partida de sua fulgurante carreira.

A obra estava na praça em frente ao Fridericianum, o museu de Kassel, cen-tro da Documenta, e as pessoas, no dia da abertura da exposição, enfrenta-vam uma fi la de uma hora e meia de duração sob o sol a pino do alto verão germânico. O trabalho de Kapoor consistia num grande cubo branco, com as dimensões de × × metros, com uma porta em uma de suas faces. Quase na minha vez, testemunhei a saída indignada de um sujeito bradando: “Uma hora e meia para ver um tapete redondo no chão!” Pensei naquele momento, entre o riso sem graça dos que estavam junto de mim: mais um que a arte contemporânea perde...

A arte contemporânea, ou a mídia – imprensa e publicidade ligada à arte contemporânea –, convida as pessoas, e as obras, em razão de sua complexi-dade, terminam por rechaçá-las. Os visitantes das exposições são induzidos a pensar que passearão por espaços de entretenimento, pensam que estabelece-rão uma relação amigável, coisa que a esmagadora maioria da arte contempo-rânea não é e não pretende ser, antes o contrário.

Finalmente, entrei com um grupo de a pessoas naquele espaço tomado por uma penumbra muito intensa. A discretíssima iluminação escorria late-ralmente, efeito de uma fímbria linear e quadrilátera de luz que vazava pelo intervalo entre o teto e as paredes. A luz era de fato muito pouca, sobretudo para quem, como nós, estivesse ofuscado pelo sol intenso. Dentro da obra experimentava-se a conhecida e curiosa sensação produzida pela escuridão, de fi car como que tateando visualmente o ambiente. O olhar, todos sabemos, não encontra escoras, não esbarra em limites, o que nos leva a concluir que o espa-ço é também uma invenção da luz. De fato, o espaço vai variando na medida em que o corpo vai como que se arremessando para fora de si, conhecendo sua extensão do espaço. Nesse processo o olho é quem abre alas.

Havia uma pessoa, um monitor, dentro da obra cuidando para que o grupo se organizasse em círculo, em torno de algo que, em pouco tempo veríamos, estava no centro. Aos nossos olhos gradativamente se acostumando, a sensação era que havia algo mais escuro do que a própria escuridão do ambiente, algo circular: o tal tapete redondo denunciado pelo visitante decepcionado. É bem verdade que, num primeiro momento, esse tapete não funcionava, ou melhor, não se assemelhava exatamente a um tapete, um plano sobre o chão. Uma zona, uma região, ou um objeto, como parecia ser o caso, mais escuro que a escuridão do ambiente, parece pulsar. Lembro-me de Joseph Conrad, em seu livro � e heart of darkness (Coração das trevas), quando escreve “as sombras se moviam dentro da noite”. As sombras eram os estivadores negros. Uma linda e precisa descrição de como se comportam as coisas escuras no interior da escuridão.

Voltando à obra de Kapoor, olhávamos para o chão com certa cautela por-que não sabíamos o que era aquilo, paulatinamente conhecíamos o espaço e nos localizávamos. Então, aquilo indiscernível que estava no chão, pulsando lentamente como uma anêmona. À medida que o olhar foi se acostumando, a forma, o objeto, não se sabia ao certo o que era, foi se acomodando como... um tapete.

Antes de prosseguir convém assinalar que Kapoor costumava empregar pig-mentos opacos em pó, obtendo na superfície aplicada uma qualidade peculiar, uma textura aveludada muito diversa da superfície espelhada, refl exiva, em que o olho desliza. Ao proceder desse modo, o artista propiciava uma espécie

Page 32: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

62 6362 62 62 62 63636363

de visualidade táctil, diversa da ligeireza que habitualmente associamos à visão. Pois bem, tão logo a forma enigmática foi assumindo a forma e a caracterís-

tica própria a um tapete, nós fomos nos acomodando, nos aproximando, até quase o ponto de nos debruçarmos sobre ele. Quando então irrompeu um úl-timo e surpreendente detalhe: não se tratava de um tapete, mas de um buraco circular cavado no chão. Um buraco cuja profundidade era inapreensível, a não ser se se tivesse acesso ao projeto da obra.

Saí dali completamente incomodado. Um incomodo que durou alguns anos e que só se acomodou depois que ele se traduziu na longa introdução da mi-nha tese de doutorado. Sob meu ponto de vista, essa é a prova de um bom trabalho de arte. Arte serve para incomodar. Mesmo quando nos enleva, isto é, leva-nos com ela, é porque nos apresenta de um outro modo aquilo que já nos era familiar, demonstrando sua infi nitude. Por seu intermédio, revemos, reconhecemos, remontamos e reiventamos o que já existia para nós. Posto que se trata de uma relação, rever, reconhecer, remontar e reiventar algo signifi ca rever, reconhecer, remontar e reiventar a nós mesmos.

Nós, que somos da área de artes, muitas vezes fi camos apreensivos com nossa insegurança diante de certos trabalhos artísticos, de nossa profunda ig-norância diante deles. O pior é que, como somos identifi cados como aqueles que sabem, sempre corremos o risco de alguém nos perguntar: “O que isso quer dizer?” Não pergunte isso para mim, porque eu não sei rigorosamente o que responder na hora. Ainda mais quando se está num acontecimento da envergadura de uma Documenta de Kassel ou Bienal de São Paulo, verdadei-ros hipermercados de problemas. Você tem problemas colocados em cada esquina, cada um deles uma equação de quatro incógnitas.

Voltando a obra de Kapoor, convém agora recuperarmos algumas de suas referências. Um bom ponto de partida é a noção de escultura para Auguste Rodin, noção que ele tensiona e transforma radicalmente, razão pela qual a crítica norte-americana, Rosalind Krauss, começa o seu livro – Passages in modern sculpture –, analisando sua obra. Mesmo uma rápida leitura sobre a obra de Rodin, mais precisamente sua estatuária, leva-nos a concluir o modo peculiar como ele trabalha, o modo como compreende a dimensão dupla da escultura, um volume material que, em função de seu compromisso simbó-

lico, de seu vínculo com a ideia de monumento, atua como suporte de uma mensagem; sua presença evoca, lembra, ao mesmo tempo em que engrandece, uma passagem histórica, mítica, um fato, um homem. Essa defi nição, lembre-mos, repousa já na etimologia da palavra. Pois bem, em uma obra como Os burgueses de Calais (), Rodin desloca ou soma ao respeito ao tema a mate-rialidade crispada da obra, a diversidade de pontos de vista, a quase ausência de pedestal, dispositivo que, como a moldura para a pintura, garantiria sua colocação num espaço dierenciado.

Não é o caso de se estender nesse assunto, mas sabe-se que grande parte da produção moderna fundava-se justamente na arte chamando a atenção para a importância do suporte, elementos como corpo, matéria, cor, gesto, vontade de formalização e discurso etc. Grande parte da arte do século XX signifi cou um rebaixamento do caráter metafórico da arte, seu objetivo histórico em re-meter a algo fora dela, um tema, uma narrativa. Sob o ponto de vista da escul-tura, temos, após Rodin, o extraordinário legado de Medardo Rosso e Cons-tantin Brancusi. No caso de Brancusi, cabe sublinhar a inteligência como ele incorporou a base, o pedestal da escultura, tornando ele mesmo um elemento constitutivo, em alguns casos convertendo-se em seu protagonista. O exemplo mais grandioso produzido por Brancusi sobre o problema do pedestal é sua Coluna sem fi m, uma escultura/pedestal com metros de altura, realizada entre e , em sua cidade natal, na Romênia.

Em seu Descendo para o limbo, Anish Kapoor procede de modo análogo a Brancusi. Como ele faz uma escultura que é só pedestal. Por fora, é claro. Aquilo que estava posicionado na praça era um pedestal, enorme, superlativo, é verdade que vazio, sem nada por cima, mas ainda assim um pedestal. De saída, essa confi guração proposta pelo artista leva a pensarmos a posição da arte dentro da sociedade/cidade contemporânea e, porque se trata de termos interligados, em como a sociedade/cidade contemporânea, ao menos em sua dimensão pública, não mais se ocupa em simbolizar nada, não tem valores a repassar a seus cidadãos. Kapoor oferece um pedestal que está vazio, não simboliza nada, não signifi ca nada. Por outro lado, sua obra não se oferece apenas como objeto ostensivamente visível, com o qual você tem uma relação de exterioridade. O artista nos coloca dentro da obra, submergimos dentro

Page 33: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

64 6564 64 64 64 65656565

dela. E, como se não bastasse, dentro há um buraco no chão, um buraco que não se consegue saber até onde vai. Tratava-se, portanto, do negativo de um monumento. Antes dele, o topo do pedestal era um limbo ocupado por sím-bolos, sua proposta em Kassel foi inversa, um convite para que o espectador descesse em direção ao limbo.

Uma obra de arte como essa não é algo que se oferece por inteiro e menos ainda de modo imediato, mas antes uma potência. Produz em nós sensações que, na qualidade de bons enigmas, não são apreendidas pelos sentidos que, por si só, não dão conta do problema. Só tive acesso às dimensões da obra de Kapoor comprando o catálogo da exposição que trazia uma vista em corte do trabalho, uma perspectiva axonométrica indicando que o buraco era uma es-fera perfeita, como uma laranja cortada no topo. E quem garante que o artista tenha se dado ao trabalho de efetivamente construir uma esfera? A dúvida quanto a isso não impede o premeditado descompasso entre a construção fí-sica da obra e o seu projeto, prova de que a obra existia além da sua dimensão concreta, mas também num outro plano, na qualidade de desenho impresso nas páginas do catálogo.

Um outro trabalho artístico que eu gostaria de comentar é o personagem Auggie Wren, criado por Paul Auster e interpretado por Harvey Keitel no fi lme Cortina de fumaça (), dirigido por Wayne Wang. Um detalhe nesse fi lme me interessou em particular: uma relação da arte com o cotidiano da cidade, diametralmente oposta a de Kapoor e sua obra, troca a possibilidade de ser um objeto intensamente visível para, em lugar disso, criar uma fresta no meio da praça principal de Kassel, o coração da cidade, um lugar de recolhi-mento, isolamento, escuridão e silêncio, uma recusa ao espetáculo perpétuo e diverso que toda cidade oferece. O caminho proposto por Paul Auster e Wayne Wang é outro, e Auggie Wren nosso guia. Auggie é gerente de uma tabacaria situada numa esquina do bairro do Brooklyn, em Nova York. Um de seus fregueses constantes é um escritor em crise criativa, Paul Benjamin, per-sonifi cado por William Hurt. Em um determinado momento, Paul aproxima--se de Auggie, jantam, conversam, vão estabelecendo laços de amizade até que uma noite, na casa do Auggie, este resolve mostrar o singular e despretencioso trabalho fotográfi co que há anos, sem falhar um dia sequer, vem realizando.

O método de Auggie é singelo e o resultado aparentemente monótono: todo o dia, rigorosamente às horas da manhã, ele coloca o tripé e a câmera fotográfi -ca no mesmo lugar, na mesma posição, e bate uma foto. resultado dessa obra em processo interminável vem sendo acondicionado em uma imensa coleção de álbuns fotográfi cos, todos eles idênticos, um dos quais Auggie, escolhendo ao acaso o álbum relativo ao ano de , oferece a Paul para que ele possa apreciar seu trabalho. O escritor fi ca folheando as páginas do espesso livro de fotografi as, seis fotos em cada página, frente e verso, detendo-se aqui e ali, manifestando de quando em quando seu interesse, virando, virando, virando as páginas..., quando é suavemente repreendido por um Auggie que lhe sugere ir mais devagar, pois ele não estaria olhando com atenção. Paul argumenta que, afi nal, é tudo repetido, tudo mais ou menos a mesma coisa. Auggie in-siste: “Está certo. Mais de mil fotos do mesmo lugar na mesma hora. Não é tudo igual, olhe com atenção.” Paul desacelera, prossegue numa cadência mais lenta, deixando-se levar por cada uma das imagens, notando-lhes as nuances, as modifi cações das luzes no correr dos dias, o que dizer dos meses. A tela do cinema estampa as imagens das pessoas, sublinhadas pelos comentários, quando então, surpresa!, Paul, o escritor em crise, depara-se com a imagem de sua própria mulher, a mulher que ele amava e que morreu. Ele aponta para o perfi l de Ellen e, começando a chorar, é ternamente consolado pelo amigo.

A passagem é muito tocante, muito forte a surpresa de Paul mas o que me interessa é destacar o projeto fotográfi co de Auggie Wren, que ele chama de projeto de uma vida, e consiste em atentar para os detalhes, para o universo infi ndável e variado dos acontecimentos cotidianos. Gostaria de traçar um pa-ralelo entre a atenção de Auggie para com a cidade e as derivas Situacionistas, aquele grupo de artistas que gostavam de visitar cidades que não conheciam, para então, armados de máquinas e gravadores e tudo mais que pudessem usar na captação desse território imenso e inabarcável que é uma cidade, qualquer que seja ela. Eles encaravam a cidade como um corpo polimórfi co, onde a cada minuto, a cada segundo, acontece de tudo.

O problema, segundo Auggie e os Situacionistas é que, quando andamos em uma cidade, temos objetivos. Vamos de um ponto ao outro e não percebe-mos o que há no meio do caminho. Essa é a diferença da arte com relação ao

Page 34: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

66 6766 66 66 66 67676767

resto, assim como da dança para a caminhada. Você caminha com o objetivo de chegar a determinado ponto, enquanto que, na dança, é o corpo por ele só, com tudo o que pode oferecer. Há uma certa ociosidade por princípio. Gosto de citar o Millôr Fernandes que disse que o jogo de xadrez “é um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez”. É o livre pensar, o saber e o fazer desinteressados. É a capacidade de abstrair, de focar a atenção numa coisa que se resolve ali mesmo, despojado da razão pragmática de quem contempla o mundo com a intenção de extrair algo dele.

Num texto clássico de Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, Kublai Khan, o imperador mongol que tinha um império tão vasto que ele não conseguia percorrê-lo, nomeava embaixadores para atuarem como seus olhos. Eles visi-tavam as diversas cidades que compunham o império e voltavam para a corte para contar ao Kublai como elas eram. Marco Polo era o embaixador preferido de Kublai Khan porque as cidades que ele visitava eram as melhores, as mais surpreendentes. Simples coincidência ou resultado da alta qualidade narrativa do viajante italiano? Cabe, portanto, perguntar, quais cidades? As cidades que ele visitava ou as que ele inventava em suas narrativas maravilhosas? Seriam todas elas invenções ou cada cidade visitada era realmente espantosa ou ain-da cada cidade era simultaneamente visitada e inventada? Num determinado momento, talvez o ponto alto da narrativa, Kublai Khan manifesta sua dúvida acerca da honestidade de Marco Polo, desconfi a que ele sequer saísse da cor-te que, por ser imensa, garantiria seu anonimato. Indo além, afi rma que as cidades descritas por Marco Polo seriam uma mesma cidade, a única cidade que ele efetivamente conhecia: Veneza. A hipótese de Calvino procede; afi nal, quantas cidades cabem dentro de uma cidade?

Isso me lembra aquela poesia do Jorge Luis Borges em que ele, tentando des-crever Buenos Aires, conclui que sua cidade “é a outra rua, aquela que nunca pisei [...] o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem meu, que ignoramos e queremos.” Então são mesmo muitas as cidades que cabem dentro de uma mesma e única cidade. Essa é a hipótese de Kublai Khan, e a resposta de Mar-co Polo, isto é, a resposta de Calvino é extraordinária: “Mas você há de convir, ó poderoso Kublai, que uma coisa é a cidade e outra é o discurso que a descre-ve, mas entre ambas existe uma relação”. Quer dizer, o discurso que a descreve

não se confunde com o objeto, tem relação com o objeto, mas não é igual a ele. Nós vivemos nos esquecendo disso. A rigor, uma passagem como essa de Ítalo Calvino deve ser pensada dentro dos marcos da modernidade, pois é nela que se agudiza a consciência de que a arte é uma aventura de linguagem. Então é essa força que a palavra tem, ou que uma boa tela pode ter, ou que uma boa escultura pode ter. É disso que nós estamos falando, dessa capacidade que o homem tem de apresentar coisas novas, colocá-las diante de si e dos outros.

Atualmente leciono no curso de Arquitetura da USP de São Carlos e quase toda a informação que eu tenho é de segunda mão. Quase tudo é, no melhor dos casos, informação impressa. Essa situação enseja que muitos estrangeiros nos vejam como incapazes de criar, pois o que poderíamos fazer em termos de arte se os nossos museus são precários, se não dispomos de obras exemplares para contemplar e estudar. Segundo esse ponto de vista nossa produção artís-tica jamais terá importância. Importância em relação a que, cabe perguntar?

Quero chamar a atenção para o fato de que existem outras referências, ou-tras formas de se pensar a arte que não as defi nidas pelos cânones europeus, por exemplo, a infi nita e variada matéria que há no detalhe, como nos mostra o diretor e o roteirista do fi lme comentado, Wayne Wang e Paul Auster, res-pectivamente.

Uma das piores falsas questões que se colocou neste país diz respeito ao que é regional, nacional ou internacional. Toda a grande arte é regional, em última análise, porque de onde é que o artista vai falar, se não do seu próprio lugar? E o seu lugar pode ser Itirapina, desde que ele olhe para lá, porque Itirapina está no mundo. Também é preciso entender que aquilo que é inventado na Europa, ou na Índia, não pertence à Índia ou à Europa, pertence ao mundo, porque o nosso mundo é o universo.

O que importa é despertar o aluno para essa riqueza que o mundo tem e para a riqueza que pode ter a relação dele com o mundo. Nesse sentido, a cidade é o maior exercício que nós temos. Na cidade há uma proliferação de matérias. É uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva porque os espaços falam de nós e para nós.

Quero encerrar com uma passagem de Guimarães Rosa, da qual eu gosto muito. Miguilin é o inesquecível protagonista de Campo geral, uma novela

Page 35: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

68 6968 68 68 68

inteira muito sonora, auditiva. Ao fi nal, Miguilin está na estrada quando vêm dois homens a cavalo, um deles pergunta algumas coisas. E pergunta também por que o Miguilin aperta os olhos: “Você não é limpo de vista?” Miguilin não entendia. Daí o sujeito tira os óculos e coloca em Miguilin: “Miguilim olhou, nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferen-te [ . . .] os grãozinhos de areia a pele da terra [ . . .] aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo.” Esse homem que dá a visão a ele, esse homem “tudo podia”, ia levá-lo para morar na cidade. E ele, com sua cabecinha aturdida, agarrado em sua mãe, pergunta: “Mãe, é o mar?” E prossegue com a sentença da mais pura beleza: “Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?”

A arte talvez seja o último recurso contra a opacidade do mundo. E está rigo-rosamente nas mãos de quem trabalha com educação fazer com que as pessoas que estão se formando, especialmente as crianças, percebam a infi nidade de coisas que compõem esse mundo. Entendê-lo como um elenco de imagens gloriosas que a nossa expressão produziu é pouco. O mundo é mais do que isso. E mesmo que tenhamos à mão instrumentos e materiais precários, não importa. E mesmo dispondo de recursos de qualidade, não importa, devemos conjugar nossos esforços nas salas de aula com uma visita àquilo que é próxi-mo, o que está do lado de fora, fonte inesgotável para o trabalho dos sentidos e também da evocação, da imaginação, da nostalgia, da alegria, da memória. Quando qualquer um de vocês pedir a um aluno que ele olhe para o mundo, que escolha um fragmento de sua cidade, ele vai escolher e, ao fazer isso, estará se escolhendo, estará encontrando-se no mundo.

6969696969

Page 36: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

70 717171717170 70 70 70 70

Maria Tornaghi: Anna Bella, em um texto publicado no livro Gravura brasileira hoje – depoimentos você que diz que “a arte não é apenas uma questão de intuição e vocação. Existe a grande história da criação por trás, e é preciso conhecer este pensamento, senão a pessoa se torna, no mínimo, ingênua, ao pensar que está criando algo de muito original e no entanto algumas das questões já foram ante-riormente reveladas por artistas conhecidos”. Você poderia falar mais sobre isso?

Anna Bella Geiger: Na minha trajetória profi ssional, e talvez por estar também ligada ao ensino da arte há tanto tempo, creio que não basta você ter talento ou, quando jovem, possa ter sentido alguma vocação, como foi no meu começo.

Na arte não se trata apenas de intuição ou vocação. A formação de um artista passa obrigatoriamente por um conhecimento seu do que existiu e vem existin-do até agora na Grande História da Criação. Porém, não de forma enciclopédica, mas “iniciaticamente”. É um processo complexo mesmo.

A sua informação visual precisará ir se sofi sticando e alimentando uma espé-cie de arquivo de memória pessoal. Então, no seu processo de elaboração e de criação não caberá mais espaço para clichés ou ideias apropriadas das anterior-mente originais em suas épocas.

Porém a limitação individual de cada um produz resultados diversos, como em Leonardo da Vinci, Goya, Van Gogh, Picasso, Winslow Homer e uns outros tantos.  

Conversa de anna Bella Geiger e maria tornaghi (fevereiro de )

Uma visita transforma mediador e visitante em aprendizes

de arte. É importante que eles se deem conta que existe uma

Grande História da Criação alicerçando o que estão vendo.

“Porém, não de forma enciclopédica, mas “iniciaticamente”.

É um processo complexo mesmo. A sua informação visual

precisará ir se sofi sticando e alimentando uma espécie de

arquivo pessoal de memória”.

Aprender leva tempo.1 FERREIRA, Heloisa Pires (coord.). Gravura brasileira hoje: depoimentos, vol. III. Rio de Janeiro: Oficina de Gravura-Sesc/Tijuca, .

Page 37: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

72 737373737372 72 72 72 72

É comum ouvirmos de expoentes da nossa mídia cultural – jornalistas, cronis-tas, cineastas, músicos, comentaristas e até escritores – interjeições como: “A arte é beleza!”, “Não precisamos da arte para nos lembrar que o mundo é hor-rível” (Arnaldo Jabor e Nelson Motta, respectivamente, no programa Manhat-tan Connection, GNT, dia de abril), “Instalações? Só conheço as elétricas e hidráulicas” ou até “A arte acabou!” (A. Jabor no mesmo programa). O incrível nos comentários desses cavaleiros do apocalipse é a demonstração de um total desconhecimento, por vezes transformado em ira, das questões que motivam a produção de arte contemporânea.

A letargia com que grande parte da inteligência brasileira se relaciona com os avanços da pesquisa artística, ignorando ou até retaliando a produção dos próprios artistas brasileiros contemporâneos, demonstra ainda uma arraigada li-gação com uma tradição elitista e seu perfume aristocrático. Conhecer e apreciar um trabalho de arte é bem mais que o exercício do gosto pessoal. Arte não tem de agradar aos sentidos, nem enfeitar ambientes, nem fl orear discursos. Arte é um modo de pensamento e de conhecimento de uma civilização.

A obra de arte contemporânea não se limita mais ao quadro ou à escultura que podem ser posicionados como adereços de decoração; ela agora incorpora o espectador e o espaço real tornando-os elementos da mesma experiência estética. Também não há mais os meios específi cos (pintura, escultura, desenho, gravura ou música, texto, vídeo e cinema) como parâmetros excludentes para avaliações de qualidade: a obra de arte é uma totalidade de proposições, e é a estratégia do artista que vai selecionar os meios e direcionar sua realização.

“Isso é arte?”, “Isso é horrível!” – reage o visitante ao que

não está familiarizado.

São comentários semelhantes aos citados por Coimbra

neste texto em que pondera que “A pertinência ou não

de um trabalho de arte não se mede isoladamente, nem

à primeira vista; ele faz parte de um todo que exige certo

cuidado para ser conhecido”.

Uma função do mediador é levar o visitante inicialmente

refratário, respeitando seu indiscutível gosto, a compreender

e se aprofundar nas questões expostas pela obra.

Gosto não se discute

Eduardo Coimbra

Page 38: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

74 7574 74 74 74

Portanto, dizemos que o que importa é compreender e se aprofundar nas questões expostas pela obra de um artista. É necessário identifi car as possi-bilidades de sua linguagem e os desdobramentos de seu processo de trabalho. A pertinência ou não de um trabalho de arte não se mede isoladamente, nem à primeira vista; ele faz parte de um todo que exige certo cuidado para ser conheci-do. No embate com a obra de arte, várias polêmicas ganham corpo e confrontos se tornam necessários, uma coisa, porém, é certa: gosto não se discute.

7575757575

Page 39: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

76 777777777776 76 76 76 76

É longo o caminho dos escritos de artistas em suas diversas modalidades e épo-cas históricas. Dos tratados teóricos aos textos atuais, sobretudo a partir da dé-cada de , a grande diferença é a refl exão teórica tornar-se interdependente à gênese da obra, não como pré-texto como os dos artistas modernos, mas solidá-rios aos questionamentos da arte. De Alberti, que terminava seu livro Da pintu-ra, em , afi rmando falar na qualidade de pintor e ter a satisfação “de pensar que fomos os primeiros a conquistar a glória de ousar escrever sobre esta arte tão sutil e tão nobre”, aos de Robert Smithson ou de Hélio Oiticica ou aos mais recentes, são textos fundamentais tanto para compreendermos as suas poéticas quanto o contexto em que operam e o estado da arte. Seus princípios derivam do mesmo processo imaginário que dá origem aos trabalhos.

Na arte contemporânea tem sido crescente a intelectualização dos artistas, por vezes, universitária ou por diferentes outros meios, capacitando-os a sus-tentar suas opções poéticas. Ou como assinalava Duchamp, em texto de ,

“L’artiste doit-il aller à l’université?”, no qual enfatizava a importância de o artista se informar e se manter ao corrente do soi-disant “progresso material cotidiano”, pois o artista hoje “é livre e pode impor a própria estética”.

Na tradicional ideia do silêncio dos artistas, as obras falando por elas mes-mas, vê-se um trânsito, como assinala Ricardo Basbaum, em diferentes ações de que se ocupam, entre elas, críticos, curadores e professores etc. O contexto é também de uma profunda crise da crítica de arte com a perda dos seus meios

Textos de artistas são, como enfatiza Glória, “fundamentais

tanto para compreendermos as suas poéticas quanto o contexto

em que operam e o estado da arte. Seus princípios derivam do

mesmo processo imaginário que dá origem aos trabalhos.”

Conhecendo a palavra do artista, o mediador exerce melhor

sua função de aproximar o público do universo de sua obra .

Glória Ferreira

escritos de artistas

1 DUCHAMP, Marcel. “L’Artiste doit-il aller à l’université?”. In: Duchamp du signe. Paris: Flammarion, .

Page 40: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

78 7978 78 78 78

de comunicação dirigidos ao grande público, voltada, hoje, sobretudo, para os textos de catálogo – dependentes das conversas com os próprios artistas. Os confl itos entre os críticos e os artistas datam desde o surgimento da crítica no século XVII, quando a arte passa a ser cada vez mais pública com a instauração dos Salões. Confl itos que têm se voltado, especialmente, para os critérios e para a avaliação dos curadores.

A pluralidade e a importância desses escritos, em múltiplas publicações, assi-nalam um deslocamento na defi nição, intenção ou direção da arte. Representam não somente a tomada da palavra como também um contexto para o trabalho, o que é incontornável em qualquer aproximação com a produção artística e sua análise crítica.

7979797979

Page 41: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

80 818181818180 80 80 80 80

“[ . . .] Os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma verdade direta-mente, mas mostram uma visão aberta. Eu nunca me conformei com um lado único das coisas [ . . .].”

Leonilson ( Fortaleza – São Paulo) em entrevista a Lisette Lagnado. (LAGNADO, Lisette. Leonilson – São tantas as verdades. São Paulo: DBA, ,

p. -).

Partir do ponto de vista que toda a obra de arte é aberta

a múltiplos olhares e percepções é um pressuposto

fundamental para a prática da mediação. Assim, o perceber

e o refl etir de cada um promovem, na mediação, trocas,

discussões e construção de conhecimento sobre a exposição.

Leonilson

Page 42: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

82 838383838382 82 82 82 82

“Com a obra de Rosângela Rennó, fi camos em suspensão.

Criamos sensações latentes de espanto”.

Esse desejável estado de suspensão e essa sensação latente

de espanto são elementos preciosos se queremos uma

medição que em lugar de domesticar nos faça “sair de um

conforto”, nos coloque em dúvida, que provoque o desejo de

aprender, de conhecer mais.

Em abril de , a artista Rosângela Rennó ocupou uma das salas da Casa Da-ros, instituição de arte com sede em Zurique, destinada à “criação e manutenção” de uma coleção de arte contemporânea da América Latina.1 A exposição de-nominou-se “Projeto Educandaros -”. Aproveitando-se dos arquivos da instituição, tanto quanto atuando em trabalho de campo com seus antigos ocupantes, Rennó se apropriou de mobiliários, objetos, arquivos que tanto nos situam em relação à trajetória da ocupação institucional – já que a Casa Daros ocupa, no bairro de Botafogo, um casarão neoclássico do século XIX que fora, em tempos pretéritos, colégio e educandário para moças – quanto nos estimula a percepção afetiva das estudantes que foram educadas naqueles colégios. O pro-jeto de Rosângela Rennó teve longa duração, pois desde a obra para a construção do espaço cultural, de a , a artista solicitou o acompanhamento das reformas pelo registro fotográfi co de Tiago Barros.

Rosângela Rennó nos oferecera, com esse trabalho, a possibilidade de recu-armos e avançarmos no tempo, funcionando como uma espécie de mediadora entre momentos distintos. Criou, como artista, o que muitos mediadores de exposição fazem com o público dos museus e das instituições pelo mundo, uma contextualização histórica dos objetos e das imagens apresentados. Rennó, sem assumir um tom explicativo, indicara, em diagramas e afi nidades espaciais, uma leitura da “história linear”, entre aspas, da instituição. Em outra medida, também

Linha do tempo: quando os predicados nos escapam

Marcelo Campos

1 Disponível em www.casadaros.net.

Page 43: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

84 8584 84 84 84 85858585

percebemos a função curatorial ser substituída, pois a própria condição artística dispensara a distinção entre objetos e ocupação espacial. O desenho do projeto era, por si, a obra a ser apresentada que incluía relatos, artefatos, fotografi as, etc.

A linha do tempo de Rennó se inicia em , ano de inauguração de uma casa para “órfãs e desvalidas” na ladeira da Misericórdia, Centro da Cidade do Rio de Janeiro, passando, depois, pelos bairros de Laranjeiras e São Cristóvão. Em , D. Pedro II institui um decreto que determina a fundação do Reco-lhimento de Santa � ereza que, depois, a pedido das próprias alunas, em , passa a se chamar educandário Santa Teresa. No entremeio, , o educandá-rio passa a dividir o espaço com um colégio misto, de nome Anglo-Americano, onde conviviam, lado a lado, as regras instituídas para as moças do educandário e uma escola livre.

Ali, na exposição, víamos passar, a partir das coletas de Rennó, o colonialis-mo de uma instituição de ensino destinada às moças. Ensinando-as a serem moças, numa repetição exaustiva do gênero: bordar, pintar, rezar, confessar-se. Sabemos, como nos informa Judith Butler, que o “gênero não é um fato”, mas, sim, atos encenados em “fi cções punitivas”, muitas vezes.2 O educandário Santa Teresa servira, então, para sublinhar esses propósitos. A estratigrafi a do prédio, os porões, o apagamento de algumas memórias, o avivamento de outras tan-tas colocam Rennó na tarefa de mediar essa complexa história. A mediação é a capacidade de trânsito entre estratos sociais, grupos culturais e religiosos. A exposição de Rennó na Casa Daros nos faz refl etir sobre essa condição. Como se posiciona um artista diante da memória alheia? Como transformar uma história tão aderente em obra de arte?

A artista se situa entre os papéis de curadora, arquivista, documentarista, me-diadora. Mas não cumpre bem nenhum deles, já que ativa o lugar da arte. Se pensarmos em documentos, faltam-nos informações, registros, há lacunas entre as datas. Ao tentarmos imaginá-la arquivando, ela corta mobiliários, escolhe uma única página de um diário, lacra todas as demais. Não há como ler o que está escrito ou mesmo averiguar a real importância da escolha por um único

exemplar. Como mediadora, quais conceitos, quais predicados serão elencados para entendermos a linha do tempo, o esgarçado de uma história? E aqui, Rennó confi rma taxativamente seu papel como artista ao afi rmar, “meu trabalho não é panfl etário, nunca fecho uma história, nem escolho um dos lados como conclu-são”. 3 A arte, aqui, reitera suas ambivalências.

Ao mesmo tempo, colocamo-nos como leitores de um folhetim. Jesús Martin--Barbero nos informa sobre a importância dos folhetins para a compreensão de uma literatura que dialogava com um novo meio de comunicação: os jornais. Rennó nos atiça a curiosidade jornalística, folhetinesca. Queremos ler os diários, vemos as moças se exercitando, perscrutamos segredos e desejos. O folhetim traz para primeiro plano o que antes se destinava ao “rodapé” das páginas, “onde iam parar as variedades, as críticas literárias, as resenhas teatrais, junto com anúncios e receitas culinárias”. 4 Um lugar que coadunava o mundo feminino (receitas) e a arte (teatro e literatura). Ali, os grandes personagens dão lugar a histórias comezinhas. E Rennó, no Projeto Educandaros, age, justamente, mes-clando memórias de mulheres comuns, anônimas, com refl exões mais amplas.

Mas estamos num espaço museológico, destinado a obras de arte. André Mal-raux nos explicita a condição do museu como local de guardar, arquivar e como escola, ensino. Ao mesmo tempo, no museu, o que antes era objeto de cultura, civilização passa a ganhar status de arte, um retrato se torna a pintura de Ve-lásquez. Mas a arte contemporânea cria outros desafi os para o museu. Hans Belting nos informa que “o museu no qual é conduzida a discussão em torno da compreensão de si dos artistas e dos especialistas em arte é debatido hoje como instituição até mesmo na opinião pública”. 5 A arte contemporânea estimulou, nas instituições de exposição, a encenação como tarefa e o museu tornou-se “lu-gar de fantasia” e “lugar de formação”. 6

2 BUTLER, Judith. Actos performativos e constituição de gêneros. In: MACEDO, Ana Gabriela e

RAYNER, Francesca. Gênero, cultura visual e performance: antologia critica. Minho: Húmus, , p. .

3 Declaração coletada em conversa com a artista na visita à exposição, em de março de .

4 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janei-

ro: UFRJ, , p. .

5 BELTING, Hans. O fi m da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, ,

p. .

Idem, p. .

Page 44: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

86 8786 86 86 86 87878787

Com a obra de Rosângela Rennó, fi camos em suspensão. Criamos sensações latentes de espanto: Que interessante ver a história deste prédio! Belas inscri-ções nas paredes! Havia capelas nestas salas! As meninas-alunas saíam apenas uma vez por ano! Eram obrigadas a se confessar! As relações interétnicas e reli-giosas não eram respeitadas em sua pluralidade! Uma escola eminentemente de brancos!

Pronto, saímos de um conforto, uma possível explicação histórica, uma media-ção, um cruzamento entre mundos e estamos em dúvida, sem saber, ao certo, a que lado atribuir valores, conceitos sociais e políticos. Vale a pena exibir um pas-sado colonialista, escravocrata? As instituições de ensino, como nos alertara Jack Goody, são manobras de domesticação.7 A alfabetização serviu para domesticar o “pensamento selvagem”. Instituíram-se regras morais, sexuais, criaram-se do-cilidades nos corpos, nos termos de Foucault, e não se estimularam a escolha e a convivência. De outro modo, acessar o lado douto da vida é poder ter armas para lutar por supostas condições de igualdade, entre homens e mulheres, negros e brancos. E a arte faz o que com isso?

O trabalho de Rosângela Rennó, entre tantos outros, nos faz perceber que vivemos, hoje, um grande desafi o aos meandros da mediação cultural nos espa-ços de arte contemporânea. Mais além da mediação de exposições, daquela que estimula os visitantes a conhecer, enveredar um pouco mais pela poética dos artistas, hoje, os próprios trabalhos de arte habitam esse interregno entre a arte, a “experiência de lugar em que se encontram as peças corpóreas” e a “experiência de tempo que elas derivam e na qual as peças são comunicadas”. 8 Chegamos ao museu e o trabalho pressupõe a participação da comunidade e do espectador, abrimos e fechamos objetos, deitamos em redes, somos convidados a desenhar, vemos grupos de crianças carentes em ofi cinas fotográfi cas, tomamos banho de piscina, participamos de abaixo-assinados, partilhamos segredos. E tudo se ins-creve como arte. Há, sem dúvida, uma troca intensa de funções e esferas, entre formação e teatralidade, fi cções e ativismos, inclusão social e estratégias de dis-tinção, denúncias e memórias afetivas. Artistas como Rosângela Rennó podem,

então, orquestrar essas ambivalências, mas não resolvê-las, já que a arte continua como instância suspensa, incorporal, habitando documentos que podem, a qual-quer instante, ser repatriados por quem os utilizará como patrimônio privado ou público ou, simplesmente, os guardará em seus arquivos pessoais.

7 GOODY, Jack. Domesticação do pensamento selvagem, Lisboa: Presença, .

8 BELTING, Hans. O fi m da história da arte. Op. cit., p. .

Page 45: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

88 898989898988 88 88 88 88

Conhecer arte pode ser muito prazeroso, mas nada mais

longe desse prazer do que “gritos de participantes de obras

interativas, crianças correndo e outras peripécias não

coibidas”. Certamente essas situações “não colaboram para o

desenvolvimento de um conhecimento artístico”.

No momento em que a “arte fi ca sendo a hora do recreio,

vista como uma atividade de puro entretenimento dissociada

de seus aspectos cognitivos mais interessantes”, em que é

frequentemente confundida com entretenimento, o texto de

Paulo Sergio Duarte é fundamental.

Que coisa é essa?Desculpem-me se não abordo detalhes da arte contemporânea e me preocupo aqui mais com o pano de fundo histórico que permitiu o advento disso que chamamos arte contemporânea. Os regimes de visibilidade e nossas percep-ções vêm sendo alterados. Muitos jovens estão longe de experimentar aquilo a que chamamos de “moderno”. Uma pesquisa na Inglaterra indagou quan-tos jovens de até anos tinham colocado um CD no player no último ano. A maioria nunca tinha tido essa experiência. Só conheciam músicas baixadas da internet em MP. São muitas as transformações bem além do comporta-mento. Quem só conhece música nos padrões MP tem uma percepção au-ditiva alterada, perde uma experiência espacial e de profundidade da música, além de muitos harmônicos, dependendo de seu repertório. � eodor Adorno,

metamorfoses da vida e da visibilidade no mundo contemporâneo

Paulo Sergio Duarte

Este artigo foi publicado originalmente em Artes visuais no

Brasil: registros de um ciclo de palestras. Organização: Sílvia

Borges. Niterói: Universidade Livre de Niterói / Niterói Livros,

2012. Agradeço a Sílvia Borges e a Cláudio Valério Teixeira que

o provocaram. Agora segue numa versão ampliada, para uma

publicação da Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro – Parque

Lage, a convite de Maria Tornaghi. Meu amigo José Fernando

Guaranys, a quem o artigo foi originalmente dedicado, faleceu em

16 de fevereiro de 2014. Esta reedição ampliada vai à sua memória.

Page 46: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

90 9190 90 90 90 91919191

um dos primeiros teóricos da indústria cultural, e muito reticente quanto a seus progressos, reconheceu o progresso da alta-fi delidade e da estereofonia, em , na possibilidade de restituir, no ambiente doméstico, condições de escuta próximas da experiência da audição ao vivo. Com os fones de ouvido muito precários e o MP toda essa experiência se perde. Imaginem gerações cujo consumo ótico foi inteiramente dominado pelos tubos de raios catódicos da televisão, agora pelas telas de cristal líquido, plasma e LED. Seu regime de percepção ótico já estava alterado quando se altera o regime de percepção auditivo.

Estamos diante de um novo olhar, conformado pela velocidade e interativi-dade dos videogames e que certamente vai gerar obras de arte para as quais não estamos preparados para perceber seus conteúdos poéticos. Mas não devemos subestimar a presença da herança moderna no mundo contemporâneo.

São muitas as transformações que ocorreram desde que, em meados da década de , começou a ser constatada uma reviravolta no campo das ar-tes visuais que indicaria, se não uma ruptura, ao menos uma disjunção com o campo da grande arte do século XX: aquele que tinha se constituído de Cézanne e o cubismo até o expressionismo abstrato norte-americano. Eram dados claros do fi m de uma era sem que necessariamente pudessem ser detec-tadas com clareza as características do novo território em formação.

Da falta de uma imagem bem focada sobre a nova situação, derivam suas designações: “pós-modernidade”, “hipermodernidade”, “contemporaneidade” e por aí vai. “Pós-modernidade” e “hipermodernidade” nomeiam o presente em relação ao passado recente que já se sabe razoavelmente o que foi: a moder-nidade. Contemporaneidade tampouco vai designar as características de uma época ou de um momento histórico: contemporaneidade sempre existiu de Lascaux e Altamira até hoje. Na passagem do século XIII ao XIV, Giotto foi contemporâneo de Dante e vice-versa. Todas as épocas são contemporâneas de si mesmas, não importam as diferenças e os paradoxos que isso implique. No Brasil o período dos anos - foi chamado de “contemporaneidade do não coetâneo” ou, em termos redundantes, “a contemporaneidade do não con-temporâneo” para explicar a presença de relações de produção pré-capitalistas ao lado de relações de capitalismo avançado quando, se essas contradições

efetivamente existissem, diziam respeito à complexidade de qualquer contem-poraneidade. Contemporaneidade deveria designar um tempo presente, qual-quer presente.

O que sabemos, a partir dessas designações, é que estamos procurando qual é esse presente em que nos encontramos. Temos que tentar um desenho desse novo campo antes de entrarmos nos meandros das artes visuais. Que coisa é essa? Por enquanto ainda não temos uma palavra mais precisa para nomear essa coisa.

O conhecimento de uma cultura sem progressoNós, que estamos preocupados com o estudo da arte, temos mais um fator de adversidade a enfrentar: a égide do progresso da ciência e da técnica que domina nosso tempo. Essa noção de progresso, absolutamente legítima para o campo do conhecimento científi co e tecnológico, dominou o senso comum desde o século XIX até os dias de hoje de tal forma que se tornou o próprio sinônimo de conhecimento. Ela se infi ltrou tão fortemente em todos os me-andros da vida contemporânea que, para usar os termos de Jurgen Habermas, se tornou uma ideologia. Esqueceu-se de formas de conhecimento arcaicas, como o mágico e o religioso, aquelas que só se entregam pela adesão na crença, na fé, nos dogmas para ter acesso à revelação, como, sobretudo, foi descartada a possibilidade da existência de um conhecimento especifi camente artístico. Um conhecimento sempre construído a posteriori, sem hipóteses, a partir da experiência sensível e intelectual da obra.

Giulio Carlo Argan, um dos maiores historiadores da arte do século XX, no seu único texto puramente teórico apresenta com clareza as características da cultura artística tão diferentes daquelas da cultura científi ca e tecnológica. Veja como Argan apresenta o problema do progresso em arte:

A partir da pesquisa de uma metodologia espe cial da historiografi a artísti-ca que, partindo da escola vienense do sé culo passado, se desenvolveu até Panofsky e mais além, foi fi cando cada vez mais claro que a história da arte é, sim, história da cultura, mas de uma cultura sui generis, estruturada e diri-gida pelo empenho operativo de um trabalho a ser executado de maneira a

Page 47: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

92 9392 92 92 92 93939393

ter valor de exemplar; e que essa cultura, pela pró pria fi na lidade imanente do valor a ser alcançado através desse trabalho, é refratária àquela linearidade ascendente do pro gresso que, na política, é invocada para justifi car, ou pelo me nos, para tornar tolerável a autori tária presença de um guia ou de um chefe. Viu-se também que essa cultura sem progresso, pela qual toda experi-ência passada permanecia disponível e aproveitável no presente da obra que se faz, qualifi cava-se in dependente do esquematismo lógico, da identidade fortemente limitativa do real-racio nal hegeliano. Sua composição heterogê-nea, em que vinham à tona como ainda vitais tantos motivos que a cultura ofi cial dava por superados e irrecuperáveis, e seus procedimentos destituídos de consequencialidade lógica revelavam uma profundidade, uma extensão, uma riqueza des conhecidas da cultura mais diretamente rela cionada com as es truturas ferrenhas da autoridade. Era uma cultura igualmente aberta às antecipações e aos retornos, às divagações e às liga ções a distância, cheia de sedimentos e de canalizações secre tas, como a que Foucault defi niu recente-mente com o termo epistéme.

Um dos mais instigantes pensadores atuais, o fi lósofo italiano Giorgio Agamben, realiza, a meu ver, do modo mais bem-sucedido possível esse esfor-ço de designar o que é o contemporâneo. Aqui, como em Argan, desaparece o domínio do progresso. Na passagem a seguir, privilegia o campo estético e, particularmente, o da história da literatura e da arte como capazes de perceber o presente:

Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moder-no há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e pré-histórico. Assim, o mundo antigo no seu fi m se volta, para se reencontrar, aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse

sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamen-te a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é preci-samente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo signifi ca, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.

O desenho do novo capitalismo: suas forças e vetoresLidamos com uma “cultura sem progresso”. Temos de procurar as transforma-ções no mundo para saber com o que estamos lidando, o que é essa coisa cha-mada de mundo contemporâneo. Temos muitas indicações no mundo para essas transformações que ocorrem há pelo menos sete décadas – desde o se-gundo pós-guerra – e que modifi cam a natureza do capitalismo gerado pela Revolução Industrial no século XIX. Os valores não podem mais permanecer os mesmos daqueles herdados do humanismo iluminista do século XVIII de-pois da experiência do Holocausto e das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Antes havia a crença no progresso da ciência e da técnica como um benefício para toda a humanidade. Depois desses eventos históricos inéditos, o terror e o medo passam, também, a ser parte do resultado do progresso da ciência e da técnica. A esse abalo ético nos fundamentos do progresso, nas últimas quatro décadas acrescenta-se a descoberta científi ca das consequências ambientais de um modelo de sociedade de consumo, fundado no desenvolvimento adotado de um ponto de vista puramente econômico, que afeta agora não apenas par-celas mais pobres da população humana, mas a vida no planeta.

Os efeitos do progresso da ciência e da técnica em intensa interação com os interesses políticos, ou em termos marxistas não mais utilizados, o desenvolvi-

1 ARGAN, Giulio Carlo. “A história da arte”. In: A história da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, , p. . (Os grifos são meus P.S.D.).

2 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: O que é o contemporâneo e outros Ensaios. Tradução

de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos-Unochapecó, , p. .

Page 48: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

94 9594 94 94 94 95959595

mento das forças produtivas, não cessam. A Guerra Fria advinda da nova con-juntura política do segundo pós-guerra impulsiona em ambos os lados fortes investimentos em ciência e tecnologia; primeiro para a corrida armamentista, logo depois, sem excluir a primeira, para a corrida espacial. As consequências desses investimentos são muito diferentes em cada um dos lados. Enquanto no capitalismo de Estado da União Soviética e de seus dependentes esses in-vestimentos permanecem restritos ao campo militar, no capitalismo de mer-cado dos Estados Unidos e do Ocidente esses investimentos permitem uma grande sinergia positiva com o mercado civil. Tão logo entra no mercado uma conquista que não se justifi que como segredo militar, as pesquisas indepen-dentes civis igualmente se abastecem desses conhecimentos e conquistas. Os resultados fi cam claros – alimentados pelos mesmos sonhos de consumo, de um lado vê-se uma sociedade afl uente com uso intensivo do transporte indivi-dual; do outro, formam-se fi las para compras dos produtos mais elementares como prosaicos eletrodomésticos.

Sob essa superfície visível opera-se uma das maiores mudanças desses novos tempos. O progresso da ciência e da técnica dirigido para a corrida armamen-tista e para a corrida espacial permitiu um formidável avanço nas pesquisas de novos materiais mais resistentes e mais leves e, sobretudo, da indústria ele-troeletrônica. Os avanços da ciência da computação no Ocidente rapidamente se civilizam, saem da órbita militar e entram no mercado, enquanto no Leste socialista permanecem fechados nos limites dos segredos de Estado. As con-quistas ocidentais, a partir da década de , promovem a mais formidável transferência da produção de valor do trabalho manual convencional – aquele cuja exploração havia provocado uma das obras importantes do século XIX: O capital de Karl Marx – para o trabalho intelectual. Cresce enormemente o valor agregado de trabalho intelectual nos produtos da nova indústria. A pró-pria esfera da produção é revolucionada com a introdução da automação robo-tizada. Mesmo numa fábrica de caminhões e automóveis, numa indústria de produtos convencionais, parte signifi cativa da mão de obra mais bem remune-rada não são trabalhadores manuais, mas operadores de máquinas alfanuméri-cas – os robôs. Na indústria eletroeletrônica, a fração do trabalho intelectual é muito superior à do trabalho convencional e na indústria de software, com a

possibilidade da transmissão do produto a distância pelas redes, chega quase à totalidade do valor do produto. O horizonte político do século XIX e da pri-meira metade do século XX que se orientava do ponto de vista do proletariado urbano como a classe social, segundo Marx, capaz de emancipar a humanida-de no futuro para uma sociedade sem classes, simplesmente desaparece em seu peso econômico e político no novo capitalismo. Se aplicarmos as fórmulas de Marx para medir a composição orgânica do capital (a razão entre o capital constante – investimentos na planta industrial, em equipamentos e matéria--prima – e o capital variável – a força de trabalho), nunca teríamos no século XIX uma taxa de exploração tão alta quanto a que se exerce hoje sobre PhDs altamente remunerados na indústria de software. Nesse novo quadro, o hori-zonte da revolução proletária se dissipou. O “proletário” mais explorado do novo capitalismo vive muito bem, tem elevada qualidade de vida e, com muita frequência, trabalha em casa enviando pela rede, onde quer que esteja – em Seattle, Mumbai, Kyoto ou Cidade do Cabo – o resultado de seu trabalho. A experiência do trabalho coletivo se elevou a um grau de abstração nunca antes conhecido. Estamos muito distantes da situação da classe operária na Inglaterra descrita por Engels em .

Os avanços da engenharia genética apontam para um novo horizonte, não somente de melhor produtividade na produção de alimentos, mas de possi-bilidade de intervenções radicais nos animais superiores. A ovelha que já faz parte da história encontra na arte um paradigma mais radical. Eduardo Kac, artista brasileiro, professor e pesquisador do Art Institute of Chicago – uma das mais proeminentes instituições de arte dos Estados Unidos – projetou e realizou, em , com a colaboração de um cientista de Paris – um coelho transgênico. Coelhos transgênicos já existiam desde . Mas esses coelhos anteriores tinham uma alteração em algumas regiões de seus tecidos. O proje-to de Kac foi de alterar as células do coelho “miscigenando-o” com os genes de uma alga fosforescente. Alba, o coelho projetado por Kac, não tem interesse científi co maior. Para a ciência só interessam coelhos alterados em certas regi-ões específi cas. Mas Alba é um evento estético-tecnológico da maior enverga-dura. Não se trata mais de discutir as relações entre arte & vida, mas de fazer a arte interferir da forma mais radical na vida. Rompidos os problemas éticos

Page 49: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

96 9796 96 96 96 97979797

e morais que ainda impedem a interferência em seres humanos, podemos ima-ginar o que o futuro próximo nos reserva, não somente em matéria de proezas científi cas como estéticas.

A eliminação aparente da distânciaO desenvolvimento das redes de comunicação por satélites propiciou uma ex-periência da televisão inédita. Ver um jogo da Copa do Mundo em no momento mesmo em que ele acontecia era formidável. O clímax desse pro-cesso ocorreu na Primeira Guerra do Golfo, em -, quando o mundo assistiu em tempo real às batalhas e aos mísseis cruzando os céus de Bagdá. Na época da guerra do Vietnam, a imprensa e a imagem distribuída haviam jogado um papel decisivo em contraposição aos relatórios ofi ciais do Pentágo-no, mas agora era diferente. Não era no dia seguinte, ou dois dias depois: o espectador assistia à guerra em casa da mesma forma que assistia ao anúncio de um novo sabão em pó.

Mas a possibilidade de uma televisão instantânea, onipresente, era pouca. Os avanços da ciência da computação permitiram o advento da internet: uma rede civil, ainda hoje não submetida a maiores controles nos países democráti-cos, capaz de interligar centenas de milhões de computadores simultaneamen-te. Em foi estabelecido o protocolo de comunicação. De novo não deve-mos subestimar o papel dos interesses militares na abertura desse caminho civil. Uma rede de satélites militares é capaz, em certas condições, de identifi -car a marca e o tipo de um determinado veículo num grande engarrafamento. Os mísseis teleguiados têm nos dispositivos em sua ogiva o mapa em GPS do percurso que têm que ser percorrido até o alvo; e seu sistema é atualizado em tempo real pela rede de satélites capaz de captar qualquer novo obstáculo que apareça na sua rota e que não esteja no sistema instalado na ogiva. Essas conquistas tecnológicas, preservadas as exigências de segredo de Estado, são fi ltradas e repassadas nas sociedades chamadas “abertas” ao mercado. Por isso, podemos ter acesso hoje a serviços como Google Earth e Google Maps e ver na tela do monitor a situação do trânsito num cruzamento de uma cidade a milhares de quilômetros de onde estamos. Não quero dizer que não haja inteligência e invenção nas empresas civis de novas tecnologias. Há, e muita.

Mas é preciso nunca esquecer o formidável investimento estatal realizado para fi ns militares que tornaram viáveis numerosas pesquisas em departamentos universitários e mesmo o desenvolvimento de sistemas específi cos, tanto algo-rítmicos quanto heurísticos, que mais tarde se tornam acessíveis ao mercado. Um bom modo de pensar politicamente o desenvolvimento das novas tecnolo-gias é pensar em duas culturas: a militar e a civil. A exploração de pesquisas de ciência pura ou ciência de base na cultura civil não pode cessar para a cultura militar, porque mais cedo ou mais tarde elas se tornarão aplicadas; e da mesma forma pensa o mercado. Mas logo identifi cado um interesse militar, esse será objeto de investigações reservadas, fechadas e o capital investido pelo Estado nesses nichos não se compara ao que é submetido somente a interesses do mercado. Essas pesquisas têm de ter seu prazo de retorno de investimento severamente calculado sob pena do fracasso: a falência. O Estado pode correr riscos que o empreendedor privado não pode correr.

A formidável expansão da internet a partir da década de propicia o sur-gimento de uma nova camada cultural que se superpõe à imediatamente an-terior: à da computação isolada ou restrita a redes de menor extensão como a Bitnet. Com a possibilidade da computação ponto a ponto em escala planetá-ria, por meio dos provedores de serviços, rapidamente o fax se torna obsoleto. O sistema de mensagens eletrônicas (e-mail), permitindo anexar documentos digitalizados, torna ordinário e praticamente sem uso o aparelho integrado ao telefone que cuspia papel fac-símiles. Temos agora o fenômeno das redes sociais, o seguidor de mensagens curtas, e tudo isso e muito mais pode estar acessível no bolso por meio da telefonia celular. Uma pesquisa que necessitava uma bolsa para uma viagem ao exterior agora pode ser realizada, em grande parte, numa estação de trabalho em casa.

Todos esses aspectos civis e democratizantes, entretanto, não encontram concorrência com a possibilidade de transferência instantânea de enormes volumes de capital. A ideia do virtual transmigra para o coração do sistema. Sem enfrentar as barreiras nacionais, as transferências instantâneas de capi-tal de Hong Kong a Londres, de São Paulo a Frankfurt, de Tóquio a Nova York, permitem um fl uxo fi nanceiro inédito na história do capitalismo. É a chamada fi nanceirização do capitalismo, que se desprega do capitalismo real:

Page 50: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

98 9998 98 98 98 99999999

aquele que produz bens e serviços. O próprio conceito de capital se transfi gura do real para o virtual. Essa situação gera uma ideologia: o capital passa a ser uma fi cção, posto que virtual; por isso posso multiplicá-lo à revelia de uma correspondência real; o capital fi ctício, ou virtual, pode ser cinco, dez, vinte vezes maior que o capital real. O fl uxo dessa situação não submetida a nenhum controle ou regulação deu no que deu: a crise iniciada em setembro de . Mais que a circulação privada, a ideologia do capital virtual levou governos ao que se chama de irresponsabilidade fi scal: criaram benefícios e um suposto

“bem-estar” para suas populações sem sustentabilidade, ou como se dizia an-tigamente, sem lastro. De qualquer forma foi o capital privado que exacerbou essa possibilidade, a fi nanceirização do capitalismo inteiramente desvinculado da produção que produziu o capital esquizofrênico: um sistema econômico psicótico. Ou como diria o genial Hitchcock: um caso de dupla personalidade.

Com a internet tudo isso está ao alcance de todos. Nada está distante. Tanto aplicar dinheiro na bolsa de Hong Kong, como pesquisar um texto grego de Aristóteles. Tudo está próximo. Não seria o momento de começar a pensar sobre a anulação de distâncias de coisas tão díspares: analisar valores de ações a milhares de quilômetros de distância e ao mesmo tempo estudar um tex-to de . anos atrás? Essa compressão que anula tempo e espaço não cria ideologia, ou seja, formas falsas de representação do mundo? Ou já se pensa, apressadamente, que estamos dotados de uma mente onde não cabe mais o falso e o verdadeiro? Não é por esse caminho que estamos indo quando não somos mais capazes de experimentar subjetivamente as distâncias no tempo e no espaço? Esse é um problema a ser refl etido para pensarmos que coisa é essa que estamos vivendo.

Este é o mundo no qual vive a arte contemporânea.

As peças íntimas das relações entre arte e mercado: o novo vestuário do meio de arteEm primeiro lugar, andando no compasso do mundo, cresceu muito a im-portância das leis do mercado no meio de arte. O meio artístico acompanha a mercantilização generalizada de todos os processos sociais, políticos e cul-turais. Mais do que isso, a interação entre mercado e instituições, particular-

mente os museus, no campo da arte contemporânea passou a ser mais direta, queimando muitas instâncias mediadoras antes existentes. Por exemplo: o planejamento de prioridades de aquisições para preencher lacunas de coleções, cuidadosamente traçadas por curadores-pesquisadores à luz da história, para posterior apresentação a mecenas e patrocinadores, hoje é privilégio de algu-mas raras instituições de alguns países avançados. Em boa parte dos casos, o crescimento dos acervos se dá pela intervenção direta de marchands e mecenas oferecendo obras de determinados artistas. A instituição fi ca exposta a essas investidas em face da retração dos fundos disponíveis capazes de dar autono-mia de escolha às equipes de curadores e pesquisadores.

Vou mais longe: instituições nos países mais ricos estão expostas às decisões de proprietários de coleções que cedem em comodato suas peças, as valorizam pela permanência num museu público; mais que isso: negociam com os artis-tas preços privilegiados pelo seu destino original e anos mais tarde as destinam ao mercado.

O raciocínio, no início dessa nova conjuntura, era “melhor isto do que nada”. À força da permanência dessa situação ao longo dos anos perde-se a memória de como as coisas se passavam antes da vigência da clara hegemonia das forças do mercado no campo da arte. Seria longa a lista de exemplos desse tipo de relação às vezes agressiva, às vezes promíscua, entre mercado e instituição no campo das artes visuais.

Sempre é bom lembrar que não são novas as relações entre arte e dinheiro, não são nenhuma novidade introduzida pelo capitalismo recente.

Em apresentação para o livro Arte & dinheiro eu lembrava:

Baxandall pôde observar com pertinência as relações arte/dinheiro. Logo no primeiro capítulo de seu estudo O olhar renascente: pintura e experiên-cia social na Itália da Renascença, afi rma: “A relação da qual a pintura é o produto era, entre outras coisas, uma relação comercial, e algumas práticas econômicas daquela época estão muito concretamente materializadas nas pinturas. O dinheiro tem uma importância considerável na história da arte.

3 DUARTE, Paulo Sergio. Apresentação. In: SIEGEL, Katy e MATTICK, Paul. Arte & dinheiro. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, .

Page 51: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

100 101100 100 100 100 101101101101

Ele atua sobre a pintura não somente no que se refere ao fato de o cliente querer investir seu dinheiro em uma obra de arte, mas também através das modalidades de pagamento escolhidas.”

O fato é que, no momento em que o trabalho convencional ou manual entra em declínio a favor do trabalho intelectual em face da história que apresen-tamos, o artista se transforma no trabalhador intelectual por excelência e o produto de seu trabalho – a obra de arte – na commodity por excelência. Essa mercadoria vai alcançar valores inéditos e nenhuma racionalidade vai explicar porque um artista de anos de idade vai valer mais do que um artista moder-no com seu nome inscrito na história da arte, da mesma forma que ninguém explica porque um cliente de banco, sem cadastro e sem renda comprovada pode hipotecar sua casa duas vezes a % de seu valor real.

Novos regimes de visibilidade, novos regimes de fruição e a persistência do modernoDesde os anos detectou-se uma transformação de maior vulto na produção artística que parecia destituir os parâmetros modernos que estabeleciam os princípios da autonomia da arte, como um campo cognitivo específi co sub-metido a princípios de ordem formal para constituição e ancoragem de suas poéticas. É preciso lembrar a progressiva constituição dessa autonomia que se identifi ca em grande parte com o que chamamos de crise da representação. Essa é a própria emergência da arte moderna durante a segunda metade do sé-culo XIX e início do século XX. Ela se confunde com o crescente declínio dos temas ou motivos a favor de uma maior força dos elementos estruturais da for-ma da obra na sua constituição. Era a ascendência da forma sobre o conteúdo.

Se antes uma série de convenções formais estava submetida aos temas, como aqueles na pintura religiosa regendo a hierarquia dos anjos, a representação de fi guras mitológicas, ou a estatuária equestre, por exemplo, as questões de

linguagem da obra, a partir de Manet, se despregam claramente dessa subor-dinação. Os temas, quando são signifi cativos, se ordenam, digamos, de dentro para fora a partir de necessidades internas da obra de arte e não mais se im-põem de “fora para dentro” como na arte pré-moderna. Essas transformações culminam na segunda década do século passado com a arte abstrata e o surgi-mento da fruição estética visual completamente desprovida de vínculos temá-ticos tal como já acontecia na fruição musical. Paralelamente a essa vertente que atinge seu ponto culminante no expressionismo abstrato norte-americano do segundo pós-guerra, desenvolvem-se correntes críticas como o dadaísmo e o surrealismo.

A conquista da autonomia da arte não é nenhuma invenção perversa do for-malismo como pode levar a crer certas leituras excessivamente sociológicas da cultura. A autonomia da forma na arte moderna deriva do processo histórico mais geral que decorre do progresso da ciência e da técnica e o consequente advento das especialidades, da revolução industrial, do acelerado deslocamen-to da importância da vida do meio rural para o urbano, e da cada vez mais complexa divisão social e técnica do trabalho. A fi gura social do artista, sua prática e sua produção, não estão imunes e impermeáveis a todas essas mu-danças. Desaparece a fi gura dominante desde o Renascimento do artista da corte e surge o profi ssional liberal cuja produção não está mais dependente diretamente da nobreza ou da igreja e passa a ser mediada pelo mercado. A pintura, e logo a escultura, passam a campo de investigação específi co a partir de sua lógica interna na produção de sensações, como claramente já demonstra a obra de Cézanne que prepara a revolução cubista.

Todas essas obras, mesmo depois da conquista da verdade planar na pintura pelo cubismo e das aventuras do plano no espaço iniciadas por Tatlin, continu-avam submetidas ao regime da contemplação para sua plena fruição.

Nos anos esse modo de “consumir” a obra de arte sofre múltiplas trans-formações. Em primeiro lugar, é introduzido o observador participante que inicialmente altera a confi guração da obra com sua intervenção para logo se transformar em parte indispensável da própria realização da obra. São exem-plos pioneiros dessas manifestações os bichos de Lygia Clark e os Parangolés de Hélio Oiticica. A obra não está no mundo para ser objeto do juízo estético e

4 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Tra-

dução de Maria Cecília Preto da Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, , p. . (O grifo é meu. P.S.D.).

Page 52: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

102 103102 102 102 102 103103103103

alcançar o “subjetivo universal” pensado por Kant na sua terceira Crítica atra-vés da contemplação. Agora é objeto que só se completa quando o sujeito da fruição se investe em “coautor” e parte da obra.

Outra mudança importante ocorre no próprio conceito de espaço para a produção artística. Toda obra de arte moderna era concebida para o espaço idealizado por Platão: aquela entidade neutra, vazia, extensa e a mesma em qualquer de seus pontos. Agora surgem as obras in situ (site specifi c). As obras são produzidas para um lugar específi co, sua presença não apenas altera o lugar como o incorpora como parte da obra. Um exemplo dessas intervenções pioneiras continua sendo as obras de Robert Smithson.

Desdobram-se daí as experiências que, nos anos , eram chamadas “am-bientes” e que vieram a ser chamados, posteriormente, de “instalações”. Aqui também obras como a Tropicália, Ninhos e Penetráveis de Hélio Oiticica esta-vam desbravando trilhas ainda pouco conhecidas na arte do século XX.

Outras mudanças precisam ser sublinhadas: o fenômeno defi nido por Lucy Lippard como “desmaterialização da obra de arte”, que coincide com a emer-gência da arte conceitual na qual o modo como a arte é pensada se sobrepõe à própria evidência plástica, chegando até mesmo ao seu apagamento no mundo substituído por refl exões teóricas como no caso do movimento inglês Art & Language.

O ressurgimento dos temas como núcleos centrais das próprias obras é ou-tra profunda modifi cação em relação ao passado moderno. Nessas manifesta-ções, a política e a arte de gênero (arte feminista, arte gay) restauram o conte-údo de modo tão ou mais intenso que o próprio investimento formal. Por fi m, a referência ao medium (pintura, escultura, gravura, desenho) perde o valor arquetípico que possuía na história da arte.

Em torno dessas transformações que apontam um período de aparente de-clínio da qualidade artística, podemos detectar manifestações de elevado teor poético que se desenvolvem em torno de dois polos na arte contemporânea: a

“estratégia do espetáculo” e as “manobras da delicadeza”. Ambos operam nos in-terstícios deixados pelas metamorfoses da visibilidade na arte contemporânea e parecem manter uma relação positiva com o legado moderno da primeira metade do século passado. Algo como se o pai moderno não precisasse ser

assassinado para viabilizar a passagem dessas novas investigações. Fazendo in-teragir a herança da grande arte moderna com experiências do presente, cons-tituem a produção mais instigante para a arte do novo século.

O novo circoEntretanto, as instituições museológicas sofreram grandes transformações. Em , O maior espetáculo da Terra (� e Greatest Show on Earth), dirigido por Cecil B. DeMille, ganhou o Oscar de melhor fi lme. No título habitava uma ambiguidade: quem era o maior espetáculo da Terra? O circo, tema do fi lme, base de seu enredo, ou a própria obra cinematográfi ca? O circo podia ser apresentado para o consumo de massa, como o maior espetáculo da Terra ou o próprio cinema. Passados sessenta anos, jamais um fi lme de Hollywood seria apresentado da mesma forma. Os circos migraram e foram deslocados para instituições muito mais complexas e sofi sticadas que aquelas que nas perife-rias das cidades abrigavam a vertigem dos trapezistas e a tristeza dos palhaços; os fi lmes podem ser alugados pelo controle remoto sem o espectador sair de casa e, pelo menos no Brasil, cada vez mais salas outrora de cinema abrigam igrejas de diferentes seitas cristãs. A indústria cultural fi cou mais complexa e conseguiu introduzir a arte na indústria do entretenimento. Hoje, o maior espetáculo da Terra é o museu de arte, no qual se apresenta o grande circo contemporâneo: a Tate Modern, o Beaubourg, o Louvre, o MoMA, o Metro-politan e seus milhões de visitantes anuais (Inhotim, em breve). Uma obra de arte jamais será o que era no seu momento moderno. Adeus Cézanne, Pi-casso, Braque, Malevich, Mondrian, Pollock, Newman, Rothko; nunca mais serão vistos como antes. E pior, nem mesmo Johns, Rauschenberg ou Warhol, poderiam atualmente dar conta do recado. O mundo está mesmo para Jeff Koons, seus cachorros de bolas de festas de aniversário e os corações gigan-tes enlaçados de fi ta dourada. Lá onde Gerard Richter e Anselm Kiefer, cada um a seu modo, tornam-se importantes extremos da pintura, tomando a sopa pós-moderna pelas beiradas, fi ca o território delimitado para o que se está chamando de arte contemporânea.

Em de maio de , o crítico Jonathan Jones, em seu blog no jornal � e Guardian, publicou uma severa crítica à Tate Modern sobre a forma como

Page 53: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

104 105104 104 104 104 105105105105

são exibidas as telas de Rothko e àquele museu em geral. Vale a pena ler essa crítica na íntegra. O motivo do artigo é a devolução ao espaço de exposição de uma das telas de Rothko da série Black on Maroon, vandalizada em , e tem como título Why Tate Modern should show Rothko a little respect (numa tradução livre: “Por que a Tate Modern deveria demonstrar um pouco de res-peito por Rothko”). Jonathan Jones se pergunta:

“Mas a Tate em algum momento pensou por que esse ataque aconteceu e considerou por um segundo se a atmosfera menos que convencional da Tate Modern como um museu de arte encoraja uma perda de reverência pela arte? E depois, não faz muito tempo, crianças foram vistas escalando um Donald Judd como um brinquedo no parque. Isso não deveria surpreender quando a Tate Modern é famosa por apresentar slides como obras de arte?” As críticas de Jonathan Jones vão muito mais fundo e poderiam ser resumidas em “a Tate Modern defi nitivamente não é um local para a fruição de obras de arte”. Pode ser que Jonathan Jones não esteja inteiramente correto ao atribuir o ato de vandalismo ao clima inteiramente estranho ao conhecimento de obras de arte que impera naquela instituição. Afi nal, atos de vandalismo já ocorreram em diferentes épocas e em diferentes locais como no próprio interior da Basílica de São Pedro do Vaticano, quando a Pietá de Michelangelo sofreu um atenta-do. Entretanto, tem inteira razão que gritos de participantes de obras intera-tivas, crianças correndo, e outras peripécias não coibidas pela instituição não colaboram para o desenvolvimento de um conhecimento artístico.

Mas, afi nal de contas, foi a própria abertura da Tate Modern um marco no novo estatuto dos museus de arte nesse milênio. No ano de sua abertura, em maio de , esperava-se um milhão de visitantes, recebeu cinco vezes mais.

Desde então, recebeu mais de milhões de visitantes. Segundo o portal da instituição é uma das três maiores atrações turísticas do Reino Unido e gera uma receita em torno de milhões de libras esterlinas (cerca de milhões de reais na data atual) para Londres por ano. Esse novo circo ou parque de diversões defi nitivamente não é um local para o desenvolvimento de processos cognitivos no âmbito poético. A atmosfera que reinava nos museus de arte há algumas décadas era a mesma que aquela que ainda está em vigência em qualquer biblioteca que se preze. Esse clima, favorável ao conhecimento das obras de arte parece cada vez mais distante. A arte pop triunfou mesmo, mas não somente nas paredes das instituições, mas as transformando em museus pop. Para muitos demagogos e populistas isso signifi ca a “democratização” da arte, na verdade é o maior grau de rebaixamento que qualquer grande obra de arte, como a pintura de Mark Rothko, poderia atingir.

A esperança na adversidadeO Brasil, devido a seu atraso educacional, está muito distante de apresentar situações como essa, salvo em algumas esporádicas exceções. Caso haja uma concentração de esforços na formação de professores de todas as disciplinas para uma formação artística em todos os âmbitos poderemos assistir, talvez, a uma situação diferente: futuras gerações formadas em torno do poético nos campos da música, da literatura, das artes visuais. O nosso atraso poderia ser revertido em vantagem. Mas não é o que vemos. Continuamos a observar abandonadas as prioridades educacionais e o país registra os piores índices mesmo quando comparado somente a países da América Latina.

A arte fi ca sendo a hora do recreio, vista como uma atividade de puro entre-tenimento dissociada de seus aspectos cognitivos mais interessantes. Sempre haverá ganhos residuais, mas estamos longe de ter um público formado para compreender a estatura da poderosa arte que já produzimos.

5 Ver: <http://www.theguardian.com/artanddesign/ jonathanjonesblog//may//tate-modern--rothko-black-on-maroon-restored>. Acessado em de maio de .

6 “But has the Tate thought at all about why the attack happened, and has it considered for a second – can it bring itself to ask – if the less than conventional atmosphere of Tate Modern as an art museum may encourage a lack of reverence for its art? After all, it’s not long since some children were spotted using its Donald Judd as a climbing frame. Is that so surprising when Tate Modern is famous for presenting slides as art?” Disponível em <http://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog//may//tate-modern-rothko--black-on-maroon-restored>. Acessado em de maio de . A propósito da notícia da criança escalando Judd, ver: <http://www.apollo-magazine.com/climbing-frames-tate/>. Acessado em de maio de . 7 Ver: <http://www.tate.org.uk/about/who-we-are/history-of-tate>. Acessado em de maio de .

Page 54: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

106 107106 106 106 106 107107107107

ALENCAR, Vera de. Museu – Educação: se faz caminho ao andar... Rio de Janeiro: PUC-Rio, .

BRIGHAM, Diane. Preparation for Empowerment. Journal of Museum Education ():-

(Fall ). Publicado também em NICHOLS, Susan K. Patterns in Practice: Selections of Jour-

nal of Museum Education. Washington, DC: Museum Education Roundtable, , p. -.

CABRAL, Magaly. Educação em museus casas históricas. Disponível em: <http://www.casarui-

barbosa.gov.br/paracriancas/arquivos/fi le/arq_textos/Educacao_em_Museus.pdf>.

DESANTIS, Karin & HOUSEN Abigail. A Brief Guide to Developmental � eory and Aesthetic Development (Draft) Spring .

FALK, John. H. & DIERKING, Lynn. � e Museum Experience. Washington DC: Whalesback

Books, .

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e

Terra, .

GARDNER, Howard. Zero-based arts education: An introduction to Arts PROPEL. Studies in Art Education: A Journal of Issues and Research, ():-, .

GRINSPUM, Denise. Toda arte é participativa. DasArtes, no , jun.-jul., .

HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de Trabalho. Porto

Alegre: ArtMed, .

textos usados no

Programa de Capacitação de mediadores

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky e o processo de formação de conceitos. Em LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Martha Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vigotsky, Wallon: teorias psi-

cogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, .

PIAGET, Jean. Cognitive Development. Em LIEBERT, Robert M; POULOS, Rita W; MAR-

MOR Gloria S. Developmental Psychology. a ed. New Jersey: Prentice-Hall, , p. .

PIAGET, Jean. Psicologia da inteligência. Rio de Janeiro: Zahar, .

SIMON, Nina. A participação começa comigo. Em MENDES, Luís Marcelo (org.). Reprograme: comunicação, branding e cultura numa nova era de museus. Rio de Janeiro: Editorial, , p.

a . Este capítulo foi originalmente publicado no livro � e Participatory Museum, editado pela

autora em .

WILLIAMS, Patterson. Object Contemplation: � eory into Practice. Roundtable Repports ():-, (winter ). Publicado também em NICHOLS, Susan K. Patterns in Practice: Se-lections of Journal of Museum education. Washington, DC: Museum Education Roundtable, , p. -.

WOLF, Dennie. Artistic Learning: What and Where Is It? Em GARDNER, Howard;

PERKINS, David (eds.). Art, Mind, and Education: Research from Project Zero. University of

Illinois Press , p. .

YENAWINE, Philip. Master Teaching in an Art Museum. Publicado também em NICHOLS, Susan K. Patterns in Practice: Selections from the Journal of Museum Education. Washington

DC: Museum Education, Roundtable, , p. -.

Page 55: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa

Governo do estado do rio de Janeiro

g ov e r n a d o r

Luiz Fernando Pezão

s ec r e t á r i a d e esta d o d e c u lt u r a

Adriana Scorzelli Rattes

su b s ec r e t á r i a d e r e l a ç õ es i n st i t u c i o n a i s

Olga Campista

su b s ec r e t á r i o d e p l a n e j a m e n to e g est ã o

Mario Cunha

su p e r i n t e n d e n t e d e a rt es Eva Doris Rosental

os oCa LaGe

p r es i d e n t e

Marcio Botner

v i c e - p r es i d e n t e

Lisette Lagnado

p r es i d e n t e d o c o n s e l h o

Paulo Albert Weyland Vieira

v i c e - p r es i d e n t e d o c o n s e l h o

Fabio Szwarcwald

d i r e to r a d m i n i st r at i vo e f i n a n c e i r o

Artur E. P. Miranda

g e r e n t e d e p r oj e to s e e v e n to s

Marcus Wagner

g e r e n t e a d m i n i st r at i vo e f i n a n c e i r o Rosana Ribeiro

as s es s o r a d e c o m u n i ca ç ã o Rachel Korman

esCoLa de artes visuais do Parque LaGe

d i r e to r a

Claudia Saldanha

c o o r d e n a d o r a d e e n s i n o

Tania Queiroz

su p e rv i s o r a

Vanessa Rochaas s i st e n t es

Ana Carolina SantosLucas Leuzinger

c o o r d e n a d o r a d e e x p o s i ç õ es e d e bat es Clarisse Riveraas s i st e n t es

Laara Hügel Renan LimaSabrina Veloso

c o o r d e n a d o r d e e v e n to s

Vitor Zenezias s i st e n t es

Naldo TurlSelma Fraiman

p r o g r a m a e d u cat i vo

c o o r d e n a ç ã o

Cristina de PádulaMaria TornaghiTania Queiroz su p e rv i s ã o Cristina de Pádula

as s es s o r a d e p r oj e to s es p ec i a i s Sandra Caleffi

c o m i s s ã o d e e n s i n o

Glória FerreiraLuiz Ernesto MoraesMaria Tornaghi

c o m i s s ã o d e p r oj e to s

Batman ZavarezeGeorge Kornis Paulo Sérgio Duarte

su p e rv i s o r a d m i n i st r at i vo

Sergio Bastos

o mundo é mais do que isso

o r g a n i z a ç ã o

Cristina de PádulaMaria TornaghiTania Queiroz

p r oj e to

Suzy Muniz Produções

c o o r d e n a ç ã o

Suzy MunizRachel Korman

t e x to s

Agnaldo FariasAnna Bella Geiger & Maria TornaghiCaduEduardo CoimbraFernando CocchiaraleFranz Manata & Saulo LaudaresGlória FerreiraLeonilsonMarcelo CamposPaulo Sergio Duarte

d es i g n g r á f i c o

Verbo Arte e Design

r e v i s ã o

Rosalina Gouveia

ag r a d ec i m e n to s es p ec i a i s :

pat r o c í n i o

patrocínio

patrocínio

Page 56: O mundo é mais do que isso capa e mioloeavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/09/O-mundo-é-mais... · dinâmica; o cérebro e o coração funcionam numa rapidez assombrosa