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1 “O negócio sujo da energia limpa”: a organização indígena frente à instalação de parques eólicos no Istmo de Oaxaca, México. 1 Clarissa Noronha Melo Tavares UnB/Brasil Resumo: O artigo trata de experiências vivenciadas por comunidades indígenas do Istmo de Tehuantepec, no estado de Oaxaca, no México, ameaçadas pela instalação de um megaprojeto de energia eólica, chamado “Corredor Eólico do Istmo de Tehuantepec”. Tal projeto tem gerado diversos conflitos entre os governos municipal, estadual e federal, empresas transnacionais, camponeses e comunidades indígenas, e provocado danos visíveis ao meio ambiente e ao modo de vida tradicional de determinadas populações. Nesse contexto, serão abordadas a organização e mobilização da comunidade indígena Binnizá, da Colônia Álvaro Obregón para recuperar sua autonomia política e voltar a exercer seu poder comunal por meio da Assembleia Geral de Cidadãos. Também será abordada a maneira pela qual os indígenas da 7ª Seção do município de Juchitán de Zaragoza, em sua maioria pescadores, estão se organizando para impedir o avanço das instalações eólicas em suas terras comunais e áreas de pesca. O texto analisa ainda de que forma a comunalidad (DÍAZ, 2007, e LUNA, 2002) indígena fornece elementos para as ações de resistência anticolonial indígena e trata dos desafios enfrentados por estes povos, a interlocução com os agentes estatais e as situações de conflito e desintegração social que se configuraram diante das investidas governamentais e empresariais. Palavras-chave: organização indígena, energia eólica, comunalidad. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, em Natal/RN.

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“O negócio sujo da energia limpa”: a organização indígena frente à instalação de

parques eólicos no Istmo de Oaxaca, México.1

Clarissa Noronha Melo Tavares – UnB/Brasil

Resumo: O artigo trata de experiências vivenciadas por comunidades indígenas do

Istmo de Tehuantepec, no estado de Oaxaca, no México, ameaçadas pela instalação de

um megaprojeto de energia eólica, chamado “Corredor Eólico do Istmo de

Tehuantepec”. Tal projeto tem gerado diversos conflitos entre os governos municipal,

estadual e federal, empresas transnacionais, camponeses e comunidades indígenas, e

provocado danos visíveis ao meio ambiente e ao modo de vida tradicional de

determinadas populações. Nesse contexto, serão abordadas a organização e mobilização

da comunidade indígena Binnizá, da Colônia Álvaro Obregón para recuperar sua

autonomia política e voltar a exercer seu poder comunal por meio da Assembleia Geral

de Cidadãos. Também será abordada a maneira pela qual os indígenas da 7ª Seção do

município de Juchitán de Zaragoza, em sua maioria pescadores, estão se organizando

para impedir o avanço das instalações eólicas em suas terras comunais e áreas de pesca.

O texto analisa ainda de que forma a comunalidad (DÍAZ, 2007, e LUNA, 2002)

indígena fornece elementos para as ações de resistência anticolonial indígena e trata dos

desafios enfrentados por estes povos, a interlocução com os agentes estatais e as

situações de conflito e desintegração social que se configuraram diante das investidas

governamentais e empresariais.

Palavras-chave: organização indígena, energia eólica, comunalidad.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, em Natal/RN.

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Introdução

Uma mostra fotográfica promovida pelo Parque Eólico Bií Hioxo e intitulada

“Vientos de Cambio” (ventos de mudança), em exposição na Casa da Cultura da cidade

de Juchitán de Zaragoza, em dezembro de 2013, exibia bonitas imagens das torres de

energia eólica instaladas em territórios do Istmo de Tehuantepec. Em linhas gerais, as

fotografias buscavam mostrar aos visitantes a boa convivência entre as instalações e a

população local, sugerindo a aceitação e até apreciação pela população aos

empreendimentos já presentes em diversas áreas da região.

A mostra percorreu diversas localidades do Istmo de Tehuantepec com o

objetivo de divulgar o convívio harmônico entre os empreendimentos eólicos e as

atividades cotidianas dos habitantes do Istmo e gerar uma reflexão sobre os benefícios

do projeto para o desenvolvimento da região. Assim, estudantes, levados por suas

escolas, e demais pessoas das comunidades visitadas puderam ter acesso aos

argumentos das empresas que exploram a energia eólica e, mais que isso, à visualização

destes argumentos por meio dos registros fotográficos.

As bonitas imagens, no entanto, contrastaram com narrativas coletadas ao longo

desta zona, em áreas onde torres eólicas já foram instaladas e em outras onde há o

interesse de empresas para a instalação. Nesse trabalho, serão abordados casos de

contraposição aos projetos eólicos e as formas de organização das populações indígenas

locais nesse processo de disputa pelos territórios comunais e ejidais2.

Para a realização deste trabalho, foram utilizados dados coletados em duas

oportunidades: a primeira em 2009, quando foram realizadas visitas às rádios

comunitárias da região, a fim de compreender o papel de tais instrumentos para a

mobilização e organização indígena; e em 20133, quando, além das rádios comunitárias,

2 A Constituição de 1917 reconheceu aos “nativos” o direito à restituição e confirmação de suas terras

comunais, mas estas nunca foram consideradas como territórios indígenas (BARABAS, 1994), mas terras

de uso comum. As terras ejidales ou ejidos foram instituídos por esta Constituição, que regulamentou a

posse das terras coletivas, os ejidos, e a proibição de alienação das mesmas. O objetivo era desestruturar o

sistema agrícola baseado em latifúndios e fomentar as pequenas explorações agrícolas familiares. No

entanto, reformas na lei ocorridas em 1992 passaram a permitir a compra e venda dos ejidos, assim como

contratos de aluguel, parceria e associação com setores privados. Também abriu a possibilidade para os

ejidatarios individuais passarem à condição de propriedade plena, adquirindo o status de sua propriedade

privada da terra (BOUQUET, 1996). 3 Pesquisa realizada com o apoio do CNPq .

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foi possível conhecer experiências e coletar relatos em algumas comunidades em

resistência e enfretamento indígena aos projetos eólicos instalados por empresas

transnacionais e apoiados pelos governos municipais, estadual e federal.

Contextualização

O estado de Oaxaca possui uma expressiva população indígena, contabilizada

pelas fontes oficiais com 1.091.502 falantes de línguas indígenas, o que representa cerca

de 30% do total de habitantes4. É um dos estados mexicanos com maior número de

população indígena e com uma das mais variadas composições étnicas do país,

composta por 16 grupos etnolinguísticos e dois grupos étnicos – que não falam mais a

língua originária (BARABAS, 2004). Na região do Istmo de Tehuantepec, os povos

indígenas são os: Ikoots (Huave), Binnizá (Zapoteco), Chontal, Zoque, Ayuuk (Mixe),

Chinanteco, Nahua e Ñuntajy+is (Popoluca) (MANZO, 2012). Nesse trabalho, a

abordagem estará focada nas comunidades Binnizá (Zapoteco) de Álvaro Obregón e da

Sétima Seção de Juchitán de Zaragoza5.

Por todo o Istmo de Tehuantepec – que abarca 11 municípios: Juchitán de

Zaragoza, Asunción Ixtaltepec, San Miguel Chimalapa, Santo Domingo Ingenio, Unión

Hidalgo, San Dionisio del Mar, Santa María Xaadani, San Mateo del Mar, San Pedro

Huilotepec, San Blas Atempa e El Espinal (MAYA, 2011) –, observa-se a instalação de

um megaprojeto de geração de energia eólica, chamado Corredor Eólico do Istmo. Tal

projeto tem gerado diversos conflitos entre os governos municipais, estadual e federal,

empresas transnacionais, camponeses e comunidades indígenas, provocando danos

visíveis ao meio ambiente, tais como prejuízos aos cultivos, colapso dos sistemas

subterrâneos de água, poluição auditiva e visual (MAYA, 2011). No entanto, é a

privação de acesso e usufruto dos territórios comunais e ejidales por camponeses,

pescadores e indígenas que tem gerado fortes questionamentos à forma como o processo

tem sido conduzido.

4 Dados do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI) referentes ao censo de 2010, no México. 5 Administrativamente, a Colônia Álvaro Obregón é uma agência da Heroica Ciudad de Juchitán de

Zaragoza, distante cerca de 20 km da sede do município, onde vive uma comunidade indígena do povo

Binnizá (Zapoteco), composta por 3.558 pessoas. A Sétima Seção é um bairro de Juchitán, onde a maioria

dos moradores é composta por indígenas Binnizá, que desenvolvem as atividades de pesca e agricultura

em terras comunais.

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O piloto do projeto eólico começou a funcionar na região em novembro de 1994.

Em 1999, os arrendatários iniciaram um movimento de oposição às empresas que

exploram a energia eólica, motivados pelos baixos valores pagos pela ocupação das

terras e pelo não cumprimento de acordos que previam construções de obras públicas. O

resultado foi uma ordem governamental, em 2001, para apreensão de 12 camponeses e a

prisão do representante ejidal Arturo Hernández (MAYA, 2011). Além dos diversos

danos ambientais e do impacto social promovido pelo despojo das populações indígenas

e camponesas, a instalação dos parques eólicos tem gerado inúmeros conflitos internos.

Sobre uma das regiões onde as populações indígenas foram fortemente afetadas, a

comunidade “La Venta”, Maya (2011) afirma:

A construção deste parque trouxe graves impactos à vida do ejido “La Venta” e vários

habitantes de tal ejido testemunharam, durante uma visita à área, que “foi gerado um

profundo divisionismo e conflitos internos que provocaram o desmonte do tecido social”.

Também fazem referência de que “o despojo no ejido alcançou inclusive terras de uso

comum, que foram cedidas de maneira fraudulenta; e que pelas terras arrendadas foram

pagos baixos preços e as obras realizadas prejudicaram os terrenos de cultivo localizados

dentro do polígono” (MAYA, 2011:223, tradução nossa).

O Corredor Eólico do Istmo de Tehuantepec integra um projeto de

desenvolvimento maior, o Projeto Mesoamérica, antigo Plano Puebla Panamá6. O

Corredor Eólico é composto por empresas transnacionais7 que, com o apoio do governo

mexicano e instituições financeiras internacionais, instalaram parques eólicos de grande

escala sob o argumento de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, gerar energia

limpa e promover o desenvolvimento econômico de Oaxaca, um dos estados mais

pobres do país. As empresas chegaram ao Istmo de Tehuantepec por ser este um lugar

geograficamente estratégico para a construção de tais empreendimentos. A região

representa uma das maiores potências para a geração de energia eólica do mundo, com

capacidade anual calculada entre 5.000 e 7.000 megawatts. O suficiente para abastecer

6 O Plano Puebla Panamá (PPP) foi lançado no dia 1 de Junho de 2008 pelo então presidente mexicano

Vicente Fox, como uma iniciativa para fortalecer a integração regional e promover projetos de

desenvolvimento social e econômico entre Belize, países da América Central, estados do Sul/Sudeste do

México e Colômbia, posteriormente. 7 Sobre o Parque Eólico San Dionísio, por exemplo, operado pelo consórcio Mareñas Renovables, Manzo

(2012) fala que este é finaciado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e tem como

membros a japonesa Mitsubishi, a PGGM (Fundo de Pensão Holandês) e a empresa estadunidense Mc

Quire. Hà ainda na região, investimentos das empresas espanholas Gamesa, Endesa, União Fenosa, dentre

outras.

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18 milhões de pessoas. O projeto do Corredor Eólico contempla a instalação de 5.000

aerogeradores (turbinas eólicas), distribuídas em cerca de 100.000 hectares de terras

ejidales e comunais (JARA, 2011).

Os parques eólicos têm provocado diversos conflitos entre as empresas do setor

energético, o governo mexicano e as comunidades indígenas, desde que começaram a

funcionar em 1994, devido à geração de fortes impactos sociais e ambientais,

modificando o território e a qualidade de vida das populações locais. Para os povos

indígenas, o principal impacto de cunho social é o despojo de suas terras, conduzido de

forma autoritária e desrespeitosa por parte dos grupos interessados. Segundo relato de

Maya (2011), nos anos de 1990, apareceram pessoas estranhas nos povoados La Venta e

La Ventosa, pertencentes ao município de Juchitán, em Oaxaca. Eram agentes

imobiliários que buscavam terras de campesinos e indígenas para um misterioso projeto.

A apropriação dos territórios pelas empresas era realizada por meio de contratos

realizados em condições de desvantagem para os proprietários, que permitiram aos

empreendedores o direito de uso da terra por 30 anos, com possibilidade de renovação

por outros 30. O valor por hectare arrendado era fixo e sem a possibilidade de

participação dos proprietários nos lucros gerados pelos parques eólicos.

Opositores do projeto afirmam que os contratos não ofereciam informações

transparentes sobre os direitos dos proprietários arrendatários, nem sobre o que

acontecerá com as instalações eólicas quando os contratos forem encerrados. Dizem

ainda que não oferecem distinções precisas entre terras produtivas e improdutivas e que

carecem de cláusulas de atualização do valor a ser pago aos proprietários.

A isto se somam a cooptação de representantes das comunidades e a simulação de

assembleias ejidales com assinaturas de pessoas falecidas e outras que não constam no

padrão ejidal para agilizar a assinatura de contratos e negociações individuais entre

proprietários e empresas com o objetivo de excluir as assembleias ejidaies dos

processos de tomadas de decisões (JARA, 2011: 6, tradução nossa).

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O caso da Colônia Álvaro Obregón

A pressão para a instalação de parques eólicos em terras ejidales e comunais é

comum às comunidades indígenas da região do Istmo de Oaxaca. Na Colônia Álvaro

Obregón, tudo começou quando a empresa Mareña Renovables se preparava para

instalar 102 aerogeradores, na área conhecida como Barra de Santa Teresa, uma faixa de

terra situada entre duas lagoas (Lagoa Superior e a Lagoa Inferior) no Golfo de

Tahuantepec. O local é acessado apenas pelas populações indígenas locais (Álvaro

Obregó, San Mateo del Mar, Santa María del Mar), que utilizam as lagoas para as

atividades de pesca, principal fonte de subsistência daqueles povoados.

Figura 1 – Mapa da região

No início, a estratégia da empresa para ter acesso ao território indígena foi

cooptar alguns ejidatários de Álvaro Obregón, oferecendo-lhes dinheiro. A empresa não

se preocupou em realizar reuniões informativas com a comunidade, oitivas ou consultas

públicas prévias livres e informadas, como orienta a Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho (OIT), da qual o México é signatário.

Conta Pedro Lopez Orozco, liderança e mayordomo8 da comunidade, que os

primeiros desentendimentos foram gerados porque uma quantia em dinheiro repassada

8 Importante liderança comunitária responsável por financiar a festa patronal de sua comunidade. O cargo

é exercido por um ano.

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pela empresa foi repartida apenas entre um grupo de ejidatários, deixando 31 outros

insatisfeitos, assim como os demais moradores das zonas comunais. A situação gerou

um conflito na comunidade a ponto de os ejidatários insatisfeitos não aceitarem mais

nem dinheiro, nem a instalação do projeto. Somou-se a isso um episódio em que a

empresa impediu o acesso dos moradores às lagoas e cinco pescadores foram proibidos

de pescar por seguranças armados. Ao regressarem à comunidade, relataram o ocorrido

e, partir de então, o incômodo com a empresa começou a se generalizar.

Quando Mareña Renovables entrou, não reuniu o povo e não informou a que veio. Nós

nunca soubemos qual era o projeto original, o que queriam fazer. Começaram a entrar

com técnicos de campo. Nesse momento, os pescadores estavam sendo beneficiados

porque alugavam suas lanchas para levar os trabalhadores até a península. Não eram

muitos, chegava um grupo de três, quatro técnicos em medição de terrenos, engenheiros

agrônomos, biólogos, topógrafos. Começaram a chegar há uns dois ou três anos e

diziam que iam fazer uns estudos e visitar a península que é um lugar virgem, que

sequer a gente da comunidade fica por aí muito tempo. Há um balneário onde [as

pessoas da comunidade] vão apenas durante os dias da Semana Santa. Não têm

habitações, comércios ou lugares de recreio estabelecidos aí. E nós não estávamos nos

dando conta de qual era a situação realmente, qual era a intenção deles. Então alguns

companheiros da Assembleia dos Povos do Istmo em Defesa da Terra e do Território

começaram a trazer algumas informações. Até esse momento, ninguém demonstrou

muito interesse, o povo não se moveu. Até que, quando já ia entrar a empresa, que

começou a chegar com os ejidatários, porque a comunidade é formada por dois ejidos,

o Ejido Zapata e o Ejido Charis, e temos terras comunais, de pequenas propriedades, de

uso comum onde coletamos lenha, pomos o gado para pastar... Ou seja, existem terras

de uso comum e ejidatários e pequenos proprietários dentro da comunidade. Eles

chegaram somente com os ejidatários porque, segundo eles, o projeto ia afetar mais os

ejidos até a Barra de Santa Teresa. Chegaram a repartir dinheiro apenas para os

ejidatários e começamos a ver isso de uma forma muito ruim porque somente uma parte

da população estava se beneficiando com este apoio econômico. Assim começou a

questão: porque somente os ejidatários [eram beneficiados]? Os pescadores começaram

a protestar porque havia pescadores que estavam dentro dos ejidos e havia outros que

estavam fora do ejido e estavam reclamando que o dinheiro deveria ser repartido por

toda a comunidade... Aí houve um problema na repartição do dinheiro e um grupo de

ejidatários foi reclamar para a empresa que o dinheiro não estava sendo bem repartido.

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Assim começou todo o protesto contra a empresa e as pessoas começaram a brigar e

tinham aqueles que estavam inconformadas com a forma de repartição do dinheiro da

empresa. E não eram muitos, eram 31 ejidatários que não estavam conformados com a

repartição. Então a empresa para não dar a impressão de que seguia dando dinheiro,

disse que o governo iria solucionar. Nós, por meio disso, ficamos entendendo que o

governo, por meio deles, daria o dinheiro para os que estavam inconformados. Chega o

governo e entrega o dinheiro dos 31, mas o comissariado, que não havia feito a

repartição como deveria ser segundo os ejidatários, recebeu o dinheiro dos 31 e repartiu

o dinheiro entre os mesmos ejidatários com quem estava de acordo. Então começou o

problema outra vez. O povo ficou dividido e os 31 disseram “ainda que nos deem

dinheiro já não vamos deixar passar”. Já não deixaram passar a empresa. Disseram “nós

não estamos de acordo com vocês. Sabemos que vão chegar até a lagoa e contaminar a

água, se apoderar das terras e não vamos permitir que passem até a lagoa”. E isso foi o

certo. (PEDRO LOPEZ OROZCO, em entrevista à autora, 2013).

Depois desse desentendimento com a empresa, a comunidade montou um

acampamento, numa antiga construção situada na estrada de acesso à Barra de Santa

Teresa, para impedir a passagem de funcionários da empresa ao local. Essa proibição de

acesso provocou diversos enfrentamentos entre a comunidade e a polícia estatal, que,

por seguidas vezes, agiu em defesa dos interesses da empresa. Em 2 de outubro de

2012, houve um violento enfrentamento entre os que estavam na barricada e a polícia

estatal. Na ocasião, foram detidos sete indígenas e dois carros da polícia foram

destruídos. Os indígenas foram liberados e, a partir de então, a barricada não foi mais

desfeita até o momento da entrevista, em dezembro de 2013, e diversas organizações e

comunidades indígenas regionais passaram a apoiar a reivindicação dos pescadores de

Álvaro Obregón.

Devido à tensão provocada pelo enfrentamento, em 7 de outubro de 2012, por

intermédio das organizações apoiadoras, foi promovida uma tentativa de diálogo entre a

empresa, as autoridades estatais e os insurgentes. Na oportunidade, chegaram a Álvaro

Obregón vários representantes dos povos que estavam em resistência na região, nas

localidades de San Mateo del Mar, San Dionísio del Mar, Santa María Xaadani e

Juchitán, que firmaram junto aos representantes da Mareña Renovables e do governo do

estado de Oaxaca um acordo em que a empresa deveria retirar definitivamente seus

veículos da Barra de Santa Teresa e que não faria nenhuma queixa contra o povo de

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Álvaro Obregón. “Durante esse acordo, ficou claro que o pessoal da Mareña já estaria

se retirando, mas não foi bem assim porque eles ficaram buscando formas de entrar

outra vez” (PEDRO LOPEZ OROZCO, em entrevista à autora, 2013).

Em 1º de fevereiro de 2013, ocorreu novo violento enfrentamento entre a polícia

estatal e os integrantes do acampamento. Segundo um informe produzido pela

Assembleia dos Povos Indígenas do Istmo em Defesa da Terra e do Território9, cerca de

400 policiais entraram na comunidade para reprimir a resistência à entrada da empresa

no território indígena. Os indígenas registraram três enfrentamentos entre os dias 1 e 2

de fevereiro, quando foram detidos quatro pescadores, que depois foram liberados.

Sem compaixão alguma, os uniformizados pretendiam ensanguentar o povo indígena de

Álvaro Obregón, apoderar-se de seu acampamento e fazer guarda à empresa espanhola

Mareña Renovables, que, com golpes, sangue, violência e ameaças pretende desalojar

os indígenas de seus territórios e lagoas, de onde retiram seus alimentos.

(ASSEMBLEIA DOS POVOS INDÍGENAS DO ISTMO EM DEFESA DA TERRA E

DO TERRITÓRIO, comunicado de fevereiro 2013, tradução nossa).

O clima de tensão colocou toda a comunidade de Álvaro Obregón em alerta e

fez crescer um movimento de resistência e oposição ao projeto eólico, que congregou a

solidariedade e articulação de uma rede de organizações e povos indígenas da região,

também contrários à instalação do projeto eólico em suas terras. Assim, após o

enfrentamento de 1º de fevereiro de 2013, uma caravana humanitária saiu de Juchitán,

em 18 de fevereiro, em direção a Álvaro Obregón, composta por centenas de pessoas

que foram demonstrar o apoio e a aliança quanto à oposição ao projeto eólico.

Paralela à resistência em rede, foi gerado um movimento de reorganização

interna de Álvaro Obregón, que culminou em importantes ações políticas. A primeira

delas foi a decisão comunitária de não mais aceitar governantes locais indicados pelos

partidos políticos, ou seja, de desvincular-se dos partidos e seus representantes, que,

durante o processo de resistência e oposição à instalação do projeto eólico na Barra de

Santa Teresa agiram como intermediários dos interesses das empresas.

9 Disponível em: https://tierrayterritorio.wordpress.com/2013/02/04/comunicado-reprime-brutalmente-

policia-del-estado-a-indigenas-oaxaquenos-los-uniformados-defienden-intereses-extranjeros/

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O passo subsequente foi mudar a maneira de escolha dos representantes políticos

locais passando da forma de partidos políticos para a de “Sistemas Normativos

Internos”, baseados nos usos e costumes tradicionais10. Orientada pelo princípio dos

usos e costumes, a comunidade instituiu sua polícia comunitária, formada por membros

do próprio povo e responsável pela segurança e ações de vigilância, em seguida,

convocou a Assembleia Geral de Cidadãos para eleger, no dia 8 de dezembro de 2013, o

corpo do cabildo (colegiado) comunitário, que constituem os representantes político-

administrativos.

Estamos tratando de retomar nossa autonomia, nossa soberania, ou seja, regressar às

nossas raízes porque nossos avós, nossos ancestrais elegiam seus representantes dessa

maneira. Era outro sistema. Então, nossos avós utilizaram o sistema de usos e costumes.

Os partidos políticos nos servem atualmente para duas coisas: para nos dividir e para

fazer ricos os líderes; nada mais, porque votamos e eles levam nossos votos, os

manipulam e nos damos conta de que não nos beneficiam. Então, como comunidade,

decidimos não ter partidos políticos e, hoje em dia, estamos avançando com isso. Já

nomeamos a outra figura dentro dos usos e costumes, porque já estava [nomeada] a

polícia comunitária e faltava o corpo do cabildo (colegiado), também já está nomeado o

conselho de anciãos. [Na hierarquia] primeiro está a polícia comunitária; acima dela, o

corpo de cabildo; e depois o conselho de anciãos. No topo está o povo, a comunidade, a

assembleia, que é quem decide tudo. Qualquer coisa que não possa ser decidida pelo

corpo de cabildo, vai para o conselho de anciãos. Se o conselho de anciãos é

incompetente para decidir, vai para a assembleia geral. (PEDRO LOPEZ OROZCO, em

entrevista à autora, 2013).

O caso da Sétima Seção de Juchitán

A Sétima Seção é um bairro de Juchitán composto por indígenas Binnizá

(Zapoteco), que cultivam e pescam em terras comunais do município. Juchitán tem um

10 O Decreto nº 266, que trata da Lei de Direitos dos Povos e Comunidades Indígenas do Estado de

Oaxaca, trata no Capítulo V dos Sistemas Normativos Internos. Em seu artigo 28º, declara: O Estado de

Oaxaca reconhece a existência de sistemas normativos internos dos povos e comunidades indígenas com

características próprias e específicas em cada povo, comunidade e município do estado, baseados em

suas tradições ancestrais e que têm sido transmitidos oralmente por gerações, sendo enriquecidos e

adaptados com o passar do tempo por diversas circunstâncias. Por isso, no Estado, tais sistemas são

considerados atualmente vigentes e em uso (tradução nossa).

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histórico de mobilizações e rebeliões populares promovidas pelos povos indígenas

locais. Segundo Manzo (2012), durante o período colonial, o Istmo de Tehuantepec era

uma periferia do bispado de Oaxaca que, diversas vezes, fugiu ao controle das

autoridades graças à permanente atitude rebelde dos grupos indígenas de Juchitán tais

como os Ikoots (Huave), Binnizá (Zapoteco), Chontal e Ayuuk (Mixe)11.

As populações indígenas do Istmo de Tehuantepec estão fortemente marcadas

pela resistência indígena. Para o autor, a autonomia e a livre determinação dessas

populações estão fincadas em três elementos estruturais, presentes às raízes históricas

dos povos juchitecos: o político, o econômico e o cultural.

Na historiografia recente, Juchitán ganhou notoriedade por ser o local onde

surgiu a Coalisão Obreira Estudantil do Istmo (COCEI), instituída formalmente em

1973, como oposição ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), que dominava o

cenário político. Em seu início, a COCEI deu ênfase às questões agrárias e era formada

por pessoas do movimento estudantil, opositores ao PRI e camponeses que sofriam com

a monopolização e especulação das terras. No início dos anos de 1980, a COCEI elegeu

o prefeito Leopoldo de Gyves levando Juchitán a ser a primeira cidade a ser governada

pela esquerda no país. Um dos meios de comunicação mais importantes da COCEI foi a

Rádio Ajuntamento Popular (RAP), criada em 1981, que colocava no ar uma

programação bilíngue (zapoteco e espanhol) e era organizada com a participação

popular.

Ao longo do tempo, a atuação da COCEI mudou de direção, mas a semente de

insurgência e rebeldia propagada no Istmo continuou a promover atos de resistência

contra as elites e o poder local político e econômico. A Rádio Comunitária Totopo é um

deles. Em operação desde fevereiro de 2006, a rádio indígena surgiu da necessidade de

informar a população sobre os projetos que estavam sendo implantados no Istmo de

Tehuantepec, em especial, o Corredor Eólico do Istmo (TAVARES, 2010).

11 Em 1660, os povos indígenas de Tehuantepec protagonizaram uma violenta rebelião motivada pela

exagerada exploração econômica por parte das autoridades coloniais. Dois séculos depois, a rebelião

encabeçada por Che Gorio Melendre levou os Zapoteco a lutar pela restituição de suas salinas e pelo

respeito à autonomia comunal dos indígenas. Em 1910, emerge nova rebelião indígena comandada por

Che Gómez.

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As empresas eólicas chegaram à região do Istmo desde 1994 fazendo testes sobre o ar e

começaram a fazer contratos de arrendamento. A empresa Gás Natural Fenosa chegou

em Juchitán em 2006 fazendo contratos com os camponeses da Sétima Seção. Iam

diretamente nos ranchos, nas fazendas dos camponeses lhes oferecendo dinheiro.

Primeiramente, lhes ofereceram conversa. Convidavam os camponeses num domingo e

compravam muita comida, cerveja e refrigerante e assim conviviam com os camponeses

e, quando estes já haviam tomado umas cervejas e comido, lhes diziam que iriam ser

ricos, que existia um projeto, chamado projeto eólico, e que iam recebe algo como 50

mil pesos por cada aerogerador e que iam ganhar uma quantia considerável de dinheiro

por hectare, quando os aerogeradores já estivessem instalados. E diziam que se

fechassem o acordo, durante aquela etapa de arrendamento receberiam 150 pesos ao ano

por hectare. Com o argumento que traziam de que iam transformá-los em ricos, os

camponeses arrendaram suas terras. Eles foram nas casas dos camponeses um a um,

firmaram contratos de arrendamento e instalação dos aerogeradores. Mas, nesses

acordos tantos as leis mexicanas como a Convenção 169 da OIT foram violadas pelo

próprio Estado mexicano e pelas empresas transnacionais. (CARLOS SANCHES, da

Rádio Comunitária Totopo, em entrevista à autora, 2013).

Paralelamente ao trabalho realizado através da rádio, organizações de Direitos

Humanos promoveram encontros com os indígenas da Sétima Seção, camponeses e

pescadores, para repassar informações sobre o projeto eólico. Daí nasceu, em 2007, a

Assembleia em Defesa da Terra e do Território, assessorada por Betina Cruz e Rodrigo

Flores Peñaloza, que passou a percorrer a região prestando esclarecimentos à população.

A atuação desta assembleia gerou forte reação. Os que estavam à frente do movimento

começaram a sofrer ameaças e foram obrigados a se ausentar da região, retornado

apenas em meados de 2013.

Em 2010, a mobilização indígena fez com que as empresas anulassem parte dos

contratos firmados com os camponeses. Um dos que conseguiu anular o contrato e

recuperar o acesso às suas terras após um ano de arrendamento foi o zapoteco Mário

Santiago Martinez:

Foram nos enganar de casa em casa, dizendo que haveria muito dinheiro para os

camponeses... Disseram que, depois de instalados os aerogeradores, não poderíamos

entrar em nossos terrenos para trabalhar livremente, para plantar. Teríamos que pedir

permissão. Queriam pagar 150 pesos ao ano por cada hectare... Fui uma das cerca de

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200 pessoas que conseguiu sair do acordo com a ajuda de Betina e Rodrigo. (MÁRIO

SANTIAGO MARTINEZ, em entrevista à autora, 2013).

Ao longo dos anos, houve o recrudescimento das investidas estatais e

empresariais para a expansão dos parques eólicos na região. No início de 2013, a

empresa Gás Natural Fenosa iniciou seus trabalhos de construção para o Parque Eólico

Bií Hioxo (vento velho, vento forte), visando a instalação de 117 aerogeradores em 2

mil hectares de terras comunais. Diante dessa pressão, indígenas em oposição ao projeto

instituíram a Assembleia Popular do Povo Juchiteco (APPJ), em fevereiro de 2013, que

ocupou certo vácuo criado pela ausência dos que encabeçavam a Assembleia em Defesa

da Terra e do Território.

A Assembleia Popular do Povo Juchiteco é a continuidade da luta que iniciamos em

2006. E no dia 25 de fevereiro, a Assembleia Popular foi bloquear o caminho da

empresa Gás Natural Fenosa e instalou a barricada, o acampamento de vigilância na

estrada que dá acesso à Playa Vicente. (CARLOS SANCHES, da Rádio Comunitária

Totopo, em entrevista à autora, 2013).

Foi o início de um enfrentamento diário que durou um mês até que o

acampamento foi destruído, em 26 de março de 2013, baixo a um forte aparato policial.

Durante o tempo em que a barricada esteve de pé, o acesso de funcionários e veículos

da empresa Gás Natural Fenosa à Playa Vicente, região onde pretendem instalar os

aerogeradores, foi paralisado.

Após esse enfrentamento, os membros da Assembleia Popular do Povo Juchiteco

e da Rádio Totopo passaram a sofrer ameaças e perguições. A Rádio foi desmantelada e

precisou ser fechada por um tempo. Depois mudou de local. As pessoas ameaçadas

passaram a não andar sozinhas e a restringir as saídas de casa. Apesar do clima bastante

tenso, os interantes da APPJ continuaram a realizar reuniões diárias e mantiveram a

resistência ao projeto eólico na região.

Todo esse processo tem ocasionado graves cisões entre os próprios indígenas.

De um lado, alguns apoiam a instalação dos parques, pois acreditam que poderão lucrar

com isso; de outro lado, uma parte se opõe, pois acredita que os impactos ambientais,

econômicos, políticos e sociais serão irreversíveis.

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Outra forma de resistência dos que se opõem ao projeto eólico ocorre com a

manutenção das festas tradicionais dos povos indígenas, tais como as peregrinações aos

sítios sagrados e rituais, que, incidem nas regiões de interesse das empresas. Uma

peregrinação foi realizada em 14 de dezembro de 2013, a Santa Cruz Guuze Benda

(Santa Cruz dos Pescadores) ou Santa Cruz Eolicu (agora também chamada de Santa

Cruz Eólico), quando cerca de mil Bennizá percorreram o caminho que liga Juchitán a

Unión Hidalgo e observaram, pela primeira vez, o impacto causado pelos maquinários e

aerogeradores em terras onde antes se plantava uma espécie tradicional de milho (xuba

huini).

A peregrinação passou em frente à entrada que conduz ao sítio sagrado Guela

Be’ñe’ (Estuário do Lagarto), que atualmente se encontra com o acesso fechado,

protegido por cercas e guardado por vigilantes armados que impedem a passagem dos

indígenas, camponeses, pescadores e peregrinos. A manutenção das peregrinações

rituais constitui uma forma de resistência da cultura indígena, de fortalecimento dos

princípios comunitários e de apropriação dos espaços comunais requeridos pelas

empresas.

Figura 2 – Santa Cruz dos Pescadores, dezembro de 2013.

Conclusões: a persistência da comunalidad e a autonomia indígena

A partir do contexto brevemente exposto, propomos refletir sobre as dinâmicas

de organização vivenciadas pelos Bennizá de Álvaro Obregón e da Sétima Seção de

Juchitán diante das ameaças de instalação de parques eólicos em seus territórios.

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Observa-se nessa circunstância, a reapropriação de tradições comunais como forma de

resistir e de organizar a resistência indígena aos projetos que ameaçam seus territórios.

Uma delas, foi o resgate do sistema de Usos e Costumes12 em Álvaro Obregón para a

escolha das autoridades municipais por meio de convocação da Assembleia Geral,

visando tomar as decisões de forma coletiva e participativa. Na Sétima Seção, o mesmo

fundamento baseado nas tomadas de decisões compartilhadas ocorre com a criação da

Assembleia em Defesa da Terra e do Território e da Assembleia Popular do Povo

Juchiteco, como alternativas para a organização, ação e resistência indígenas.

Em Oaxaca, a forma indígena tradicional de organizar a vida social, ou seja, a

existência coletiva, é denominada comunalidad. Comunalidad é um conceito divulgado

primordialmente pelos intelectuais indígenas de Oaxaca, Floriberto Díaz Gomes (Mixe

de Tlahuitoltepec) e Jaime Martínez Luna (Zapoteco de Guelatao), e pelo pesquisador

Benjamin Maldonado numa tentativa de expressar um conhecimento genuinamente

indígena. A proposta é um esforço de leitura da realidade e análise do cotidiano

indígena baseado num evento comum aos povos indígenas de Oaxaca: a vida em

comunidade.

A comunalidad é uma forma de nomear e entender o coletivismo indígena. É mais que

um gosto pela associação, sendo, na verdade, um componente estrutural dos povos

indígenas. É a lógica pela qual funciona a estrutura social e a forma pela qual se define e

articula a vida social. Além de ser estender a todos os povos indígenas, há que se

considerar sua profundidade histórica. As comunidades indígenas em Oaxaca têm uma

história centenária; uma cultura com uma multiplicidade de aspectos físicos, de

conhecimentos e práticas que os diferencia de outros grupos de comunidades; uma

língua própria e, portanto, uma identidade. É possível que sua vocação comunal de

12 Em 30 de agosto de 1995, os deputados do Congresso de Oaxaca aprovaram um decreto que criou um

livro suplementar, de cinco artigos, no código eleitoral do estado (Código de Instituições Políticas e

Procedimentos Eleitorais de Oaxaca – CIPPEO). Os artigos fazem referência aos procedimentos

consuetudinários que empregam as comunidades indígenas durante as nomeações de suas autoridades. A

medida oficializa o que as comunidades sempre fizeram à sombra da lei: designar suas autoridades em

assembleias públicas, sem a intervenção direta dos partidos políticos e fora das datas oficiais das eleições.

Cria-se, assim, uma distinção entre dois tipos de municípios: os que realizam suas eleições segundo os

“Usos y Costumbres” (Usos e Costumes) e aqueles que as realizam por meio dos partidos políticos

(RECONDO, 2006). A situação de Oaxaca é complexa já que coexistem dois sistemas eleitorais distintos

provenientes de filosofias eleitorais distintas: a de “Usos y Costumbres” faz referência ao serviço

comunitário, enquanto a dos partidos políticos alude à filosofia da democracia liberal. Dos 570

municípios oaxaquenhos, 412 passam a adotar a forma dos Usos y Costumbres, enquanto 158 se mantêm

com a eleição via partidos políticos.

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organização também seja centenária, mesmo que suas formas tenham se transformado

(MALDONADO, 2003, tradução nossa).

A ideia de comunalidad está alicerçada em quatro elementos centrais da vida

comunitária indígena – o território, o trabalho, o poder e as festas comunais – que são

atravessados pelos demais elementos da cultura (língua, cosmovisão, religiosidade,

conhecimentos, tecnologias etc.). Baseado na ideia da comunalidad, Maldonado (2002)

afirma que os diretos indígenas (não os formulados para os índios, mas pelos índios) são

basicamente direitos coletivos, direitos de pessoas que agem não por razões individuais,

mas enquanto coletividade. Os integrantes de uma comunidade exercem a coletividade

por meio desses quatro elementos com a participação nas assembleias e nos cargos civis

e religiosos (poder comunal); com a ajuda mútua interfamiliar (trabalho comunal); com

a participação nas atividades festivas (desfrute comunal); com o uso e a defesa do

habitat onde vivem (território comunal).

[...] durante séculos nós, indígenas, temos praticado não a democracia que nos impõem,

mas algo além dela, a comunalidad, tão antiga e tão jovem como é a humanidade: a que

permite divergir, mas buscando sempre que as contribuições dos dissidentes

complementem a palavra da maioria. Isto em nada se parece com a prática da

democracia ocidental na qual discordar significa ser contrário aos desejos do povo

(DÍAZ, 2007b, tradução nossa).

Em Álvaro Obregón, o poder comunal, que representa uma das bases da

comunalidad, esteve, durante algum tempo, adormecido em função da influência

exercida pelos partidos políticos e agora foi reestabelecido por meio da convocação da

Assembleia Geral de Cidadãos e a eleição dos representantes políticos e da polícia

comunitária. A refutação da comunidade de aceitar representantes dos partidos políticos

tem gerado confrontos com o poder municipal, que não reconhece as autoridades eleitas

em assembleia. Ainda assim, em janeiro de 2014, a Assembleia Geral de Cidadão

empossou os membros eleitos para o conselho e a polícia comunitária em dezembro de

2013. Na Sétima Seção, o desfrute comunal, por meio das peregrinações rituais, por

exemplo, são momentos utilizados para fortalecer a autonomia e autodeterminação

indígenas diante das ameaças aos seus territórios e modos de vida.

A autodeterminação é para proteger nossos territórios e para que nós os administremos.

E autonomia para tomarmos decisões e permitir nosso próprio desenvolvimento. O

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desenvolvimento que tem hoje os povos não foi construído por nós, foi implantado, e

sequer nos dão chances de dialogar que tipo de desenvolvimento queremos. E também

não temos o mesmo conceito de desenvolvimento que eles. Temos uma cosmovisão

diferente da ocidental. Na educação, na organização política não vemos refletida a vida

dos povos indígenas. (CARLOS SANCHEZ, da Rádio Comunitária Totopo, in

TAVARES, 2010).

Segundo Luna (2002), a autodeterminação tem sido um sonho eterno das

comunidades indígenas. Algumas, por questões geográficas e também organizacionais,

têm conseguido manter certa margem de autodeterminação, a qual sempre resulta de

uma tensa relação com o Estado. “A grande maioria das comunidades indígenas tem

padecido da subjugação, do extermínio territorial e físico, e outras ainda do homicídio

cultural” (LUNA, 2002). Esteva (1997) traz o termo autonomia para uma posição

central no México no debate intelectual e na luta política, que envolve todo o país, mas

se refere sobretudo aos povos indígenas.

Os Bennizá do Istmos de Tehuantepec se consideram os legítimos herdeiros de

seus territórios e de seus recursos naturais e como tais demandam por ações que os

permitam manter sua existência física e cultural. Desejam conservar as particularidades

que os distinguem e, por isso, lutam para transmitir suas heranças socioculturais,

políticas e econômicas às gerações seguintes. Demandam o direito de educar seus filhos

em suas próprias línguas, de reproduzir seus valores e suas crenças, de ter sua voz

ouvida e respeitada, de defender e gerir seus territórios e, com este objetivo, travam

cotidianamente seus combates em defesa de suas autonomias territorial e política.

Para eles, a anunciada energia limpa propiciada pelos projetos eólicos e

propagada nos discursos das empresas são operadas por mãos sujas ao excluir a

participação das populações impactadas em todo o processo de instalação dos parques

eólicos, ao invadir territórios comunais essenciais às culturas de subsistência da região e

ao causar danos ambientais, sociais e econômicos irreversíveis aos moradores destas

zonas.

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