O Negro No Brasil

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Maria Nilza da Silva

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    oNEGRO NO BRASIL: UM PROBLEMA DE RAA OU DE CLASSE?1

    Maria Nilza da Silva

    Ademocracia racial

    A to badalada democracia racial nos estudos clssicos e ainda presente na ideologia da sociedade brasileira apresenta uma explcita contradio com o no menos apologtico processo de embranqtiecimento.

    O Brasil diante do mundo apresentou-se como o modelo de relaes raciais, o modelo de democracia racial, notadamente diante dos Estados Unidos que apresentam um racismo explcito, definido por

    I Nogueira (1985) lcomo preconceito de origem. Para ser discriminado racialmente basta que o indivduo apresente "uma gota" de sangue negro. A transparncia impactante dos Estados Unidos em relao ao racismo no apresenta possibilidades intermedirias, nem ambigidades, refletindo o sistema dicotmico da sociedade norte-americana (Silva, 1994).

    ~ Park (1945), 'a.o prefaciar o trabalho de Pierson, chega ao ponto de afirmar que a diferena entre o Brasil e os Estados Unidos em relao questo racial devida "inocncia paradisaca" do povo brasileiro.

    Essa pseudocaracterstica do povo brasileiro foi muito defendida por intelectuais brasileiros, como Freyre (1963)', Pierson (1945), Azevedo (1955,1966) contribuindo para que os estudos de relaes raciais fossem fundamentados apenas na presena dos grupos de cor, excluindo teoricamente a questo racial, com a negao da existncia do racismo

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  • no Brasil e a afirmao somente da existncia de grupos de cor. A sociedade estaria sedimentada nas relaes de classe e no de raa. A ascenso social estaria ao alcance de todos, dependendo exclusivamente das potencialidades do indivduo.

    Essa perspectiva terica retardou a devida discusso e a luta pela superao do racismo na sociedade brasileira. Ao analisar essa realidade, Guimares (1995b) mostra quando o racismo brasileiro se torna semelhante, na prtica, ao racismo norte-americano, comeando a ser reconhecido tambm teoricamente entre os anos 40 e 60. '

    "As perspectivas comearam a mudar apenas quando a segregao racial foi desmantelada nos Estados Unidos em consequncia do movimento dos direitos civis. Somente ento as desigualdades raciais passaram a ser claramente atribudas operao de mecanismos sociais mais sutis - a educao escolar, a seletividade no mercado de trabalho, a pobreza, a organizao familiar; etc. A mudana de percepo da discriminao racial nos Estados Unidos alterou tanto a percepo do Brasil pelos anglo-americanos quanto o programa poltico anti-racismo. Desde ento a denncia das desigualdades raciais mascaradas em termos de classe social ou de status passaram a ser um item importante na pauta antiracista. Os racismos brasileiro e norte americano tinham se tornado mais parecidos entre si." (Guimares, 1995b, p.29)

    A questo racial no Brasil vem sendo aos poucos desvendada, embora seja ntida a resistncia ao reconhecimento de sua importncia, e a ausncia de estudos explicada pela existncia de uma democracia racial que se adapta ideologia de defesa do embranquecimento como extermnio da raa negra. Schwarcz (1998) mostra que uma das dificuldades pri~cipais em reconhecer o racismo existente no Brasil que a discriminao remetida ao nvel individual e no assumida como elemento arraigado do cenrio nacional. E, comumente, o preconceito racial de certa forma refutado quando se trata de assumilo, embora amplamente praticado, gerando as conhecidas desigualdades sociais que nas ltimas dcadas esto sendo reveladas por socilogos como Nelson do Valle Silva, Carlos Hasenbalg, Antonio Srgio Guimares, entre outros.

  • Adiscriminao racial

    Assumir o debate sobre o conceito de raa pressupe determinada abertura para reconhecer o sistema de desigualdade estrutural da sociedade brasileira. No Brasil esse debate, que vem se realizando nas ltimas dcadas por alguns pesquisadores, foi precedido pelo estudo dos grupos de cor, concepo baseada nos fentipos e na posio social do indivduo, mas no havia uma discusso aprofundada do conceito. A principal justificativa para a negao da existncia das raas no Brasil foi a "brandura" das relaes entre brancos e negros e especialmente o processo de embranquecimento que apologeticamente foi encampado pela maioria dos nossos pesquisadores . Embranquecimento era visto como estgio de ascenso social do ex-escravo que, pela sua condio, era considerado inferior.

    O estudo de grupos de cor de Pierson, (1945) e Azevedo, (1955, 1966) pressupe uma ideologia racial que toma evidente a peculiaridade do racismo brasileiro cuja base est no extermnio da raa negra a partir r do processo de branqueamento.

    Segundo Schwarcz (1998)

    "O antroplogo Roquete Pinto, como presidente do Congresso Brasileiro de Eugenia, que aconteceu em 1929, previa anos depois e a despeito de sua crtica s posies racistas,um pas cada vez mais branco: em 2012 teramos uma populao composta de 80% de brancos e 20% de mestios; nenhum negro, nenhum ndio." (p.I77)

    I Muitos pesquisadores no foram to explcitos, mas o estudo dos grupos de cor pressupunha um processo de assimilao da populao negra, excepcionalmente na tentativa de extirpar elementos inferiores do cenrio nacional. Guimares (1995a) refere-se ao desprezo

    ! pela abordagem do conceito raa, justificado este pela repulsa ao ~ racismo ou mesmo porque o conceito carrega ideologias opressivas e a

    r sua discusso poderia ratificar as desigualdades. Mas o autor expressa uma posio diversa dessas justificativas e manifesta o seu interesse em abordar a questo nas cincias sociais, pois t

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    "aqueles que defendem a utilizao do termo pelas cincias sociais enfatizam, em primeiro lugar a necessidade de empregar o conceito para demonstrar o carter especfico das prticas e crenas discriminatrias que fundamentam formas agudas de desigualdades raciais e, em segundo lugar, o fato de que, para aqueles que sofrem ou sofreram os efeitos do racismo no h outra alternativa seno reconstruir criticamente as noes dessa mesma ideologia - a vi timao uma prova mesmo que o terreno conceitual que justificou prticas discriminatrias tem uma efetividade maior do que a de um crculo de giz." (Guimares, 1995a, p. 46)

    Hoje, a luta daqueles que reconhecem as desigualdades existentes no Brasil consiste justamente em defender a importncia do estudo da questo racial e do conceito de raa. Enquanto este no for enfrentado por cientistas e pelos prprios negros numa forma de autoidentificao no ser possvel extirpar as desigualdades to antigas no cenrio nacional, especialmente mediante o seu processo de naturalizao. Guimares (1995b) refere-se s metforas da questo racial abordadas na forma de classe, gnero e outros. H uma mscara que esconde uma das questes fundamentais do cenrio nacional: o racismo. Racismo que se traveste na ideologia da democracia racial, especialmente na defesa do embranquecimento como processo de integrao da camada "inferior" "superior" da sociedade. Contudo, nesse processo de embranquecimento poucos mestios ascendem socialmente, a maioria permanece muito prxima da realidade dos pretos, com poucas excees.

    O Brasil sempre se orgulhou de sua "democracia racial", ideologia que vigora ainda hoje no senso comum. A principal justificativa para essa dificuldade em reconhecer o sistema de desigualdades baseado na questo racial est na; inexistncia de uma legislao racista. O Estado est oficialmente ausente da responsabilidade em face do racismo no Brasil (Andrews, 1998). A culpa pela existncia do preconceito e da discriminao racial transferida para o nvel individual, atribuindo-a ao prprio negro por ocupar uma posio inferiorizada na sociedade.

    No se discutem as estratgias de desigualdades estruturais como educao, sade, trabalho, renda. que compem o cenrio nacional (Guimares, 1995b), havendo uma naturalizao da situao. Sem o devido reconhecnento dessa realidade fica mais difcil lutar contra o

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  • processo de marginalizao de quase 50% da populao negra no Brasil. Schwarcz (1998, p.179) afirma que essa realidade

    "aparece de forma estabilizada e naturalizada, como se as posies sociais desiguais fossem quase um desgnio da natureza, e atitudes racistas, minoritrias e excepcionais: na ausncia de uma poltica discriminatria oficial, estamos envoltos no pas de uma boa 'conscincia' que nega o preconceito ou reconhece como mais branda. Afmna-se de modo genrico sem questionamentos uma certa harmonia racial e joga-se para o plano pessoal os possveis conflitos ."

    Essa naturalizao das desigualdades que faz parte da teoria de muitos cientistas tambm assimilada pela populao e, talvez em alguns casos, pelos prprios negros que no tm possibilidade de visualizar objetivamente o contexto no qual esto inseridos. Ao nosso ver esse foi o principal problema, pois manifesta a ausncia da discusso racial ao longo de muitos anos no cenrio cientfico no Brasil. Somente a partir da dcada de 50, com os estudos patrocinados pela UNESCO, a venda dos olhos comea a cair e o Brasil passa a demonstrar semelhanas com os Estados Unidos no referente questo racial e ao processo de excluso do negro.

    Uma das preocupaes presentes no Brasil era a tentativa de demonstrar a sua distncia em relao ao racismo dos Estados Unidos, porquanto aqui, supostamente, havia uma convivncia pacfica entre brancos e negros e uma democracia racial que concedia chances a todos, baseando-se na suposta inexistncia de raas no Brasil.

    Nos Estados Unidos a questo racial est explcita na Legislao; ,. no Brasil havia o reconhecimento apenas dos grupos de cor baseado na

    apresentao fenotpica, sendo esta uma das principais causas da dificuldade do reconhecimento do racismo em nosso pas. Em relao

    I..

    I aos Estados Unidos, Silva (1994, p.68) afirma:

    l "Na sociedade norte-americana, basta um indivduo ter um ancestral negro para ser classificado como negro independentemente da suas caractersticas fsicas aparentes. Esse tipo de regra que nem sempre se constitui na norma da sociedade norte-americana ( ... ), obviamente reflete

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    e reproduz uma rgida classificao racial e dicotmica: o indivduo ou branco ou negro, sem possibilidades intermedirias, sem ambigidades."

    Nos Estados Unidos o conceito de raa evidente (Guimares, 1995a) no necessrio discuti-lo. No o que ocorre no Brasil, uma vez que ainda hoje existem enormes dificuldades em apresentar o termo raa na pauta das discusses cientficas. As pessoas "cultas" evitam abordar a questo, e, segundo Guimares, a discusso realizada por pessoas "no-refinadas", aquelas que tem um discurso de senso comum, como as vtimas de discriminao e os militantes de movimentos.

    oembranquecimento

    A ideologia do embranquecimento talvez seja uma das mais cruis expresses do racismo no Brasil; primeiro, favorece a falta de identidade de uma raa imputando-lhe um outro modo de identificao que no corresponde a sua essncia e, ainda, a ideologia do embranquecimento retira do cenrio nacional a discusso da questo racial, visto que defende a idia de ausncia de raas e faz apologia da existncia da . cordialidade entre brancos e negros, excluindo a possibilidade de conflitos. Contudo, apenas o branco sinnimo de valores positivos, desde os valores mais elementares do cotidiano, como aqueles relacionados ao status social. Se o negro quiser fazer parte do estrato superior dever abdicar da sua raiz "inferior" e tomar-se "branco". O processo de branqueamento inclui negao das caracteIsticas no-nobres e adeso a valores dominantes. Essa ideologia previu o desaparecimento do negro enquanto raa, mas h um aumento do nmero de mestios no Brasil, assim como um decrscimo no nmero de brancos e pretos.

    Para Andrews (1998) ocorre um processo de . "bronzeamento" da populao e no de branqueamento como desejavam os pesquisadores, h algumas dcadas. Esse processo de clareamento da raa negra com o aumento do nmero de mestios no possibilitou para estes a alardeada ascenso social. Poucos mulatos ascendem, conforme afirma o autor em anlise do Censo de 1940 e 1980:

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  • "Os dados do censo deixam claro que durante os ltimos cinqenta anos o Brasil experimentou um processo no de branqueamento, mas de bronzeamento. Entre 1940 e 1980, a populao parda foi o grupo que cresceu mais rapidamente no pas, ascendendo de 21,2% para 38% da populao nacional. Durante o mesmo perodo os brancos declinaram de 63,5% para 54,2 porcento do total e os pretos de 14;6% para 5,9%. Se os afro-brasileiros em mobilidade ascendente passaram para a categoria dos pardos e para a categoria racial dos brancos, isso no acontece em nmeros suficientes para reverter esta tendncia."

    r (Andrews, 1998, p. 387) Se o processo de embranquecimento mantido tambm pela t posio social que torna o negro "mais claro", esse mesmo processo

    I no acessvel a todos, pois poucos negros e mestios ascendem. E~-quando ascendem, o seu branqueamento no total e, ainda que ~ possuam status social de branco, nem todos os benefcios de que este

    L dispe esto ao alcance do negro. Ocorrem fortes restries. Figueiredo (1998), em seu trabalho sobre os profissionais liberais

    negros na cidade de Salvador, afirma que a ascenso social trouxe a

    .r estes a possibilidade de enegrecimento, de reconhecimento de sua real r identidade, ao contrrio do que defendido por muitos ao afirmarem I, que a ascenso social clareia o indivduo. A mesma sociedade que

    aposta no processo de embranquecimento para "extirpar" a "inferioridade" presente no negro no aceita o "embranquecido", pois este comea a ocupar posies que eram exclusi vas do grupo dominante branco. O dinheiro foi mostrado como condio de branqueamento e a pobreza, de enegrecimento, como mostraram alguns estudiosos da questo (Azevedo, 1966; Pereira, 1948; Silva, 1994), mas o dinheiro tambm pode enegrecer quando a tentativa de integrao do negro barrada pela prpria sociedade branca.

    Figueiredo (1998) evidencia em seu trabalho outra dificuldade encontrada pelo negro que ascende, pois este considerado exceo regra; no h uma conscientizao do potencial do negro, pois os poucos que conseguem uma mobilidade ascendente so vistos como exceo e como indivduos isolados. O prprio negro tambm no conta com a solidariedade tnica como ocorreu com outras populaes que apoiavam

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    seus membros. O caso emblemtico o dos imigrantes, que chegaram ao Brasil, num projeto elitista de embranquecimento da sociedade e receberam investif!1entos do governo nacional (Andrews, 1998) para a sua integrao e, ainda possuam uma prtica de apoio interno aos seus membros. O negro no encontrou nenhum apoio do governo, ao contrrio, nem tampouco do seu prprio grupo tnico tendo que competir no mercado em condies de desvantagem com o branco. Por isso acredita-se que o processo de embranquecimento provavelmente seja um dos mais cruis estgios do racismo brasileiro.

    oPreconceito racial

    Oracy Nogueira (1985) faz distino de dois tipos de preconceito: o de marca e o de origem. O primeiro estaria relacionado s evidndas externas, ao fentipo do indivduo e o outro relaciona-se ao pertencimento a um grupo racial, a uma etnia cujas caractersticas o distinguem de outros grupos. O autor afirma:

    "Considera-se como preconceito racial uma disposio (ou atitude) desfavorvel, culturalmente condicionada em relao aos membros de uma populao, as quais se sentem como estigmatizados, seja devido aparncia, seja devido a toda ou parte da ascendncia tnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raa se exerce em relao aparncia, isto , quando toma por pretexto para suas manifestaes, os traos fsicos do indivduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que de marca; quando basta a suposio de que o indivduo descende de certo grupo tnico, para que sofra as conseqncias, diz-.se que de origem." (Nogueira, 1985, p.78)

    O principal modelo de preconceito de origem, segundo Nogueira, foi o praticado nos Estados Unidos em contraposio expresso de preconceito utilizada no Brasil, denominado como preconceito de marca, pois refere-se s caractersticas externas do indivduo. Assim, assumir a existncia do preconceito no Brasil no to difcil como reconhecer a discriminao racial. Muitos pesquisadores e a prpria sociedade

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  • reconhecem a presena do preconceito racial, contudo, no nvel individual e no no estrutural, que se reflete na discriminao racial.

    Para Guimares (1998), o preconceito, enquanto manifestao de uma crena prvia baseada em valores e qualidades presentes na

    ,

    - idia de raa, mais reconhecido, contudo condenado em nvel intimista e restrito. Ainda no foi possvel a opinio pblica se convencer que a estrutura desigual da sociedade brasileira motivada pela discriminao racial como um dos seus elementos fundantes . Segundo Schwarcz (1998, p.183)

    "ningum nega que exista racismo no Brasil, mas sua prtica sempre atribuda a 'outro' . Seja da parte de quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem sofre com o preconceito, o difcil administrar a discriminao e no o ato de discriminar."

    A dificuldade e a recusa de discutir a questo racial motiva essa hipocrisia em relao estrutura desigual do Brasil, pois que o evidenciado racismo se manifesta justamente no sistema de desigualdades de oportunidades (Guimares, 1998) verificadas no Brasil atravs da educao, do trabalho, da renda etc. Esse sistema de desigualdades quase sempre foi visto como um problema de classes sociais. As desigualdades seriam extirpadas medida que a proposta socialista vigorasse. Contudo, isso representa apenas mais um tipo de mscara que contribui para no se atingir a raiz do problema no Brasil, vale dizer, o racismo promotor de desigualdades. A luta pela derrubada dessa estrutura pressupe uma tomada de posio. Segundo Guimares (1998, p.43)

    "desafio mais crtico para aqueles que lutam contra o racismo no Brasil est justamente em convencer a opinio pblica do carter sistemtico e no-casual destas desigualdades; mostrar a sua reproduo cotidiana atravs de empresas pblicas e privadas, atravs de instituies da ordem pblica como a polcia e os sistemas judicirio e correcional; atravs das instituies educacionais de sade pblica. assim pode-se esperar levantar o vu centenrio que encobre as dicotomias elite/povo, branco/negro na sociedade brasileira."

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  • Aproblemtica do estudo da questo racial no Brasil

    Autores como Donald Pierson, Thales de Azevedo, entre outros, ao discutirem a questo dos negros na sociedade brasileira referiram-se a estes como membros de grupos de cor, em contrapartida a uma tendncia que os antecedeu, das teorias racistas degenerativas baseadas na biologia. As teorias preocupadas com a presena do negro na sociedade procuraram destacar a classe em detrimento da raa. A justificativa que a situao do negro na sociedade estaria baseada na sua cor, portanto a justificativa para os baixos nveis sociais era a inferioridade baseada na cor mais escura que lembra a escravido, e, medida que houvesse um processo de miscigenao com o embranquecimento do negro, ele teria a possibilidade de ascender socialmente. No prefcio edio brasileira da obra de Pierson, Ramos (1945) afirma que

    " . .. 0 negro de cor mais escura parece ser o que emergiu mais recentemente da escravido e por isso ocupa ainda os degraus mais baixos da vida econmica e social, sofrendo com mais intensidade o preconceito de classe. O 'preconceito de cor', a que alude Frazier, reduzi.r-se-ia, assim, tambm a um preconceito de classe, no sentido de Pierson. (Ramos, 1945, p. 24)

    Durante longo perodo da histria das relaes raciais no Brasil ocorreu a confuso entre a discriminao baseada no racismo e a discriminao baseada na classe social. Foi mais cmodo, diante de um projeto de embranquecimento resolver as questes tericas referentes s diferenas raciais no Brasil (Pierson, 1945), com base na apologia dos grupos de cor e no da raa. Dessa perspectiva o principal responsvel pela inferioridade do negro ele mesmo. H um destaque, na literatura para o mulato que ascendeu socialmente, lembrando-se que quanto mais clara a sua cor, maiores chances de ascender socialmente. o projeto assimilacionista que buscou retirar do negro a sua origem, ainda que para isso ele tivesse que abdicar da prpria identidade.

    Guimares (1995a), em estudos recentes, procura questionar essa postura que marcou a histria dos estudos das relaes raciais no Brasil, numa determinada poca, e prope uma nova forma de estudo

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    baseada no resgate do conceito de raa e dos fundamentos das desigualdades sociais, uma vez que o conceito de classe e posio scio-econmica no do conta da complexidade. A preocupao era desvincular grupos de cor da noo de raa. Contudo, o autor afirma que a diferenciao fenotipica, com reflexos sociais pressupe uma arraigada ideologia racial.

    "Com o declnio do prestgio das teorias racialistas no Brasil, a partir dos anos 40, desaparece - pelo menos no nvel do discurso e da conscincia os apelos a teorias racialistas na definio da cor, tal como a teoria que explicava pela reverso a fixao de caracteres somticos, fentipos e de carter. Os grupos de cor passam a ser pensados em termos de senso comum como enquadrando apenas caractersticas fenotpicas, desaparecendo a sua explicitao racialista e sustentandose apenas numa ideologia da espontaneidade e obviedade de nossas percepes cromticas e fsicas." (Guimares, 1996, p. 144)

    A centralidade fentipicae no racial propriamente dita justificou a importncia da classe em detrimento da problemtica racial no Brasil. Quanto maior a posio social, mais embranquecido o indivduo se toma. Conforme abordado anteriormente, outra perspectiva aparece no estudo de Figueiredo(1998) sobre os profissionais liberais negros de Salvador, que apresentam uma forte identidade tnica ao ascenderem socialmente, contrapondo idia2 de que quanto maior a ascenso social maior o embranquecimento do indivduo negro.

    Experincias de negros que tiveram ascenso social apresentam perspectiva semelhante, em contraposio ao senso comum da ideologia do embranquecimento diante da ascenso social. A experincia de mulheres3 negras que tiveram mobilidade social ascendente atravs da educao formal demonstram forte identidade tnica4 , embora muitas delas poderiam no se auto-identificar como negras por causa da pele clara, mas ao contrrio, reafirmam a identidade baseada na prpria ascendncia e especialmente na conscincia adquirida.

    As trajetrias de vida dos mestios apresentam caractersticas assemelhadas s dos pretos. O processo de embranquecimento enaltecido ao longo da histria dos estudos das relaes raciais, como

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    elemento de ascenso social - teve pouco resultado nessa perspectiva. So poucos os mestios que efetivamente tiveram ascenso social.

    Andrews (1998) reconhece a existncia de diferenas raciais entre o grupo mesti05 e o preto, mas em relao ao grupo branco, essas diferenas diminuem o seu impacto devido evidente distncia em relao a este ltimo. Andrews enfatiza aspectos comuns entre pardos e pretos, mas no deixa de considerar a existncia de uma dicotomia quando se refere ao relacionamento entre estes, visto que esta revela, com preciso, a estrutura social do Brasil do sculo XX, e reconhece:

    " verdade que todos os pardos tm mais probabilidade do que os pretos de conseguir essa mobilidade: mas os benefcios da preferncia racial e do progresso social chegam apenas para uma pequena proporo do grupo racial pardo, a maioria deles continuando a viver e a trabalhar em condies indistinguveis daquelas de seus concidados pretos." (Andrews, 1998, p. 391)

    Uma questo de raa ou de classe?

    Muitos ainda hoje acreditam que as desigualdades sociais que fazem parte do cenrio da sociedade brasileira uma questo de classe social. Nas ltimas dcadas, vrios estudiosos da sociedade procuram convencer a opinio pblica que o reducionismo econmico est superado, numa tentativa de demonstrar as reais interferncias dos problemas relacionados a gnero, raa, religio, entre outros, na questo da desigualdade.

    A ideologia de que as distncias sociais so motivadas apenas pela questo econmica fortemente sustentada pela bandeira da falsa democracia racial. Est arraigada no pensamento social brasileiro a idia de que o pobre o nico responsvel por sua posio social, assim como o negro em relao pobreza, remetendo ao injustiado a responsabilidade pela prpria posio.

    Os estudos que fundamentam a importncia da classe em relao raa e produzem influncias no pensamento contemporneo pem sua raiz, desenvolvimento e difuso em estudiosos das relaes raciais. o

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  • caso de Donald Pierson (1945) e Thales de Azevedo (1955, 1966). Pierson, em seu estudo sobre relaes raciais na Bahia, salienta a diferena entre as relaes raciais no Brasil e aquelas dos Estados Unidos. Para ele, na sociedade brasileira predominava certa cordialidade entre os brancos e os negros, sendo que as distncias sociais entre os dois grupos fundamentavam-se, sobretudo, numa questo de classe e no de raa. A posio social inferior do negro era justificada pela recente passagem de uma conjuntura de escravido para a liberdade. Portanto, necessitava de mais tempo para que as desigualdades fossem resolvidas. Mas a responsabilidade em superar a condio inferi~r dependia, segundo Pierson, da prpria habilidade do negro. Se ele fosse capaz sairia daquela realidade, que o segregava tambm espacialmente.

    "Assim, embora a Bahia esteja dividida de modo definido em classes 'superiores' e 'inferiores', que ocupam reas bastante distintas da cidade e estas classes e divises geogrficas tendam a corresponder aproximadamente s divises de cor, pode-se notar algumas excees importantes, cujo aparecimento indica classe [mais] que If!0!, como base da organizao social." (Pierson, 1945, p. 78)

    Os rarssimos exemplos de exceo de negros que conseguiram ascender socialmente se transformaram em motivo para desconsiderar a importncia da desigualdade racial presente na sociedade baiana. Azevedo (1966) justifica a importncia da classe no estudo que realiza sobre os grupos de prestgio, em detrimento da cor e relaciona a questo aos casamentos inter-raciais.

    "Como o conceito de 'cor' envolve elementos antropfsicos e sociais e as relaes raciais so carregadas de notas de classe, toda a unio heterocrnica consiste em um simultneo rompimento de preconceito de 'cor' e das distines e distncias sociais derivadas da posio e da conscincia de classe."(Azevedo, 1966, p.8)

    A questo econmica para Pierson e Azevedo determinante; contudo, os autores no questionam as diferenas de oportunidades no processo de conquista de status social, embora Pierson reconhea

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  • que os negros tenham que lutar mais para a conquista de posies semelhantes s dos brancos, procura, no entanto, justificar a luta desigual, pois para ele o negro parte do estrato social mais baixo e da descendncia escrava recente e remete a responsabilidade pela superao de posies inferiores ao prprio negro.

    "Na determinao do 'status' social, a competncia do indivduo tende a superar a origem racial. " (Pierson, 1945, p. 240)

    Maria Isaura Pereira de Queiroz (1978) reconhece a existncia de duas correntes no estudo da questo racial no Brasil. A primeira que remete as diferenas e desigualdades sociais ao problema das classes; a existncia do preconceito seria, pois, um problema ameno, visto que baseada na posio econmica. A outra postura envolve uma problemtica maior, pois considera que as diferenas raciais so o fundamento das posies desiguais e injustas em que o negro se encontra. Nessa perspectiva, haveria uma segregao racial que remete ao sistema de castas. Queiroz salienta mais a classe que a raa. Para ela, medida que os problemas econmicos fossem resolvidos, os negros no teriam problemas raciais.

    "No existe, no Brasil, uma dualidade tnica -o termo 'dualidade' tomado em sua legitima expresso que a de dois grupos tnicos irredutveis um ao outro. Existem preconceitos, mas estes so regidos em sua expanso ou em sua amenizao pelas necessidades do mercado de trabalho de uma sociedade de classes. No momento em que a ascenso da coletividade negra se materializa, por constiturem os negros uma mo de obra indispensvel, os preconceitos tnicos (atitudes desfavorveis contra um grupo tnico) ficam em baixo e no se tomam obstculos ascenso.) No momento em que a ascenso freada pelas caractersticas conjunturais do mercado de trabalho, os preconceitos so usados para justificar a existncia das barreiras ento opostas." (Queiroz, 1978, p. 259)

    Nessa perspectiva, a questo racial emerge quando o mercado est em crise, e, ao ser superada, j no se levantar o preconceito racial como bandeira que justifique as desigualdades scio-econmicas.

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    Cintistas SOCiaiS, com considerada influncia na formao do pensamento social brasileiro, so responsveis pela difuso da idia de classe ao invs de raa, que se encontra arraigada na sociedade contempornea, o que dificulta levantar a problemtica racial como objeto de estudos cientficos.

    Para Oliveira, Porcaro e Costa (1985), Florestan Fernandes liderou uma corrente na dcada de 50 e 60 que prev a relao entre classes e raas. Reconhece que o processo de transformao scio-econmicoindustrial que ocorre no mundo, e na sociedade brasileira especificamente, no atende aos anseios de todos igualmente. Existe a problemtica racial, pois negros, que no sculo passado saram do regime de escravido para a liberdade, continuam vivendo sob um regime de casta. Foram excludos do mundo do capital. Contudo, acredita o citado autor que, embora haja problemas raciais, estes sero superados quando forem eliminadas as classes. Essa perspectiva fundamentada na proposta marxista para soluo dos problemas sociais. Embora reconhea que o negro convive com um problema duplamente qualificado, enquanto raa e como trabalhador, Florestan pensa que o problema_racial no fundamental, porquanto vir a transformar-se, com a abolio das classes.

    "A interao de raa e classe existe objetivamente e fornece uma via para transfonnar o mundo, para engendrar uma sociedade libertria e igualitria sem raa e sem classe, sem dominao de raa e sem dominao de classe. O nosso debate e o fim do nosso movimento esse. No Brasil no se pode proclamar simplesmente: 'proletrios de todo o mundo, uni-vos' . A nossa bandeira no arca com as contingncias do eurocentrismo inerente ao capital industrial emergente. Ela se confronta com o sistema de poder mundial de termo financeiro e.oligopolista (ou monopolista). E que nos dita: 'proletrios de todas as raas do mundo, uni-vos.' A conseqncia a mesma: eliminar a classe como meio de explorao do trabalho e de preservao das desigualdades e iniqidades que ela detennina, inclusive as raciais. Isso significa em nossa sociedade, proletrios, negros e brancos, uni-vos para forjar a sua sociedade, no a dos capitalistas. O que no simples, porque o negro deve emanciparse coletivamente em termos de sua condio racial e como fora de trabalho." (Fernandes, 1989, p.12)

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    Segundo o autor, para que houvesse democracia raciat no Brasil, era necessrio o regime socialista. Desta forma, as diferenas seriam niveladas, At mesmo as raciais, pois todos os potenciais presentes na sociedade seriam aproveitados. Florestan considerava que o talento mais desperdiado no Brasil era o talento do negro. As mudanas nas relaes de classe conduziriam s transformaes nas relaes raciais. Contudo, pesquisadores contemporneos prevem que ainda que a questo das classes sociais fossem ~esolvidas e a sociedade fosse econmica e socialmente igualitria em relao ao contingente de trabalhadores, a questo racial no estaria resolvida to simplesmente.

    lanni (1978) reconhece a existncia de diferenas entre o trabalhador branco e o negro. Este, para desfrutar de condies semelhantes s do branco teria que se esforar muito mais, deveria ser melhor que o trabalhador bralCo. Para lanni, assim como para Fernandes, o negro duplamente desfavorecido e vai percebendo o processo desfavorvel em que est inserido tanto em relao classe quanto em relao raa.

    " ... 0 negro toma conscincia de sua dupla alienao: como ~ e como membro de classe. Nesse sentido, para reduzir ou eliminar as condies de alienao, da sua condio duplamente subalterna, o negro levado a pr-se diante de si mesmo e do branco como membro de outra raa e membro de outra classe. Enquanto membro de classe, est mesclado com membros de outras raas e precisa lutar a partir dessa condio. Nesse contexto, raa e classe subsunem-se recproca e continuamente, tornando mais complexa a conscincia e prtica polticas do negro." (Ianni, 1978, p: 80)

    Oliveira, Pore aro e Costa (1985), ao analisarem a postura de Fernandes e Inani, acreditam que para estes o problema racial representa uma mscara do conflito de classes e, principalmente que o "conflito racial se transformar em conflito de classe." A raa, nessa corrente de pensamento, um elemento secundrio. O que importa resolver os conflitos das classes e a partir da poder ocorrer a proclamada democracia racial.

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    oprocesso de segregao

    Segundo Hasenbalg (1979), fica cada vez mais difcil justificar as desigualdades sociais experienciadas pelos negros na atualidade atravs da sua origem social, pois estes so os mais prejudicados na sociedade brasileira. A problemtica racial determinante, nesse caso.

    O fim do regime escravocrata poderia ter significado uma libertao social do negro, mas este continuou preso quele sistema quando o excluram do processo de transformao da sociedade brasileira. A sociedade construda, ao longo de quase quatro sculos, pelo trabalho do negro, quando muda de sistema joga o seu artfice sua margem e a maioria da populao negra ainda se encontra no lugar que a sociedade lhe concedeu. Segundo Andrews (1998), o governo gastou milhes de dlares com os imigrantes, mas no investiu absolutamente nenhuma quantia com a populao negra. Ao contrrio, explicitamente a excluiu da possibilidade de exercer a cidadania Primeiro, com a Repblica, proibiu o voto aos analfabetos e para os negros que se constituam a maioria destes e, posteriormente, no permitiu ao negro ingressar no mercado de trabalho, especialmente o homem negro. No caso da mulher, esta continuava a servir s casas dos patres brancos como empregadas domsticas, babs e concubinas. mulher negra restou o pesado fardo de manuteno dos companheiros, quando tinha, e dos filhos.

    O negro no simbolizava o progresso que a sociedade no Brasil queria representar. Segundo Queiroz (1978, p.238):

    "A abolio da escravatura modificou profundamente a estrutura scioeconmica do pas, cuja definio fundamental fora at ento a existncia das relaes senhor-escravo. interpretada geralmente como rejeio dos antigos escravos para a periferia da estrutura scio-econmica,

    r passando a formar um sub-proletariado miservel, sobretudo nas cidades r do sul do pas. Nesta regio ampliava-se a imigrao europia desde a

    expanso cafeeira, fazendo aumentar rapidamente uma mo-de-obra f ocidental, o que no se dava com os antigos escravos. Ora, as grandes cidades brasileiras foram submetidas a um processo marcante de I 'aburguesamento' no decorrer do sculo XIX. Os antigos escravos no r apresentando as caractersticas requeridas para se adaptarem s exigncias

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  • urbanas novas, ligadas principalmente expanso da administrao pblica, dos servios, do comrcio, foram rejeitados para uma camada social inferior dos imigrantes brancos; dificilmente podia entrar em concorrncia com estes no mercado de trabalho urbano, para o qual no estavam preparados do ponto de vista da instruo e de conhecimentos gerais, no estando assim aptos a ganhar eficientemente sua vida numa sociedade transformada e em plena expanso."

    Na histria do negro no Brasil difcil constatar onde a injustia praticada est mais acirrada. Esta indiscutvel quando se refere ao perodo de escravido mas, aps a "abolio", qual foi verdadeiramente o benefcio concedido ao negro, se ainda hoje est relegado aos estratos mais baixos da escala social?

    Fernandes (1972) afirma que diante das transformaes da sociedade, o negro tenderia paulatinamente a ser absorvido pelo sistema de classes sociais, mas reconhece que o processo ocorre demasiado lento contribuindo para a sua permanncia, com poucas excees, nos pores de pobreza social.

    "As contradies sociais herdadas do passado e que entravam a integrao do 'negro' e do 'mulato' ordem social competitiva emergente no interessavam seno populao de 'cor', de resto a nica diretamente prejudicada por aquelas contradies." (Fernandes, 1972, p. 31)

    Somente aps 1945, segundo Fernandes, a sociedade se toma um pouco mais tolerante em relao mo-de-obra do negro. Isso se deve ao constante crescimento econmico. Mas, ainda diante da necessidade do trabalho do negro, este ocupou sempre os postos menos privilegiados, e o pior, nessa trajetria desigual e injusta, que diante da posio social ocupada pelo negro, sempre lhe foi atribuda a responsabilidade, no se considerando a estrutura social e internalizando-se a idia de que, se o negro no venceu , porque lhe faltou capacidade. A difuso desta idia constitui um dos maiores males dignidade da populao negra, uma vez que a classe dominante conseguiu que parte considervel dos negros aderissem a essa postura ideolgica. diante desse contexto adverso que o negro luta pela sua ascenso social.

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    Ascenso social e embranquecimento

    o estudo da ascenso social do negro parece carregar uma contradio e um questionamento sobre a pertinncia deste tema, visto que a maioria dos negros brasileiros ainda no saram do jugo da pobreza e do lugar marginal que a sociedade lhes reservou. A justificativa da temtica est justamente no bojo desta contradio, em especial quando a ascenso social do negro, ao longo de muitos anos de estudo, resultou de um processo de branqueamento. O negro deveria autonegar-se enquanto raa para ser aceito na sociedade dominante. Para Azevedo (1966, p.33), o negro embranquece quando ascende:

    "A identificao do grupo superior com os brancos expressa hoje com sentenas como 'quem tem dinheiro branco' desde que o conceito de branquidade simultaneamente relativo ao tipo fsico e posio social. Uma pessoa de traos negrides atenuados pode ser considerada branca se rica ou tem papel de relevo. ( ...) um preto que alcana uma posio elevada vem a ser tratado como 'escuro' , como 'roxo'; at mesmo 'moreno', nunca como 'preto' e muito menos como 'negro', que um termo depreciativo e ofensivo."

    Se o negro quisesse sair da marginalidade deveria autonegar-se enquanto raa, e para tornar-se smbolo de prosperidade, beleza, riqueza e de valores positivos, embranquecer-se. Mas esse processo sempre foi relativo e limitado, pois a mesma sociedade que impe tal condio tambm "nega" o embranquecido, manifestando o preconceito e a discriminao tanto no cotidiano do negro pobre quanto no daqueles que ascenderam e conquistaram um status mais elevado na sociedade; sempre h restries manifestas nas diversas expresses da discriminao racial, no trabalho, na educao, no rendimento inferior, na segregao espacial etc.

    O mulato, segundo Pierson (1945), teve mais chances de ascender, pois que quanto mais claro, maiores se julgavam as suas capacidades. O potencial em manifestar valores positivos, considerados valores brancos, era visto como algo inerente ao indivduo de pele clara, ou seja

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    ao mulato, devido a sua aproximao com a cor branca. Nessa persperctiva, aparece com destaque a violncia simblica a que o negro submetido, pois tudo que remete sua origem considerado negativo. Hasenbalg expressa os efeitos desse tipo de violncia em relao s oportunidades de ascenso social:

    "No que diz respeito ao racismo, alm dos efeitos dos comportamenJos ' discriminatrios, uma organizao social racista tambm restringe a motivao e o nvel de aspiraes das pessoas no brancas. Quando se consideram os mecanismos que atribuem a mobilidade social ascendente dos no-brancos, s prticas discriminatrias dos brancos (sejam elas sutis ou abertas) devem ser acrescentados os efeitos de bloqueio derivados de internalizao de uma auto-imagem desfavorvel por parte daqueles que no so brancos. Desta forma, as prticas discriminatrias, a evitao de situaes discriminatrias e a violncia simblica perpetuados contra os no-brancos se reforam mutuamente, fazendo com que normalmente negros e mulatos regulem suas aspiraes de acordo com o que culturalmente imposto e deferido como o 'lugar apropriado' para pessoas de' cor.' (Hasenbalg, 1979, p. 167)

    A hipocrisia manifesta na negao do racismo e na difuso de valores negativos como sinnimo de negritude violenta toda a trajetria de um povo, ao qual foi negado o direito de sonhar e aspirar a condies dignas de cidadania. As poucas excees que conseguem furar os bloqueios da pobreza sofrem as conseqncias de uma sociedade que no aceita o negro, especialmente quando este representa um elemento na concorrncia de status social.

    Bastide (1971) refere-se a Donald Pierson para quem o negro no poderia representar ameaa enquanto concorrente do branco, visto ser este o seu provedor, e o negro ser considerado como um dependente do branco. Segundo Bastide, no entanto, essa situao no seria confirmada em uma regio como So Paulo em que o negro poderia ter melhores possibilidades de ascenso, principalmente mediante a instruo. Afirma:

    "... onde a facilidade de instruo, as oportunidades da industrializao, o enfraquecimento do controle dos brancos devido disperso das famlias

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  • tradicionais numa imensa cidade, permitiram a ascenso dos negros j no como indivduos isolados, mas como grupo social. A partir desse momento (o branco) comeou a sentir-se ameaado nos seus postos de direo e mando." (Bastide, 1971, p.188)

    Essa ascenso grupal, a que se refere Bastide, confrontada com as outras posies de estudiosos da questo racial, para os quais ocorre ascenso individual e no grupal; no existe uma "classe mdia" negra, mas indivduos negros que pertencem a estratos mdios. Muitos manifestam a solido social pela dificuldade em interagir com seus pares raciais. ngela Figueiredo, no estudo sobre profissionais liberais negros de Salvador, mostra que estes no se sentem embranquecidos, ao contrrio, sofreram um processo de enegrecimento. medida que ascendem socialmente vo se auto-percebendo negros. Visto que, a classe dominante lhes mostra que so negros e que, portanto, deveriam ocu par outro espao na sociedade, ratificando a posio de inferioridade.

    Finalmente, a ascenso social de indivduos negros vista como exceo particularmente porque esta depende de esforos que, conforme o consenso da sociedade, o negro no realiza, atribuindo-se apenas s qualidades individuais o processo de superao da marginalidade. Para essa ideologia o sucesso depende de esforos e virtudes individuais (Mills, 1976). O xito pessoal est acima da estrutura social. Nesse sentido a ideologia da inferioridade do negro

    ..

    ..

    ganha potencial maior, pois o indivduo que ascendeu representa aquele que optou por aderir aos valores considerados brancos. Essa ascenso individual manifesta a falta de solidariedade tnica que est

    I presente em outros povos (Figueiredo, 1998). Por isso, como vimos, r estudiosos das questes raciais afirmam no existir uma classe mdia negra, mas indivduos dispersos.

    A ascenso individual pode representar algo no confortvel para os negros, porque h uma solido tnica. Nem sempre o poder aquisitivo representa aceitabilidade por parte do branco. nesse sentido que, para Weber, a questo econmica no possui um fim em si mesmo, a posio social do indivduo determinada pelo pertencimento ao grupo de status.

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  • Muitas vezes pode ocorrer uma tolerncia, mas no a integrao social. O negro que ascende tem que conviver com outro elemento que geralmente pode incomodar, pois exceo regra e causa surpresa se ocupa posies privilegiadas (Bastide, 1971).

    Notas I Este artigo faz parte do primeiro captulo da dissertao de mestrado Mulheres Negras: o preo de lima trajetria de sucesso, defendida em 13 de maio de 1999 na PUC/SP.

    2 Ver: Souza, Neusa Santos (1983) Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Graal.

    3 Ver: Silva, Maria Nilza da (1999) Mulher negra: O preo de uma trajetria de sucesso. So Paulo. Dissertao (Mestrado) PUC/SP.

    4 Considera-se tnico o grupo com identidades socio-culturais comuns, independentes das caractersticas fentipicas.

    , Considera-se mestio aquele denominado mulato, pardo, moreno.

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    Abstract The purpose of this paper is to conduct a bibliographical review in order to recover the classical' discussion about social class, race, ideology of the whiteninglblackening and the issue of individual success. From lhe 70s on, with the rising of the organized black movements, improvements in the struggle against racism and racial prejudice and discrimination occur. However, difficulties in assuming the racial issue as a real problem which needs to be faced by the Brazilian society, still exisl. If this facing problem does not happen, the social differences based on racism will continue to exist and with a tendency to incitement, specially when it is concerned with equality of opportunities.

    Key-words: race; racism; racial disctimination; c1ass; black; prejudice.

    Maria Nilza da Silva professora do Departamento de Cincias Sociais da UEL

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