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O Íntimo Poeta do Sol - Prefácios publicados nas obras poéticas de Eugénio de Andrade Ana Rita de Almeida Lopes Martins da Cunha Dissertação de Mestrado em Edição de Texto abril, 2019

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O Íntimo Poeta do Sol - Prefácios publicados nas obras poéticas de

Eugénio de Andrade

Ana Rita de Almeida Lopes Martins da Cunha

Dissertação de Mestrado em Edição de Texto

abril, 2019

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à

obtenção do grau de Mestre em Edição de Texto, realizada sob a orientação

científica do professor Fernando Cabral Martins.

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Agradecimentos

Quero começar por agradecer ao meu professor de mestrado e orientador,

o professor Fernando Cabral Martins, por todo o apoio, disponibilidade e ajuda

dada durante este percurso.

Agradeço aos meus pais, irmão e ao João pela força e suporte incondicional

e por acreditarem em mim.

Agradeço também o incentivo que tive, particularmente à Mariana, Inês,

Miguel, Natacha, Carlota e Bianca.

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[O Íntimo Poeta do Sol – Prefácios publicados nas obras poéticas de Eugénio de Andrade]

[O Íntimo Poeta do Sol – Forewords published on the works of Eugénio de Andrade]

[Resumo] Nesta dissertação serão analisados os prefácios editados em publicações

de poesia de Eugénio de Andrade, durante a vida do autor mas também os publicados postumamente, dando destaque aos aspetos editoriais e de análise literária.

Teremos então um estudo das obras de Eugénio de Andrade, o seu enquadramento literário, com tem sido lida a sua literatura pelos prefaciadores, sobretudo com o facto de haver alguns que prefaciam várias obras. Será também sublinhada a estrutura do prefácio enquanto parte do livro, o seu valor editorial e a sua originalidade, isto é, a criação do texto original para prefácio ou a sua utilização através de um texto já produzido.

[Abstract] In this thesis will be analysed the prefaces published in Eugénio de

Andrade’s poetry books, during his life but also published after his death, underline its editorial and literary aspects.

We will have then a study of Eugénio de Andrade’s work, its literary framing, how his literature has been read by the prefacers, specially with the fact that some preface several books. It will be highlighted the structure of the prefaces as a part of the books, its editorial value and its originality, meaning, the creation of the original text to preface the book or its use through a already produced text.

PALAVRAS-CHAVE: Eugénio de Andrade, prefácio, poesia, literatura, luz, água, música, edição de texto, editora.

KEYWORDS: Eugénio de Andrade, foreword, poetry, literature, light, water,

music, text editing, publisher.

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Índice

Abreviaturas ..................................................................................................................... 6

Introdução ........................................................................................................................ 7

I - “Eis o homem, eis o seu efémero rosto” – O prefácio de Eugénio de Andrade,

“Poética”, incluído em Poemas 1945-1965 ...................................................................... 9

II - Prefácios publicados em vida .................................................................................... 17

III - Prefácios póstumos .................................................................................................. 26

III.1- Prefácios na Assírio & Alvim ................................................................................... 29

III.1.1 - As fases em Eugénio de Andrade ....................................................................... 58

Conclusão........................................................................................................................ 63

Referências Bibliográficas ............................................................................................... 65

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Abreviaturas

PP/AMEOF/ASD – Primeiros Poemas/As Mãos e os Frutos/Os Amantes sem

Dinheiro

API/AA – As Palavras Interditas/Até Amanhã

CDD/MDS – Coração do Dia/Mar de Setembro

BNB/CAO – Branco no Branco/Contra a Obscuridade

EDT/HOE – Escritos da Terra/Homenagens e Outros Epitáfios

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Introdução

Eugénio de Andrade é não só um dos nomes incontornáveis da literatura

portuguesa contemporânea, mas o segundo poeta português mais traduzido de

sempre, superado apenas por Fernando Pessoa, e com vários prémios atribuídos

em vida, entre os quais o Prémio Camões em 2001. O seu contributo, que se

estende desde a poesia, pela qual ficou mais conhecido, pela prosa e livros

infantis, assim como pelas suas antologias e traduções, é imensurável e

duradouro.

Em mais de setenta anos muito se escreveu sobre ele, e uma parte dessa

literatura integra a sua obra sob a forma de prefácios. É importante perceber

como se tem lido Eugénio de Andrade desde o seu primeiro livro até aos dias de

hoje. Esta dissertação vai ter como objeto de estudos os prefácios editados nos

seus livros de poesia até às publicações mais recentes, em 2018. Serão integrados

os prefácios autorizados pelo autor, publicados durante a sua vida, e os

publicados postumamente. Serão consideradas não só edições das obras do

autor como algumas antologias.

Este estudo terá dois focos importantes, o do campo editorial e o da

análise literária. No campo editorial, será relevante estudar o prefácio como

parte do objeto livro, a sua relevância literária e de contexto para a obra poética

que prefacia. No campo literário, o foco principal será a influência da poesia nas

visões literárias dos prefaciadores e a sua leitura da poesia, durante a vida e após

a morte do poeta. Inevitavelmente, esta dissertação terá um maior foco nas

recentes edições lançadas pela editora Assírio & Alvim, onde se encontram

grande parte dos prefácios até hoje publicados.

Os prefaciadores aqui estudados serão: Eugénio de Andrade, Eduardo

Lourenço, Óscar Lopes, Jorge de Sena, Paula Morão, Arnaldo Saraiva, António

Lobo Antunes, Gastão Cruz, Nuno Júdice, Fernando J. B. Martinho, Federico

Bertolazzi, António Ramos Rosa, Pedro Eiras, Manuel Rodrigues, António Carlos

Cortez, Fernando Pinto do Amaral, Mário Cláudio, Laura Castro, Tolentino

Mendonça e Carlos Mendes de Sousa.

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Entendemos aqui o prefácio como um dos vários paratextos que poderá

fazer parte de uma publicação de uma obra literária ou de investigação. Não

sendo considerado parte do texto, é um elemento que acrescenta e poderá

influenciar a maneira como a obra deve ser entendida, oferecendo uma leitura

breve e resumida da mesma. Ele tende a ser escrito por um especialista da área

de estudo em que a publicação se insere. Alguns exemplos são o caso da

produção de obras poéticas completas ou reedições celebrativas. É no ato

editorial e na sua publicação que o livro ganha a dimensão de objeto literário, e

o prefácio auxilia a compreensão do texto, seja pela maneira como os temas são

abordados, ou outras ocorrências onde sejam visíveis, explícita ou

implicitamente, justificações editoriais para o modo como foi elaborada a

publicação.

Não existe uma estrutura fixa para nenhum dos prefácios, embora muitos

partilhem estruturas semelhantes. Na sua maioria, é frequente haver um título

ou dedicatória. O número de páginas é um elemento inconsistente, por exemplo,

se temos casos de prefácios com duas páginas, outros passam das dez. Os

prefácios mais extensos dão-se muitas vezes nos casos dos que são editados após

a morte do autor.

Eugénio de Andrade escreveu diversos prefácios, particularmente para as

obras que traduziu e para as antologias poéticas que organizou mas, no caso da

sua própria produção artística, divergiu em sentido contrário, escrevendo apenas

um e sendo muito seletivo nos prefácios que surgiam nos seus livros. A tendência

editorial tem sido a ausência de prefácio na maioria das editoras onde o autor foi

publicado, tendência que tem vindo a inverter-se com a sua entrada póstuma na

Assírio & Alvim.

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I - “Eis o homem, eis o seu efémero rosto” – O prefácio de

Eugénio de Andrade, “Poética”, incluído em Poemas 1945-

1965

“O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo

de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e

consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas

mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma

pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas

diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o

particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem,

acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele

nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que

outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando

luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois

esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura

é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e

ausência, plenitude e carência.

Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da

alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou

no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se

encontrou ou sonhou na galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do

poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando

alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado.

<<O futuro do homem é o homem>>, estamos de acordo. Mas o homem do

nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há

milhares de anos, cujas possibilidades estamos tão longe de conhecer, é o fruto de

uma desfiguração – acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem

o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a

ausência do homem no homem que a palavra o poeta se insurge, é contra esta

amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa <<cantar no

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suplício>> é porque não quer morrer sem se olhar nos próprios olhos, e reconhecer-

se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a S.

João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a

Cavafis, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece

dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares

de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a

outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns,

semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário,

desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebelia é em nome

dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo

inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à

palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também

verdade da alma.”

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“Poética” é o segundo prefácio mais antigo aqui tratado e será, de todos,

o mais relevante dos que serão tratados nesta dissertação, o mais importante da

sua obra, pelo facto de ser o único escrito pelo autor, sendo também o mais curto,

com apenas duas páginas.

Foi publicado pela primeira vez em

1966, em Poemas 1945-1965, pela editora

Portugália, na coleção “Poetas de Hoje” e

o número de páginas do prefácio é

contrastante com o número total de

páginas da publicação, que são 247

páginas. Separa-se completamente do

resto do livro onde é publicado a nível

gráfico, por estar escrito em itálico e por

ter um estilo de fonte diferente.

A compilação começa com As

Mãos e os Frutos, a sua primeira obra de

bibliografia ativa, embora a terceira a ser

publicada, já que as anteriores publicações (“Narciso”, assinado com o seu nome

real, José Fontinhas, Adolescente, em 1942 e Pureza, em 1945) foram repudiadas

pelo poeta. No entanto, e embora as primeiras obras não estejam aqui publicadas,

tanto o título da obra como o título que abre o livro, logo a seguir a “Poética”,

engloba os anos de 1945 a 1948. Ao ter uma secção com o título “As Mãos e os

Frutos 1945-1948” poderá querer implicar que a produção do livro converge com

a produção de Pureza, sem a incluir.

Em “Poética” o prefácio assume uma função de apresentação, não da obra

onde se apresenta, mas do que é a poética para o autor. E é também com este

prefácio que se revela o ato poético: “O acto poético é o empenho total do ser para

a sua revelação.”1 De certa forma quebra o que o prefácio geralmente se propõe a

fazer, sem que ao mesmo tempo vá contra esse objetivo pois fala da poesia do

ponto de vista do poeta.

1 Poemas 1945-1965, 1966, pg.9

Figura 1: Poemas 1945-1965, Portugália (1966)

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É um ensaio que tenta explicar o que é a poesia e como esta se interliga

com o Homem, tendo tanto de teoria literária como de criação artística. Não tenta

ser uma explicação científica para o que é a poética ou a poesia, tendo ao mesmo

tempo bases de autores fundamentais para entender a história da literatura

universal.

Por ser escrito pelo próprio autor este texto pode transpor as suas

intenções escolhidas à palavra, ao mesmo tempo que convoca inevitavelmente

uma introspeção e revelação sobre a sua escrita e o que é para este o ato da escrita,

referindo vários autores marcantes e com a intenção da procura para encontrar o

homem e fazê-lo existir tem sido transversal ao tempo e espaço. É também

importante por ser várias vezes revisitado pelos outros prefaciadores, publicado

em várias reedições das suas obras, e porque é significativo analisar a explicação

do autor sobre a sua obra para ajudar a entendê-la e à literatura portuguesa.

No seu prefácio de 2014, “A Outra Face”, na edição de Véspera de Água,

Federico Bertolazzi cita o primeiro parágrafo do texto, embora o não incluindo

totalmente, atribuindo à poesia um elo entre o poeta e os homens, como se a

condição humana dependesse disso e como se a poesia fosse um privilégio que só

depende do seu leitor aproveitar.

Também António Carlos Cortez analisa “Poética” em “Da Luz à Neve: Uma

Leitura da Poesia em Branco no Branco e Contra a Obscuridade”, na publicação

de Branco no Branco/Contra a Obscuridade pela Assírio & Alvim, em 2015. Este

texto é tido como a definição de poesia e do seu propósito, da harmonia das suas

diferentes naturezas. No entanto o seu objetivo e o significado da palavra não

são a de compreender por completo. Esta “opacidade produtiva de sentidos”2 é

perseguida para conseguir transparecer a luz neste trabalho da linguagem,

revelando o real sem que este seja apenas fixado numa única leitura, dando ao

leitor várias possibilidades de como apreender os poemas.

Paula Morão também aborda “Poética”, no primeiro de três prefácios em

obras de Eugénio de Andrade: Poemas de Eugénio de Andrade (1981), pela editora

Seara Nova, e dois em duas obras da Assírio & Alvim, Escrita da Terra/Homenagens

2 BNB/CAO, 2015, pg.12

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e Outros Epitáfios (2014) e Peso da Sombra (2015). Para além de professora

universitária, Paula Morão é ensaísta e tem alguns trabalhos académicos sobre o

poeta. Poemas de Eugénio de Andrade faz parte de uma coleção editorial, cada

uma dedicada a um autor. A informação da “apresentação crítica, seleção dos

poemas, notas e sugestão de leitura” ser feita pela autora é destacada na capa.

Nos três há uma estrutura semelhante, com a exposição dividida em

várias partes numeradas. Tanto neste prefácio como no de Escrita na

Terra/Epígrafe e Outras Homenagens, cada um dos capítulos têm título, dando

conhecimento do seu tema. No seu primeiro prefácio Paula Morão vai dedicar-se

quase exclusivamente à análise de

“Poética” como descritiva da escrita de

Eugénio de Andrade no seu geral. Passa

logo para “Introdução”, o ponto 1 do

prefácio, uma iniciação de “Poética” e da

poesia tratada e os outros pontos focam-

se num ponto específico: a fidelidade.

“Fidelidade ao homem e à sua lúcida

esperança de sê-lo inteiramente;

fidelidade à terra onde mergulha as raízes

mais fundas; fidelidade à palavra que no

homem é capaz da verdade última do

sangue, que é também verdade da alma.3

No segundo ponto, o foco é no

“Homem”. Desde o Homem como ser no

universo e o que o circunda (natureza, tempo e espaço, a sua mutação) mas

também o ser poético e a sua experiência pessoal, a sua vivência humana (a

infância e crescimento, vivências e memórias). A associação e recorrência de várias

imagens para transmitir certas ideias e estados de espírito são desmembrados

noutros prefácios, como no de Óscar Lopes, por exemplo. A infância é a primavera

3 Poemas, 1945-1965, 1966, pg.10

Figura 2: Poemas de Eugénio de Andrade, Seara Nova (1981)

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e ao mesmo tempo “um tempo em que proliferam as contradições, sob a forma

de pressentimentos que só o adulto virá a entender”4, afirma Paula Morão. É a

altura da descoberta e da vida na Beira Alta, do despertar de sentidos e de

observação, o lar na sua mãe como conforto maior. “É todo um mundo confuso” é

o texto de abertura de Os Amantes Sem Dinheiro, um texto onde é lembrada a vida

na casa da Eira e na casa do Adro, a juventude passada com a Ti Ana e a ausência

da mãe, que trabalhava para sustentar o filho: “[Ninguém me abriu a porta] Nem

mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele

que hoje te oferece estes versos.”5

Já a juventude traz o fogo e a consumação, o descobrir do corpo e de outro

ou outros corpos, o eros, a água que corre em movimento. É da ligação da água e

do fogo, dos aparentes opostos que vem o êxtase da junção dos corpos.

“Regressar ao corpo, entrar nele

sem receio da insurreição da carne.

Nenhuma boca é fria,

mesmo quando atravessou

o inverno. Uma boca é imortal

sobre outra boca: diamante

aceso, estrela aberta

quando a luz irrompe, invade

ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.

Despertos, puros no seu pulsar,

aí os tens: esplendorosos,

duros.”6

4 Poemas, 1945-1965, 1966, pg.18 5 in “É Todo Um Mundo Confuso”, in PP/AMEOF/OASD, 2011, pg.83 6 in “Regressar ao corpo, entrar nele”, BNB/CAO, 2015, pg.61

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Se por um lado é a exaltação da experimentação humana, temos um

vislumbre do fim quando vem a noite ou o inverno. É a assombração do

envelhecimento, da morte e da perda a espreitar pela esquina. Ou melhor, associa-

se a noite como a hora e junção e descoberta dos corpos e a madrugada como o

“limiar do dia”, o fim das possibilidades de eternidade. O envelhecimento, por fim,

dezembro, é esperado como inevitabilidade, como reforçado no prefácio de

Eduardo Lourenço. “Amar a boca fatigada do corpo/ou outra ainda mais

estéril/entrar/onde o silêncio desce às fontes”.7 Mas com este envelhecimento

tem-se um homem que “cruamente se olha no espelho”8 e que conseguiu

cristalizar as suas palavras, ultrapassando a morte corporal.

A fidelidade à terra coincide com dois grandes temas do poeta: Geografia

e natureza. Um mais diretamente referido do que o outro mas não menos

importante e ambos são conjugados para descrever o cenário poético. O próprio

admite a importância da Beira Alta na sua poesia. Em Poesia, Terra de Minha Mãe

(1992), que será posteriormente analisado, Arnaldo Saraiva sublinha a sua

importância; o berço da infância e o refúgio na mãe como paisagem das suas

palavras. Muitos dos lexemas que são utilizados fazem parte da natureza, fauna e

flora são metáforas e imagens recorrentes. Não só os animais, mas o próprio

Homem e a sua natureza despida, fecundidade (ventre) e o ciclo da vida. Os

animais, segundo Paula Morão, são fases menos domesticadas e mais livres que o

Homem, as plantas são metáforas do corpo e as suas sensações.

A terceira fidelidade é à palavra. E Paula Morão reflete sobre o “Sacrifício

de Ifigénia”, um texto que voltaremos a ver referido por António Carlos Cortez. É

um dos textos publicados em Rosto Precário que retrata fases da escrita: memória,

música e canto. Isto é, “<<o ritmo>>, a <<música sem nome ainda>> e o “canto

claro e fundo – voz do homem”9, citando as expressões usadas para cada

momento. Nos primeiros dois instantes vive-se uma formação instável, hesitante,

uma crescente aparição da palavra enquanto esta se cristaliza. Com o apuramento

para a palavra a música vai passando a canto, desenvolvendo-se a nível da

7 in “Sem mácula não há luz sobre os joelhos”, Limiar dos Pássaros, 2014, pg.28 8 Poemas de Eugénio de Andrade, 1981, pg.22 9 Poemas de Eugénio de Andrade, 1981, pg.31

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estrutura e intenção de criação e aperfeiçoamento da música. Aqui também se

reforça o facto de haver vários poemas com títulos de diferentes composições

poéticas, embora nem sempre cumprindo uma estrutura tradicional nesses

poemas, existe uma procura por perpetuar a literatura na sua poesia e uma

intertextualidade com a teoria da literatura.

No seu prefácio de Peso da Sombra cita novamente “Poética” para nos

relembrar que a poesia é a procura da “reconciliação, uma suprema harmonia

entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.”10

Todo este labor conclui-se no perpétuo trabalho da palavra, “sílaba a

sílaba”11, resumindo-se em dois versos do poema “Metamorfoses da Casa”:

“Ergue-se aérea pedra a pedra

a casa que só tenho no poema.”12

Este prefácio poderia servir de guia de leitura para Eugénio de Andrade.

Muitas das temáticas abordadas são evidências na sua poesia, começando pela

primeira frase, denunciadora de uma das suas maiores intenções: há sempre

uma tentativa de revelação através do ato poético. O “mergulho do homem

nas suas águas mais silenciadas”13, remetendo a procura do silêncio como a

verdade inalcançável, a água como elemento mais puro, o desejo sereno, a

“suprema harmonia entre luz e sombra”14 são temas clarividentes na sua

poesia. Todos os prefácios posteriores se afastam do modelo de “Poética”.

A partir daqui serão poucas as obras com prefácios que não sejam

antologias poéticas.

10 Poemas 1945-1965, 1966, pg.9 11 Poemas de Eugénio de Andrade, 1981, pg.36 12 in “Metamorfoses da Casa, Ostinato Rigore, 2013, pg.36 13 Poemas 1945-1965, 1966, pg.9 14 Poemas 1945-1965, 1966, pg.9

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II - Prefácios publicados em vida

Os prefácios publicados em obras de Eugénio de Andrade durante a sua

vida são mais seletivos. A grande maioria dos prefaciadores tem um laço mais

íntimo com ele, de amizade. Todos são escritores e professores universitários,

filólogos e ensaístas. Relativamente às obras prefaciadas, quase todas são de

obras reunidas ou antologias da sua

poesia. Existem apenas três prefácios em

vida feitos em obras individuais, duas

vezes em As Mãos e os Frutos, um dos

livros de maior impacto na sua

bibliografia ativa e uma vez em Sulcos da

Sede, o último livro individual de poesia

que publica.

Em 1961, a editora Delfos publica

Antologia: 1945-1961, que conta com um

prefácio de Eduardo Lourenço. O

professor, filólogo, crítico e ensaísta

literário, sobretudo de poesia, tem também

laços pessoais com o autor da obra que

prefacia. Esta é também a primeira reunião das obras publicadas da sua poesia.

Na folha de rosto temos o mesmo grafismo a preto e branco e na folha

ímpar temos uma ilustração do poeta. O prefácio estende-se por vinte e cinco

páginas, num livro que quase chega às 230 páginas. “Eugénio de Andrade ou

Paraíso sem Mediação” repete o seu título no cabeçalho de todas as páginas

menos nas primeiras duas e todo o prefácio está escrito em itálico, salvo as citações

que estão escritas sem itálico e noutra fonte.

Eduardo Lourenço respeita a vontade do poeta ao considerar As Mãos e os

Frutos como o seu primeiro livro, apesar de ser referida a data de 1945 no livro

Figura 3: Antologia: 1945-1961, Delfos (1961)

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onde este prefácio é publicado, vai traçando uma linha até Coração do Dia (1958),

o último livro publicado até à altura, como se houvesse uma veia que atravessasse

as publicações, com uma visão já mais afastada das primeiras obras.

O texto começa com duas epígrafes. Uma destaca a racionalidade da

morte15, a outra fala da vivência e de se ser poeta16. Lidos em conjunto realçam

dois traços da sua poesia. Se, por um lado, os seus poemas falam da vida,

juventude e de vivências que daí derivam, a morte é o outro lado, um fim claro

dessas vivências. A morte é aceite de forma bastante racional, como o

envelhecimento e a noite, e estes dois lados são sempre equilibrados.

“Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte.

(…)

Com que palavras

ou beijos ou lágrimas

se acordam os mortos sem os ferir,

sem os trazer a esta espuma negra

onde corpos e corpos se repetem,

parcimoniosamente, no meio de sombras?”17

O título parece remeter para uma frase do poeta: “A poesia é o inferno; às

vezes também é o paraíso.”18 mas a frase só chegará para explicar metade. A falta

de mediação vem da introdução de obstáculos, que Eduardo Lourenço refere fazer

as imagens “mais luminosas e <<paradisíacas>>”19, das dicotomias que não

parecem entrar em completa contradição e acrescentam “aos esplendores

inversos do Visível e do Invisível, do Dizível e do Indizível”20. É a poesia, que embora

15 “Há um princípio de morte em tudo o que é puramente racional” de R. M. Du Guard, Cartas ao Arquitecto 16 “A vida do poeta é a vida de todos” de G. de Nerval 17 in “Pequena Elegia de Setembro”, CDD/MDS, 2013, pp. 30-31 18 in Rosto Precário, 2015, pg.150 19 Antologia: 1945-1961, 1961, pg.15 20 Antologia: 1945-1961,1961, pg.18

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de núcleo frágil e ardente é transcendente ao ser humano, evocando o finito na

sua existência. É poesia sem nome, onde é equiparada a criação divina à criação

poética. Em “Coração Habitado” esta poesia são as mãos são onde tudo habita:

“(…)

Alguns pensam que são as mãos de deus

− eu sei que são as mãos de um homem,

trémulas barcaças onde a água,

a tristeza e as quatro estações

penetram, indiferentemente.”21

Todo este prefácio se centra numa imagética forte e muito retratada em

Eugénio de Andrade, a fonte. Se na sua poesia nem sempre é diretamente

retratada, podemos considerar a sua abordagem recorrente sobre a água como

um elemento em movimento. É nesta fonte que se oferece transparência, espelha

luz e transmite claridade, características que o poeta pretende que a sua poesia

tenha.

“Falar de um poeta é reenviar o eco atenuado da particular música que a

sua poesia deixa em nós”22. Pela subjetividade que não pode deixar de haver ao

falar de literatura e de poesia e mesmo pelo impacto pessoal que muitos dos

prefaciadores relatam, todos os restantes textos cumprem esta primeira frase.

Neste prefácio As Mãos e os Frutos é uma das maiores referências, é

tomado como uma cápsula do seu trabalho mesmo não sendo o seu livro mais

apurado. À procura de um “milagre de uma plenitude que ele sabe ausente”23, é

essa ausência que é poesia e é na linguagem que se encontram as chaves de

decifração, sem conseguir realmente chegar a elas, pois o cerne tem tanto de

inalcançável como de casa do poeta.

21 in “Coração Habitado”, API/AA (2012), pg.43 22 Antologia: 1945-1961, 1961, pg.11 23 Antologia: 1945-1961, 1961, pg.28

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Óscar Lopes é o autor do prefácio de Antologia Breve, publicado em 1972,

pela Inova Limitada Editora, o número treze da “Coleção Duas Horas de Leitura”.

Óscar Lopes é também amigo do poeta, assim como professor de Filologia e

Ciências Histórico-Filosóficas, áreas onde publicou obras de enorme relevância

para o estudo da linguística e literatura

moderna, colaborador de vária revistas e

jornais literários, crítico e historiador

literário e irmão de Maria Mécia de Freitas

Lopes, a esposa de Jorge de Sena.

“Basta che sia si nobilmente

accessa…”2425 ocupa apenas quatro

páginas das oitenta e oito totais da

publicação e inicia com uma ilustração de

natureza, que se repete na secção dos

poemas, algo que não acontece nas outras

publicações do poeta. É escrito com um

tamanho de letra mais pequeno do que o

utilizado na restante obra e em itálico,

excetuando as citações. Os poemas são

publicados sequencialmente, vários por página, dependendo do seu tamanho.

Não é completamente percetível se a frase com que a página começa será

um título ou uma dedicatória, podendo ser assumida como ambos. Encontra-se

destacada, estando afastada do resto do texto e escrita em letras maiúsculas. A

não tradução da frase pode ser interpretada como instauração de dúvida, também

reforçado pelo uso de reticências, a procura do significado, ou pela sonoridade da

frase abstraída do significado em si.

Neste prefácio é sobretudo louvada a palavra e o seu poder alusivo e de

recuperação. Através das alusões a animais e do sentido maior ao qual aludem, ao

controlo de palavras, que transmite “paisagens por cartografar”26, à sua música.

24 Giordano Bruno, in “De gli eroici furori”, 1585 25 Sugestão de tradução: Basta que seja tão nobremente acesa. 26 Antologia Breve, 1972, pg.6

Figura 4: Antologia Breve, Inova Limitada Editora (1972)

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“Os descobridores do mundo são sempre os maiores campeões da alegria,

sobretudo quando feita da dor mais autêntica”27. É com esta dicotomia que se

consegue chegar mais perto de explicar as palavras do poeta, cujos lexemas são

escolhidos para descrever alusões da forma mais precisa para evocar plenitude e

esperança.

É também uma altura em que se está a descobrir o seu trabalho, e o próprio

ainda por terminá-lo, sendo esta antologia publicada depois de Obscuro Domínio

(1971), o seu oitavo livro.

Em 1973 a Editorial Inova publica As

Mãos e os Frutos/Os Amantes Sem Dinheiro,

ilustrada por Ângelo de Sousa, e o seu

prefácio nasce de um pedido pessoal feito a

Jorge de Sena. Assinado em janeiro de 1970,

este é o texto único que sabemos ter sido

pedido pelo autor. Numa carta de 13 de

janeiro de 1970 lemos: “Aqui tens, junto, o

texto para a edição de As Mãos e os Frutos,

breve e poético, como creio que seria a ideia

do que ele fosse”.28 Jorge de Sena foi um

amigo de Eugénio de Andrade, assim como um

professor universitário, poeta e escritor de

ficção, ensaísta, tradutor e dramaturgo. O conjunto dos dois livros perfaz 90

páginas e o prefácio são quatro. Todo o texto está em itálico, menos as citações.

Aqui há uma intenção maior de contextualizar a obra a nível histórico-

literário. O prefácio começa por justificar a exclusão das suas primeiras três

publicações: excesso de juvenilidade. Considera-se sobretudo o esforço de

entregar uma explicação desta recusa, por transportarem uma juvenilidade que

decide não transportar consigo no seu percurso literário, pelo menos até Primeiros

27 Antologia Breve, 1972, pg.7 28 Correspondência 1949-1978, 2016, pg.273

Figura 5: As Mãos e os Frutos/Os Amantes Sem Dinheiro, Editorial Inova

(1973)

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Poemas, e do qual só dez dos poemas voltaram a surgir editados. Assim, aos vinte

e cinco anos, poderia recomeçar a sua produção literária equilibrando bem a sua

juventude com um início de amadurecimento literário.

Jorge de Sena foca-se sobretudo no livro As Mãos e os Frutos, consagrando-

o como um sucesso literário e este texto debruça-se sobre dois fatores

importantes: o porquê do “sucesso” da poesia do seu conterrâneo, a adesão que

teve no mundo literário e uma explicação do nome da obra, que de certa forma é

um ensaio de explica-la. O seu sucesso foi o de trazer uma poesia jovem, que

estava no limbo entre ser juvenil mas sem imaturidade, uma mistura do ímpeto da

esperança com o fulgor do erotismo em expoente maior, uma dualidade entre a

amargura e o entusiasmo que se balançou tão harmoniosamente na sua poesia, e

sobretudo uma poesia musical a transbordar do labor e de amor à escrita.

As Mãos e os Frutos, embora não tenha como tema principal o paganismo,

um tema que surge com a sua importância embora não dos mais recorrentes, que

reforça as raízes à natureza e poemas como “Green God” para além do paganismo

transparecem uma forte componente erótica.

“(…)

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.”29

Esta análise só é conseguida numa visão mais avançada da sua poesia,

sendo que até 1970 publicou mais sete livros e que na década de 60 a sua poesia

ganhou ímpeto, com a republicação de As Mãos e os Frutos na coleção de poesia

da editora Iniciativas Editoriais (facto reforçado por Gastão Cruz30 no seu prefácio).

29 in “Green God,” PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.52 30 PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.11

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Dezanove anos depois, em 1992, foi publicado “Terra-Mãe, Matéria,

Matriz”, escrito por Arnaldo Saraiva para prefaciar o livro Poesia, Terra de Minha

Mãe, editado pela editora Asa. É um livro celebratório dos cinquenta anos de

escrita de Eugénio de Andrade, contando então assim com Pureza e Adolescente,

mas não com “Narciso”. Arnaldo Saraiva é poeta, cronista, ensaísta, tradutor e

produziu também trabalhos importantes para uma melhor compreensão da poesia

de Eugénio, os quais ainda são referência

para o seu estudo.

Este texto ocupa onze das 159

páginas do livro, com as particularidades de

ser ilustrado com fotografias de Dário

Gonçalves e de ter mais dez centímetros do

que as publicações normais de Eugénio de

Andrade.

Sublinha-se a importância que a sua

terra natal e a Beira Baixa têm para o escritor

e para a sua escrita, algo que sempre

reforçou. No primeiro ponto, é sobretudo

relevante porque o autor viveu nessa região

durante apenas a sua infância, tendo vivido a maior parte da sua vida noutras

partes do país. O segundo ponto é também relevante por só haver poucos poemas

que referenciam implícita ou explicitamente a sua terra. Um dos exemplos é

“Canção Infantil”: “Era um amieiro. /Depois uma azenha. /E junto/um ribeiro.”31

Embora tivesse outro título originalmente, era o poema de abertura de Pureza, e

foi dos poucos selecionados para fazer parte de Primeiros Poemas.

Aqui são esmiuçadas as referências topográficas à Beira Baixa, transversais

e simbólicas de forma a poder redigi-las com o rigor que lhe é atribuído, para criar

as imagens que pretende transpor na página. Arnaldo Saraiva evoca a sua própria

experiência como leitor de Eugénio de Andrade, ao lê-lo no Fundão conseguiu

atribuir organicamente familiaridade às palavras e ao ambiente circundante sem

31 in “Canção Infantil”, PP/AMEOF/OASD, 2011, pg.32

Figura 6: Poesia, Terra de Minha Mãe, editora Asa (1992)

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precisar de saber as suas origens. O chamamento da terra e o gosto pela oralidade

são clarividentes na sua poesia desde os seus primeiros livros, que embora

repudiados pela impureza do dote poético, são dos mais expressivos sobre as suas

raízes na Beira. Alguns dos poemas citados ocupam uma boa parte da mancha

gráfica da página, dando-lhes destaque por justificarem as temáticas que Arnaldo

Saraiva pretende trazer ao de cima.

O prefácio termina com o que poderia ser o início do texto, uma explicação

do título. Os levantamentos sobre forma e conteúdo que se fazem neste prefácio,

no geral, podem acusar-se à maioria da obra de Eugénio de Andrade. A

musicalidade do poema e o poder do canto, os sentidos, o Homem e a mãe. O

nome deste prefácio é aliterado e os temas são três dos mais marcantes na sua

poesia. Sobre terra e mãe, são dois temas conjugados num, como se fossem

indissociáveis. “Falar da terra ou da mãe é falar da mesma coisa. Quando digo mãe

digo terra quando digo terra digo mãe”32. Também a mãe tem uma dicotomia,

embora não muito falada. No invés, a ausência do pai, do qual nunca fala a não ser

referir que nada sabe sobre ele: “e do meu pai, sei lá!, parece que se chamava

António/e que andava pela África”33. Falando sobre a matéria, sobretudo referido

matéria-prima, já que os bens materiais físicos não figuram na sua poesia como

tendo orgulho nas suas posses materiais. E sobre a matriz, fazendo questão de

manter sublinhadas as suas origens na sua vida pessoal e no seu trabalho poético.

32 Poesia, Terra de Minha Mãe, 1992, pg.14 33 Poesia, Terra de Minha Mãe, 1992, pg.12

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“Bom dia, Eugénio” é o prefácio que António Lobo Antunes escreve para

Sulcos da Sede, em 2001, pela Fundação Eugénio de Andrade. Na maior parte dos

casos, os livros da Fundação Eugénio de Andrade seguem todos o mesmo grafismo,

de capa branca com “Obra de EUGÉNIO DE ANDRADE” seguindo o número da obra.

António Lobo Antunes é psicanalista, vocação que deixou de exercer para seguir a

de escritor. É também cronista e amigo do poeta.

A relação de amizade entre os dois

revela-se neste texto, que se estende por três

páginas, das sessenta e seis totais do livro.

Não se pretende uma análise crítica literária

mas sim uma análise à sua personalidade e

ao impacto da sua poesia. Sublinha os

atributos do amigo, a falta de vaidade, uma

“aguda inteligência de alma”34 e que lhe deve

a sua existência para além da sua vida através

do seu trabalho literário.

“Escrevi um dia que quando o

coração se fecha faz mais barulho que uma

porta. Não imagina como lhe agradeço,

Eugénio, que o seu se mantenha calado num vigilante desvelo, convidando-me a

entrar onde uma máscara de bronze nos aguarda para ficar connosco.”35

Posteriormente tem um posfácio em Primeiros Poemas/As Mãos e os

Frutos/Os Amantes Sem Dinheiro, pela editora Quasi, com o título de “Coração do

Dia”36, Em 2006. Aqui também temos uma vista pessoal e pouco focada na obra

do poeta que se encontrava doente e que acabaria por falecer no ano seguinte.

34 Sulcos da Sede, 2001, pg.12 35 Sulcos da Sede, 2001, pg.13 36 Publicado originalmente a 6 de maio de 2004 como crónica na revista Visão, foi depois publicado no Terceiro Livro de Crónicas pela Dom Quixote, em 2015, antes de ser publicado na edição referida.

Figura 7: Sulcos da Sede, Fundação Eugénio de Andrade (2001)

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III - Prefácios Póstumos

As reedições das publicações são retomadas pelo lançamento de Poesia,

em 2011, pela editora Modo de Ler. Nesta obra poética voltamos a ter um

prefácio de Óscar Lopes, com “A Mãe d’Água ou A Poesia de Eugénio”. Este texto

foi inicialmente publicado em 199337 e seguindo com a sua intenção original de

ter Óscar Lopes a prefaciar esta obra, e por impossibilidade do mesmo de

produzir um prefácio original por motivos de doença, foi utilizado pela editora

Modo de Ler como prefácio. O livro é de capa dura e sete das suas 719 páginas

pertencem ao prefácio.

Pelo tempo que passou desde o

último prefácio e a fixação total de todo o

seu trabalho poético, assim como o seu

contributo e importância na literatura

portuguesa, Óscar Lopes assemelha a

palavra dele a mito, não no sentido usual

da palavra (história mitológica) mas que

emana uma “aura mítica”38, através da

sua destreza verbal. A sua escrita é

descrita como “uma certa memória como

que <<imemorial>> (...), uma memória

que mal precisa do suporte civil”39. Neste

prefácio volta a falar-se de cristal e a

associar a ideia da cristalização à palavra na sua poesia.

Tanto pelo título como pelo início do prefácio voltamos à imagética da

água, como Eduardo Lourenço sublinhou, tão presente na sua poesia que Óscar

Lopes confessa ter pensado no seu título de forma intuitiva. Este não é o único

37 Publicado originalmente em 1993 e posteriormente compilado e publicado em A Busca de Sentido: Questões de Literatura Portuguesa. 1994. Lisboa: Caminho 38 Poesia, 2011, pg.7 39 Poesia, 2011, pg.7

Figura 8: Poesia, Modo de Ler (2011)

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que liga a imagem de mãe a outras imagens recorrentes na poesia eugeniana, o

que é pertinente pois a imagem de mãe e casa estão ligadas em várias ocasiões.

A imagem de água continua a ser reforçada como uma imagem carregada de

força, seja pelo movimento, com carga erótica ou com personificações que no

contexto do poema ganham força (Óscar Lopes dá exemplos: “tresmalhadas”,

“em demência”, “nuas”). As fontes mais frequentes são “os lábios” ou “a boca”,

justificando a recorrência a lexemas dessa natureza e também pela ocorrência de

verbos como “beber”, um verbo “de sôfrega apetência, da absorção perante todo

um mundo que se desejaria inseparavelmente materno, mas que se sabe

inesgotável, inassimilável”40.

Reforçando a busca de lexemas que surge sistematicamente nesta poesia,

assim como os verbos conjugados no tempo presente do modo indicativo e

certas expressões que fazem o poema iniciar como um texto descritivo (dá o

exemplo de “eis” ou “estás”41). Toda esta descrição também só é possível graças

às intensas descrições dos espaços, das sensações corporais e emotivas

mostradas, como memórias tateáveis às quais acedemos quando lemos estes

poemas.

Em 2015 sai 26 Poemas: 26

Pinturas, publicado pela Câmara

Municipal do Fundão, que nasce de um

projeto plástico chamado “Eugénio de

Andrade – 26 poemas revisitados pelo

atelier 26”, um coletivo de pintores do

Porto, a sua cidade honorária, que

pretenderam homenageá-lo através da

pintura, um médium presente nos seus

livros.

Este projeto assinala também os

dez anos do seu falecimento e destaca a contínua influência e importância da sua

40 Poesia, 2011, pg.13 41 Poesia, 2011, pg.10

Figura 9: 26 Poemas: 26 Pinturas, Câmara Municipal do Fundão (2015)

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obra. O prefácio foi escrito pela vereadora da cultura da Câmara Municipal do

Fundão, Alcina Cerdeira.

Antologia Mínima, publicado dois anos depois, pela editora Modo de Ler,

tem a particularidade de ter dois prefácios e não um. A seleção de apenas vinte

poemas manuscritos e vinte

ilustrações de Cristina Valadas,

também ilustradora dos seus dois

livros infantis, têm a mesmo

importância no livro, tendo um

prefácio para cada ponto embora

ambos analisem tanto do texto

como dos desenhos, já que ambos

são indissociáveis numa obra

deste teor. Mário Cláudio prefacia

com foco no texto, nascendo “A

Luminosa Sombra da Voz” e Laura

Castro com “No Interior do desenho e da palavra”. A seleção foi feita tendo em

conta os temas mais marcantes e sonantes da sua poesia.

Figura 10: Antologia Mínima, Modo de Ler (2017)

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III.1 - Prefácios na Assírio & Alvim

Em outubro de 2012 sai a primeira edição de Primeiros Poemas/As Mãos

e os Frutos/Os Amantes sem Dinheiro com o comando diretório da Assírio &

Alvim. Há uma aposta nesta coleção em prefaciar cada volume, o que lhe

acrescenta no valor e entendimento crítico-literário. O estilo editorial é uniforme:

as capas têm ilustrações de Ilda David, com branco e uma cor igual para as

gravuras e a lombada. Na parte de trás temos apenas dois elementos. Um dos

poemas de cada obra, como apresentação do livro e o prefácio tem lugar de

destaque, já que a indicação do prefaciador é um dos poucos elementos no

exterior do livro.

Quase todas as publicações da Assírio & Alvim agrupam mais do que um

título, mantendo-se geralmente entre as

setenta e as cem páginas. Os seus

poemas, ao contrário do que era habitual,

são publicados um por página.

Gastão Cruz é o primeiro

prefaciador desta coleção, foi professor

de secundário, Leitor de Português e é

poeta, dramaturgo e crítico literário,

assim como tradutor. Faz parte da

geração de poetas que começou a

escrever na década de 60.

“O Real é a Palavra”, o título do

prefácio, é retirado de um verso retirado do

poema “V”, de Branco no Branco. O texto

ocupa dezasseis das suas 108 páginas.

Agora já com uma visão da nova geração de escritores e já a sete anos de

distância da sua morte concebe-se uma contextualização da sua obra compilada,

no seu surgimento e ascensão, um fio conector que une toda a sua poesia. O

prefácio começa exatamente nos anos 60, quando As Mãos e os Frutos foi

Figura 11: Primeiros Poemas/As Mãos e os Frutos/Os Amantes sem Dinheiro,

Assírio & Alvim (2012)

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publicado pela editora Iniciativas Editorial, na sua coleção de cadernos de poesia.

Foi a partir daí que a sua obra ganhou ímpeto, assim como vários dos escritores

da altura. Seis anos depois surge a primeira reunião de poesia, desde 1948 até

Ostinato Rigore (1964). Os anos 60 são uma fase onde esta poesia se equilibra

muito entre o novo e na palavra mais madura. A segunda fase avança a

velocidade rápida para o seu expoente máximo mas mais ainda numa altura de

extrema repreensão e censura política, uma luta que se sentia só de se produzir

trabalho artístico durante essa época.

Neste texto Gastão Cruz aproxima Eugénio de Andrade com Carlos de

Oliveira, cujos primeiros poemas são equiparados por serem curtos e exatos, e

com Sophia de Melo Breyner Andersen pelo seu objetivo de chegar ao puro e

limpo, nesta poesia “o silêncio é mais limpo que as palavras, o que implica a

admissão de que a própria poesia é limitada pela sua natureza verbal. É esta que

a impede de atingir o silêncio para que ela tenderia, se tal não correspondesse

ao seu próprio desaparecimento”42. Não podendo a sua poesia chegar à pureza

através do silêncio, a pureza terá de chegar lá através das palavras.

As Mãos e os Frutos é um livro de amor, carregado com eros e

masculinidade, sem ser no entanto militante, cheio de tensão entre dicotomias,

em que o ponto de partida, geralmente negativo, parte para a busca da solução

através do amor.

“Somos como árvores

só quando o desejo é morto.

Só então nos lembramos

que dezembro traz em si a primavera.

Só então, belos e despidos,

ficamos longamente à sua espera.” 43

O próprio livro inicia em sentido contrário num momento cheio de dia e

de luz para a vizinhança do fim. Aqui acentua-se a sua jovem idade para escrever

42 PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.11 43 in “IV”, PP/AMEOF/ASM, 2011, pg.46

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um livro com tanta maturidade, à luz do que Sena já tinha sublinhado, um livro

que contém tanta vulnerabilidade e desejo com uma forte consciencialização da

vida. Poemas como “VIII” destacam a força do léxico de fauna e flora e intensifica

o enquadramento paisagístico no qual se pretende que o leitor mergulhe. “Foi

para ti que criei as rosas. /Foi para ti que lhes dei perfume. /Para ti rasguei

ribeiros/e dei às romãs a cor do lume. //Foi para ti que pus no céu a lua/e o verde

mais verde nos pinhais. /Foi para ti que deitei no chão/um corpo aberto como os

animais.” 44

Em Os Amantes Sem Dinheiro denota-se um medo maior do

envelhecimento do corpo e das palavras. “Adeus”, poema de encerramento do

livro, é um dos seus trabalhos mais emblemáticos e retrata o envelhecimento, o

fim e o perigo de também as palavras envelhecerem e serem efémeras como os

corpos humanos.

“(…)

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

já não se passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.”45

É um livro muito mais melancólico e disfórico no geral focado na

abordagem mais negativa, jogo visível pelo seu nome. “Os Amantes Sem

Dinheiro”, poema homónimo do livro, é prova do uso de diversos verbos no

tempo pretérito imperfeito, reforçando esta abordagem. “Tinham lendas e

44 PP/AMEOF/ASM, 2011, pg.50 45 PP/AMEOF/ASM, 2011, pp.107-108

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mitos/e frio no coração.” Mas ao mesmo tempo “a cada gesto que faziam/um

pássaro nascia dos seus dedos/e deslumbrado penetrava nos espaços.”46

Em 1950 David Mourão-Ferreira chega mesmo a dizer num ensaio47 que

Eugénio de Andrade não soube seguir o seu próprio “conselho”48:

“Sê paciente; espera

que a palavra amadureça

e se desprenda como um fruto

ao passar o vento que a mereça.”

É considerado por este “um livro precipitado”49, opinião que Gastão Cruz

parece não partilhar mas que analisa como uma visão adequada para a altura. A

expectativa do novo livro conseguir adequar-se a As Mãos e os Frutos era difícil

de ser igualada, considerando no entanto que Os Amantes sem Dinheiro tem a

sua importância no plano geral da sua literatura. É um livro que demostra bem a

visão do poeta sobre a “insegurança criada pela volatilidade do amor”50. Pelo seu

trabalho contínuo e renovador também o escritor deverá ter sentido que este

livro não seria destoado do resto da sua obra, já que tratou de excluir todas as

peças que não achava adequadas ou de modificá-las.

No mesmo ano é publicado “Um Artista da Linguagem”, o segundo

prefácio da coleção da Assírio & Alvim, da autoria de Nuno Júdice. Deste volume

fazem parte As Palavras Interditas (1951) e Até Amanhã (1956). Nuno Júdice foi

professor de ensino secundário e universitário, doutorado em Literaturas

Românicas e é poeta, escritor de ficção e ensaísta, dramaturgo e realizou

também algumas traduções. O texto são apenas três páginas das sessenta e oito

dos dois livros.

46 PP/AMEOF/ASM, 2011, pp.107-108 47 Ensaio publicado posteriormente em Vinte Poetas Contemporâneos, 1980, Ática 48 Jogo de palavras com o nome do poema “Conselho”, em PP/AMEOF/ASM, 2011, pg.85 49 PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.21 50 PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.22

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Um “artista da linguagem” consegue, através da simplicidade da

linguagem, utilizá-la sem perder a aura poética e chegar às mesmas mensagens

por outros modos, o que era particularmente relevante numa altura de censura

literária e política extrema, como foi o contexto português até abril de 1974. Não

só para este sentido remete à interdição

das palavras mas como estas são o lado

oposto das palavras iluminadas. A

interdição acrescenta várias

possibilidades de as aceder e de as ler

sem se perderem os significados que se

quer passar.

Já não sendo as primeiras obras,

mas sendo mais aperfeiçoadas

poeticamente, ainda vivem a juventude,

o encontrar da vida com o eros e da

“colheira de sensações no campo da

própria vida”51.

“Litania”52 é reconhecido por Gastão Cruz como altamente demonstrativo

desta poesia e um dos seus maiores momentos. O poema ser quebrado em várias

temáticas representativas da sua obra total: a adoração de um outro corpo (“O

teu rosto inclinado pelo vento;/a feroz brancura dos teus dentes;/as mãos de

certo modo, irresponsáveis,/e contudo sombrias e contudo transparentes;”), o

controlo avassalador do desejo (“o triunfo cruel das tuas pernas, /colunas em

repouso se anoitece;/o peito raso, claro, feito de água;/a boca sossegada onde

apetece//navegar ou cantar”) o propósito das palavras (“as palavras mordendo

a solidão, /atravessadas de alegria e de terror;//são a grande razão, a única

razão.)”

É graças a esta mestria de palavras que Eugénio de Andrade ganha o título

de artista da linguagem, descrito como um “escultor do verso e da imagem”53,

51 API/AA, 2012, pg.13 52 “Litania”, API/AA, 2012, pg.62 53 API/AA, 2012, pg.13

Figura 12: As Palavras Interditas e Até Amanhã, Assírio & Alvim (2012)

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uma mestria transversalmente reconhecida pelos prefaciadores, um professor

para futuras gerações.

No ano seguinte chega “Entre a Sombra da Melancolia e o Apelo de Eros”,

o prefácio de Fernando J. B. Martinho na publicação de Coração do Dia/Mar de

Setembro, pela Assírio & Alvim. Fernando J. B. Martinho foi professor

universitário, assim como ensaísta, particularmente de poesia portuguesa

contemporânea. Está também ligado a

Jorge de Sena pela sua amizade e pelo

trabalho de ambos como Leitores de

Português nos Estados Unidos. O seu

texto ocupa no total seis páginas das

setenta e oito da publicação.

Coração do Dia (1958) ganha o seu

título num verso de “Retrato”, publicado

em Até Amanhã (“Tigre adormecido,

/coração do dia. /Rosto semeado/de

melancolia”)54. Os seus quinze poemas,

compostos entre 1956 e 1958, são

dedicados à sua mãe, figura de importância

na sua vida e poesia, que falece no ano da

publicação do livro. O livro é apresentado como um único poema e abre com

“introdução ao canto”, uma invocação às musas, fugindo ao seu registo mais

moderno, mas este regressa logo no primeiro poema. “As Palavras”, como

referido no prefácio, é um dos seus poemas mais citados de sempre.

“São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

54 API/AA, 2012, pg.59

Figura 13: Coração do Dia / Mar de Setembro. Assírio & Alvim (2013)

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Outras,

orvalho apenas.”55

A poética é um dos seus temas centrais, assim como a mãe e o seu agora

“silêncio”56, que “de súbito desaba”57.

Do outro lado da melancolia, está Mar de Setembro (1961). Se Coração do

Dia é marcado pela ausência e silêncio, Mar de Setembro, com 28 poemas, quase

o dobro do livro anterior, é um livro celebratório. O livro é fruto de umas férias

no País Basco, durante o ano da publicação e a sua epígrafe celebra a paixão que

de lá trouxe: “Eternity was in your lips and eyes.”58

Neste livro é evidente “a gramática do <<desejo>>”59, o fervor da paixão

e a intensidade das sensações vividas, assim como a sempre presente melodia, o

uso da litania. A sombra encontra-se à espreita, mesmo no fervor do desejo a

podemos ver como possível assombração da chegada do fim.

Para Fernando J. B. Martinho estes dois livros representam um ponto alto

na poesia de Eugénio de Andrade, representativos dos seus dois lados e que

marcam e são marcados nela mudanças da literatura dos anos 60, aqui acusa a

sua transparência e luminosidade, um marco já assinalado por Gastão Cruz e

novamente a menção a As Mãos e os Frutos como o livro “em que o poeta

plenamente se encontra consigo mesmo, com o timbre mais puro da sua voz”.60

No mesmo ano é publicado “Oiro e Melancolia (Sobre Ostinato Rigore)”,

de Eduardo Lourenço, para a publicação de Ostinato Rigore, o quarto da editora

Assírio & Alvim. O prefácio tem oito páginas e o livro no total tem cinquenta e

quatro.

55 in “As Palavras”, CDD/MDS, 2013, pg.22 56 in “Sem ti”, CDD/MDS, 2013, pg.23 57 in “Sem ti”, CDD/MDS, 2013, pg.23 58 Tradução: “A eternidade estava nos nossos lábios e olhos”. Ato 1, cena 3, Anthony and Cleopatra, William Shakespeare). 59 CDD/MDS, 2013, pg.14 60 CDD/MDS, 2013, pg.16

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O título do prefácio é bastante direto ao assunto tratado. Ouro e

melancolia, dois temas que serão tratados neste texto e no livro.

A sua epígrafe é retirada do poema “19” de Matéria Solar, sobre o corpo

e a casa e o corpo nunca é relacionado com negatividade nem mesmo quando

envelhece. (“Um corpo não é a casa da tristeza/e eu sempre pousei à entrada /da

pedra do verão.”)61

Esta poesia sem sujeito e a

transparência das suas palavras para

Eduardo Lourenço são os possíveis

motivos de sucesso desta poesia, pois

para além de a tornar em igual nível

apurada, destaca-se da tradição

portuguesa de tristeza e melancolia.

Ostinato Rigore destaca-se pela

sua dualidade de conseguir ser tão

próxima ao momento exato como se

capturasse a essência e conseguisse tê-lo

feito durar tal como se o vivêssemos na

sua criação. É um limbo que vive no verão

e do verão, da plenitude e do êxtase lírico. As imagens que neste livro prolongam

o verão e o que realmente logra nesta poesia é a “apropriação, por assim dizer,

pura, pictórica, mas sem olhar suposto, de momentos-imagens oferecidos à

nossa contemplação desarmada”62. Esta fora, segundo Eduardo Lourenço, a

poesia pressentida por Cesário Verde e por isso Fernando Pessoa o considerava

seu mestre. É na poesia de Eugénio de Andrade que vem ser concretizado este

pressentimento.

O título só nos é explicado no momento final do texto, inspirado nas

palavras de “Despedida”: (“Colhe/todo o oiro do dia/na haste mais alta/da

61 in “19”, Matéria Solar, 2015, pg.45 62 Ostinato Rigore, 2013, pg.15

Figura 14: Ostinato Rigore, Assírio & Alvim (2013)

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melancolia.)”63 É assim que se despede do verão, uma altura que tem como

prolífica do êxtase mas também finita.

Também em 2013 é editado o prefácio de António Ramos Rosa, para a

edição de Obscuro Domínio publicada pela Assírio & Alvim, no mês em que este

faleceu. António Ramos Rosa foi poeta e tradutor, assim como desenhador e

participou em algumas revistas literárias.

O prefácio perfaz seis das oitenta e três

páginas totais do livro e não tem título ou

dedicatória. É dos poucos que não foi

escrito para a publicação em questão,

publicado pela primeira vez em 197264.

Ao contrário dos outros prefácios,

não tem título nem epígrafe ou

dedicatória, é desprovido de qualquer

elemento para além do texto em si, indo

diretamente ao assunto que pretende

tratar.

Logo no início o poeta aborda o

outro poeta de um nível inalcançável: “Que

se pode pedir a um poeta que atingiu a perfeição?”65. Para fugir à sua perfeição,

abraça a podridão e é nesse prisma que o lê, não fosse logo no primeiro poema

de Obscuro Domínio haver o uso de léxico geralmente pouco recorrente no seu

léxico poético. (“recomeço, /pedra sobre pedra, /a juntar palavras;//quero eu

dizer:/ranho baba merda.)66

É com este vocabulário obscuro que provoca choque mas a imagem que

quer passar não se perde e nem por isso a sua poesia é menos refinada. Como

António Ramos Rosa cita, e pertinentemente, Dámaso Alonso, todas as palavras

têm potencial para ser poéticas. “Não há um léxico especial poético: todas as

63 Ostinato Rigore, 2013, pg.50 64 in Revista Colóquio / Letras. Recensões críticas, n.º6, março de 1972, pp.74-76 65 Obscuro Domínio, 2013, pg.11 66 in “O Ofício”, Obscuro Domínio, 2013, pg.19

Figura 15: Obscuro Domínio, Assírio & Alvim (2013)

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vozes podem ser poéticas ou não o ser, conforme se manejem e segundo a

oportunidade.”67

Esta poesia é comparada a um heterónimo para Eugénio de Andrade, ao

mesmo nível em que Álvaro de Campos é para Fernando Pessoa. Faz parte

integral da sua criação artística mas cria uma novidade na maneira como a poesia

é lida e tomada em conta e despega-se do seu registo normal.

“O poema é uma palavra”68, não só pela musicalidade mas porque todo

o conjunto de lexemas e metáforas, ou mesmo os sons, é um só corpo poético.

Novamente, como em Arnaldo Saraiva, António Ramos Rosa fala do real

e a sua utilização na poesia, como partindo do real o poeta é capaz de construir

um poema com sentidos, que nos trazem um mundo palpável. É com espaços

reais e a sua ausência, contradição entre muitas no mundo poético, que a poesia

tem propósito.

Num dos seus pontos finais contraria todos os outros prefaciadores ao

revelar a impossibilidade de cristalização do poema, pela sua plenitude e

equilíbrio. O que pode ser cristalizado então não são as palavras mas o intuito,

“um grito, o desejo de libertar a própria essência do desejo, de não o consumar,

de o reverter à distância, à impossibilidade”69. É destas contrariedades que o

poema vive e que ganha o seu pleno esplendor e significância.

Antes de ler o prefácio “Lendo Escrita da Terra/Homenagens e outros

Epitáfios, de Eugénio de Andrade”, por Paula Morão, publicado em Escrita da

Terra/Homenagens e outros Epitáfios (2014), ressaltamos o seu prefácio em

Poemas de Eugénio de Andrade: o Homem, a Terra, a Palavra (1981), onde oferece

uma explicação sobre a origem do nome e novamente sobre a importância da

terra.

67 Obscuro Domínio, 2013, pg.11 68 Obscuro Domínio, 2013, pg.13 69 Obscuro Domínio, 2013, pg.16

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“[Escrita da Terra e Outros Epitáfios] a copulativa deixa bem claro que

escrever a terra é fazer-lhe [Eugénio de Andrade] o epitáfio; mas como

singularmente o epitáfio não é a

consagração da morte, antes é a

perpetuação da vida fixada no poema,

daqui decorre que escrever (sobre) a terra

é ainda lutar pela vida”70.

Também sobre o nome, define-se

por epitáfio: “1. inscrição tumular / 2.

escrito em louvor de pessoa falecida;

elogio fúnebre”71.

O prefácio começa com uma

epígrafe agradecendo a Arnaldo Saraiva

pelo seu trabalho sobre o poeta, no qual

Paula Morão se apoia muito. O texto

estende-se por dez páginas das 150 totais

e está dividido em dois pontos, um deles que retrata o percurso editorial dos dois

livros e a segunda parte que se dedica à sua leitura e análise.

A primeira parte, “Para a história editorial dos livros Escrita da Terra e

Homenagens e Outros Epitáfios”, conta a história editorial e denota o problema

de fixação que houve com estes volumes em particular, talvez por terem uma

estrutura diferente dos restantes volumes. Escrita da Terra e Outros Epitáfios foi

publicado pela primeira vez em 1974 pela editora Inova Limitada Editora. Três

anos depois volta a ser publicado pela mesma editora, juntamente com Ostinato

Rigore. Em 1980 a Imprensa Nacional-Casa da Moeda publica Poesia e Prosa I,

incluindo nesta edição Escrita da Terra e Outros Epitáfios. A editora Limiar publica

ambos os livros alguns anos depois, em 1983 Escrita da Terra e em 1984 Ostinato

Rigore/Epitáfios. Em 1987, pelo Círculo de Leitores, e em 1990, tanto pelo O

Jornal como pela Limiar Editorial, é publicado Homenagens e Outros Epitáfios em

70 Poemas de Eugénio de Andrade, 1981, pp.27-28 71 epitáfio in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2019. [consult. 2019-02-28 15:33:25]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/epitáfio

Figura 16 Escrita da Terra/Homenagens e outros Epitáfios, Assírio & Alvim (2014)

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separado, que voltam a ser unidos em 1993 pela Fundação Eugénio de Andrade.

Esta edição é particularmente importante porque é nesta edição que sai um texto

sobre a vontade do ator de como fixar a sua obra poética. “Notas”, que é editado

neste livro, assim como nas edições de Poesia publicadas em 2000 e 2005, marca

a vontade do autor relativamente ao corpus da sua obra poética:

“O que se reúne neste volume (com excepção de uma vintena de poemas

destinados a próximo livro) é toda a poesia do autor. Livros e textos ficam assim

definitivamente ㅡesperemos! ㅡarrumados e fixados. Vale.”72

Na edição de 2005 foi acrescentado o livro Sulcos da Sede e de resto tem

sido a matriz para referência do texto fixado do poeta. Assírio & Alvim publica as

novas publicações com a base da poesia, tomando a escolha editorial de fazer

edições individuais, no entanto respeitando a cronologia dos livros (ou juntando

livros dois a dois ou três a três), e de mudar a configuração dos poemas, tendo

cada um uma página em vez de serem publicados sequencialmente.

O segundo ponto, “Lendo Escrita da Terra/Homenagens e Outros

Epitáfios”, é homónimo ao título do prefácio. Este ponto remete para a leitura e

análise das publicações. Começando pelos títulos, escrita e terra são duas

temáticas principais. Palavra e terra são duas das fidelidades do poeta em

“Poética” e Paula Morão refere que até na articulação “de” do título existe

significado, é uma homenagem à terra e ao seu ciclo de vida e regresso a ela. O

índice e as três secções do livro remetem para um traçar de roteiro um conjunto

de sítios que existem e de conjugar com uma realidade psicológica.

Numa das edições de Poesia e Prosa73, é acrescentada uma epígrafe que

nas outras edições não é colocada. “Every poem an epitaph”74, por T.S. Eliot75. É

esta “concepção bifronte”76 que é demonstrada nesta poesia, o ciclo do que é

que define ser a coisa que define, e a escrita da terra que aqui é escrever a terra.

72 Poesia, 2000, pg.585 e Poesia, 2005, pg.611, citado em EDT/HEOE, 2014, pg.13 73 Edição de 1980, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 74 Tradução: “Cada poema um epitáfio”. 75 “Little Giding”, in Four Quartets, 1943 76 EDT/HOE, 2014, pg.20

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“A Outra Face” foi o prefácio de Federico Bertolazzi para a edição de 2014

de Véspera de Água da Assírio & Alvim, originalmente lançado em 1973. Federico

Bertolazzi doutorou-se na Universidade de Lisboa em Estudos Portugueses, com

uma dissertação sobre Eugénio de Andrade (“Noite e dia da mesma luz. Aspectos

da poesia de Eugénio de Andrade”), tem também várias publicações académicas

sobre o poeta e uma antologia feita e traduzida por ele, chamada Dal Mare o Da

Altra Stella (2006), traduzindo também outros poetas portugueses.

Com uma epígrafe do poema

“XXX”77 é também nesta que

encontramos parte do significado do

título. “(…) Canção, vai para além de

quanto escrevo/e rasga esta sombra que

me cerca. /Há outra face na vida

transbordante:/que seja nessa face que

me perca.”78. Vai lutando para ficar

sempre no outro lado da sombra, daí

transparecer a sua luminosidade. O

prefácio ocupa onze das oitenta e quatro

páginas da publicação.

Novamente neste prefácio existe um

destaque do fim dos anos sessenta e início

da década de setenta, como uma das fases mais importantes, um período

prolífico de trabalho literário, tanto de trabalhos originais como de seleções de

poesia.

Embora Véspera de Água seja aqui o livro de maior foco, na verdade aqui

são tratados três livros: Véspera de Água, Ostinato Rigore (1964) e Obscuro

Domínio (1971). A tríade que é abordada é para Federico Bertolazzi “o cume de

um percurso artístico que procura a exatidão da linguagem querendo-a

77 PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.72 78 in “XXX”, PP/AMEOF/ASD, 2011, pg.72

Figura 17: Véspera de Água da Assírio & Alvim (2014)

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concentrada e rarefeita, moldada por metáforas”79, onde são sublinhados os

termos dicotómicos que vivem no mesmo espaço e as metáforas elaboradas,

equilibradas e transparentes.

Posteriormente, Véspera de Água começará uma nova fase, uma fase de

“afasia”80, que “dirá ter conseguido sair graças à renovadora experiência da

prosa”81. É um livro que ganha o seu nome num poema homónimo publicado em

Obscuro Domínio, o qual Federico Bertolazzi cita na sua totalidade e é relevante

referi-lo pela mancha gráfica que ocupa e o seu total de páginas, duas e meia,

sendo este destaque de um poema único em qualquer dos textos.

“(…)

na véspera de ser homem,

na véspera de ser água,

o tempo perdido,

rouxinol estrangulado,

meu amor: amora branca,

o rio

inclinado

para as aves (…)”82

Véspera de Água e Obscuro Domínio são colocados lado a lado pelo seu

começo de “forte impacto visual”83 pela sequência de metáforas. (Eis sílaba a

sílaba de uma cor perversa/o tempo quase nu para levar à boca. //Como se fora

minha a respiração do trevo/alcanço a linha da água. //Habito onde o ar dói// as

próprias mãos acesas.”)84. O livro torna o tempo cristalizado e imortalizado, apela

79 Véspera de Água, 2014, pg.12 80 Véspera de Água, 2014, pg.20 81 Véspera de Água, 2014, pg.20 82 in “Véspera de Água”, Obscuro Domínio, 2013, pg.42 83 Véspera de Água, 2014, pg.16 84 in “Sílaba a Sílaba”, Véspera de Água, 2014, pg.25

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à interpelação e presença/ausência pessoal e da palavra/silêncio, com um primor

poético preciso, equilibrado e musical.

“Paraíso Perdido” é o prefácio de Pedro Eiras na edição de Limiar dos

Pássaros (1.ª edição, 1976) da Assírio & Alvim, em 2014. Pedro Eiras é professor

universitário, escritor de ficção, dramaturgo e ensaísta.

Neste prefácio, que ocupa dez das oitenta e cinco páginas totais, joga-se

bastante com intertextualidade, tanto das

artes plásticas como outros textos que

vão sendo aqui cruzados. Para além desta

particularidade o prefaciador decidiu

dedicar uma página a referências

bibliográficas. Começando pelo título,

embora menos óbvio, que

imediatamente remete para o “Paraíso

sem Mediação” de Eduardo Lourenço. No

fim do texto concluímos que a alusão não

foi indiscreta. Não existe paraíso, o que

nos separa do abismo é a palavra-poética

e a plenitude que se procura nasce do gesto

de procura dessa plenitude. Outra explicação para este título surge da análise de

uma das obras de Paul Klee, Explosão de Medo III, que nasce um ano antes da

Segunda Guerra Mundial se iniciar, onde se vê uma figura completamente

desfigurada, profetizando o terror que se seguiria nos anos posteriores. “Já nada

resta, então, daquele sentimento de invencibilidade que define a juventude.

Restam corpos desmembrados: e depois gaseados, incinerados. É na terra que se

perde o paraíso”85.

Esta alusão a Paul Klee surge de um texto sobre Júlio Resende, “Resende

entre a angústia e a esperança”86, em que Eugénio de Andrade dizia que Klee se

85 Limiar dos Pássaros, 2014, pg.11 86 Este texto foi publicado como prefácio a um catálogo de uma exposição de Júlio Resende em 1966 e incluído em Afluentes do Silêncio (1968)

Figura 18: Limiar dos Pássaros, Assírio & Alvim (2014)

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recusava a aceitar a expulsão do paraíso. Para pensar a obra de Resende e

tocando nas obras do outro pintor e de Manolo Millares para falar desse tempo

que é “lixo-e-cristal”87, “um tempo ambíguo, como se sabe: estamos num

limiar.”88 Neste termo, limiar, Pedro Eiras começa a análise de Limiar dos

Pássaros. Este será um livro que transporta fins, um contraste de obras anteriores

(primeiras), “um denso trabalho da negatividade da ruína, do incompleto”89.

Noutros livros, e Pedro Eira dá exemplos, a afirmação até mesmo da morte e do

fim é descrito como uma convocatória à mesma. Cita “Variação Sobre Um Velho

Tema”, de Sulcos da Sede para exemplificar: “Dai-me ainda outro verão,/um

verão do sul,/um verão/de rolas frementes de cio,/de porosa alegria, de luz

varrida/pela cal; dai-me/mais um verão rente à sombra/do pátio onde o

rumor/do poço sobe aos ramos;/um verão limpo como o céu/da boca;/mais

dentro, mais fundo./Ou por fim o silêncio/Caindo a prumo.”90

Mas se aqui há uma consciencialização do fim, Limiar dos Pássaros atua

pela negativa.

“Tudo nele [“Variações Sobre Um Velho Tema”], do pedido repetido de

um novo verão até ao consentimento final do silêncio, é afirmativo. A própria

morte é aqui objecto de um sim – enquanto Limiar dos Pássaros, que apenas

implicava o desejo de um verão erótico, introduzia sob o desejo o desespero da

negativa”.91

Até é sublinhado que “Rente à Fala” teve alterações para que o seu último

verso terminasse numa dúvida, com reticências, trocando as duas últimas

estrofes de ordem.

“29. Quisera que morressem essas vozes

esse vento lavrando os campos do olhar

que morressem

os sulcos abertos lábio a lábio.

87 Limiar dos Pássaros, 2014, pg.12 88 Limiar dos Pássaros, 2014, pg.12 89 Limiar dos Pássaros, 2014, pp.14-15 90 Limiar dos Pássaros, 2014, pg.11 91 Limiar dos Pássaros, 2014, pg.16

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30. As imprecações haviam-no despido

tem a cabeça inclinada sobre o rio

a sombra desatada

os lábios hábeis para o silêncio

onde o sangue onde a noite onde o frio…”92

Pedro Eiras abre um pequeno ponto para referir que é um livro que

também nasce durante a revolução portuguesa (escrito em 1973 e 1975, é

publicado no ano posterior) o que vai de encontro à interdição das palavras, já

falada por Nuno Júdice, que era imposta pelo regime vivido, embora a ditadura

nunca tenha sido um ponto de grande referência na poesia de Eugénio de

Andrade.

Este livro é então um livro de omissões: de sujeito, de ponderação gráfica

ou mesmo ausência e de utilização de calão obsceno.

“Eugénio Solar, Memória de um impacto” é o prefácio de Manuel

Rodrigues para a edição de Matéria Solar (1.ª edição, 1980) da Assírio & Alvim de

2015, com doze páginas de extensão das setenta e oito totais do livro. Manuel

Rodrigues é mestre em Filosofia e ensaísta em várias temáticas, desde cultura,

arte e filosofia.

“Eugénio” e “solar” têm sido um jogo de palavras várias vezes utilizado,

mas também com esta referência pelo nome desta obra. E aqui a matéria solar

estudada nesta poesia. Memória também tem sido um dos atributos ligados ao

seu trabalho, para além de elementos de tributo, não só porque em vários

prefácios temos o exemplo do impacto deste trabalho e de lembrá-lo mas porque

Matéria Solar tem importância para o prefaciador a nível de vivências pessoais.

Este texto está dividido em duas partes, A e B. Dentro destes subtemas há

algumas divisões por asteriscos.

92 in “Rente à Fala”, Limiar dos Pássaros, 2014, pg.81

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A epígrafe do livro é referida e

citada, separada ao início e ao fim. É

também a epígrafe do livro: “Ser não é

fácil… fácil, só a merda”.93

O texto começa com um relato

pessoal de Manuel Rodrigues, a ler

Matéria Solar pela primeira vez, na

Figueira da Foz. Revisita assim as suas

memórias do livro e como, passados trinta

e cinco anos depois tem um renovado

entendimento de como Eugénio de

Andrade foi um mestre literário para ele e

uma grande influência no que escreveu na

altura.

Depois segue-se uma análise minuciosa do livro, onde se contam

cinquenta poemas e duas mil palavras, descrito como “regurgitação alternada de

peças que houve que montar”94 pela disparidade da ordem dos poemas versus

quando estes foram escritos.

O poema “2”, o primeiro a ser primeiro escrito, é referenciado por Manuel

Rodrigues como “o rastilho de todo o processo”95, o desejo pelo toque e pela

presença de uma vida sob qualquer forma:

“(…)

Amar-te-ia se viesses agora

ou inclinasses

o teu rosto sobre o meu tão puro

e tão perdido,

ó vida.”96

93 Vladimir Holan, Aos Inimigos 94 Matéria Solar, 2015, pg.13 95 Matéria Solar, 2015, pg.14 96 in “2”, Matéria Solar, 2015, pg.28

Figura 19: Matéria Solar, Assírio & Alvim (2015)

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Encontrando o seu rosto “tão puro/e tão perdido”, citando outra vez

Holan, “está perdido quem não se sente perdido”97.

Matéria Solar é um livro invocativo, porque chama e interpela o leitor, de

um rigor preciso (“linhas da exigência consciente de uma depuração de si”98) e

de um desejo vivido nos sentidos. A chama da poesia de Eugénio de Andrade usa

a palavra como matéria-prima, que é também o próprio meio dessa chama arder,

é a matéria da qual a chama é feita e aquece, sem pressa de ser e arder.

Para Manuel Rodrigues, e dos poetas que vieram após Fernando Pessoa

(para restringir a escolha a poetas mais atuais) foi Eugénio de Andrade que lhe

deu “a lição de respeitar as memórias”99, onde o seu trabalho ficou marcado na

sua mente, pelo poder artístico geral e o que transmite a sua poesia. Esta

“aprendizagem da simplicidade”100 que permite aceitar a morte tão

serenamente, do desejo tão rente, uma poesia clássica mas sem dogmas e em

prol do homem à natureza.

Também em 2015 a editora Assírio & Alvim publica o Peso da Sombra e

Paula Morão escreve “O Peso da Sombra - Modos da <<Suprema Harmonia>> em

Eugénio de Andrade” como o seu prefácio. Tal como o anterior de Paula Morão

este está dividido em duas partes, uma focada na história editorial e a segunda

parte trata da leitura e interpretação do livro. Ao contrário dos outros este não

tem epígrafe nem título nos pontos e estende-se por onze páginas das oitenta e

sete do livro.

97 Matéria Solar, 2015, pg.15 98 Matéria Solar, 2015, pg.16 99 Matéria Solar, 2015, pg.19 100 Matéria Solar, 2015, pg.21

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A primeira parte fala do percurso editorial mas não abrange só Peso da

Sombra, foca-se mais em dar um

panorama editorial até Peso da Sombra,

enquadrando-o na cronologia

bibliográfica do autor mas também

discutindo as temáticas e evolução

literária. Mas este detalhe no percurso

também serve para explicar o título do

livro, o “pendor melancólico glosado em

toda a obra de Eugénio de Andrade: a

condição incerta da representação do

mundo e da auto-representação, o oscilar

entre a palavra e o silêncio, o movimento

pendular entre a plena luz e a sombra”101,

mostrando esta ocorrência em tantos dos

seus livros (não só Peso da Sombra mas Sombra da Memória, As Palavras

Interditas, Rosto Precário, entre outros que compõem a sua bibliografia ativa).

Na primeira edição de Peso da Sombra, a epígrafe “Un poète doit laisser

des traces de son passage, non des preuves. Seules les traces font rêver.”102, da

autoria de Revé Char, faz-nos chegar mais longe ao entendimento do livro.

Ambos os temas se contradizem, em instâncias físicas: para haver peso requer

haver um corpo, volume e a sombra é a sua ausência e imaterialidade. Mas lidos

em conjunto reforçam um sentido de negatividade, uma sombra que se aproxima

como a noite e a ausência de luz, que se vai apoderando e tomando proporções

maiores. Esta condição é transversal à vida e à obra.

101 Peso da Sombra, 2015, pp.12-13 102 Tradução: Um poeta deve deixar traços da sua passagem, não provas. Só os traços fazem sonhar.

Figura 20: Peso da Sombra, Assírio & Alvim (2015)

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No mesmo ano foi publicado “Da Luz à Neve: Uma Leitura da Poesia em

Branco no Branco e Contra a Obscuridade”, o prefácio de António Carlos Cortez

na publicação de Branco no Branco/Contra a Obscuridade pela Assírio & Alvim,

em 2015. António Carlos Cortez é

professor de secundário, poeta, ensaísta,

crítico literário e participa em algumas

revistas e jornais literários. Este prefácio é

o maior de todos aqui mencionados, em

número total e na proporção do número

de páginas do livro, cinquenta páginas

para Branco no Branco e onze páginas

para Contra a Obscuridade,

comparativamente com o número de

páginas do prefácio, vinte e duas.

Começando logo por enaltecer o

poeta como um dos “momentos mais altos

da nossa poesia dos novecentos”103 tenta

também explicar o fenómeno, uma poesia com uma complexidade retórica

aparentemente fácil, que com o seu trabalho parece querer revelar o Homem.

Aqui também revisitamos “O Sacrifício de Ifigénia” e “Poética”, para

refletir sobre a escrita e o ato de escrever. “O poeta é uma longa e só

hesitação”104, cuja sua busca começa nas primeiras sílabas, para que no fim

chegue a uma revelação.

É também importante o detalhe das notas de rodapé feitas durante este

prefácio, contextualizando o texto ou a obra em questão, para maior

aprofundamento da compreensão do leitor. Os detalhes editoriais sobre Branco

no Branco e Contra a Obscuridade vêm em nota de rodapé, embora sejam

detalhes relevantes para o prefaciador, daí serem mencionados, mas são tidos

como detalhes postos em plano secundário. Branco no Branco foi primeiramente

publicado em 1984 e três anos depois Contra a Obscuridade é publicado em

103 BNB/CAO, 2015, pg.9 104 in “Sacrifício de Ifigénia”, Rosto Precário, 2015, pg.32

Figura 21: Branco no Branco/Contra a Obscuridade, Assírio & Alvim (2015)

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Poesia e Prosa da editora Círculo de Leitores. Contra a Obscuridade é uma

coletânea de dez poemas que deve ser lido com Branco no Branco, para se

complementarem.

“Coda”, embora seja o último poema, é indicado para começar a leitura

do livro. Remetendo o seu título ao campo musical, indicando o fim de uma

música na partitura, é uma sextilha de metros regulares, comparando todo o livro

a uma partitura. Este poema “fecha o livro e abre-o ao leitor”105 com a sua luz e

memória, o desejo, a despedida e o fim.

“Quando o ser da luz for

o ser da palavra,

no seu centro arder

e subir com a chama

(ou baixar à água),

então estarei em casa.”106

Pela sua mancha gráfica e pela luz no poema (palavra contada vinte e

cinco vezes no livro) diz que o poema está cheio de branco. Poderá então ser uma

das explicações para o título do livro: o branco da luz da poesia no branco da

página. Não só da luz, António Carlos Cortez remete o branco para o sémen

(como semente, palavra, sermão), palavra que também remete para o eros,

primeiramente a energia dos primeiros poemas (da sua obra completa e deste

livro) mas gasto e sem uso no fim do livro “(…) pobríssimo animal,/agora de

testículos aposentados.”107 O branco pode também remeter para a rima branca

na maioria dos poemas.

Os corpos e o símbolo do poder do eros, o cavalo (“Só o cavalo, só aqueles

olhos grandes/de criança, aquele/profusão da seda, me fazem falta.”)108

conjugado com o seu oposto (“Como se fosse um cão, menos ainda.”)109 são

105 BNB/CAO, 2015, pg.14 106 in “Coda”, BNB/CAO, 2015, pg.99 107 in “L”, BNB/CAO, 2015, pg.84 108 in “X”, BNB/CAO, 2015, pg.44 109 in “XLII”, BNB/CAO, 2015, pg.76

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temas que aqui têm foco primário, embora já recorrentes doutras formas nos

outros livros. Não tão usual é o início de setembro, quando noutros livros meses

como agosto e março traziam felicidade. Até “branco” e “obscuridade” são

dicotomias recorrentes, muitas vezes com outras palavras.

Voltando ao título do prefácio, a neve, um lexema não tão utilizado, pelo

menos em comparação com o outro lexema usado no título que é a luz, é

colocada como o seu contraposto, como o oposto de calor e o fim do ano e das

estações mais frias, que costumam carregar uma conotação mais negativa.

A reflexão da poesia como ofício tem também a sua importância, como em toda a

obra poética, onde esta reflexão é vista como “fruto de uma poética que quer

responder a certos enigmas”.110Nesta viagem começa também a revisitação de

outros prefácios, passados e futuros: Óscar Lopes falando da música eugeniana,

Arnaldo Saraiva em “Poesia, Terra de Minha Mãe”, o prefácio de Gastão Cruz onde

vemos novamente aproximações a Carlos de Oliveira e mesmo o prefácio de 2018

onde Gastão Cruz traça fases nesta poesia.

No fim, tal como com Manuel Rodrigues, lembramos Eugénio de Andrade

como mestre da memória, da “lição poética a não esquecer”111 e da lentidão,

lembrado por ser o ser da luz e o ser da palavra.

“O finito e o infinito” é o prefácio de Fernando Pinto de Amaral na edição

de O Outro Lado da Terra da Assírio & Alvim, em 2016. Fernando Pinto de Amaral

é professor universitário, poeta, escritor de ficção, tradutor e conta com

colaborações em várias revistas literárias.

“Porque el deseo es una pregunta cuya respuesta nadie sabe.”112 A

epígrafe é de Luis Cernuda, um dos escritores espanhóis da década de 20, que se

sabe ser uma grande influência para Eugénio de Andrade, admitido pelo próprio

autor. Não só a escolha do autor é pertinente como ainda mais é a frase

escolhida, destacando o desejo e a incógnita das perguntas da vida. O prefácio

em si estende-se por seis páginas, das oitenta e quatro totais do livro.

110 BNB/CAO, 2015, pg.28 111 BNB/CAO, 2015, pg.30 112 Tradução: Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.

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Com O Outro Lado da Terra (1988), já com a visão de uma obra passados

os trinta anos de publicação, foi possível transmitir luminosidade e manter-se fiel

a si mesmo. Dar voz à simplicidade não é uma tarefa fácil nem conclusiva pois

não tenta encontrar respostas caras mas mostra-las de uma forma transparente,

ou mesmo nua, e luminosa. A renovação de que se fala coincide com a 2.ª fase

de Federico Bertolazzi, onde um período de afasia é quebrado por uma

reconstrução e renovação.

Há uma continuidade pretendida

ao ler os poemas, e embora todos os

poemas tenham título, muitos deles são

numerados.

Tal como em António Ramos Rosa

se coloca o real como subjetivo, “joga-se

do nível da tensão entre o contínuo e o

fragmentário 113.” A metáfora é

fortemente evidenciada como o cerne

dos poemas, como se o poema fosse um

organismo que dela se alimenta e cresce

a partir daí. Outro grande destaque neste

prefácio é também o lirismo e simplicidade

dos lexemas usados, rejeitando “malabarismos conceptuais”114 que o prefaciador

refere serem comuns noutros poetas, que permite a perceção da realidade sem

obstáculos, a não ser os internos do leitor. “O Finito e o Infinito”, de que fala o

título, vêm deste desejo de cantar “<<o que não pode morrer>>”115 e de fazer

viver a harmonia. O finito e os momentos são imortalizados nestas palavras,

assim como quem os canta.

“Eugénio de Andrade: Em Vez de Um Retrato” foi o prefácio escrito por

Tolentino Mendonça, publicado em Poesia (2017), pela editora Assírio & Alvim,

113 O Outro Lado da Terra, 2016, pg.12 114 O Outro Lado da Terra, 2016, pg.13 115 O Outro Lado da Terra, 2016, pg.15

Figura 22: O Outro Lado da Terra, Assírio & Alvim (2016)

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com a extensão de quatro páginas em 661 totais. Esta edição da obra completa

quebra com a continuidade da publicação das obras de Eugénio de Andrade em

vários volumes, que cessou por dois anos e continuou em 2018. José Tolentino

Mendonça é arcebispo, teólogo, ensaísta e poeta, professor universitário, assim

como arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca. Foi

também um amigo de Eugénio de Andrade.

“Na primeira edição canónica da sua obra, que Eugénio de Andrade quis

muito ser ele a realizar, com aquele vigilante e obstinado rigor que a poesia

sempre lhe exigira, o poeta não buscou o

prefácio de ninguém.”116

A primeira frase do prefácio

atesta a algo relevante e claro na sua obra

e aqui já sublinhado. A diferença entre o

número de prefácios escritos em vida do

autor e após a sua morte é enorme. Não

que durante a sua vida não se

escrevessem textos sobre ele, pelo

contrário. Tolentino Mendonça sublinha

que grandes críticos literários, inclusive

alguns prefaciadores são citados,

escreveram sobre o autor e este era

estimado pela crítica literária.

O poeta sabia-o mas, segundo Tolentino, preferia colocar em vez desses

comentários elogiosos retratos seus ao início de cada obra. O rosto é a

continuação da obra e o leitor deve olhar para a cara de quem escreveu aqueles

poemas.

Tal como o prefácio de António Lobo Antunes, também este prefácio é

pessoal mas balança os apanhados que outros autores fizeram. Aqui temos

116 Poesia, 2017, pg.9

Figura 23: Poesia, Assírio & Alvim, 2017

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Eugénio de Andrade, a pessoa que viveu para a poesia, ou melhor, que tomou a

poesia como “o lugar, o atelier-cela, a cabana, o navio, o salva-vidas, a torre, o

relento, a única morada verdadeira onde Eugénio de Andrade habitou”117.

Destaca a sua personalidade gentil, sem vontade para conversas mundanas ou

políticas, o seu desmesurado compromisso com a verdade (chegando a ser

brusco), meticuloso obcessivamente com arrumação, a sua maneira de cativar

públicos e a sua intransigência nessas aparições a ser fiel a si mesmo.

Debruçamo-nos nos seus gostos, nos seus hábitos de vida e rituais, como o seu

gosto e conhecimento por chá e o ritual de deixar flores no túmulo de António

Nobre.

A sua adoração pela Língua Portuguesa, pelos cancioneiros e pelos

clássicos como Cesário Verde, Pessanha ou Pessoa é visível dentro e fora da sua

poesia. No seu livro O Essencial Sobre Eugénio de Andrade (1987), Luís Miguel

Nava refere que “Eugénio de Andrade insiste em declarar que quem maior

influência exerceu sobre a sua poesia foi Camilo Pessanha”118 e que “igualmente

afirma ter aprendido o ofício com Pessoa”119.

No entanto o desprezo com que a sociedade via a Língua Portuguesa era

motivo de tormento para o escritor. Tolentino conta: “Um dia, começou assim

uma carta para Jean Cocteau: <<se eu não escrevesse nesta língua de merda que

é o português, você já saberia que eu sou muito melhor poeta do que você>>”120.

“Eugénio de Andrade revolucionou a nossa poesia”121 é uma citação que

Tolentino sustenta com citações de outros autores que já visitámos, com as de

Eduardo Lourenço: “a sua poesia é a primeira poesia da poesia da nossa

Literatura.”122

“Um Lugar Onde o Lume Foi Aceso” é o prefácio de Carlos Mendes de

Sousa na publicação de O Sal da Língua, pela Assírio & Alvim, em 2018, e é o

117 Poesia, 2017, pg.10 118 O Essencial Sobre Eugénio de Andrade, 1987, pg.16 119 O Essencial Sobre Eugénio de Andrade, 1987, pg.16 120 Poesia, 2017, pg.11 121 Poesia, 2017, pg.12 122 Poesia, 2017, pg.12

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último livro a sair até à data. Carlos Mendes de Sousa é professor universitário,

ensaísta e publicou um livro de referência sobre o poeta, O Nascimento da

Música – A Metáfora em Eugénio de Andrade (1992), pela editora Almedina. Este

prefácio tem referências bibliográficas no fim do texto e ocupa vinte das oitenta

e cinco páginas do livro.

O primeiro foco deste prefácio é biográfico. Durante o ano de escrita do

livro, ao qual temos acesso pois as datas

nas quais os poemas foram escritos foram

dadas numa nota da 1.ª edição de O Sal

da Língua (1995). A fotobiografia já falada

aqui assinala a mudança de morada nesse

ano para a sua última residência. A Foz do

Douro e a sua última morada são bem

presentes neste livro. Tal como Arnaldo

Saraiva em 1992, são referências que não

impedem a abertura de significados, a

abrangência da qual se fala neste texto.

Segundo Carlos Mendes de Sousa as suas

mudanças de residência foram traçando a

sua poesia. Num tema mais geral, embora relacionado, a casa sempre foi de

grande relevância na sua poesia.

O prefácio divide-se em vários títulos, abstratos, que não indicam

imediatamente a temática de cada subtema. Os títulos têm um parágrafo de

distância da restante mancha gráfica e estão centrados, para além de estarem

escritos com uma fonte diferente do restante texto.

A partir dos anos 90, como a última fase, uma fase onde a “manifestação

da música”123 é diferente da restante obra. Em Rosto Precário reconhece esta

mudança:

123 O Sal da Língua,2018, pg.14

Figura 24: O Sal da Língua, Assírio & Alvim (2018)

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“[Com Véspera de Água e Limiar dos Pássaros] a música é outra, pois a

minha poesia não pode ser toda ela inscrita nessa visão mediterrânea. Aí resiste-

se à usura do tempo, às vezes com violência”.124

Nos testemunhos referidos no prefácio, tanto na carta de Fernando Lopes

Graça a 30 de março de 1993 como numa outra de Herberto Hélder, de 22 de

dezembro de 2000, aponta-se a musicalidade presente em toda a sua poesia,

mantendo-se harmoniosa, mesmo quando difícil. Estes comentários são

particularmente importantes quando à luz das palavras de Óscar Lopes, que diz

que só o poeta deve falar do poeta.

Atendendo ao plano editorial de O Sal da Língua, foi primeiro publicado

com cinquenta e um poemas, sendo um deles retirado para arredondar o número

e dar continuidade à quantidade de poemas por livro. A estrutura interna

também é analisada, uma média de dezassete versos por poema, com sete

poemas de quinze, dezasseis e dezanove versos, e seis poemas de catorze e

dezassete versos. É comparado com Ofício de Paciência onde a média de versos

é 10 e tem poemas com tamanhos diversos, desde dois versos a dezassete versos.

A sua apuração é considerada obsessiva, indo até ao cuidado de remeter para

temas semelhantes com continuidade. Este cuidado segue até ao facto de haver

uma preocupação constante em reunir a sua obra e renova-a, sendo que Poesia

(2000) foi onde este objetivo foi mais bem conseguido, um desejo explícito e o

“esforço para fechar o círculo”125, o desejo de deixar a “casa arrumada e a

possibilidade de contemplar essa arrumação”126.

Tanto aqui como nas últimas publicações fala-se das marcas do verão

(“Deixou marcas, o cabrão”127), da aproximação do fim esperado. No geral as

estações do ano marcam muito a sua disposição pela obra. O verão é “um lugar

onde o real e a metáfora se encontram no dizer mais pleno da poesia de

Eugénio”128. Mas este verão traz um senão, com o seu calor e luz traz dúvida (“as

124 Rosto Precário, 2015, pg.93 125 O Sal da Língua, 2018, pg.18 126 O Sal da Língua, 2018, pg.18 127 “A Custo”, O Sal da Língua, 2018, pg.73 128 O Sal da Língua, 2018, pg.20

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palavras terão sentido ainda? /Haverá outro verão, outro mar/para as

palavras?”)129 e o fim a olhar à esquina, a morte.

O poema que dá título ao livro e que de certa forma o explica é

homónimo:

“(…)

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar.

Para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.”130

Dá-se então o processo de manter uma memória sem que o seu peso

(“peso da sombra”) seja apenas a melancolia do fim. É um retorno às origens à

sua infância, às crianças que voltam no fim do verão, “(…) a que vive dentro de

mim/também voltou; continua a correr/nos meus dias.”131 No fim a escrita é o

expoente maior da vida, a procura da sílaba. O processo criador oferece a razão

de viver e, para viver, as palavras, num ciclo infindável.

129 in “Recomecemos Então”, O Sal da Língua, 2018, pg.45 130 in “O Sal da Língua”, O Sal da Língua, 2018, pg.81 131 in “No Fim do Verão”, O Sal da Língua, 2018, pg.51

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III.1.1 - As fases em Eugénio de Andrade

Os prefácios de 2018 de Gastão Cruz, “Em Perseguição da Sílaba”, na

publicação de Ofício de Paciência, e de Federico Bertolazzi, “Ao Sol de Muitos

Dias”, em Rente ao Dizer, serão analisados lado a lado por traçarem fases nesta

poesia. São os dois que dividem com maior claridade e definição as suas fases

literárias. Originalmente estes livros foram publicados com um ano de diferença:

Rente ao Dizer (1992) e Ofício de Paciência (1994).

No prefácio de Federico Bertolazzi

“Ao Sol de Muitos dias” é o segundo prefácio de Federico Bertolazzi, na

reedição de Rente ao Dizer (1ª edição

1992), pela Assírio & Alvim e estende-se

por sete das setenta e sete páginas da

publicação.

Começando pelo próprio título

remete para a imagem de sol, que é tantas

vezes retratado, do calor e do dia. De uma

forma mais direta faz ligação a O Amigo

Mais Íntimo do Sol, retocando nessa

luminosidade.

Já a epígrafe remete para a escrita,

citando uma frase de Eugénio de Andrade

numa entrevista:

“Parece-me que tudo o que fiz, tudo quanto longamente acariciei com o

olhar, foi só para escrever um verso. Tenho a impressão de que sacrifiquei tudo

Figura 25: Rente ao Dizer, Assírio & Alvim (2018)

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– escola, profissão, até mesmo as pessoas – à poesia. E continuo. Se fosse católico

diria que era levado a escrever para salvar a alma.” 132.

Termina com um apontamento editorial às mudanças entre a primeira e

a última edição de Rente ao Dizer, novamente utilizando Arnaldo de Saraiva e os

seus estudos extensivos. Rente ao Dizer perde a epígrafe, o poema “Rente ao

Chão” é modificado, que na primeira edição tinha o nome de <<Em redor de

“Rente ao Chão”>>. Muda também a ordem dos poemas do livro e “Nota” é

retirada. Segundo Federico Bertolazzi estas alterações abrem a maneira de se

interpretar o livro e a interpelação ao leitor para participar mais livremente.

“Cântico” é o texto de encerramento do livro, que fala da morte do

pequeno companheiro de Eugénio, Micky, o seu gato persa. A última fase remete

para um lado mais pessoal e subjetivo, que prolonga e o torna eterno e ao seu

olhar, que Federico Bertolazzi garante seguir-nos, seja na história da literatura

portuguesa, seja aos seus leitores, durante muito tempo, com lugar cativo.

Primeira fase – (1939-1973)

A primeira fase vai de “Narciso” e Adolescente (1939 e 1942

respetivamente) a Véspera de Água (1942-1973). É a fase de maior receção desta

poesia onde se enquadra As Mãos e os Frutos, uma dos seus livros mais

aclamados de sempre, um dos mais conhecidos e pelo qual começou a ter

reconhecimento literário em grande escala. É uma época, segundo Federico

Bertolazzi, cheia de metáforas e a procura da linguagem ao mesmo tempo que

procura a “contenção lexical, a pobreza franciscana da expressão”.133

Segunda fase – (1974-1978)

A segunda fase vai de Escrita de Terra e Homenagens e outros Epitáfios

(ambos de 1974) até Memória de Outro Rio (1978), incluindo também Primeiros

Poemas (1977). Esta fase divide-se em dois períodos: um de exaustão e de

132 Em Rosto Precário, na página 108 onde é transcrita a entrevista de onde esta citação é retirada, diz “Parece-me que tudo quanto fiz”. 133 Rente ao Dizer, 2018, pg.12

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“afasia” e a sua renovação na linguagem onde a prosa tem um poder soberano

mas sobretudo a procura do rigor linguístico.

Terceira fase – (1980-2001)

Esta maturação da palavra é atingida na terceira fase, um olhar que prevê

e aceita a mortalidade e efemeridade do ser mas que imortaliza as palavras. É a

fase mais extensa de todas, indo de Matéria Solar (1980) até Sulcos da Sede

(2001). O tema da morte e do silêncio eterno é cada vez mais abordado e a

linguagem e a precisão da palavra são almejadas, sendo a busca da palavra exata

um caminho ao qual chega nesta fase, onde “consegue lugar e dimensão para

uma rigorosa mestria.”134

No prefácio de Gastão Cruz

“Em Perseguição da Sílaba” é o

segundo prefácio de Gastão Cruz na

reedição de Ofício da Paciência (1ª

edição 1994), pela Assírio & Alvim e

estende-se também por sete das setenta

e sete páginas da publicação. Reforça o

cuidado que há com o trabalho do poema

mas este trabalho é menos focado na

palavra como “unidade portadora da

imagem”135. Para o demonstrar cita o

poema “A Sílaba”136, que o poeta

“procura com obstinação”, considerando

esta busca “a única salvação”. O título do

prefácio realça esta procura e inspira-se neste poema para ilustrar a importância

134 Rente ao Dizer, 2018, pg.11 135 Ofício de Paciência, 2018, pg.11 136 Ofício de Paciência, 2018, pg.56

Figura 26: Ofício de Paciência, Assírio & Alvim, 2018

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da procura da palavra. Mas para Gastão Cruz o que realmente explica o título deste

livro é o poema “Coroa de Lume”137. A escrita é descrita como “o prazer do ofício,

/a paciência de areia”. A coroa de lume é a coroação do fogo, das palavras que

sempre foram ardentes mas que agora são atiradas “aos lobos”, num gesto final,

violento, de abandono, quase até de renegação, como o relato de que chega ao

fim, o trabalho e a vida que culminará no sono.

Primeira fase – (1940-1961)

Não existe uma especificação de quando começa a primeira fase, apenas

que abrange os anos 40 da escrita de Eugénio de Andrade. Considerando os seus

primeiros trabalhos a partir desta altura, começa a sua primeira fase, que muitos

descrevem como jovial sem infantilidade. A primeira fase abrange estes primeiros

trabalhos e chega até aos anos 60, uma fase também marcante na literatura

portuguesa, que Gastão Cruz refere como “ousada síntese que procurava

articular a <<liberdade livre>>, aprendida em Rimbaud e no surrealismo, com

uma revalorização da palavra, como imagem forte e autónoma, e do som do

verso, na linha do simbolismo”138. É durante os anos 60 que o seu trabalho começa

a ganhar cada vez mais reconhecimento e divulgação cultural. A ideia do trabalho

literário, a ideia de literatura como “ofício de paciência” era preocupação maior

para os poetas desta época, o rigor com que se fazia a poesia, a construção da

poesia como do lar, “a verdade do texto, um mundo que reside em cada palavra

e em cada sílaba: captá-lo é o ofício (paciente) do poeta”139 são características

transversais à poesia portuguesa durante estas décadas. Esta fase termina com

Mar de Setembro (1961).

Segunda fase – (1964-1992)

A segunda fase parte de Ostinato Rigore e chega até Rente ao Dizer

(1992). Esta parte em sentido contrário da primeira fase. A palavra é agora livre

e perde o seu peso maciço para ficar “rente ao dizer”, mais focado na imagética.

137 Ofício de Paciência, 2018, pg.62 138 Ofício de Paciência, 2018, pg.11 139 Ofício de Paciência, 2018, pg.17

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É aqui que se vê um contraste cada vez maior entre a utilização de dicotomias

relacionadas com juventude e morte. Nesta fase nota-se uma grande afluência do

seu trabalho, sobretudo durante a década de 70.

Terceira fase – (1994-2001)

Ofício de Paciência (1994) marca o início do terceiro compasso da sua

poesia. A própria vida do autor contribui para este conhecimento da finitude a

chegar à porta e atinge o seu exponente máximo. Na década de 90 é a fase final

do seu trabalho poético, terminando com Sulcos da Sede em 2001, a fase mais

apurada do uso da palavra. A melodia nunca desaparece do seu trabalho e vai

sendo aperfeiçoada, sendo sempre um ponto fulcral na sua poesia.

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Conclusão

Desde que Eugénio de Andrade publicou a sua primeira obra houve uma

grande seletividade para obras prefaciadas, o que em quase todas as vezes se

aplicou em antologias de poesia. Com a sua morte, as editoras que o publicaram

escolheram tomar a rota contrária, remete para uma justificação do aumento de

obras com prefácios, visível sobretudo no caso particular da Assírio & Alvim, que

decidiu prefaciar todas as obras que publicou até 2018. Decidiu-se também

continuar com as publicações individuais das suas obras, contrariamente à vontade

expressa do autor de manter a sua poesia reunida e as reedições tornaram-se mais

frequentes, chegando a sair várias no mesmo ano.

Os prefaciadores, quase como regra, têm vocações na mesma linha e na de

Eugénio de Andrade, embora os que prefaciaram em vida fossem também

próximos do poeta. Vários dos prefaciadores aqui referidos fazem parte de

Aproximações a Eugénio de Andrade, uma seleção de trinta e cinco poemas e

retratos dedicados ao poeta, publicada pela editorial Asa, em 2000,

especificamente António Lobo Antunes, António Ramos Rosa, Fernando Pinto

Amaral, Gastão Cruz, Jorge de Sena, José Tolentino Mendonça, Mário Cláudio e

Nuno Júdice.

O prefácio mais resumido tem duas páginas e o maior tem vinte e duas,

sendo a média entre quatro a dez páginas e, com exceção de dois textos, foram

utilizados textos inéditos para prefaciar as obras. O número de páginas aumenta

nos prefácios póstumos relativamente aos escritos em vida. Com a obra

totalmente fixada nos últimos anos de vida do poeta é feita uma análise mais

extensa pelo maior número de obras a ponderar.

A nível de análise literária parece haver um consenso nos temas mais

marcantes e no seu percurso literário. O seu rigor e musicalidade, o erotismo e a

sua infância/juventude, o ofício da palavra e o silêncio absoluto são analisados e

exemplificados pelas suas próprias palavras. Há uma aclamação sublinhada a As

Mãos e os Frutos como uma das obras mais sublimes do autor.

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É inegável que o percurso editorial de Eugénio de Andrade é vasto e

diverso, tanto elaborado por ele como o seu legado, e que a sua voz ecoa dos seus

versos e a luz que transmitem vai perdurando muito depois do cessar da sua escrita

poética.

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Referências Bibliográficas

Obras de Eugénio de Andrade com prefácios

Antologia: 1945-1961. Porto: Editora Delfos, 1961.

Poemas 1945-1965. Lisboa: Portugália Editora, 1966.

Antologia Breve. Porto: Editorial Inova, 1972.

As Mãos e os Frutos/Os Amantes sem Dinheiro. Porto: Editorial Inova, 1973.

Poemas de Eugénio de Andrade. Lisboa: Seara Nova: Comunicação. 1981

Poesia, Terra de Minha Mãe. Porto: Edições Asa, 1992

Sulcos da Sede. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2001

Primeiros Poemas/As Mãos e os Frutos/Amantes sem Dinheiro. Porto:

Quasi Edições: Fundação Eugénio de Andrade, 2006

Poesia. Porto: Modo de Ler, 2011

Primeiros Poemas/As Mãos e os Frutos/Os Amantes sem Dinheiro. Porto:

Assírio & Alvim, 2012.

As Palavras Interditas/Até Amanhã. Porto: Assírio & Alvim, 2012.

Coração de Dia/Mar de Setembro. Porto: Assírio & Alvim, 2013.

Ostinato Rigore. Porto: Assírio & Alvim, 2013.

Obscuro Domínio. Porto: Assírio & Alvim. 2013

Escrita da Terra/Homenagens e Outros Epitáfios. Porto: Assírio & Alvim,

2014

Véspera de Água. Porto: Assírio & Alvim, 2014.

Limiar dos Pássaros. Porto: Assírio & Alvim, 2014.

26 Poemas:26 Pinturas. Fundão: Câmara Municipal do Fundão, 2015.

Matéria Solar. Porto: Assírio & Alvim, 2015.

Branco no Branco/Contra a Obscuridade. Porto: Assírio & Alvim, 2015.

O Outro Nome da Terra. Porto: Assírio & Alvim, 2016.

Antologia Mínima. Porto: Modo de Ler, 2017.

Poesia. Porto: Assírio & Alvim, 2017.

Rente ao Dizer. Porto: Assírio & Alvim. 2018.

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Ofício de Paciência. Porto: Assírio & Alvim, 2018.

O Sal da Língua. 2018. Porto: Assírio & Alvim, 2018.

Outras obras de Eugénio de Andrade

Rosto Precário. Porto: Assírio & Alvim, 2015.

Andrade, Eugénio de; Sena, Jorge de - Correspondência 1949-1978.

Lisboa: Guerra e Paz, 2016.

Bibliografia Crítica

Nava, Luís Miguel. O Essencial sobre Eugénio de Andrade. Lisboa:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.

Nava, Luís Miguel. O Amigo Mais Íntimo do Sol. Campo das Letras, 1998.

Saraiva, Arnaldo. Eugénio de Andrade. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987.

Saraiva, Arnaldo - Introdução a Eugénio de Andrade. Porto: Fundação

Eugénio de Andrade, 1995.