O Ocaso Do Imperio - Oliveira Viana - PARA INTERNET

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Coleo Afrnio Peixoto

Academia Brasileira de Letras

O OCASO DO IMPRIO

Academia Brasileira de Letras

Oliveira Vianna

Coleo Afrnio Peixoto

O Ocaso do Imprio

Rio de Janeiro

2006

COLEO AFRNIO PEIXOTO Alberto Venancio Filho (Coordenador) Antonio Carlos Secchin Jos Murilo de Carvalho ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Diretoria de 2006 Presidente: Marcos Vinicios Vilaa Secretrio-Geral: Ccero Sandroni Primeira-Secretria: Ana Maria Machado Segundo-Secretrio: Jos Murilo de Carvalho Diretor Tesoureiro: Antonio Carlos Secchin PUBLICAES DA ABL Produo editorial e Reviso Nair Dametto Assistente editorial Monique Mendes Projeto grfico Victor Burton Editorao eletrnica Estdio Castellani Capa e Abertura Trono do Senado do Imprio, no antigo Palcio do Conde dos Arcos Acervo do Museu Histrico Nacional Catalogao na fonte: Biblioteca da Academia Brasileira de Letras 981.04 V671o Vianna, Oliveira, 1883-1951 O ocaso do Imprio / Oliveira Vianna ; [introduo de Jos Murilo de Carvalho]. 3. ed. Rio de Janeiro : ABL, 2006. xxvi, 189 p. ; retr. ; 21 cm. (Coleo Afrnio Peixoto ; v. 75. Histria) ISBN 85-7440-089-0 1. Brasil, Imprio Histria. I. Carvalho, Jos Murilo de, 1934- (introd.). II. Academia Brasileira de Letras. III. Ttulo. IV. Srie.

Sumrio

Introduo Jos Murilo de Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xxiiiPRIMEIRA PARTE

Evoluo do ideal monrquico-parlamentar. . . . . . . . . . . . . . . 1SEGUNDA PARTE

O movimento abolicionista e a Monarquia . . . . . . . . . . . . . . 53TERCEIRA PARTE

Gnese e evoluo do ideal republicano . . . . . . . . . . . . . . . . . 75QUARTA PARTE

O papel do elemento militar na queda do Imprio . . . . . . . 111QUINTA PARTE

A queda do Imprio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 ndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

IntroduoJos Murilo de Carvalho

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liveira Vianna escreveu O Ocaso do Imprio em 1925, a pedido de Max Fleiuss, secretrio perptuo do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. A data no era casual. Naquele ano celebrava-se o centenrio de nascimento de Dom Pedro II. Ou se tentava celebrar, porque em torno da idia se travou na capital da Repblica uma grande batalha poltica e ideolgica. A polmica comeara na realidade j em 1920 durante os preparativos para as festas do centenrio da Independncia. Uma lei desse ano, assinada por Epitcio Pessoa, revogara o banimento da famlia imperial e autorizara o traslado para o Brasil dos restos mortais do Imperador e da Imperatriz. Houve protestos entre republicanos. Mas no eram s monarquistas e simpatizantes que apoiavam a medida. Tambm republicanos desencantados voltavam-se para o antigo regime e o avaliavam positivamente em relao ao novo. Em 1921, os restos mortais dos imperadores chegaram ao Brasil. As festas da Independncia celebraram-se com pompa, mas no sem manifestaes voltadas para a necessidade de republicanizar um regime j tido, mesmo por republicanos, como corrompido. 1

1 Ver MOTTA, Marly Silva da. A Nao Faz Cem Anos. A Questo Nacional no Centenrio da Independncia. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, captulo I.

Jos Murilo de Carvalho Introduo

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Jos Muril o d e Carval ho

Nesse ambiente de controvrsia, Vicente Licnio Cardoso convidou, em 1924, jovens intelectuais pertencentes primeira gerao republicana a darem sua opinio sobre o regime e publicou o resultado no livro Margem da Histria da Repblica.2 Procurou ouvir pessoas no marcadas pelas lutas e guerras da propaganda, da proclamao e dos primeiros anos da consolidao. Entre os consultados estavam alguns com reputao j formada nos meios intelectuais da capital: Gilberto Amado, Pontes de Miranda, Antnio Carneiro Leo, Tristo de Atade, Ronald de Carvalho e Oliveira Vianna, que escreveu um captulo intitulado O idealismo da Constituio. Apesar da diversidade das perspectivas, houve um ponto de concordncia entre os convidados: o desapontamento com o regime implantado em 1889 e a necessidade de busca de novos caminhos. O prprio organizador, republicano sincero, partilhava a descrena: Foi profunda, escreveu na concluso do volume, a nossa desiluso, por certo. [...] Vemos a cada momento, em torno a ns, a negao no s de tudo o que sonhamos, tambm de tudo o que pensamos. No mesmo ano de 1924, o manifesto dos lderes da segunda revolta tenentista, ocorrida em So Paulo, forneceu outro forte indicador de insatisfao com a Repblica e de surpreendente, vindo de quem veio, reavaliao positiva do Imprio. Definindo o propsito da revolta, dizia o manifesto: O Exrcito quer a ptria como a deixou o Imprio, com os mesmos princpios de integridade moral, conscincia patritica, probidade administrativa, e alto descortino poltico.3 Em 1925, os revoltosos ainda percorriam o pas na coluna Miguel Costa-Prestes.2 Ver CARDOSO, Vicente Licnio, org. Margem da Histria da Repblica. Rio de Janeiro: Edio do Anurio do Brasil, 1924. Para uma excelente apreciao desse livro, com informao sobre a poca e os autores, veja-se a introduo de Alberto Venancio Filho segunda edio, publicada em dois volumes pela Editora Universidade de Braslia, em 1981. 3 Reproduzido em BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos Polticos da Histria do Brasil. Braslia: Senado Federal, 2002, vol. III, p. 893.

Introduo

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O centenrio acirrou a animosidade. Projeto apresentado na Cmara pelo deputado Wanderley Pinho, neto do Baro de Cotegipe, pedia que fosse decretado feriado nacional o dia 2 de dezembro, aniversrio de nascimento do Imperador. Outro neto, agora de Quintino Bocaiva, o deputado Ranulpho Bocaiva Cunha, reagiu e denunciou a iniciativa como tentativa de promover uma reao monrquica.4 A disputa estendeu-se a toda a imprensa e a importantes instituies culturais. O Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, como era de esperar, no s apoiou as comemoraes como delas participou ativamente, organizando um nmero especial de sua revista sob o ttulo geral de Contribuies para a biografia do Imperador. Nele, Oliveira Vianna colaborou com dois artigos: D. Pedro II e os seus ministros (pp. 874-880) e D. Pedro II e a propaganda republicana (pp. 894-903). Carlos de Laet, monarquista impenitente, fez conferncia intitulada D. Pedro, o Magnnino na Academia Brasileira de Letras, em sesso presidida por Afonso Celso, na presena de 21 acadmicos e de um neto do Imperador, Dom Pedro de Alcntara de Orleans e Bragana.5 A favor das celebraes estavam simpatizantes da monarquia, republicanos desapontados com a Velha Senhora, figura usada pelos caricaturistas para representar o regime vigente, e opositores do governo de Artur Bernardes, pontuado por freqentes decretaes de estados de stio. Era incmoda a posio dos republicanos ortodoxos. Acha4 A disputa em torno do centenrio foi analisada por SILVA, Eduardo em A Repblica comemora o Imprio. Um aspecto poltico-ideolgico da crise dos anos 20, Revista do Rio de Janeiro, v. 1, n.o 2 (jan./abr. 1986), pp. 59-69. Ver tambm a anlise da reabilitao da imagem do Imperador feita por SCWARCZ, Llia Moritz em As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um Monarca nos Trpicos. So Paulo: Cia. das Letras, pp. 495-515. 5 Agradeo a Alberto Venancio Filho essa informao.

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vam inadmissvel que a Repblica celebrasse o chefe de Estado do regime que derrubara em 1889. Faz-lo seria admitir que a proclamao fora um erro. Oposio celebrao, no entanto, poderia ser interpretada como sinal de fraqueza e insegurana de um regime que completava 36 anos de vida. O desconforto era agravado pela ttica usada por muitos republicanos insatisfeitos de se aproveitarem da celebrao para comparar os dois regimes, conferindo ntida vantagem para o antigo. Uma sada tipicamente brasileira foi oferecida pelo republicano Assis Chateaubriand concluiu um elogio a Pedro II dizendo ter sido o velho imperador a mais luminosa e a mais pura encarnao de republicano que ainda tivemos.6 Celebrar o Imperador seria, nesse caso, o equivalente a celebrar a Repblica na autenticidade de seu esprito. O Congresso Nacional acabou no votando a tempo o projeto de Wanderley Pinho, mas o Presidente Artur Bernardes decretou o feriado por conta prpria e a data foi celebrada com grandes festas. 7 Foi nesse contexto que Max Fleius convidou Oliveira Vianna, scio do IHGB h apenas um ano, a escrever sobre os anos finais do Imprio, de 1887 a 1889. O tema no era estranho ao convidado. Em Populaes Meridionais do Brasil, livro publicado em 1920, j analisara o papel do Imperador e da elite por ele formada na manuteno da unidade do pas e da estabilidade poltica do regime. Em menor profundidade, discutira o Imprio e a Repblica em Evoluo do Povo Brasileiro, de 1923. No artigo que preparou para a coletnea organizada por Vicente Licnio Cardoso, criticara a tendncia ao idealismo utpico de nossas elites, imperiais e republicanas.6 Citado por SILVA, Eduardo. A Repblica comemora o Imprio, p. 63. Produto da irritao dos republicanos com a exaltao de Pedro II por ocasio 7 do centenrio o livro de Carlos Sussekind de Mendona, publicado em 1929, sem indicao de local e editora, intitulado Quem Foi Pedro II. Golpeando de frente o Saudosismo. Trata-se de um ataque virulento ao Imperador.

Introduo

XIII

Nesses textos se podia notar uma viso positiva do Imprio, sobretudo do Segundo Reinado. Em Populaes Meridionais, Dom Pedro II foi elogiado pelo uso que tinha feito do Poder Moderador para domesticar a caudilhagem rural e exercer um papel centralizador e civilizador.8 A postura crtica diante da Repblica s apareceu no artigo da coletnea, uma vez que Populaes Meridionais se detm em 1889 e Evoluo do Povo Brasileiro fora escrito originalmente para servir de introduo ao censo de 1920. Como tal, era um texto quase oficial, preso a convenincias polticas. Oliveira Vianna lamentou esse fato e confessou que teve que evitar a discusso de temas polticos e o tom crtico: Confesso com a maior franqueza que este fato [o carter oficial do trabalho] me constrangeu um tanto na apreciao dos acontecimentos polticos do perodo republicano, especialmente nas suas ltimas dcadas.9 O vis favorvel ao regime monrquico no o impediu de reivindicar uma postura de imparcialidade na anlise das causas da queda do Imprio e da proclamao da Repblica. Era uma caracterstica que atribua a toda a sua obra, tributria do cientificismo do sculo XIX. Tinha pelo menos a seu favor o fato de no ter participado dos eventos, como Carlos de Laet, nem descender de algum dos participantes, como os deputados Wanderley Pinho e Ranulpho Bocaiva Cunha. O partidarismo, republicano ou monrquico, marcara toda a produo anterior sobre a queda do Imprio. O mais respeitado historiador da poca, Capistrano de Abreu, no escrevera sobre o assunto. Outro historiador, o republicano Joo Ribeiro, tratou-o em sua Histria do Brasil, de 1900. O livro era de natureza didtica, destinado ao8 Uma anlise crtica de Populaes Meridionais foi feita por mim na edio includa na coleo Intrpretes do Brasil, coordenada por Silviano Santiago. Ver Intrpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. I, 2000, pp. 897-917. 9 VIANNA, F.J. Oliveira. Evoluo do Povo Brasileiro. So Paulo: Monteiro Lobato Editores, 1923, p. 37.

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curso superior, escrito de acordo com os programas do Colgio de Pedro II. Dedicando-o ao historiador monarquista Oliveira Lima, Joo Ribeiro no quis polmica. No prefcio da primeira edio, disse ter evitado ir alm da proclamao porque seria prematuro julgar os acontecimentos posteriores em livro destinado ao esquecimento das paixes do presente e glorificao de nossa histria.10 Destinou apenas duas pginas e meia queda do Imprio. Oliveira Lima, o grande historiador do perodo joanino, s publicou sua obra sobre o Imprio em 1927.11 Todas as obras dedicadas ao tema eram de natureza partidria, escritas no calor da hora, ou das horas seguintes. Estavam nesse caso, para citar os mais conhecidos, os livros de Eduardo Prado e do Visconde de Ouro Preto, pelo lado monarquista, e de Cristiano Ottoni e Anfriso Fialho, pelo lado republicano.12 Oliveira Vianna enfrentou o desafio de escrever a primeira anlise no-partidria da queda do Imprio. Socorreu-se de boa parte do que j tinha sido publicado. s verses antagnicas de Ouro Preto e Cristiano Ottoni, agregou anlises mais gerais do perodo, sobretudo as de Joaquim Nabuco, que seu guia mais constante. Tobias Monteiro, Tavares de Lyra10 RIBEIRO, Joo. Histria do Brasil. Curso Superior. Segundo os Programmas do Collegio Pedro II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 13. ed., 1935, p. 20. LIMA, Oliveira. O Imprio Brazileiro, 1822-1889. So Paulo: Melhoramentos 11 [1927]. PRADO, Eduardo. Fastos da Dictadura Militar no Brazil (Lisboa: 1890) e A Illuso 12 Americana (So Paulo: 1893); OTTONI, Christiano Benedito. O Advento da Repblica no Brasil (Rio de Janeiro:Typographia Perseverana, 1890); FIALHO, Anfriso. Histria da Fundao da Repblica no Brazil (Rio de Janeiro: Laemmert, 1891); OURO PRETO, Visconde de. Advento da Dictadura Militar no Brazil (Paris: Pichon, 1891); e OURO PRETO, Visconde de, et alii. A Dcada Republicana (Rio de Janeiro: Cia. Typographica do Brasil, 1899). Um exemplo de opinio apaixonada o de Anfriso Fialho, que considerou ato de dignidade militar o frio assassinato de Apulcro de Castro por oficiais do 1. Regimento de Cavalaria em 1883.

Introduo

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e Amrico Brasiliense, Max Fleiuss e Afonso Celso, entre outros menos importantes, lhe serviram como fontes de informao. Vrios dos artigos publicados no nmero especial da revista do IHGB foram tambm consultados.13 Naturalmente, citou bastante a si prprio, como era de seu feitio.14 Copiou-se tambm na embocadura analtica. O Ocaso do Imprio segue o mesmo enfoque sociolgico das obras anteriores. A necessidade do uso desse enfoque nos estudos histricos fora afirmada por ele no discurso de posse no IHGB em 1924. Trs anos depois, ao ser criticado por Batista Pereira por incorrer em incorrees factuais, responderia definindo-se como algum que no queria ser uma autoridade em detalhes, mas que, ao contrrio tinha, a paixo dos quadros gerais.15 Coerente com essa postura, rebelou-se contra a circunscrio da anlise ao curto perodo de dois anos, como queria o IHGB. Sua viso sociolgica exigia abarcar perodo mais dilatado que lhe permitisse buscar causas sociais para explicar o evento do ocaso do Imprio.13 De Nabuco, usou O Abolicionismo (Londres: Abraham Kingdom & Newnham, 1883), Balmaceda (Rio de Janeiro: Leuzinger, 1895), Minha Formao (Rio de Janeiro: Garnier, 1900) e Um Estadista do Imprio (Paris/Rio de Janeiro: Garnier, 1897/1899); de A. Tavares de Lyra, A presidncia e os presidentes do Conselho de Ministros no Segundo Reinado (Revista do IHGB, 148, 1923, pp. 567-609), de Tobias Monteiro, Pesquisas e Depoimentos (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1913), de Amrico Brasiliense, Os programas dos partidos e o 2. Imprio (So Paulo: Jorge Seckler, 1878), de Max Fleiuss, Histria administrativa do Brasil (2. ed., 1925), de Affonso Celso, Oito annos de parlamento (Rio de Janeiro, 1901). O volume especial da Revista do IHGB sobre a biografia de Dom Pedro II o de nmero 152. 14 Populaes Meridionais do Brasil (So Paulo: Monteiro Lobato e Cia., 1920), O idealismo da Constituio (In CARDOSO, Vicente Licnio. Margem da Histria da Repblica, 1924), e Pequenos Estudos de Psicologia Social (So Paulo: Monteiro Lobato e Cia., 1921). o 15 Ver O valor pragmtico do estudo do passado. Revista do Brasil, n. 18 (1924), p. 289-306, e Do ponto de vista de Sirius. Jornal do Commercio, 06/11/1927.

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O que distingue O Ocaso do Imprio de Populaes Meridionais a concentrao da anlise nas dimenses poltica e ideolgica. O ltimo colocava grande nfase nas estruturas sociais, no latifndio, nas caractersticas da aristocracia rural, nas formas de sociabilidade e solidariedade. Embora a segunda parte do livro acentuasse a importncia do Estado central no controle das oligarquias rurais, a pontuao histrica era colocada na abolio da escravido antes que na queda do Imprio, no social antes que no poltico. O mesmo se verificava em Pequenos Estudos de Psicologia Social e em Evoluo do Povo Brasileiro. Em ambos, a abolio era vista como causa de um grande desmoronamento, de um desarranjo completo da aristocracia rural.16 Em O Ocaso permanece a abordagem sociolgica, mas o que predomina a anlise do sistema, dos atores e das idias polticas. O Poder Moderador, por exemplo, no visto mais como fator de controle das oligarquias, mas como elemento perturbador na engrenagem poltica. A histria econmica e social do perodo prometida para outro livro que se chamaria Introduo Histria da Repblica e que nunca foi escrito.17 Fiel proposta, Oliveira Vianna busca a explicao da queda do antigo regime em alteraes nas idias sobre legitimidade poltica, nos efeitos da abolio sobre a posio poltica dos ex-proprietrios, na expanso do ideal republicano e nas caractersticas psicolgicas e16 Discuti este ponto em A utopia de Oliveira Vianna. In BASTOS, Elide Rugai e MORAES, Joo Quartim de, orgs. O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, pp. 13-42. 17 possvel que a derrocada da Primeira Repblica tenha sido responsvel pelo adiamento ou mesmo abandono da idia de fazer uma histria do perodo. At 1930, Oliveira Vianna estava inseguro sobre os rumos que o pas deveria seguir. S aps sua entrada para o Ministrio do Trabalho, em 1932, que vislumbrou um novo rumo no corporativismo sindical e na legislao social. O achado pode ter reduzido o interesse no projeto de escrever a histria da Repblica. Essa interpretao foi por mim desenvolvida no texto referido na nota anterior.

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organizacionais dos militares que condicionaram os conflitos com a elite poltica. No primeiro caso, vai buscar as origens da queda na crise de 1868, quando Pedro II, fazendo uso das atribuies do Poder Moderador, substituiu o gabinete progressista de Zacarias de Ges e Vasconcelos pelo do conservador Visconde de Itabora. A fragilidade institucional do sistema, diz Oliveira Vianna, inspirando-se em Joaquim Nabuco, derivava da coexistncia de um parlamentarismo sem opinio pblica organizada. Na ausncia de eleies confiveis, o chefe de Estado, o Poder Moderador, ficava impossibilitado de consultar a opinio pblica para a formao de governos. Estava preso a um dilema: se no interviesse na formao dos gabinetes, um partido se eternizaria no poder, gerando revoltas como a de 1842; se intervinha, causava irritao e revolta nos destronados e a sensao de dependncia nos entronados. Escolhendo intervir, Pedro II atraa a rejeio geral ao Poder Moderador, que foi agravada aps a crise de 1868. Os ltimos anos da monarquia foram assim marcados por um desencanto dos setores politicamente ativos com as instituies monrquico-representativas e pela descrena na viabilidade de um terceiro reinado. Quanto abolio, Oliveira Vianna argumenta que, feita sem indenizao, gerou enorme irritao entre os proprietrios contra o Chefe de Estado e contra a prpria instituio monrquica. Cita Ferreira Viana, monarquista, que, a propsito da libertao dos escravos, chamou Pedro II de prncipe conspirador. Passando ao ideal republicano, afirma que foi tambm impulsionado pela crise de 1868. Muitos liberais radicais teriam aderido ao partido republicano e assinado o manifesto de 1870. Apresenta dados sobre a difuso do movimento, o nmero de jornais e clubes republicanos que pesquisas posteriores no alteraram muito. O movimento seria frgil nacionalmente, concentrando-se na Corte e nas provncias de So Paulo, Minas Gerais e Rio

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Grande do Sul. Sua concluso que a descrena na Monarquia teria sido mais forte do que a crena na Repblica. O captulo mais original e mais rico do livro, no entanto, o dedicado anlise do papel dos militares e de sua relao com os polticos. Merece destaque a caracterizao da psicologia dos militares e de seu esprito corporativo. Igualmente importante a denncia da prtica dos polticos imperiais, continuada na Repblica, de cortejar os militares e fazer deles instrumentos de poltica partidria. Cada partido tinha seu totem militar, Caxias e Deodoro para os conservadores, Osrio e Pelotas para os liberais. Ampliando essa poltica, os civis tinham criado o que chama de entidade monstruosa, a figura do cidado-fardado. Esse ser compsito podia ao mesmo tempo portar armas e fazer poltica. Ora, argumenta Oliveira Vianna, em importante contribuio analtica, polticos e militares possuem psicologias incompatveis. Os primeiros se protegem contra os insultos e injrias prprias da luta poltica com o escudo de uma moral conformista. Os militares, ao contrrio, pautam-se por exacerbado pundonor, por extrema sensibilidade a ofensas. A conseqncia era que os militares ofendiam como cidados e eram ofendidos como militares. Mais ainda, o esprito de corpo, desenvolvido aps a guerra do Paraguai, fazia com que a ofensa a um deles fosse tida como ofensa classe como um todo. Gerava-se uma fonte permanente de conflitos e de desgaste do poder civil. Merecem ainda ser ressaltadas algumas caracterizaes psicolgicas, muito ao gosto da poca. Alm da abordagem sociolgica, extrada da escola de Le Play, Oliveira Vianna lia tambm muito Gustave Le Bon com seu vis psicologizante. excelente o contraste que faz entre as personalidades de Cotegipe e Ouro Preto e das conseqncias da decorrentes para a crise militar. sagacidade, maleabilidade e ao poder de seduo de Cotegipe, demonstrados nas negociaes com o explosivo Deodoro, ope a altivez, a intransigncia, a rigidez de car-

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ter e de opinio de Ouro Preto. O temperamento do ltimo presidente do Conselho de Ministros s teria feito agravar o conflito com os militares e precipitar o golpe de 15 de novembro. Sobre Dom Pedro, faz tambm avaliaes psicolgicas que ajudam a explicar o desfecho melanclico do Reinado: um justo, um sbio, mas no um estadista. Despertava admirao, mas no amizade e paixo. Era um solitrio e se viu sozinho quando o sistema ruiu a seu redor. A explicao do ocaso do Imprio feita por Oliveira Vianna tornou-se clssica e foi retomada por muitos estudiosos depois dele. A anlise dos militares, particularmente, inspirou estudos recentes embasados na sociologia das organizaes.18 Pode-se dizer que estudos posteriores acrescentaram apenas duas causas polticas e ideolgicas, para ficarmos dentro da delimitao do livro. Uma delas o papel da Igreja. Em O Ocaso do Imprio no h meno Questo Religiosa e a sua contribuio para o desgaste do regime. Alis, o papel da Igreja tambm praticamente ignorado em Populaes Meridionais. As formas de solidariedade a discutidas se limitam s que foram criadas pelo latifndio. Nada dito sobre a solidariedade religiosa, como a que se dava nas irmandades, muito mais igualitrias do que a dos cls familiares. No encontro explicao para tal atitude de Oliveira Vianna, mais estranha ainda se levarmos em conta que ele seguia os mtodos de Le Play, autor envolvido em movimento catlico. Outra ausncia, ainda dentro do campo poltico e ideolgico, a do papel de So Paulo na proclamao. Poder-se-ia argumentar que ele foi pequeno a 15 de novembro, data dominada pelos militares. Mas Oliveira Vianna buscou expressamente explicaes de mais longa18 Ver COELHO, Edmundo Campos. Em Busca de Identidade: o Exrcito e a Poltica na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976; e CARVALHO, Jos Murilo de. Foras Armadas e Poltica no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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durao. Poder-se-ia ainda dizer que o peso da provncia se devia a seu crescimento econmico e que, portanto, ficaria sua anlise reservada para a futura histria da Repblica. Mas esta explicao tambm no satisfatria. Em Populaes Meridionais, paulistas, mineiros e fluminenses so tratados conjuntamente e a eles se atribuem caractersticas comuns que os distinguem de nortistas e sulistas. Nas crticas que Oliveira Vianna faz ao federalismo republicano no h distino entre a oligarquia paulista e as outras, nem atribuio de papel especial industrializao de So Paulo. possvel que aqui tenham pesado a filiao do autor ao mundo rural fluminense e sua viso do Brasil a partir da capital da Repblica. Pode ter infludo tambm a averso de Oliveira Vianna ao capitalismo industrial, marca de So Paulo. Ele s enfrentou a modernidade capitalista quando encontrou a armadura do corporativismo sindical para a enfrentar. S o corporativismo lhe parecia capaz de oferecer formas de sociabilidade capazes de constituir de uma sociedade moderna em que predominasse o interesse coletivo. Cabe registrar, por fim, que h em O Ocaso do Imprio uma ntida projeo do ambiente poltico da dcada de 1920. O estado de descrena e de desencanto com o funcionamento da carta de 1824, a indiferena em relao ao regime monrquico, eram semelhantes, segundo Oliveira Vianna, aos que predominavam no momento em que escreveu seu livro em relao constituio de 1891 e Repblica. A diferena era um agravante: no se vislumbrava nos anos 20 alternativa que congregasse um nmero significativo de opinies. Em suas palavras: Tendo perdido a f no regime vigente, mas no tendo elaborado ainda uma nova f, estamos atravessando uma dessas pocas sem fisionomia, de que falava Timandro, parda, informe, indecisa de atonia, em cuja atmosfera parada, de calmaria, giram, circulam, suspensos, germes de futuras crenas, embries de futuros ideais, mas que no so nem crenas, nem ideais ainda. (p. 88)

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A sensao de desencanto sem perspectiva de sada era certamente a que dominava o prprio Oliveira Vianna. No h em O Ocaso saudosismo do Imprio, exceto talvez na admirao pela figura do Imperador. No h exaltao do antigo regime. No h tambm avaliao negativa do antigo regime. Foi cumprida a promessa de uma anlise no partidria. A impresso que se tem ao terminar a leitura do livro que o autor mantinha a avaliao positiva do papel civilizador do regime feita em Populaes Meridionais, mas acrescentava agora, na anlise poltica, o diagnstico de sua inviabilidade diante do crescimento das demandas de participao de grupos emergentes. A nova utopia republicano-federativa impunha-se diante do colapso da utopia monrquico-parlamentar apenas para comear novo ciclo de descompasso entre o direito pblico e o direito costumeiro, tema de sua predileo. O desapontamento que invadiu o pas, a meio caminho de 2005, provocado pelo desmoronamento das grandes esperanas de mudana geradas pelas eleies de 2002, e as incertezas quanto ao futuro da Repblica conferem ao octogenrio texto de Oliveira Vianna inesperada atualidade.

Prefcio

eu-me o nosso Instituto Histrico, de que sou parte mnima, a incumbncia de, na comemorao que ele fez do centenrio de D. Pedro II, historiar os ltimos dias do seu grande reinado, cujas fases anteriores, a do incio, a de expanso, a do esplendor, a da glria, ele havia distribudo sabiamente a dez das suas maiores competncias. Dando-me o encargo de dizer do Imprio na sua fase pr-agnica, quando j mergulhado nas sombras do seu ocaso melanclico, a velha instituio cientfica teve mais uma vez o sentimento muito exato dos valores humanos: era justamente mais obscura das suas expresses intelectuais que devia caber a misso de historiar a vida e os acontecimentos do longo reinado bragantino nesta ltima fase, que era a do seu crepsculo... No plano das onze monografias projetadas, a mim cabia, com efeito, o estudo dos acontecimentos operados entre 1887 e 1889. Cabia a mim, portanto, surpreender a questo militar e a efervescncia militarista no seu ponto climatrico; a mim, ainda, apanhar a campanha abolicionista no momento mesmo do seu triunfo; a mim, finalmente, observar a velha estrutura do Imprio no instante mesmo da sua siderao e queda.

D

Prefcio

XXIV

Oliveira Vianna

Cedo, porm, reconheci a impossibilidade de me manter dentro dos extremos prefixados pelo Instituto. No pequeno campo histrico, que me fora destinado, vinha confluir uma srie de acontecimentos, cada qual mais importante, mas cuja significao senti que era impossvel apreender, se me conservasse rigorosamente adstrito aos estreitos limites impostos minha investigao. Dentro daquele curto perodo de 1887-1889, o que via era como que um eplogo, exprimia apenas as ltimas ondulaes tumulturias e encruzilhadas de um complexo movimento social, cujas primeiras revelaes tinham que ser buscadas em pocas incomparavelmente mais distantes. Realmente, nenhuma das grandes foras, que determinaram a queda do Imprio, se havia gerado dentro do perodo de 1887-1889; todas tinham as suas manifestaes iniciais fora daquele limitado espao histrico: o abolicionismo, o republicanismo, o federalismo, o militarismo. Este partia de 1870 pelo menos. O pensamento abolicionista recuava ainda mais aos primeiros dias do Imprio. O esprito republicano e federativo, esse vinha ainda de mais longe mergulhava em cheio as suas razes no perodo colonial. Tive, pois, que desobedecer ao plano estabelecido pelo Instituto e remontar as fases anteriores, na pesquisa das causas primeiras daquele extraordinrio acontecimento. Esta pesquisa das causas primeiras poderia me levar, de inferncia em inferncia, muito longe porque a lgica do historiador como aquele hipoptamo de uma fantasia de Machado de Assis: tem a fome do infinito e tende a procurar a origem dos sculos. Era preciso evitar este inconveniente, fatal antes de tudo aos leitores. Resolvi ento procurar um ponto do nosso espao histrico, tal que me permitisse, sem penetrar as origens remotas, determinar e isolar as causas mais aparentes do grande acontecimento. Este ponto encontrei-o e o pequeno perodo que vai da queda do gabinete Zacarias em 1868 ao manifesto republicano de 1870.

Prefcio

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Neste perodo est o ponto de partida de todo aquele movimento poltico que haveria de epilogar-se a 15 de novembro, com a destruio do gabinete Ouro Preto e a queda do 2.o Imprio. Fixei-me nele e foi dentro desse horizonte mais dilatado que tentei descrever, nas suas linhas gerais, a marcha evolutiva das grandes foras polticas que derruram, em 1889, a velha estrutura imperial. Digo das foras polticas porque somente delas trato neste volume. Das outras, as econmicas e as sociais principalmente, no aqui a melhor oportunidade para estud-las. Eu me reservo esta anlise para quando, ultimando a srie dos meus ensaios, iniciados com as Populaes Meridionais, sobre a origem e a formao da nossa nacionalidade, tiver que estudar, na Introduo Histria da Repblica, a sociedade brasileira sob o novo regime e fazer a crtica das nossas realidades contemporneas. H duas espcies de histria disse um dos nossos grandes espritos: a histria dos fatos e a histria das idias. Por isso mesmo h duas espcies de historiadores: os que historiam fatos e os que historiam idias. Neste livro, eu procuro, de preferncia, historiar idias. Da a escassez dos dados biogrficos e dos dados cronolgicos neste ensaio, em que tento descrever a evoluo da mentalidade das nossas elites no momento justo em que passam da grande iluso monrquica para a grande iluso republicana. O meu objetivo neste volume , por isso, definir, de uma maneira precisa, o papel exercido na queda da monarquia pela idia liberal, pela abolicionista, pela idia federativa, pela idia republicana e pelas fermentaes morais que determinaram as chamadas questes militares. Estas constituram para mim um ponto extremamente delicado de anlise; mas, dada a autenticidade dos fatos estudados, no creio que se possa acusar de excessiva a severidade com que julguei o papel do elemento militar nas nossas agitaes polticas. Neste ponto, como

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em todos os outros, que so debatidos neste volume, penso ter feito obra de absoluta imparcialidade julgadora. possvel que, nestas pginas, muito grandes homens apaream sem aquelas amplificaes que a perspectiva histrica cria, muitos heris se mostrem despidos do nimbo luminoso com que a tradio os havia coroado. Mas, que importa isto? O essencial que o juzo seja justo e assente em fundamentos de verdade. O papel do historiador justamente este, realizar essa obra de reintegrao dos valores, depondo dos altares santificadores os falsos dolos e pondo neles os benfeitores dos povos, os criadores reais de sua histria em suma, os verdadeiros heris, espoliados por aqueles intrusos na legitimidade do seu direito glria. Terespolis, 1925. Oliveira Vianna

Primeira ParteEvoluo do ideal monrquico-parlamentar

SUMRIOI. Lutas entre as duas soberanias: a do Prncipe e a do Povo. Constituio do regime parlamentar. II. O papel do Prncipe. Funo do poder moderador. III. O regime parlamentar no Brasil. O ponto crtico da sua evoluo: o golpe imperial de 1868 e a queda do Gabinete Zacarias. Efeitos desse golpe. IV. Soluo da crise ministerial suscitada: ascenso do partido conservador. O carter antiparlamentar desta soluo. Reao liberal conseqente. V. O trao caracterstico dessa reao; hostilidade contra o poder pessoal. Fontes de opinio: dificuldade do Imperador em sond-las. A opinio dos partidos e a sua falibilidade. VI. O recurso das eleies: sua falibilidade como fonte de opinio. VII e VIII. A burla eleitoral. Razes que a justificam. IX. A poltica rotativa do Imperador, sua razo de ser. X. Irritao dos polticos contra essa poltica rotativa. Razes dessa irritao. XI e XII. O movimento descentralizador e federativo. XIII. Reao no Parlamento e na Imprensa. XIV. D. Pedro e os seus ministros. Novas causas de irritao. XV. Conseqncias dessa irritao contra o poder pessoal: indiferena ou hostilidade contra a Monarquia e o Trono. XVI. A desiluso das instituies monrquicas. Estado geral dos espritos antes de 15 de novembro de 1889.

IO movimento reacionrio, que se seguiu queda de Napoleo e ao Congresso de Viena, havia criado para o Velho Mundo um estado de conflito permanente entre os representantes das dinastias, que as espadas da Santa Aliana haviam reposto nos seus tronos, e as massas populares, de cujas aspiraes se faziam eco as assemblias parlamentares. Dinastias e Parlamentos lutaram, desde 1814, por mais de meio sculo, pelo domnio exclusivo dos aparelhos do governo poltico das sociedades. Os chefes de dinastias, Reis, Imperadores, Prncipes apoiados nos exrcitos da Santa Aliana, recusavam-se a abdicar das suas velhas prerrogativas: julgando-se ainda donos, por direito divino, do governo dos povos, repeliam o princpio da soberania popular como humilhante e incompatvel com sua dignidade de Reis, cujo direito vinha, no das massas, mas de Deus. Os seus adeptos constituam o partido dos Absolutistas, como ento se dizia. Estes teoristas do Absolutismo repugnavam o regime das Constituies escritas, em que o Prncipe aparecia com poderes limitados. Para eles o Prncipe no devia conhecer outro limite ao seu arbtrio, seno o que ele a si mesmo estabelecesse. Os seus adversrios, nutridos da ideologia da Revoluo, pensavam de outra maneira, de maneira inteiramente oposta. Negavam aos Prncipes, repostos pela Restaurao, este direito exclusivo ao governo, e contra eles afirmavam o direito do Povo, de quem esses prprios Prncipes no deviam ser seno mandatrios. Os Parlamentos eleitos pelo Povo, estes sim que eram o centro da soberania nacional: eles, em nome do Povo, que elaboravam Constituies, a que os Prncipes deviam obedecer. Os partidrios deste sistema chamavam-se Constitucionalistas, e a sua filosofia poltica tomava o nome de Constitucionalismo, em torno do qual tanta retrica, escrita ou falada, se despendeu.

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O Constitucionalismo reao contra o autocracismo do antigo regime tinha, como se v, por pressuposto fundamental a soberania do Povo, ou melhor, a Democracia Representativa. Portanto, implicava um regime de sufrgio, ou apenas generalizado, ou mesmo universal. Pelo sufrgio, o Povo escolhia o Parlamento, e este, como rgo da vontade do Povo, fazia sentir ao Prncipe esta vontade. O Prncipe, est claro, no tinha outra coisa a fazer seno obedecer. O Constitucionalismo aparecia assim associado Democracia. O prncipe no tinha apenas os seus movimentos regulados pelos preceitos de uma Constituio; estava tambm obrigado a ouvir, atender a executar a vontade do Povo. Este que era o verdadeiro governo o Demos Soberano. Entretanto, pr um Prncipe diante de uma Constituio e de um Parlamento no parecia a estes espritos liberais bastante para assegurar a efetividade da supremacia da opinio do Povo sobre a opinio do Prncipe. Este, de posse dos aparelhos executivos do Poder, podia, com efeito, no dar ao Governo a orientao desejada pelo Povo, expressa no voto das maiorias parlamentares e, neste caso, o princpio da soberania do Povo ou do Parlamento, estaria burlado. Era preciso ento, para garantia do princpio democrtico, engenhar um expediente capaz de separar da pessoa do Prncipe o Poder Executivo e este foi o Governo de Gabinete. No Governo de Gabinete, o Poder Executivo reside, no no Prncipe, mas no rgo coletivo, o Ministrio, a cujos membros incumbem as diversas funes da administrao e do governo. Segundo as boas praxes deste sistema, o Ministrio deve ser formado de elementos procurados entre os prprios membros do Parlamento, e no deve ser uma reunio heterognea de titulares, mas um conjunto harmnico e unificado, representando um pensamento comum, um programa de governo. H para isto, em cada Gabinete ou Ministrio, um agente

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unificador, que o Presidente do Conselho.1 Este que representa o pensamento do Gabinete perante o Parlamento. Entre estes dois centros de fora est o Prncipe, tambm outro centro de fora, armado de um grande poder, de um outro poder o Poder Moderador. O conjunto destes trs poderes cooperantes que constitui o sistema parlamentar de governo.

IIH dous pontos delicadssimos neste sistema de governo. Um o das relaes entre o Gabinete e o Parlamento; outro, o da atitude do Prncipe perante o Gabinete e o Parlamento. No tocante ao primeiro ponto, o Gabinete deve ter o apoio e a confiana do parlamento, isto , da opinio numericamente preponderante nele. uma condio sine qua non para que ele possa obter os meios de governo e fazer passar as medidas necessrias execuo do seu programa. Desde que o Parlamento lhe retira a confiana, isto , desde que o Gabinete deixa de ter maioria no Parlamento, d-se o conflito: e chega ento a vez do Prncipe intervir. precisamente este ponto o mais melindroso. Logicamente, a conduta do Prncipe no poderia ser outra seno organizar um novo Gabinete de acordo com o novo pensamento dominante no Parlamento. Nem sempre, porm, o Parlamento reflete a imagem fiel da opinio atual do Povo. Circunstncias imprevistas, fatos novos, operados dentro do interregno eleitoral, podem produzir uma modificao na opinio pblica, sem que esta modificao se ache revelada no Parlamento, ou mesmo este, pelo jogo ntimo dos interesses partidrios, pode

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V. LYRA, Tavares de. A Presidncia e os Presidentes do Conselho dos Ministros.

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afetar uma opinio, sem que esta opinio seja, entretanto, um reflexo da opinio do Povo. O tato do Prncipe est justamente em distinguir estas duas hipteses e dar ao conflito uma soluo convinhvel. Se ele julga que a opinio do Parlamento expresso da opinio do Povo, concede demisso ao Gabinete e forma um outro Gabinete com elementos da opinio preponderante no Parlamento. Em regra, esta soluo do conflito equivale uma modificao na situao dos grupos partidrios perante o Poder e formao de um novo Gabinete pode corresponder a queda do partido a que pertence o Gabinete demissionrio, isto , a ascenso do partido oposto, ou de um outro partido. O Prncipe, entretanto, pode no demitir o Gabinete, pode conserv-lo, se presume que a opinio parlamentar no exatamente o reflexo da opinio popular. Neste caso, concede ao Gabinete a dissoluo do Parlamento e, por meio de uma nova eleio, sonda ou consulta a opinio do pas. O novo Parlamento dar, pela opinio de sua maioria, o sentido real da opinio do Povo e ser ento de acordo com esta opinio que o Prncipe organizar o novo Gabinete. No se podia, pois, engenhar nada mais perfeito como sistema de Democracia representativa. O regime parlamentar um mecanismo justo, exato, maleabilssimo, sorte de aparelho de preciso, maravilhosamente apto a marcar, como observa Nabuco, no s as horas, mas mesmo os minutos da Opinio. O papel do Prncipe neste sistema constitucional o de uma fora reguladora, ou antes, de um agente de conciliao e reajustamento das duas peas do sistema: o Parlamento e o Gabinete o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Reajustar o Parlamento ao Povo e reajustar o Gabinete a este Parlamento, assim previamente reajustado ao Povo eis a funo suprema do Prncipe no regime parlamentar. nisto que consiste o reinar da frmula britnica: o rei reina, mas no governa.

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Esta funo de reinar no , portanto, uma funo passiva e meramente decorativa; , ao contrrio, uma funo ativa, delicada, que exige muito tato, muita penetrao, muita sagacidade, um senso muito vivo do valor dos homens e um agudo instinto da psicologia das multides; mas, principalmente, uma certa filosofia latitudinria em poltica, um certo indiferentismo s opinies dos partidos e tambm uma aceitao muito completa do princpio da soberania do Povo. Esta ltima condio essencial porque, se o Prncipe no aceita integralmente esta soberania, se faz sentir tambm a sua vontade no governo, isto , se, alm de reinar, quer tambm governar, no existe mais regime parlamentar e estamos desde ento no sistema absolutista, embora temperado. Esta subordinao completa do Prncipe vontade do Povo os ingleses, na sua insularidade geogrfica e histrica, s a conseguiram estabelecer depois de lutas muitas vezes seculares. Na Europa continental, os Prncipes se mostraram por muito tempo intratveis sobre este ponto e, embora aparentando condescender com o princpio democrtico, nunca se limitaram a reinar apenas, nunca se resignaram a abandonar inteiramente as suas velhas prerrogativas ao governo do Povo. Da conflitos vivssimos e prolongados, que tiveram, na Frana e na Espanha, principalmente, as suas manifestaes mais sangrentas. S depois de 1860 pode-se dizer que o princpio democrtico o princpio do governo da Opinio entrou inteiramente nos costumes polticos e parlamentares da Europa em geral. Da em diante com exceo apenas da Rssia e da Alemanha os golpes de estado do Prncipe passaram a escassear e, quando vinham, j causavam funda surpresa, espanto, indignao, um mal-estar tamanho, que o prprio Prncipe se sentia, depois dele, como que moralmente deslocado e constrangido.

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que por esse tempo j se havia formado entre os povos europeus o que se podia chamar uma conscincia parlamentar, a cujos ditames Prncipes, Gabinetes, Parlamentos, todos procuravam obedecer, de bom grado ou a contragosto, pouco importa, mas sempre com a possvel exatido.

IIIEstas consideraes so necessrias para a exata compreenso do golpe de 1868, que deu por terra com o Gabinete Zacarias. Este fato a queda dos liberais chefiados por Zacarias decisivo para o prestgio das instituies em nosso pas. Pode-se dizer que o grande processo de desintegrao do sistema monrquico data da e isto pela maneira singular por que se operou a modificao da situao parlamentar, em perfeito contraste com as idias dominantes no nosso ambiente poltico por aquele tempo, reflexo, por sua vez, das idias dominantes no ambiente poltico do mundo. Na verdade, o golpe de 68, com o ser talvez o mais fecundo em conseqncias polticas, foi tambm o mais singular dos nossos golpes polticos. O partido liberal estava no poder desde 62 e, num pas de liberdade poltica apenas on paper, sabe-se bem o que podia significar isto. o mesmo que dizer que o partido liberal detinha todas as situaes nos municpios, nas provncias, no centro: e a Cmara liberal de 68, to tocantemente unnime, era apenas uma alta expresso da tocante unanimidade liberal que existia por todo o pas, graas aos recursos torcionrios da lei de 13 de dezembro lei que os liberais, quando apeados do poder, combatiam vigorosamente e, quando instalados no poder, aplicavam vigorosamente, ao modo dos conservadores. O Gabinete decado tinha como presidente Zacarias e este fato teve uma importncia enorme nos acontecimentos. Zacarias era o que

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se chamava ento, com certa nfase, um homem de partido. Hoje, quando j no existem partidos, ele seria apenas o que costumamos chamar, no sentido vulgar da expresso, um poltico, diferindo dos demais polticos nisto: que estes fazem poltica em pequeno estilo, e afirmando, e Zacarias fazia poltica em grande estilo, e negando. No fundo, por mais que fosse a sua cultura, por mais longo e freqente o seu trato com os grandes problemas nacionais, Zacarias nunca conseguiu libertar-se inteiramente da sua primitiva mentalidade de homem de cl e via sempre tudo, mesmo as idias mais srias e altas, atravs do ngulo estreito do esprito de partido. Di-lo Nabuco belamente: Sua existncia poltica pode ser comparada do religioso, a quem so vedadas as amizades pessoais e que se deve dedicar todo sua Ordem, obedecer s sua Regra. O partido era a sua famlia espiritual: a ele sacrificara o corao, a simpatia, as inclinaes prprias; ele podia dizer da poltica o que se disse da vida espiritual, que o mais repulsivo dos vcios a sentimentalidade. No havia nele trao de sentimentalismo; nenhuma afeio, nenhuma fraqueza, nenhuma condescendncia ntima projetava a sua sombra sobre os atos, as palavras, o pensamento mesmo do poltico. A sua posio lembrava um navio de guerra, com os portals fechados, o convs limpo, os fogos acesos, a equipagem a postos, solitrio, inabordvel, pronto para a ao. V-se que faltava a Zacarias a mentalidade do homem de Estado. Foi talvez um grande chefe de partido, mas certo que nunca foi, nem podia ser, um estadista. O verdadeiro estadista, como observa um biogrfico de Hamilton, pratica a poltica da colmia, ao passo que os polticos praticam outra poltica a poltica da abelha. No primei-

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ro, tudo se subordina ao interesse coletivo. Nos segundos, tudo se subordina ao interesse individual. Zacarias, claro, no se inclui entre os primeiros, mas no seria justo inclu-lo entre os segundos, fazendo-o um desses tipos polticos que, como de Aaron Burr disse Oliver, procuram, antes de tudo, na colmia o mel e isto porque Zacarias, apesar do seu partidarismo, era pessoalmente desinteressado e, em matria de honestidade, absolutamente intangvel. Zacarias poderia figurar entre os que praticam a poltica da colmia, desde que o conceito da colmia seja o do partido e no o da ptria. Na relativa estreiteza, no diremos do seu esprito, que era alto e amplo, mas do seu corao, ele no via, ou melhor, no sentia nada alm disso que formava o grmio do seu partido: os horizontes da ptria eram muito extensos para o alcance da sua afetividade. No perodo crtico da guerra do Paraguai, a sua atitude para com Caxias perfeitamente demonstrativa da sua incapacidade moral ou afetiva para sentir outro interesse que no o interesse do seu partido. Ela d a medida exata da mentalidade de Zacarias como homem de Estado, como d a medida exata da sua incapacidade para praticar a poltica da colmia, quando a colmia a ptria e no o partido. Feij, Bernardo ou Paranhos teriam procedido diversamente; mas estes j pertencem a um outro tipo de homens, ao grupo de gigantes polticos do molde hamiltoniano ou bismarkiano. Este esprito excessivamente partidrio de Zacarias iria revelar-se mais uma vez e j agora de modo fatal para o seu partido no incidente de 68, de que resultou a demisso do Gabinete de 3 de agosto, por ele presidido. sabido como se passou o fato. Na lista trplice de senadores pelo Rio Grande do Norte, ao lado de dois ilustres desconhecidos, viera Sales Torres Homem, grande orador e grande escritor, senhor de um dos mais luminosos e cultos talentos da sua poca. Dizia-se dele que

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trazia na cabea a chave de todos os problemas nacionais no que h evidentemente uma boa dose de iluso, porque Torres Homem pertencia classe dessas belas inteligncias, feitas para o idealismo e a imaginao, mais artsticas do que positivas, mais literrias do que cientficas, para quem uma bela frase vale bem uma bela ao e uma palavra eloqente sempre a rainha do mundo regina rerum oratio, boa maneira romana. O Imperador que no tinha dio aos homens de talento, como Domiciano aos homens de bem preferiu escolher Sales Torres Homem. Era justo que o fizesse, tanto mais quando os dois outros concorrentes eram entidades, seno inteiramente annimas, pelo menos razoavelmente annimas. Zacarias, entretanto, discordou porque tinha um certo ressentimento de Torres Homem. Objetou que no julgava acertada a escolha; sugeriu a de Amaral Bezerra, figura obscura, mas chefe provincial do partido de Zacarias. Nunca disse porque no julgava acertada a escolha do Imperador; naturalmente porque sentia que os motivos no eram dos mais elevados, nem recomendaria muito aos olhos da posteridade a sua proverbial austeridade de Cato, censor implacvel das faltas e erros alheios. O Imperador, mais uma vez, no atendeu a Zacarias. Sentindo-se desautorizado, Zacarias apresentou a sua demisso, a demisso coletiva do Gabinete. Neste caso que se evidencia o esprito partidrio de Zacarias. V-se como este grande homem grande por tantas qualidades superiores de inteligncia e carter era, sob este aspecto, uma individualidade de segunda ordem, revelando uma mentalidade de chefe de cl de aldeia grande. Um dos atributos mais discriminatrios do Poder Moderador era justamente a escolha dos senadores nas listas trplices. O poder dos partidos ia at a eleio e era o bastante; mas a escolha de um dos eleitos era coisa do pleno arbtrio da Coroa. O que Zacarias

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pretendia era, nada menos, que a Coroa se fizesse partcipe do exclusivismo dos grupos partidrios, com seus odiozinhos, as picuinhas, as suas prevenes, os seus ressentimentos e, talvez mesmo, as suas guerrazinhas ao merecimento e altivez. Disse-se que o Imperador, por fim, acabou cedendo tambm neste ponto ambio insacivel dos polticos e passou a escolher os senadores nas listas trplices segundo a indicao dos presidentes do Conselho; mas, se assim foi, ele cedeu com esta transigncia lamentvel o que havia de mais liberal na bela faculdade que lhe fora outorgada pela Constituio.2 Num pas como o nosso, onde o esprito de partidarismo to vivaz e absorvente que homens da respeitabilidade e do prestgio nacional de Zacarias no coravam de descer a mesquinha manobras de politicagem contra os adversrios, s a Coroa, fora dos partidos e das vicissitudes eleitorais, pela imparcialidade da sua viso alta e larga, no uso da bela prerrogativa constitucional, seria capaz de impedir que o mrito, o talento, a cultura fossem sacrificados habitual intolerncia e ao desdm dos nossos mandes politicantes, trouxessem eles os gales ridculos de broncos coronis de aldeia ou ostentassem o chapu de bico e o fardo vistoso de ministros da Coroa.

IVDemissionrio o Gabinete liberal de 3 de agosto, o Imperador ia usar a mais delicada faculdade do Prncipe no regime parlamentar: a da formao do novo Gabinete. Normalmente, como vimos, nesta contingncia, ao Prncipe se abrem dois caminhos: ou ele constitui um Gabinete de acordo com a opinio dominante na Cmara, ou dissolve a Cmara, manda proceder s eleies e, de acordo com a nova opinio2 MONTEIRO, Tobias. Pesquizas e Depoimentos, p. 15.

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do pas, revelada por essas eleies, constitui o novo Gabinete. Era o que faria o soberano na livre Inglaterra e foi o que fez pelo menos, aparentemente D. Pedro. Deu demisso ao liberal Zacarias e chamou para organizar o novo Gabinete o conservador Itabora. Depois, concedeu a dissoluo da Cmara e mandou fazer eleies com o fito democrtico de sondar a opinio. Realizada a sondagem, verificou-se ento que a opinio do pas estava toda ao lado dos conservadores tanto que a nova Cmara era unanimemente conservadora, como a anterior era unanimemente liberal. Em boa doutrina, nada havia que atacar na soluo dada delicada questo poltica suscitada pela demisso de Zacarias. O Gabinete Itabora passara a governar com uma maioria esmagadora. Os princpios do regime representativo parlamentar estavam assim perfeitamente ressalvados. Estas, porm, as aparncias; as realidades no eram propriamente assim. Zacarias demitira-se de uma maneira singularssima porque extraparlamentar. No fora uma moo de desconfiana que o levara a pedir demisso; a sua situao parlamentar era, no prprio dia da demisso, slida, magnfica, indesmontvel: pode-se dizer que no tinha a maioria, mas a unanimidade mesma da Cmara! Nesta, nenhuma agitao. Nenhum debate srio. Nenhum ponto de doutrina em jogo. Nenhum caso poltico ou administrativo. Nada: em toda ela a fisionomia calma, unida, espelhante de um lago em repouso. Zacarias demitira-se por um motivo frvolo, personalssimo, incompatvel com a elevao de um homem de Estado, criando com a impertinncia do seu capricho e a irritao do seu ressentimento uma crise poltica desnecessria, ou, pelo menos, sem justificao no momento. Logicamente, dada a situao unanimemente liberal da Cmara, demitido Zacarias, caberia a um outro prcer liberal organizar o

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novo Gabinete. Entretanto, o Imperador chamou Itabora e o novo Gabinete, que apareceu diante desta Cmara unanimemente liberal, era unanimemente conservador! No se podia conceber nada mais flagrantemente contrrio aos princpios do regime parlamentar. O Imperador desta vez desdenhava, desprezava, repudiava, da maneira mais franca e acintosa, a opinio do Parlamento. Enorme a surpresa, o espanto, a indignao da Cmara. Jos Bonifcio, grande e admirvel orador, teatral e magnfico, esteve num dos seus grandes dias. E a Cmara aprovou a seguinte moo de desconfiana: A Cmara dos Deputados v com profundo pesar e geral surpresa o estranho aparecimento do atual Gabinete, gerado fora do seu seio e simbolizando uma nova poltica, sem que uma questo parlamentar tivesse provocado a queda dos seus antecessores. Amiga sincera do Sistema Parlamentar e da Monarquia Constitucional, a Cmara lamenta este fato singular, no tem e no pode ter confiana no Ministrio. Fossem quais fossem os motivos que levaram o Imperador a esta atitude, o certo que este seu ato determinou uma mudana geral no sistema de crenas e idias dominantes no mundo poltico de ento. Da por diante comeamos a assistir a um duplo fenmeno: a descrena progressiva nas virtudes do sistema monrquico-parlamentar e uma crescente aspirao por um novo regime, uma nova ordem das cousas. Cristiano Ottoni exprimiu este duplo fenmeno, vendo, no primeiro, o descrdito que a poltica lanara sobre as instituies e, no segundo, a evoluo natural da idia democrtica.

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VO trao caracterstico desse grande movimento da opinio, que se seguiu ao golpe do Imperador contra os liberais em 68, era o de uma irritao viva, ardente, explosiva contra o Poder pessoal, considerado pelos liberais como uma deturpao do Poder Moderador, que a Constituio confiava Coroa. E a verdade que esta irritao era inevitvel. Porque s os que ignorassem os nossos costumes polticos e a mentalidade dos nossos partidos poderiam supor possvel que o Poder Moderador, supremo regulador do sistema parlamentar, pudesse funcionar aqui com a mesma perfeio com que funcionava entre os ingleses. Faltavam nossa sociedade todas as condies para isto. O governo parlamentar, como j vimos, essencialmente um governo de opinio, isto , um governo cuja instituio num dado povo pressupe a existncia de uma opinio pblica organizada. Ora, esta opinio pblica organizada, capaz de governo, nunca existiu aqui, nem hoje, nem outrora; alhures, j o dissemos por qu. 3 Havia como ainda h hoje uma opinio informe, difusa, inorgnica, que era a que se formava nos centros universitrios, nos clubes polticos, nas sociedades manicas e principalmente na Imprensa. Esta opinio, alis, tinha sempre um carter artificial, era quase sempre um reflexo americano das agitaes europias. S exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das classes cultas do pas. O Imperador no desdenhava de atend-la e assim o fez no caso da Eleio direta, no caso da Abolio, no caso da Federao. Esta opinio, de origem habitualmente extica, em regra, nunca aparecia pura e extreme; sempre se mostrava, ao contrrio, muito impregnada das animosidades do partidarismo, muito comprometida3 VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituio (in margem da Historia da Republica; por varios escriptores da nova gerao. Rio, 1924).

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com o esprito de faco, para que se pudesse consider-la sempre como um ndice sadio da opinio nacional. E, justamente, por isso, ela devia ter constitudo para o Imperador, todas as vezes que era obrigado a organizar novo Gabinete, um dos grandes motivos de perplexidade. Esta perplexidade do Imperador no devia ser menor quando ele, no intuito de conhecer a opinio do pas, buscava-a, ou tentava busc-la, na opinio dos partidos. Porque os partidos polticos do Imprio, imponentes embora pela sua massa, no tinham propriamente uma opinio; eram simples agregados de cls organizados para a explorao em comum das vantagens do Poder. Certo, houve aqui uma fase em que os partidos tiveram verdadeiramente uma opinio: foi o perodo da Independncia, do 1.o Reinado e da Regncia. Depois dessa grande fase histrica, pode-se afirmar com fundamento que os partidos polticos no representavam realmente correntes de opinio; os programas que ostentavam eram, na verdade, simples rtulos, sem outra significao que a de rtulos. O prprio liberalismo da Constituio tornara, alis, difcil esta discriminao muito ntida das opinies. Zacarias exprimiu muito bem este fato no seu discurso de 18 de junho de 1870, no Senado: O argumento do nobre senador dizia ele envolve uma confuso de idias manifesta: O conservador no Brasil necessariamente liberal, porque a Constituio do Brasil contm instituies santas, liberais; o conservador quer manter estas instituies; logo liberal. O argumento podia ser invertido pelos liberais, dizendo: A Constituio Brasileira contm instituies santas, liberais; o partido liberal quer mant-las; logo, s o liberal conservador.

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J em 53, alis, a chamada poltica da conciliao, de Paran, uma prova do vago, do indefinido, do incerto contido nos programas dos dous grandes partidos do Imprio. O fato que nenhum desses dous programas representava convices definitivas e sinceras. Tanto que os liberais, quando no governo, agiam sempre de maneira idntica aos conservadores: o inebriamento do poder como que os fazia olvidar os seus mais caros ideais, calorosamente pregados quando nas agruras da oposio. O programa liberal era uma espcie de trombeta sonora, que os liberais s se lembravam de clarinar com fogo, com brio, com mpeto, quando, como em 68, o Imperador os atirava momentaneamente no ostracismo. Ento, todo o pas acordava sob um estridor imenso de toques de alarma, de sonoridades marciais, de cnticos de guerra, chamando a postos as conscincias altivas para a defesa da Ptria, da Democracia e da Liberdade. Desde o momento, porm, em que, ao aceno da Coroa, retornavam ao poder, cessavam de sbito o trombetear formidvel e passavam a ser ... como os conservadores. O caso de Sinimbu tpico. Em 77, quando na oposio, ele pronunciava estas palavras de altiva e nobre verdade: Temos uma misso mais elevada e educar a populao. Ora, esta educao no pode ser feita seno pelo exemplo, que a primeira lio, a primeira base de qualquer educao. O povo tem os olhos fitos nos seus homens de Estado e se ele os v dbios, contraditrios, incertos, oscilantes em suas idias, perde-lhes a f e a confiana. Um ano depois, em 78, com a subida dos liberais, Sinimbu, chamado ao poder, realiza uma das mais violentas reaes antiliberais da nossa histria poltica. Para esmagar o Partido Conservador,

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onipotente at a vspera, usou recursos tais de compresso eleitoral, que chegaram a levantar protestos dos prprios aliados, os republicanos. Uma das provas, alis, mais decisiva de que os programas partidrios no tinham significao prtica est em que as grandes reformas liberais a Eleio Direta, a Reforma Judiciria, as leis da Emancipao Servil foram todas obras realizadas pelos conservadores. Tambm os liberais, quando na oposio, acusavam a lei de 3 de dezembro de 1841 de ser o mais poderoso aparelho de compresso de que se poderia armar o Governo. Entretanto, durante o perodo de 62 a 68, em que estiveram no poder, nunca acharam tempo para tocar nesta lei e foi justamente manejando esse formidvel aparelho de compresso e arbtrio que eles conseguiram aquela majestosa unanimidade de 68! O Partido Conservador no agia de modo diverso. Para no abandonar o poder, adiantava-se no caminho das inovaes e apropriava-se das idias pregadas justamente pelos liberais. Um conservador ortodoxo, Andrade Figueira, por ocasio da Lei Rio Branco, atacou com eloqncia esse latitudinarismo doutrinrio dos chefes conservadores e disse estas palavras cruis: Pois um partido no poder h de renegar suas idias e realizar as idias dos seus adversrios s pelo receio de que eles venham subir amanh? O Partido Liberal, que explora o futuro, pode atirar-se a essas aventuras; mas o Partido Conservador, que marcha com passo certo, em caminho conhecido, no pode nunca dar passos imprudentes, s para evitar que os seus adversrios subam ao poder. Este mesmo latitudinarismo permitiu mais tarde aos conservadores uma mobilidade ainda maior nos movimentos de transigncia. Nabuco quem observa, referindo-se Abolio:

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Quando a Monarquia se sentiu obrigada a tocar neste ponto delicado da economia social, o partido ultraconservador, os antigos saquaremas do Rio de Janeiro, educados por Torres, Paulino e Eusbio, passaram todos estrepitosamente para a Repblica.4 Os dous velhos partidos do Imprio, como se v, no tinham opinio, como no tinham programas. O objetivo era a conquista do Poder e, conquistado este, conserv-lo a todo transe: nada mais. Era este o principal programa dos liberais como o era dos conservadores. Essa atitude dos dois grupos partidrios fazia com que o Imperador acabasse convencido de que no podia encontrar na opinio dos partidos nenhum ndice seguro das correntes interiores, que porventura animassem a conscincia do pas. Mas, Sr. Honrio, onde esto os nossos partidos? perguntava, em 53, a Paran. No fundo, sente-se que ele dava uma importncia pequena, ou mesmo, no dava importncia alguma opinio dos partidos. O golpe parlamentar de 68 , na verdade, uma bela prova disto. Ningum exprimiu melhor, e com maior conhecimento de causa, do que o prprio Zacarias este estado dalma do Imperador. Disse ele, com efeito, na sesso de 18 de junho de 1870: O conservador no respeita o liberal; o liberal no respeita o conservador; o conservador flagela o liberal; o liberal flagela o conservador e o resultado que a Coroa tem em m conta um e outro.

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NABUCO, Joaquim. Balmaceda, p. 28.

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VIHavia, certo, o recurso das eleies. Em tese, dentro dos princpios de pura teoria do regime representativo, era este o mais legtimo processo de sondagem da opinio pblica. O Imperador apelou para ele vrias vezes, quando concedia a dissoluo da Cmara. Foi o que fez em 68, quando chamou Itabora. Foi o que fez em 78, quando chamou Sinimbu. Num e outro caso, tendo modificado a colorao poltica do Gabinete, dissolvia a Cmara e procurava informar-se da opinio do pas atravs da colorao partidria do futuro Parlamento. O processo eleitoral, entretanto, tambm no lhe dava nenhum ndice seguro da opinio nacional. S nos pases de opinio organizada que o processo eleitoral pode ser um meio eficaz de sondagem da opinio do povo; no, num pas como o nosso. Falta-nos esprito pblico. Falta-nos organizao de classes. Falta-nos liberdade civil. Realmente, esprito pblico nunca existiu no Brasil. Entre ns, a vida poltica foi sempre preocupao e obra de uma minoria diminuta, de volume pequenssimo em relao massa da populao. O grosso do povo, levado s urnas apenas pela presso dos caudilhos territoriais, nunca teve esprito poltico, nem conscincia alguma do papel que estava representando.5 No Brasil, como observa Luiz Couty, no existe povo no sentido poltico da expresso. E um esprito irreverente exprimiu uma vez este mesmo pensamento, dizendo que aqui povo uma reunio de homens, como porcada uma reunio de porcos. Organizao de classes tambm no existia, como ainda no existe, capaz de dar ao processo eleitoral uma significao realmen5 V. VIANNA, Oliveira. Pequenos Estudos de Psicologia Social (cap. Os fatores do absentesmo eleitoral).

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te democrtica, maneira britnica ou norte-americana. Durante o perodo imperial tnhamos, ainda mais do que hoje, uma estrutura social muito simplificada; de maneira que a vida poltica no se distribua por vrios centros da atividade, no se dispartia por vrias classes ou grupos profissionais: concentrava-se quase toda numa classe nica, que era a grande aristocracia territorial. Esta preponderncia to absorvente da grande aristocracia da terra fazia com que nem a classe mdia rural, nem a plebe dos campos tivessem, ou pudessem ter, opinio. Demais, devido extrema simplificao trazida nossa estrutura social pelos grandes domnios independentes, 6 os interesses das classes populares rurais no estavam propriamente em oposio aos da aristocracia territorial; antes, acordavam-se. De modo que, no seio da populao dos campos, no se podiam formar, como nunca se formaram, correntes de opinio desencontradas, capazes de revelar-se no processo eleitoral. Nos grupos urbanos, por sua vez, a estrutura social era quase to rudimentar como nos campos. Ento, os conflitos de classes, prprios s sociedades de alta organizao industrial, no tinham ainda razo de ser. Igualmente no se havia constitudo aqui como na Argentina da poca caudilheira, segundo Sarmiento nenhum antagonismo entre as populaes dos campos e as populaes das cidades. Em sntese: pela grande simplicidade da nossa estrutura social; pela ausncia de antagonismo de classes; pela feio acentuadamente patriarcal da nossa sociedade, a opinio do povo, sob o 2.o Imprio, estava ainda em condio muito rudimentar. O processo de sondagem por meio das eleies no podia trazer, pois, ao Imperador nenhum elemento seguro de orientao.

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V. VIANNA, Oliveira. Populaes Meridionais do Brasil, I, cap. VII.

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Num povo sem educao eleitoral e de opinio embrionria, o processo de consulta nao, prprio aos governos parlamentares, estava realmente condenado a ser, como sempre foi, uma pura fico constitucional.

VIIDemais, a dissoluo da Cmara para a consulta Nao se havia transformado numa fora ridcula, verdadeira burla dada a corrupo do prprio processo eleitoral. Mesmo que o nosso povo tivesse opinio, a fraude no a deixaria revelar-se e isto porque o partido que estivesse no poder ganhava sempre, e o partido que estivesse debaixo, na oposio, perdia sempre tal como hoje. Nabuco, o velho, chegou mesmo a formular esta lei no seu famoso sorites: O Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar Ministrios; esta pessoa faz a eleio, porque h de faz-la; esta eleio faz a maioria. que nos faltavam ento e ainda nos faltam agora as condies necessrias para eleies livres. Uma dessas condies precisamente que cada um dos cidados, cada um dos eleitores, tenha perfeitamente assegurada a sua liberdade civil e era isto o que no acontecia aqui. Em nosso pas, com efeito, nunca existiram grandes tradies de legalidade, maneira da Inglaterra, por exemplo, onde os preceitos da common law tm qualquer coisa de sagrado aos olhos das autoridades e aos olhos das multides. Nem a Magistratura aqui teve jamais essa fora, essa autoridade, esse prestgio, que punha uma to confiada arrogncia no corao do moleiro de Frederico, o Grande. Aqui, todos esse aparelhos protetores das liberdades individuais sempre funciona-

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ram mal, deixando o homem do povo na iminncia ou na atualidade dos golpes de vindita dos poderosos.7 Cada homem do serto ou da mata entre ns bem podia dizer como aquele campons de Paul Louis Courier: Je suis malheureux: jai fch monsieur le maire; il me faut vendre tout et quitter le pays. Cest fait de moi, si je ne pars bientt. Era esta, na verdade, a condio das nossas massas populares sob a lei de 3 de dezembro de 41. certo que a Reforma Judiciria de 71 assegurou um pouco mais os particulares contra o arbtrio das autoridades. Estas garantias, entretanto, continuaram a ser precrias; no passavam, afinal, de garantias no papel; na prtica, os velhos costumes permaneceram e estes asseguravam o mais completo absolutismo aos mandes locais. Ora, pelo mecanismo da centralizao, todos esses mandes locais estavam na dependncia dos Gabinetes, ou mais exatamente, dos chefes de Gabinete. Este, atravs da poderosa mquina centralizadora, mobilizava sua vontade esse formidvel exrcito de tiranetes locais. Era debalde que as oposies tentavam lutar contra a fora irresistvel dessa compresso organizada. O Governo, expresso de um partido, tem o direito de intervir no processo eleitoral dizia, em 1840, Antnio Carlos. Esta doutrina absurda pode-se dizer que era a expresso do pensamento ntimo de todos os polticos no poder, tanto liberais como conservadores e nenhum deles, tanto liberais como conservadores, deixou de aplic-la integralmente. S Saraiva, em 82, na execuo da lei da eleio direta, desmentiu esta regra o que lhe valeu uma ascendncia imensa sobre todos os polticos de seu tempo. O recurso da dissoluo da Cmara, o expediente da consulta Nao, se havia transformado numa verdadeira burla, em que nin7 VIANNA, Oliveira. Populaes Meridionais do Brazil, I, cap. VIII.

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gum mais acreditava. Dissolvida a Cmara, j se sabia de antemo com a certeza certa de uma previso astronmica que a nova Cmara vinha inteiramente feio do novo Gabinete. Em julho de 68 caa o gabinete Zacarias com uma Cmara unanimemente liberal. Esta Cmara, Itabora, conservador, dissolveu: a Cmara nova, eleita no mesmo ano, veio unanimemente conservadora! Em 1878 deu-se o contrrio; foi o Gabinete conservador que caiu; substituiu-o um Gabinete liberal, o Gabinete Sinimbu: e a Cmara, soberbamente conservadora, dissolvida, voltou soberbamente liberal! Certamente, reformas vrias do mecanismo eleitoral procuraram pr um bice a estes desmandos da fraude e a Lei Saraiva, que substituiu o velho sistema da eleio de dois graus pela eleio direta, pareceu, primeira vista, ter conseguido este grande objetivo.8 Mas a verdade que nem esta lei, nem as leis anteriores puderam contravir s artimanhas dos nossos bosses eleitorais. Estes sempre se mostraram inapreensveis, intangveis, invencveis no prodigioso diabolismo das suas habilidades de prestmanos. Por mais cautelosas e casusticas que fossem todas estas leis, eram nada diante dos truques sugeridos pela inventiva maravilhosa desses Fregolis da cabala.

VIIIO que aconteceu com o sistema da eleio direta tpico. Este sistema havia aparecido nos nossos meios partidrios como uma criao miraculosa do engenho poltico. Todos os outros sistemas eleitorais, at ento praticados, tinham falhado. Falhara a lei dos crculos, de 55.8 Cf. ROURE, Agenor de. Cap. IX, I (Contribuies para a Biographia de D. Pedro II). E LYRA, Tavares de. Regimen eleitoral (in Dicionario Historico e Geographico do Brazil, V. I).

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Falhara a reforma de 60, com os seus distritos de trs deputados. Falhara a reforma de 75, que estabelecera o princpio da representao das minorias. Todas elas deixavam brechas por onde o governo pudera insinuar-se, impor a sua vontade e o seu arbtrio. Em suma, o sistema dos dois graus falhara: mostrara-se extremamente dcil vontade do Poder. O mal devia estar ento neste sistema e os espritos mais impacientes voltaram-se, cheios de esperanas, para o sistema da eleio direta. Houve um momento mesmo em que foi tamanho o entusiasmo pela eleio direta, tamanha a f nas suas virtudes, que ela passara a ser, como confessava Sinimbu, no mais uma questo de partido, mas uma questo nacional: todo o pas a reclamava! O Imperador foi um dos primeiros a perceber isto e foi ele quem, com a sua alta autoridade, ensinou Sinimbu a agitar o problema e promover a sua soluo parlamentar. Sente-se que ele se deixara tomar tambm do idealismo ambiente, que era, alis, o idealismo do mundo. Porque o nosso movimento pela eleio direta no foi original, mas apenas uma prolao do movimento europeu neste sentido. Refletamos os clamores dos partidos europeus e as aspiraes que agitavam o Velho Mundo. Ento, o sufrgio revelava ali uma tendncia a generalizar-se, a aproximar-se cada vez mais das maiorias populares. Esta tendncia atingia o seu mximo de intensidade, justamente na poca em que inicivamos aqui, com o estmulo do Imperador, o movimento pela eleio direta. Esta contemporaneidade dos dois movimentos mostra o carter meramente reflexo do nosso e nossa esperana quase messinica na eleio direta no era seno a esperana contempornea de todos os povos civilizados no sufrgio universal. Estvamos na convico de que o novo sistema eleitoral armaria o povo com uma arma invencvel contra o arbtrio do poder. Com o sufrgio direto, o Parlamento seria, no mais uma massa passiva de dependentes, sados dos conluios dos gabinetes ministeriais, mas uma legtima expresso da vontade nacional.

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Coube a Saraiva a execuo da lei de 81, em que se consubstanciara a grande aspirao nacional. Saraiva, ao contrrio de Zacarias, no tinha o temperamento de um homem de partido: era uma natureza lgida, insusceptvel ao fanatismo das grandes convices e inapto s grandes vibraes do entusiasmo. Ningum mais capaz de executar uma lei, em que a qualidade principal do executor seria o desprendimento, a fria imparcialidade, o sentimento da verdade pura. Zacarias, com o seu vivo sentimento partidrio, no a executaria como no a executariam Paulino ou Sinimbu, cuja compresso eleitoral de 78 enchera de surpresa, seno de espanto, a conscincia do pas. Os resultados da nova lei foram surpreendentes. O nosso povo teve por um momento a impresso que havia encontrado nela a chave da sua liberdade poltica: pela primeira vez o governo fora derrotado! Para este magnfico xito no contribuiu apenas a retido e a imparcialidade de Saraiva: h que contar tambm com a interveno direta do Imperador. Nada mais comprobativo da alta compreenso que o velho dinasta tinha da sua grande misso constitucional do que a sua insistente diligncia junto a Saraiva, por ocasio da primeira experincia da lei de 80, e mesmo depois, junto a Dantas, nas eleies de 84. Quem ler hoje a correspondncia dele com Dantas por essa poca, no poder deixar de sentir uma emoo comovida diante deste ancio, sobrecarregado das mil preocupaes do seu cargo, mas atento aos menores detalhes e s menores providncias, necessrias a assegurar uma execuo perfeita quela grande lei. O Imperador se tornou o fiscal-mor da oposio junto ao ministrio, ao ponto de Dantas considerar que aquela preocupao, por exagerada, quase redundava em preferncia pelos adversrios diz um historiador. No fundo, D. Pedro sentia que o resultado bom ou mau da Lei Saraiva ia dar a prova crucial da excelncia do velho regime. Soberano visceralmente democrtico, cioso da sua dignidade de rei, mas no do

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seu direito divino, em que certamente no acreditava, ele no teria nenhuma repugnncia em acatar a opinio do Povo, desde que ela se lhe revelasse de uma maneira clara e insofismvel, mandando s Cmaras uma representao que fosse a expresso legtima da sua vontade. Ele confessou, alis, isto mesmo nas suas notas ao livro de Tito Franco. O xito inicial da Lei Saraiva foi devido, em parte, ao conjugada do Imperador e do chefe do Gabinete; em parte, tambm, a este estado de exaltao generosa e idealista, que acompanha sempre a estria das grandes reformas e sob a qual todos os pequenos egosmos, todas as pequenas impurezas da nossa pobre humanidade como que se fundem ou se volatilizam. Passada, porm, esta fase climtica de exaltao, os homens retornam logo ao seu pequeno horizonte emotivo e, mesmo, ao seu pequeno horizonte intelectual e voltam a viver dentro do seu egosmo anterior. Por isso, como todas as outras leis, a dos crculos, a do tero, etc., a Lei Saraiva tambm falhou. Nas eleies seguintes restauravam-se as velhas praxes opressivas. Nenhum dos homens do poder teve mais a abnegao de Saraiva. Nenhum mais se resignou a sofrer a provao da sua derrota. O governo, como outrora, passou a ganhar sempre. A oposio, como outrora, passou a perder sempre. Voltaram as Cmaras unnimes e com elas o protesto, o clamor, o desespero dos condenados s geenas do ostracismo. Em suma, durante o Imprio, o destino dos partidos estava, no na opinio do Povo, mas na opinio dos Gabinetes. Estes que davam aos partidos no poder, com as situaes locais e provinciais, essas belas unanimidades parlamentares, contra que investia a clera dos polticos cados em desgraa. Se era conservador o Gabinete, todo o pas se revestia de uma colorao conservadora; mas, se acontecia ser liberal o Gabinete e a poltica rotativa do Imperador sempre permitia que isto acontecesse o matiz poltico que cobria o pas passava a ser desde ento impressionadoramente liberal!

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IXNingum mais convencido de tudo isto, desta fico, desta burla, desta artificialidade do regime representativo no Brasil do que D. Pedro e isto justamente que transparece das suas notas ao livro de Tito Franco. Compreende-se, pois, a delicadeza da sua situao no exerccio da grande faculdade constitucional, todas as vezes que se abria uma crise de Gabinete. Numa Cmara liberal, por exemplo, se ele chamasse um Gabinete conservador sem conceder a dissoluo da Cmara seria logicamente impossibilitar quele os meios de governo; mas, concedida a dissoluo, isto importaria na vitria segura do novo Gabinete: e a situao anterior, por mais slida que fosse, seria reduzida a destroos, ao sopro violento das derrubadas. O destino dos partidos estava, pois, dependente de um simples aceno do Imperador chamando este ou aquele prcer partidrio ao Pao. Ele fazia cair os partidos e fazia subir os partidos, vontade: bastava para isso pr nas mos de Zacarias ou de Itabora, de Nabuco ou de Uruguai, de Saraiva ou de Cotegipe, os admirveis mecanismos de compresso poltica, que os prprios partidos, quando no poder, e julgando-se indesmontveis, haviam organizado. D. Pedro era um esprito liberal e equnime, puro homem de bem, sem gosto nenhum pela poltica e as suas agitaes. Por isso mesmo, adotara uma atitude de paternal e displicente imparcialidade para com os dois partidos. Ora chamava um, ora chamava outro ao poder, sem dar nenhuma considerao aprecivel opinio da Cmara, cujas origens esprias bem conhecia.99 Desde de 1840 se tem querido inculcar que a Cora perde de sua fora e dignidade sempre que se conforma com a opinio das Cmaras, tanto na organisao, como na dissoluo dos ministerios observava um panfletrio da poca. Cf. LYRA, Tavares de. Cap. III das Contribuies para a Biographia de D. Pedro II (Rev. Trimensal, t. esp., 1925).

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Ele bem compreendia que o papel do rei constitucional, exercido maneira inglesa, seria aqui absolutamente irrepresentvel por qualquer soberano que aspirasse o ttulo de justo. Se, quando se operava uma crise ministerial, em vez de formar um Gabinete de colorao contrria, como costumava de quando em quando fazer, ele adotasse sistematicamente a frmula britnica e formasse sempre Gabinetes da mesma colorao da Cmara, seria isto ele bem o sentia fixar no poder ad aeternitatem o partido do Gabinete. Seria o que Saraiva chamava a condenao dos adversrios ao inferno de Dante ao ostracismo permanente e irremissvel. Nestas alternativas das situaes partidrias, o Imperador parecia no ter outro critrio seno o do tempo: ele fazia o revezamento dos partidos conforme o tempo da estadia deles no poder. Em 1868, depois de seis anos de domnio do partido liberal, fazia subir ao poder, com surpresa geral, o partido conservador. Em 1878, depois de dez anos de governo conservador, fazia subir os liberais. Realizava assim, com a sua equanimidade, aquilo que o povo, com a sua incapacidade democrtica, no sabia realizar.

XOs polticos, entretanto no compreendiam (ou fingiam no compreender) esta imparcialidade do Imperador. Em boa verdade no a podiam compreender, ou antes, no a podiam admitir. Em nosso pas, com efeito, os partidos no disputam o poder para realizar idias; o poder disputado pelos proventos que concede aos polticos e aos seus cls. H os proventos morais, que sempre d a posse da autoridade; mas h tambm os proventos materiais, que essa posse tambm d. Entre ns a poltica , antes de tudo, um meio de

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vida: vive-se do Estado, como se vive da Lavoura, do Comrcio e da Indstria e todos acham infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa. Num pas assim, a conquista do poder um fato inquestionavelmente mais srio e mais dramtico do que em outro pas, em que os indivduos vo ao poder no intuito altrustico de realizar um grande ideal coletivo. Da a spera violncia das famosas derrubadas. O partido que subia derrubava tudo quer dizer: sacudia para fora dos cargos pblicos, locais, provinciais e gerais, todos os ocupantes adversrios. Era uma vassourada geral, que deixava o campo inteiramente limpo e aberto ao assalto dos vencedores. Equivale dizer que cabiam a estes as batatas, se no h engano na filosofia de Quincas Borba. Sabe-se, alis, aquele dito espirituoso de Martinho de Campos, quando teve que deixar a pasta de ministro: Perdi o emprego! Era um gracejo; mas este gracejo encerrava a sntese de toda a filosofia poltica no Brasil. No fundo, quando caa um Gabinete, todos os que formavam o estado-maior deste partido nos municpios, nas provncias, no centro repetiam, ou podiam repetir realmente, a frase motejadora de Martinho: tambm eles perdiam o emprego! Est claro que, num pas em que a vida poltica se modela por esse padro e se restringe a esses objetivos personalssimos, o exerccio do Poder Moderador num sistema parlamentar uma tarefa delicada, espinhosa, ingrata porque fatalmente mal compreendida e, quando no mal compreendida, pelo menos mal aceita pelos detentores eventuais dos instrumentos do governo. Estes se julgavam sempre esbulhados, quando o Imperador os fazia apearem-se do poder. Desde que nada podia explicar esta queda seno a vontade do monarca, nada mais lgico do que a irritao dos polticos contra esse personagem, que, embuado dentro de uma prerrogativa constitucional, os destitua das suas situaes de mando, sem

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outra razo seno as razes do seu capricho. Homens de cl para quem o inimigo poltico era quase sempre inimigo domstico e a luta poltica uma luta pessoal, eles no se sentiam apenas esbulhados com o ato da Coroa que chamava ao poder os adversrios: sentiam-se tambm humilhados, feridos no seu pundonor pessoal e guardavam do Imperador uma sorte de ressentimento ntimo, s vezes mesmo, de rancor. Este explodia, s vezes, em frases de recriminao violenta ou clera impulsiva.

XIO grande movimento em favor da descentralizao e da federao, que comeou a acentuar-se depois do golpe imperial de 68, teve a sua razo principal justamente nesta indignao dos polticos liberais contra essa fora poderosa e incontrastvel que, de quando em quando, os tirava das gratas comodidades das situaes do poder para as injustificveis incomodidades de um ostracismo forado. Realmente, desde o momento em que o objetivo da grande reao liberal, iniciada em 68 com a queda do gabinete Zacarias, era coarctar a ao do poder onipotente concentrado no Imperador, ento julgado, erradamente embora, a causa de toda a corrupo do regime, era lgico que o ponto capital das tendncias do nosso liberalismo passasse a ser, como passou, o desenvolvimento daquelas instituies polticas, julgadas capazes, pela ideologia da poca, de contrastar o arbtrio contido naquela suposta onipotncia coroada. Urgia libertar o mais rapidamente possvel os centros locais e provinciais de vida poltica da presso intolervel do poder da Coroa. Por isso mesmo, quando estudamos aquela poca, no nos possvel evitar o reconhecimento de que o pensamento descentralizador

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aparecia impregnado de um certo sainete antimonrquico. Havia mesmo um grupo que no podia compreender bem esta expresso, to grata a Nabuco, de monarquia federativa. Para os deste grupo, monarquia e federao eram coisas que hurlaient de se trouver ensemble. Desde o momento em que, pelos supostos desmandos da Coroa, viam-se obrigados a evoluir para a federao, eles comearam desde logo consciente ou subconscientemente a desprender-se insensivelmente da instituio monrquica. O mote de Rui Barbosa Federao com ou sem a Coroa d-nos, alis, a mais bela prova de que o nosso liberalismo, compenetrando-se cada vez mais da conscincia da incompatibilidade entre a federao e a monarquia, e no querendo ou no podendo sacrificar o ideal da federao, j estava preparando para descartar-se da velha instituio imperial. Os republicanos alis, sob sugestes exgenas haviam formado o binrio: Federao Repblica. Para eles, esta grande medida, da maior urgncia, sem a qual, segundo eles, no haveria nem progresso, nem liberdade, nem mesmo unidade nacional, era irrealizvel dentro do regime monrquico, julgado ento sem a flexibilidade bastante para isto. Ouro Preto bem o compreendeu e, na elaborao do seu programa ministerial, tentou dissociar este binrio perigoso. No seu plano descentralizador, o pensamento do chefe do gabinete 7 de junho era mostrar que, ao contrrio do que afirmavam os republicanos, o velho regime no era incompatvel com essa medida reclamada pela chamada conscincia liberal: Os meios de consegui-lo dizia ele no seu discurso de apre sentao do gabinete, referindo-se reao contra o movimento republicano no so os da violncia ou represso; consistem simplesmente na demonstrao prtica de que o atual sistema de governo tem elasticidade bastante para admitir a consagrao dos

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princpios mais adiantados, satisfazendo todas as exigncias da voz pblica esclarecida. Como Ouro Preto, Nabuco tambm no acreditava nesta incompatibilidade, nem nesta imaleabilidade de regime da Carta de 24. Com a sua concepo da monarquia federativa, ele considerava perfeitamente conciliveis a instituio monrquica e a instituio federativa. Ouro Preto, menos pensador e mais estadista, era menos audaz, ficava em meio caminho, dentro do conceito de uma ampla descentralizao; mas, repugnava a concepo federativa de Nabuco, como incompatvel com a integridade do Imprio: O programa do partido a que estou ligado, afirmava ele o que me comprometia a levar a efeito, no a federao, mas a plena liberdade e autonomia dos municpios e provncias, sem enfraquecimento da unio e integridade do Imprio. Nabuco, porm, queria, no apenas essa descentralizao, mas a federao ampla. Da o seu dissdio com Ouro Preto. Respondendo ao discurso deste por ocasio da apresentao do gabinete 7 de julho, Nabuco ps em dvida que o programa de Ouro Preto fosse o programa da maioria liberal e deu a entender que, no tocante idia federativa, o velho partido imperial estava cindido: Se h uma parte do Partido liberal que quer e outra que no quer a federao, ento h dois Partidos liberais conclua ele. Para Nabuco o ponto essencial da federao estava na eletividade dos presidentes provinciais o que era contrrio ao pensamento de Ouro Preto. Este queria a escolha do Imperador sobre a lista trplice, maneira do que se fazia com a eleio dos senadores. Nabuco considerava esta sugesto de Ouro Preto uma combinao hbrida e a repe-

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lia como incompatvel com a idia federativa: A lista provincial para a escolha dos presidentes dizia ele uma combinao hbrida que transporta, de fato, a eleio das urnas provinciais para as intrigas da Corte. Esta concepo federativa de Nabuco no o levou apenas a dissentir de Ouro Preto; f-lo tambm se separar de Rui, seu grande companheiro de lutas e de partido. Rui queria a federao, mas era indiferente monarquia; Nabuco, ao contrrio, idealizava a federao com a monarquia e temia aquela sem esta: A bandeira federal confessava ele passou das mos do orador para as do Sr. Rui Barbosa. Pela atitude que julgou dever tomar depois de 13 de Maio, o orador perdeu a confiana dos elementos de opinio, que sempre o escutaram. Infelizmente, Rui Barbosa, que est representando o papel de Evaristo, no fundo republicano e o orador monarquista. Isto impede de acompanhar o seu ilustre amigo na campanha que ele est dando pela federao com ou sem monarquia. Os fatos vieram a mostrar que quem tinha razo era o estadista Ouro Preto e no o pensador Nabuco. Em tese, realmente, no havia nenhuma incompatibilidade entre as duas instituies de direito pblico; mas, no esprito dos polticos mais esclarecidos de ambos os partidos imperiais, no podia deixar de haver uma certa conscincia de