O OLHAR DA SOCIOLOGIA SOBRE A EDUCAÇÃO: A QUESTÃO DAS ...

20
ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451 O OLHAR DA SOCIOLOGIA SOBRE A EDUCAÇÃO: A QUESTÃO DAS DESIGUALDADES EDUCACIONAIS SOCIOLOGY’S LOOK AT EDUCATION: THE ISSUE OF EDUCATIONAL INEQUALITIES TURA, Maria de Lourdes Rangel [email protected] Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ RESUMO Este texto pretende discutir indagações e análises, produzidas pela sociologia da educação, sobre as desigualdades de oportunidades escolares. Destaca que a constatação dessas desigualdades foi produto de inúmeras pesquisas nesse campo. São aspectos que entraram em confronto com a propalada democratização do ensino público e a perspectiva da função da escola na formação do cidadão e do trabalhador para uma sociedade em profundas mudanças. As investigações realizadas levaram a que se focasse a cultura – apoiada na noção de capital cultural de Pierre Bourdieu - e as estratégias pessoais e familiares na construção do sucesso escolar. A diferença cultural é também apresentada como uma questão que exige a atenção do pesquisador e, na busca de solução para esse problema, o que se verificou foi o acontecer de inúmeras propostas e políticas de cunho nacional e internacional. O problema, no entanto, não está resolvido e vai se apresentando a cada momento com novas feições e dimensões. PALAVRAS-CHAVE: Desigualdades de oportunidades escolares. Pesquisa no campo da Sociologia da Educação. Políticas educacionais. ABSTRACT This paper aims at discussing inquiries and analyses on inequalities of school opportunities arising from the Sociology of Education. It highlights that such verification was an outcome of a number of studies in this field. These are aspects that came into collision with the so talked about democratization of the public school education and the perspective of the function of school in the citizen’s and worker’s formation for a society in deep change. The inquiries carried out leaded to a focus on culture – supported by the notion of cultural capital by Pierre Bourdieu – and the personal and family strategies in the construction of school success. The cultural difference is also presented as an issue requiring the researcher’s attention and, in the search of a solution for this problem, various domestic and worldwide proposals and policies have emerged. The problem, however, is not solved and at every moment it assumes new shapes and dimensions. KEYWORDS: inequalities of school opportunities; research in the field of Sociology of Education; educational policies.

Transcript of O OLHAR DA SOCIOLOGIA SOBRE A EDUCAÇÃO: A QUESTÃO DAS ...

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

O OLHAR DA SOCIOLOGIA SOBRE A EDUCAÇÃO: A QUESTÃO DAS

DESIGUALDADES EDUCACIONAIS

SOCIOLOGY’S LOOK AT EDUCATION: THE ISSUE OF EDUCATIONAL

INEQUALITIES

TURA, Maria de Lourdes Rangel

[email protected]

Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ

RESUMO Este texto pretende discutir indagações e análises, produzidas pela sociologia da educação, sobre as desigualdades de oportunidades escolares. Destaca que a constatação dessas desigualdades foi produto de inúmeras pesquisas nesse campo. São aspectos que entraram em confronto com a propalada democratização do ensino público e a perspectiva da função da escola na formação do cidadão e do trabalhador para uma sociedade em profundas mudanças. As investigações realizadas levaram a que se focasse a cultura – apoiada na noção de capital cultural de Pierre Bourdieu - e as estratégias pessoais e familiares na construção do sucesso escolar. A diferença cultural é também apresentada como uma questão que exige a atenção do pesquisador e, na busca de solução para esse problema, o que se verificou foi o acontecer de inúmeras propostas e políticas de cunho nacional e internacional. O problema, no entanto, não está resolvido e vai se apresentando a cada momento com novas feições e dimensões. PALAVRAS-CHAVE: Desigualdades de oportunidades escolares. Pesquisa no campo da Sociologia da Educação. Políticas educacionais.

ABSTRACT This paper aims at discussing inquiries and analyses on inequalities of school opportunities arising from the Sociology of Education. It highlights that such verification was an outcome of a number of studies in this field. These are aspects that came into collision with the so talked about democratization of the public school education and the perspective of the function of school in the citizen’s and worker’s formation for a society in deep change. The inquiries carried out leaded to a focus on culture – supported by the notion of cultural capital by Pierre Bourdieu – and the personal and family strategies in the construction of school success. The cultural difference is also presented as an issue requiring the researcher’s attention and, in the search of a solution for this problem, various domestic and worldwide proposals and policies have emerged. The problem, however, is not solved and at every moment it assumes new shapes and dimensions. KEYWORDS: inequalities of school opportunities; research in the field of Sociology of Education; educational policies.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

433

INTRODUÇÃO

Neste texto pretendo trazer discussões que se deram na Sociologia da

Educação a respeito de algo que tem sido objeto de muitas indagações no campo da

educação escolar. É a grande incidência daquilo que se denominou como fracasso

escolar, que se pauta no número enorme de retenção e evasão escolar de

estudantes, o que os colocava muitas vezes não indo muito além das primeiras

séries escolares. Isso acontece num contexto político em que as demandas por

instituição dos Sistemas Nacionais de Educação se apoiam no entendimento de que

a educação escolar é, de um lado, direito do cidadão e dever do Estado e, de outro

lado, fundamental para o desenvolvimento social em sociedades que apoiam sua

produção numa nova ordem do trabalho, que foi se constituindo a partir do século

XIX.

Localizo, então, a questão num contexto histórico que faz coincidir a

consolidação da sociologia como conhecimento científico com os primeiros passos

da instituição da educação pública.

As indagações a respeito do fracasso escolar apontaram – a partir de

inúmeras pesquisas de cunho quantitativo – para a perspectiva das desigualdades

educacionais, que se tornou uma questão de muita centralidade nos estudos dos

sociólogos da educação, que buscaram construir teorias explicativas para esse

problema.

O CONTEXTO SOCIAL E POLÍTICO QUE PRESIDE O MOMENTO DE

CONSOLIDAÇÃO DA SOCIOLOGIA COMO CIÊNCIA

O século XIX é marcado por inúmeras mudanças sociais e econômicas. Ou

seja, a sociedade estava se transformando num ritmo que nunca tinha sido

observado e nesse contexto a Europa ocupava uma posição dominante alicerçada

naquilo que se denominou a revolução industrial e na expansão mundial do

capitalismo, acompanhada do processo de colonização e da crença no liberalismo

econômico.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

434

A par disso que se pode entender como o progresso e o crescimento

econômico, também se verifica o acontecer de um circuito de conflitos bélicos que

atingiram todo o centro do continente europeu como a França, a Confederação

Alemã, o Império Austríaco e a Itália e a instabilidade política ocupou esse vasto

território, como estudou Hobsbawm (1982). Afora isso, presenciou-se também aquilo

que se pode distinguir como revoluções sociais em que a classe média,

trabalhadores pobres, campesinos e intelectuais ocuparam a cena política. Foi

nesse contexto que os Estados Nacionais tiveram que fazer muitas concessões para

esses novos sujeitos políticos e, a partir da segunda metade do século XIX, pode se

observar uma relativa estabilidade política. Digo relativa porque vamos ver acontecer

na primeira metade do século XX a instabilidade social e política de forma nunca

pensada com a eclosão de duas grandes guerras mundiais.

A Europa esteve no centro desses acontecimentos.

Essas questões/ tensões/ instabilidades foram sendo acompanhadas de

ações políticas que tinham suas bases no ideário da Revolução Francesa do final do

século XVIII. Quero distinguir como centro dessas ações políticas os movimentos

republicanos e os investimentos na expansão do ensino público, que estavam

baseados no que se veiculou como direitos sociais e humanos.

Nossa atenção então se fará para a questão da expansão da educação

pública, dos esforços na implantação de processos nacionais de escolarização e que

fez com que as escolas viessem a progressivamente ir substituindo a família e a

igreja no ensino do que se entendia como os saberes elementares, no dizer de

Hébrard (1990).

Esse é um movimento que atinge os diferentes países da Europa e também

da América e entre eles o Brasil. Podemos lembrar a proclamação da república no

Brasil em 1989, assim como os esforços na construção de escolas publicas,

voltadas para o acesso da população àquilo que vinha se instituindo como o ensino

elementar ou básico. No caso brasileiro a escola primária.

É também no século XIX que se viu consolidar a sociologia como um saber

científico, como ocorreu com outras ciências do campo das ciências sociais e

humanas.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

435

Essa área de conhecimento que estava se estruturando teve seu interesse

voltado para o estudo das questões sociais desse tempo e entre elas estava a

educação escolar.

Émile Durkheim, que pode se distinguir como um dos pais fundadores da

sociologia, preocupou-se em distinguir as “regras” na constituição desse novo saber

científico, seus objetos de estudo e as bases da explicação sociológica. As questões

mais proeminentes do século XIX lhe interessavam muito e seus estudos se

apoiaram nas suas posições em relação à ciência, à sociedade e ao momento

histórico que presenciou. E, nesse sentido – como se pode imaginar – as discussões

a respeito da instituição escolar estiveram muito presentes em seus textos.

Seus escritos sobre esse tema, que foram muito deles traduzidos para o

português (cf. DURKHEIM, s/d; 1987; 1995), mostram o foco central do que estava

sendo pensado em relação à organização do ensino público e distingue a

importância da educação escolar, a partir daquilo que se entendia como a sua

função coletiva e civilizadora, no preparo dos jovens para a vida social. É essa a

razão da ênfase que dá à responsabilidade do Estado pela educação escolar posto

que no caso contrário, ela se:

...porá ao serviço dos interesses particulares e a grande alma da pátria se dividirá, esfacelando-se numa multidão incoerente de pequenas almas fragmentárias, em conflito umas com as outras. Não pode nada ser mais contrário ao objetivo fundamental da educação (DURKHEIM, s/d, p. 48).

Fazendo essa leitura, em primeiro lugar, pode se observar nessa afirmação

que os ideais iluministas e positivistas – muito presente na construção dessa ciência

– estão aí se destacando.

Em segundo lugar, Southwell (2008, p. 121) lembra que na modernidade, “os

sistemas de escolarização foram estabelecidos em torno da ideia de que a

sociedade era resultado da ação educacional”. São aspectos que nos levam a

entender a dimensão da importância dada à educação pública no século XIX e as

crenças que se desenvolviam nas suas possibilidades civilizatórias e sua efetiva

atuação na formação de um trabalhador afinado com as novas formas de produção

econômica.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

436

Essas expectativas também vão estar colocadas como pressupostos nos

estudos da sociologia em seus primórdios e dão força às indagações que se fazem

partir da primeira metade do século XX com relação aos entraves e problemas

observados nos processos de escolarização de massa.

Nesse contexto, Nogueira (1990) localiza nos anos de 1950 e 1960 o

momento da constituição da Sociologia da Educação como um campo de pesquisa

e, também, destaca que nas sociedades mais desenvolvidas e industrializadas –

França, Inglaterra e Estados Unidos - esta encontra seus espaços de maior

desenvolvimento.

Associado a isso, os financiamentos para a pesquisa educacional cresceram

muito e vários proeminentes sociólogos foram chamados a realizar investigações,

que pretendiam levantar dados sobre as formas de administração desses sistemas e

o conhecimento da população escolar. Esse processo tem origem no movimento de

reconstrução de cidades e instituições num momento histórico que ficou conhecido

como o pós-guerra.

A QUESTÃO DAS DESIGUALDADES DE OPORTUNIDADES ESCOLARES

A observação do que foi se distinguindo como o fracasso escolar foi o que

desde o início do século XX esteve preocupando os estudiosos do campo da

educação.

Os grandes investimentos feitos na construção dos prédios escolares, na

formação de professores, na organização dos currículos escolares, na produção de

material didático e outros recursos pedagógicos, assim como a abertura do sistema

para a escolarização de estudantes dos diferentes grupos sociais e a observação de

que os resultados desse investimento ainda eram precários estavam a produzir

inúmeras indagações dos gestores desse sistema (MAINARDES, 2007).

O que podia estar faltando?

A busca de respostas para essa questão possibilitou antes de tudo que se

avolumassem as dúvidas em reação à democratização do ensino.

Vale nesse ponto lembrar os múltiplos levantamentos estatísticos realizados

nos anos de 1960 e 1970, com o objetivo de balizar as condições de funcionamento

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

437

da escola, como foi analisado por Nogueira (1990), e que eram demandas que

tinham inclusive cunho político num momento de muita disputa entre os diferentes

países capitalistas e comunistas. Esses estudos foram conhecidos como uma

“aritmética política”, que devia servir à administração dos sistemas educacionais no

sentido da implementação de reformas.

Forquin (1995) apresenta, nesse conjunto de trabalhos investigativos, a

pesquisa longitudinal realizada na França pelo Institut National d’ Études

Démographiques (INED) que tem sido analisada como uma importante fonte de

informação sobre os mecanismos de orientação e seleção escolar. Um mesmo

grupo de estudantes (17.461) que haviam terminado a quarta série do primário em

1962 foi acompanhado durante 10 anos (até 1972) em sua trajetória escolar. As

conclusões indicaram diferentes situações – o sucesso e a idade de conclusão da

quarta série; o meio geográfico etc. – como marcantes das possibilidades em

relação à longevidade dos estudos, mas aquilo que esteve registrado como aspecto

principal foi o meio social de origem do aluno.

Enfim, essa série de estudos possibilitou que se pudesse formular como

conclusão estatística que havia uma correlação positiva entre desigualdades sociais

e desigualdades de oportunidades escolares.

São considerações que nesse momento – da guerra fria e de disputas em

torno de ações políticas que se pretendiam democráticas - causaram muito impacto

por distinguirem tanto as desigualdades sociais quanto as desigualdades de

oportunidades escolares.

Assim, corroborando com esses estudos, Forquin (1995) indicou – baseado

nas pesquisas educacionais– que os obstáculos ao prosseguimento dos estudos

estão relacionados à origem social dos alunos e não ao talento individual.

Constatações como essa alimentaram a discussão sobre os déficits culturais de

certos grupos sociais e a inadequação de currículos escolares pautados nos códigos

culturais de uma elite social erudita, como estudou Bourdieu (1999a).

Pierre Bourdieu (1999a) em seu texto analisou “as desigualdades frente à

escola e à cultura”, tendo por referência aquilo que se podia entender como uma

expectativa, uma estimativa “objetiva” de sucesso e fracasso escolar baseada nas

diferentes origens sociais dos estudantes.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

438

O autor nesse estudo faz uma critica radical a muitos dos significantes que

foram se hegemonizando em relação ao sistema escolar. Ou, melhor dizendo, a

ideia de uma “escola libertadora”, que tem a função de propiciar a mobilidade social

numa sociedade democrática. Segundo o autor, os dados dos levantamentos

estatísticos realizados indicavam, por exemplo, que “um jovem da camada superior

tem oitenta vezes mais chances de entrar na Universidade que o filho de um

assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho de operário” (BOURDIEU,

1999a, p.41). São questões que o levam a afirmar que é necessário descrever os

mecanismos que determinam essas diferenças ou a eliminação contínua das

crianças dos grupos mais desfavorecidos.

Nesse contexto, elaborou a noção de capital cultural, que se traduz em um

conjunto de códigos de linguagem, valores, costumes, saberes e gostos próprios de

uma cultura letrada e erudita, que é transmitida como herança cultural aos filhos dos

indivíduos posicionados nos grupos sociais mais favorecidos..

A escola produz seu currículo tendo por base os códigos dessa cultura letrada

e erudita, que também é a matriz da produção do conhecimento científico. Assim, a

família de origem dos indivíduos marca de forma substancial a trajetória escolar do

aluno.

Colocando então a ênfase naquilo que distingue como uma herança cultural,

Bourdieu vai, também, chamar a atenção para as crianças da classe média que:

devem à sua família não só os encorajamentos e exortações ao esforço escolar, mas também um ethos de ascensão social e aspiração ao êxito na escola e pela escola, que lhes permite compensar a privação cultual com a aspiração fervorosa à aquisição de cultura (BOURDIEU, 1999a, p.48).

Num outro sentido, afirma que o “sucesso excepcional” de alunos

provenientes de grupos sociais mais desfavorecidos dá uma aparência de

legitimidade à seleção escolar.

Foi pensando em todas essas diferentes situações que Bourdieu (1999b)

asseverou que a noção de capital cultural é indispensável para os estudos das

desigualdades escolares. Lembra, então, que se pode pensar nessa noção como

algo que se incorpora como uma aquisição, uma acumulação, uma apropriação,

uma assimilação, uma inculcação de bens culturais. “O capital cultural é um ter que

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

439

se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da

‘pessoa’, um ‘habitus’” (BOURDIEU, 1999b, p.74-75). A instituição escolar ao

conferir àquele que possui o capital cultural o reconhecimento de seu saber e de sua

competência – o diploma – sanciona as diferenças relativas à incorporação dos

benefícios econômicos, sociais e culturais.

Em estudos que podem se associar ao que foi discutido por Bourdieu, Forquin

(1993) chama a atenção para a importância que deve ser dada à cultura ou às

culturas dos alunos e professores na análise das desigualdades escolares. O autor

entende que esse é um caminho para que se possa buscar compreender as práticas

e situações escolares.

Em torno dessas questões, diversos grupos e suas demandas políticas se

articularam no sentido de realizar reformas e projetos educacionais que garantissem

melhores resultados escolares.

Observou-se, então, em diversos países, o acontecer de muitas novas

políticas educacionais e a criação de muitos projetos que tinham por foco, por

exemplo, o crescimento do número de matrículas escolares e, ao mesmo tempo, a

extensão da obrigatoriedade escolar.

Observando essas situações, Duru-Bellat (2003) afirmou que não se pode

deixar de levar em conta as mudanças ocorridas na distribuição global da educação

e de observar os efeitos das políticas de ampliação da oferta escolar. Contudo, fala

de uma “democratização segregativa” quando se observa as diferenças entre as

diversas camadas sociais no acesso a determinados cursos e no Brasil podemos

exemplificar isso com a existência de uma organização do sistema educacional

distribuído em instituições da rede pública e privada. No nível do ensino fundamental

e médio, a massa dos estudantes dos grupos sociais mais favorecidos frequenta as

escolas da rede privada. Na Universidade essa situação se inverte e esse grupo

está, em sua maioria, frequentando as Universidades públicas.

Enfim, novas formas de exclusão vão acontecendo, balizadas nessas

reformas e nas muitas políticas de aceleração da aprendizagem, de redução da

defasagem idade/série etc. Essas providências - de formas peculiares ou de acordo

com suas diferenças - estão presentes nos vários países do ocidente, posto que a

questão das desigualdades de oportunidades escolares continua a estar presente no

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

440

meio escolar. Ou seja, não houve uma substancial modificação nessa situação e

isso é mostrado nos estudos de Bourdieu e Champagne (1999) que analisaram

outra forma de exclusão que é decorrente dessas providências e políticas estatais. É

o que distinguiram como uma “eliminação branda”, que se processa ao longo da

trajetória escolar, e produz os “excluídos do interior”. Esse fenômeno está alicerçado

nas modificações relativas ao valor econômico e simbólico dos diplomas e na

circunstância de que as “escolhas” mais decisivas – para alcançar o acesso às boas

escolas e faculdades – devem ser feitas cada vez mais precocemente.

Nesse contexto, ficou muito conhecido o trabalho de Bernard Charlot (2000).

Charlot inicia seu texto questionando por que certos alunos fracassam na escola e, a

seguir, afirma que ao se discutir o fracasso escolar se está trabalhando com “um

campo saturado de teorias construídas e opiniões do senso comum” (CHARLOT,

2000, p. 9). O que está posto aqui é, exatamente, o indicativo de que esse assunto

já vem sendo sobejamente estudado e já extrapolado o ambiente acadêmico e se

tornou objeto de discussão nos mais diferentes espaços e, entre eles, aqueles dos

circuitos da comunicação de massas, da mídia impressa e televisiva.

Pela recorrência no estudo e nas demandas políticas relativas àquilo que em

sentido mais geral se pôde distinguir como as desigualdades de oportunidades

escolares, foi-se observando certo deslocamento em muitas pesquisas no campo da

Sociologia da Educação que se fez no sentido de olhar essa questão por outro lado.

Ou seja, a partir dos anos de 1990, vimos avançar estudos sobre o sucesso

escolar de grupos de alunos que tinham origem nas camadas populares. Aqueles

que fugiam à regra, aqueles que podiam em sua trajetória escolar indicar caminhos

que se abriam a partir de fatores que contribuíram para o alcance de seu sucesso

escolar.

São estudos que têm por base a discussão, por um lado, da noção de capital

cultural de Bourdieu, que é recontextualizada a partir das mudanças socioculturais

do tempo que vivemos. Por outro lado, vemos o destaque que é dado à perspectiva

das estratégias familiares no prolongamento da trajetória escolar de alunos oriundos

de grupos sociais de baixa renda.

Nesse sentido, cabe destacar o estudo de Lahire (1997) que teve muita

penetração entre os sociólogos da educação no Brasil.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

441

O autor traz em seu livro os resultados de uma pesquisa com 26 famílias dos

meios populares. Nesse texto investiga as relações sociais mantidas por esse grupo

e os processos de socialização das crianças. Distingue, então, as formas familiares

da cultura escrita, as condições e disposições econômicas, a ordem moral

doméstica, as formas de autoridade familiar e as condições familiares de

investimento pedagógico. O que foi observado, num sentido mais amplo, foi a

heterogeneidade dos processos de socialização, que acompanhavam também a

variedade de condições socioeconômicas e culturais do grupo investigado. São

situações bastante presentes no tempo em que vivemos e nas atuais formas de

organização social.

O investimento familiar na educação escolar das crianças, os valores ligados

ao cumprimento das regas e normas e à valorização do trabalho escolar são

aspectos que trazem mudanças no perfil do estudante. Assim, o que está em

questão é o interesse desse pesquisador em analisar as várias formas de

socialização nos diversos ambientes sociais, posto que, segundo o seu

entendimento, esses são processos que possibilitarão a alguns estudantes oriundos

dos meios populares alcançarem uma trajetória escolar mais longa.

Observar alternativas ou estratégias familiares para romper com a tradição do

fracasso escolar em ambientes de poucos recursos econômicos e baixa

escolaridade foi então algo que passou a interessar muitos pesquisadores e, entre

eles, quero destacar trabalhos que foram realizados no Brasil, como os de Viana

(2000), Portes (2000), Setton (2005) e Zago (2006, 2007). Também se podem

distinguir estudos com grupos sociais pertencentes às classes médias em que se

analisam os esforços familiares encetados no sentido de possibilitar que suas

crianças possam usufruir das melhores condições de aproveitamento da excelência

escolar, visando o sucesso em carreiras acadêmicas e instituições do ensino

superior mais prestigiadas (NOGUEIRA, 1998; ROMANELLI, 2000; ALMEIDA,

2000). Entre esses mecanismos de acompanhamento e supervisão dos movimentos

dos filhos em relação ao que se pode distinguir como o bom aprendizado dos

conhecimentos escolares, esses estudos destacam não só a escolha dos bons

estabelecimentos de ensino, como a atenção e auxílio nos deveres de casa, a

regulação do tempo dedicado aos estudos, a atenção dada ao contato com os

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

442

professores e a escolha de atividades extraescolares de modo a estar

potencializando as condições de aproveitamento escolar e de contato com a cultura

erudita.

Nas pesquisas com alunos das camadas populares que obtiveram sucesso

escolar, vamos então destacar o trabalho de Viana (2000) que apresenta em seu

texto o resultado de uma investigação que serviu de base para a sua tese de

doutorado. As questões que nortearam sua pesquisa se faziam em torno da relação

família, filho-aluno e escola, tendo por base um grupo de estudantes do ensino

superior oriundo de famílias de camadas populares. A presença familiar ou os

modos da presença familiar nesse contexto estiveram no centro das indagações,

assim como as inter-relações com outros grupos de referência ou a inserção

simultânea em dois grupos sociais.

A mobilização positiva das famílias desses estudantes no sentido de facilitar o

acontecer desse “improvável” – a trajetória de seus filhos até ensino superior – foi

bastante observada e nesse conjunto Viana (2000) verificou inclusive atitudes de

outros familiares – irmãos, por exemplo – que buscavam oportunizar formas daquele

que permanecia na escola por mais tempo ter um menor tempo dedicado ao

trabalho remunerado.

A construção do sucesso escolar desse grupo de estudantes foi, então, um

processo que foi se construindo a partir de “êxitos escolares parciais” que atraíram

êxitos subsequentes.

O que a autora nos traz de forma mais geral é a história de sete estudantes

de graduação ou de pós-graduação que tinham origem em ambientes em que a

trajetória escolar era curta e eles se distinguiram com o seu sucesso escolar, que

produziu dificuldades no lidar/ conviver com culturas muito diferentes. Uma das

estudantes que participaram da pesquisa afirmou “se sentir estrangeira,

desadaptada, marginal, como peixe fora d’água” (VIANA, 2000, p. 55) nos espaços

acadêmicos.

No final de seu texto, a autora chama a atenção para a importância de

estudos como esse que ela produziu e que abordam questões que têm preocupado

muito pesquisadores de diferentes nações do ocidente.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

443

Há também o trabalho de Portes (2000) que tem por base uma pesquisa com

um grupo de estudantes do ensino superior pertencentes a famílias das camadas

populares e que entraram, entre 1990 e 1995, na Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG) em cursos supervalorizados socialmente, como a medicina, a

fisioterapia, o direito, a comunicação social, a engenharia elétrica e a ciência da

computação.

Muitas questões envolveram a observação da trajetória desses estudantes. A

primeira delas é que cabe indicar que se verificou que há muitas diferenças nas

histórias desses sucessos, muitas alternativas que vão se distinguindo e estão

ligadas a oportunidades ou a especificidades ou peculiaridades do ambiente social

de cada um desses jovens. Contudo, há um importante destaque para a complexa

relação família/ escola, assim como para os embaraços causados pelas dificuldades

econômicas e a necessidade do trabalho para ajudar a manutenção da família. No

conjunto de estratégias utilizadas foi se distinguindo a situação de se ter criado no

ambiente doméstico – como já foi apresentado no estudo de Viana (2000) – algumas

facilidades ou contribuições dos familiares que observavam os esforços

empreendidos por esses alunos para alcançar uma trajetória escolar de longo curso

e se constituir naquilo que seria uma improbabilidade estatística.

Outra questão que Portes (2000) destaca é o que denomina a ordem moral

doméstica que indica o esforço familiar em inculcar em seus filhos uma disciplina

para o trabalho escolar desde o início da escolarização, assim como o empenho

para “compreender e apoiar o filho” nas muitas situações difíceis que podemos

imaginar que esses alunos viveram no seu processo de escolarização.

Estão ai também relacionados a contribuição de determinados professores e

a ajuda material de membros da família dos estudantes.

Nas conclusões, Portes (2000) deixa muito clara a importância da família do

estudante no sucesso alcançado e nesse contexto se destaca especialmente a

figura da mãe naquilo que denominou o “trabalho escolar da família”

Setton (2005, p. 88) fez um estudo com “10 alunos e algumas de suas mães,

a fim de apreender a articulação das configurações familiares e o sucesso escolar

apresentado”. O que esteve em foco foram alunos que obtiveram sucesso em sua

trajetória escolar e estavam frequentando um curso de ensino superior. A autora

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

444

indica então a importância das características familiares e as reconfigurações em

relação à noção de capital cultural, dando destaque para um “saber informal

midiático em ambientes familiares dóceis à cultura escolar” (SETTON, 2005, p. 90).

Ou seja, está em presença a cultura das mídias que vai se inter-relacionando com a

cultura escrita e abrindo outros espaços de informação, comunicação e educação.

Fala, então, de um capital cultural midiático, que deve, no entanto, estar associado a

um ethos familiar predisposto a valorizar e incentivar o conhecimento e que está a

construir uma nova ordem de estratégias e práticas culturais.

Zago (2006) nesse mesmo caminho de discussão das desigualdades

educacionais apresenta uma pesquisa realizada com 27 estudantes universitários,

que provinham de famílias com condições econômicas desfavoráveis, e estavam

cursando diferentes faculdades da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Todo o grupo havia feito sua formação no ensino fundamental e médio em escolas

públicas.

Nesse texto indica que “a desigualdade de acesso ao ensino superior é

construída de forma contínua e durante toda história escolar do candidato” (ZAGO,

2006, p. 230) e nisso se distinguem aqueles estudantes oriundos das camadas mais

abastadas e os oriundos dos meios populares. A própria expectativa/ certeza dos

primeiros em relação à sua entrada na faculdade se contrapõe a daqueles que os

membros de suas famílias têm pouca escolarização e eles têm também pouco

conhecimento sobre os ritos de entrada na universidade. É algo que não está ao

alcance deles posto que, como indica Zago (2006), são casos “atípicos” ou

“trajetórias excepcionais”. Nesse contexto, chama a atenção para as dificuldades de

participação desse grupo de estudantes em muitas atividades que fazem parte dos

investimentos na formação – como a ida a congressos e conferências – calcada nas

dificuldades financeiras e que seus outros colegas têm possibilidade de usufruir.

Em outro texto, Zago (2007, p. 128), mantendo o interesse de estudar o

“acesso ao nível superior de estudantes de escolas públicas, pertencentes a famílias

de reduzidos recursos econômicos, sociais e culturais”, apresenta uma investigação

de caráter longitudinal, realizada entre os anos de 1991 e 1998 com os filhos (56) de

16 famílias de baixa renda e moradores na periferia de Florianópolis.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

445

Relacionando seus dados de pesquisa com outros trabalhos semelhantes

realizados em diferentes regiões do Brasil distingue então aspectos que podem ser

destacados como facilitadores da possibilidade dos alunos oriundos das camadas

populares alcançarem o acesso ao ensino superior. São eles: a presença da família

na trajetória do estudante e a mobilização e autodeterminação do estudante – que

também foram destacados no estudo de Viana (2000) -; e o apoio de professores

que encorajam os estudantes a prosseguir nos estudos.

Para contextualizar o foi produzido na sua pesquisa, Zago (2007) faz

observações em relação às mudanças no desempenho educacional brasileiro; à

variação regional da distorção idade/série no ensino fundamental; à diminuição da

taxa de analfabetismo; à expansão do número médio de anos de ensino que são

fatores que explicam a diminuição das desigualdades educacionais. A isso se alia o

aumento dos gastos públicos na esfera educacional; a rápida urbanização e

transição demográfica; as mudanças nas condições de vida da população; o

crescimento da demanda popular por educação; o sistema de cotas e o Programa

Universidade para Todos (ProUni); e a existência de cursos pré-vestibulares

gratuitos.

Contudo, Zago (2007) afirma que o país continua a apresentar forte

estratificação educacional e que se deve observar o risco que pode significar se

estar dando um peso muito grande para esses que são os casos individuais de

exceção.

Nesse sentido, vale o destaque para a existência de uma hierarquia de cursos

superiores - há carreiras que são mais prestigiadas - e a escolha desses estudantes

provenientes das camadas populares vai se dar naqueles que estão mais abaixo na

classificação; além disso há o problema da permanência desses estudantes na

universidade. As questões financeiras estão muitas vezes os eliminando antes da

conclusão do curso.

Isso posto há que se acrescentar que esses vários estudos reafirmaram que

as chances de entrada e permanência nos cursos de nível superior não são iguais.

Essas investigações também fizeram com que a cultura, em seu sentido mais

amplo e na sua diversidade, estivesse centrando o olhar de muitos pesquisadores.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

446

As desigualdades de oportunidades escolares têm se mostrado muito

balizadas nas diferenças culturais e o espaço da educação escolar continua pautado

em uma forma de cultura, que podemos denominar, em sentido genérico, a cultura

letrada, a cultura erudita.

Vivemos, no entanto, em sociedades multiculturais em que múltiplos códigos

linguísticos, variados costumes, crenças, tradições, gostos etc. estão em

convivência e, muitas vezes, em confronto.

Nesse contexto, muitos estudos têm olhado para as diferenças culturais, que

são bastante visíveis nos vários ambientes da vida escolar. Assim, Bhabha (2007,

p. 227) indica que “a diferença cultural não pode ser compreendida como um jogo

livre de polaridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio da comunidade

nacional”. O que está em foco, então, é uma crítica ao que e convencionou entender

como culturas totalizadas em um momento em que várias culturas estão em

confronto com determinados conteúdos simbólicos e tradições que se tornaram

hegemônicos. O que está em questão é a ideia de uma “cultura nacional” e em seu

lugar o que vemos crescer são culturas locais, são os hibridismos culturais. É o que

se verifica – como dissemos - nos ambientes escolares. Falamos então de uma

diferença cultural que deixa muitos professores e gestores da educação perplexos

diante desse novo. Ou seja, estas são situações que estamos encontrando a cada

momento nas escolas, que ainda pautam seus currículos pela cultura letrada e

erudita, tida – como dissemos acima - como aquela que é a mais perfeita para

possibilitar o crescimento e a aprendizagem dos alunos, esquecendo suas

diferenças e seus diversos códigos de comunicação.

Nos anos de 1980 e 1990, ocorreram em todo o mundo aceleradas mudanças

na organização da vida social, nos processos tecnológicos e nas relações

internacionais, fortemente apoiadas por reformas políticas que pretendiam

estabelecer um novo pacto entre Estado e capital e uma nova cultura institucional

(BALL, 2001).

Assim, em um momento de construção de uma nova ordem social, marcada

pela aceleração das mudanças sociais, tecnológicas e culturais, observamos que a

questão das desigualdades escolares ainda se mantém e estão a demandar

políticas que possam dar conta desse problema. Nesse sentido, observando as

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

447

disputas em relação aos sistemas educacionais, a partir dos anos de 1990, Ball

(2004) sustenta que, apesar da ênfase no discurso da “educação para todos”, as

instituições educacionais se expandiram como mais uma oportunidade de negócios,

ganhando a dimensão da competitividade econômica e de formação de uma

mentalidade adaptada às exigências de flexibilidade e de desempenho, próprios das

formas contemporâneas de organização dos sistemas econômicos e políticos.

Essa preocupação tem feito com que o conhecimento/ ensino estejam se

apresentando de forma cada vez mais padronizada e homogeneizada (MACEDO,

2012). Ou, como entende Biesta (2013, p. 30), “a linguagem da educação tem sido

em grande parte substituída por uma linguagem da aprendizagem”.

A crítica que vemos formulada por Macedo e Biesta é relativa à redução da

educação ao processo de ensino e/ou de aprendizagem de conteúdos padronizados/

estandardizados e ligados a uma cultura que se fez hegemônica e que pretende ser

entendida como aquela que possibilita o acesso ao conhecimento válido para ser

ensinado na escola e que irá possibilitar aos estudantes usufruírem as benesses

sociais, econômicas e culturais de nosso tempo.

ENFIM

Estamos diante de uma questão que foi se recontextualizando,

ressignificando, acompanhando as muitas mudanças ocorridas nos espaços

culturais e políticos que vivemos e que estão atualmente imiscuídas na aceleração

das transformações encetadas pelas novas tecnologias da informação e

comunicação (TICs): a desigualdade de oportunidades educacionais.

Temos observado que, a partir da segunda metade do século XX - no

momento distinguido como o do “pós-guerra” –, junto à reconstrução dos estados

europeus e na realidade de todo um mundo em mudanças que os sistemas

educacionais estiveram vivendo uma profusão de reformas e no nosso país

podemos começar pensando nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDB nº

4.024 /1961; LDB nº 5.692/1971, LDB nº 9.394/1996), nos Parâmetros Curriculares

Nacionais (BRASIL, 1997), nas muitas outras diretrizes curriculares e projetos de

cunho nacional e locais, que mostraram a preocupação com a reformulação do

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

448

sistema educacional brasileiro, retratando que se tinha muito claro que este estava

longe de alcançar o projeto de democratização de oportunidades, que o próprio

sentido da formação do cidadão pressupõe.

Indicamos também que a sociologia da educação esteve nesse período muito

presente na busca da produção de teorias explicativas do fenômeno das

desigualdades educacionais e esses estudos tiveram como resultado o afirmar da

existência de muitas novas formas de se apresentar isso que interfere

profundamente nos ideais da democracia e construção da cidadania, na visão da

educação como espaço de mobilidade social. Ou seja, as desigualdades

educacionais se mantêm, tendo tomado, contudo, novas conotações e dimensões.

MARIA DE LOURDES RANGEL TURA Doutora em Educação. Professora Associada da Faculdade de Educação do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de Pós-graduação em Educação – PROPED/ UERJ.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. Ultrapassando o pai – Herança cultural restrita e competência escolar. NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (orgs.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2000, p.81-97.

BALL, S. J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras, v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001.

______. Performatividade, privatização e o pós-estado do bem estar. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1105-1126, set./dez. 2004.

BHABHA, H. O local da cultura. 4. reimp. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.

BIESTA, G. Para além da aprendizagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

449

BOURDIEU, P. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In. NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.). Pierre Bourdieu: escritos em educação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999a, p. 39-64.

_______. Os três estados do capital cultural. In. NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.). Pierre Bourdieu: escritos em educação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999b, p. 71-79.

BOURDIEU, P.; CHAMPAGNE, P. Os excluídos do interior. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.). Pierre Bourdieu: escritos em educação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p.217-227.

BRASIL. Lei nº 4.024. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1961. Brasília.

BRASIL. Lei nº 5.692. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 11 de agosto de 1971. Brasília.

BRASIL. Lei nº 9.394. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996. Brasília. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. 126 p.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000.

DURKHEIM, E. Educação e Sociologia. 9.ed. São Paulo: Ed. Melhoramentos, s/d.

_________. As regras do métodos sociológico. 13. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987.

________. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

DURU-BELLAT, M. Les inégalités sociales à l’école: gênese et mythes. 2. ed. Paris: PUF, 2003.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

450

FORQUIN, J. C. Sociologia das desigualdades de acesso à educação: principais orientações, principais resultados desde 1965. In: FORQUIN, J. C. (org.). Sociologia da Educação: dez anos de pesquisa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 19-78.

______. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

HÉBRARD, J. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Teoria e Educação, Porto Alegre, n.2, p.65-110, 1990.

HOBSBAWM, E. J. A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.

MACEDO, E. Currículo e conhecimento: aproximações entre educação e ensino. Cadernos de Pesquisa, v.42, n.147, p. 716-737, São Paulo, dez. 2012.

MAINARDES, J. Reinterpretando os ciclos de aprendizagem. São Paulo: Cortez Editora, 2007.

NOGUEIRA, M. A. A Sociologia da Educação do final dos anos 60/início dos anos 70: o nascimento do paradigma da reprodução. Em Aberto, Brasília, v. 9, n. 46, p. 49-58, abr./jun., 1990. ______. A escolha do estabelecimento de ensino pelas famílias: a ação discreta da riqueza cultural. Revista Brasileira de Educação, n.7, já./abr., p.42-56, 1998.

PORTES, E. A. O trabalho escolar das famílias populares. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (orgs.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2000, p. 61-80.

ROMANELLI, G. Famílias de camadas médias e escolarização superior dos filhos. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (orgs.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2000, p.99- 123.

ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME ISSN 1809-0354 v. 9, n. 2, p. 432-451, mai./ago. 2014 DOI http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2014v9n2p432-451

451

SETTON, M. G. J. Um novo Capital Cultural: predisposições e disposições à cultura informal nos segmentos de baixa escolaridade. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n.90, p. 77-105, jan./abr., 2005.

SOUTHWELL, M. Em torno da construção de hegemonia educativa: contribuições do pensamento de Ernesto Laclau ao problema da transmissão da cultura. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. P. Pós-estruturalismo e Teoria do Discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008, p.115-132.

VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares - Algumas condições de possibilidades. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (orgs.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2000, p. 45-60.

ZAGO, N. Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares, Revista Brasileira de Educação, v.11, n. 32, maio/ago., p. 226-237, 2006.

_______. Prolongamento da escolarização nos meios populares e as novas formas de desigualdades educacionais. In.: PAIXÃO, L.; ZAGO, N. (orgs.) Sociologia da Educação: pesquisa e realidade brasileira. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2007, p. 128-153.