o Olimpismo e a Filosofia (Douallier)

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Stephane Douallier

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  • O OLIMPISMO E A FILOSOFIA*

    Stphane Douailler**

    O olimpismo que normalmente conhecemos aquele a que o sculo XIX d nascimento, ou

    renascimento. Entre as razes que motivaram tal empreitada, duas parecem ter reivindicado uma

    relao mais ou menos direta com a filosofia. A primeira a da afirmao de que esse olimpismo

    pretendeu constituir algumas virtudes em valores, sobretudo as virtudes do citius, altius, fortius

    (mais rpido, mais alto, mais forte). A outra, extremamente clebre, foi proclamada em Londres em

    9 de julho de 1908, durante um sermo de Ethlebert Taylor, bispo de Pensilvnia, e dizia que o

    essencial nas olimpadas e em seu esprito era a participao.

    Orientando-se por esses dois motivos o de uma excelncia em que se trata de ser o melhor

    no gnero, e o de uma participao aberta at mesmo queles que, na verdade, no podem rivalizar

    com os melhores, esse olimpismo considerado do ponto de vista de sua aplicao a torneios do

    esprito se distingue claramente dos concursos em que se apresentaram, em sua poca, Jean-

    Jacques Rousseau, Emmanuel Kant, Gotthold Ephraim Lessing, Johann Gottfried Herder, Arthur

    Schopenhauer, e tantos outros. Na tradio dos concursos, com efeito, jamais se pensou que o

    essencial era participar e, por esse meio, manifestar uma parcela da excelncia demonstrada pelos

    melhores. No se tratava tampouco de se fazer notar como algum que era melhor em um

    determinado gnero. No extremo oposto desses dois motivos pelos quais o olimpismo de nossa

    poca buscou estar associado a uma ambio filosfica, o concurso tinha por sentido central um

    problema a ser resolvido. O concurso nada tinha de um jogo. Ele mobilizava uma comunidade

    esclarecida, capaz de fazer emergir de seu seio a brilhante, ou til, ou profunda soluo para uma

    questo que ela havia comeado por saber formular a si prpria. Alm disso, as distines atribudas

    pelos concursos consistiam, logicamente, na publicao das respostas que as melhores monografias

    haviam apresentado. E o dinamismo dos concursos, que faziam o orgulho de algumas capitais ou

    cidades de provncia que se dedicavam a organiz-los, tinha antes de mais nada por funo a de

    servir, com certa regularidade, como testemunho da capacidade que certas comunidades mais ou

    menos vastas, reconhecidas por suas luzes, possuam para resolver os problemas que encontravam,

    sabiam formular e logravam encaminhar para solues.

    Esse tecido intelectual dos concursos, na Europa talvez inicialmente na Frana, foi, como

    se sabe, rompido pelos episdios revolucionrios. Aps a destruio do Antigo Regime e de sua rede

    de academias eruditas, o destino dos concursos foi seu renascimento na instituio escolar, entre

    outras. A, em pelo menos um trao, sua orientao essencial foi preservada. Distinguindo os

    melhores alunos com prmios que, no sendo mais a antiga recompensa na forma de publicao de

    * Interveno na videoconferncia organizada pela Universidade de Paris 8 / Ministrio da Educao de Buenos Aires, por ocasio das Olimpadas Filosficas, maio de 2003. ** da Universit de Paris 8.

  • suas dissertaes, ao menos eram as primeiras obras de uma biblioteca erudita, os professores

    contriburam para chamar a ateno das autoridades, dos notveis e dos dirigentes econmicos,

    conferindo uma visibilidade personalizada e sutil s capacidades manifestadas pelos sucessivos

    grupos de jovens admitidos para estudos e possibilitando, por meio dessa visibilidade, a realizao

    de um prognstico acerca da capacidade demonstrada pelas futuras geraes na resoluo dos

    problemas, presentes e futuros, das comunidades que as haviam enviado escola.

    Essa retomada pela escola da tradio acadmica dos concursos, que dominou o ensino

    secundrio nos sculos XIX e XX, dificilmente resistiria a crticas, e foi levada pelo vento de

    liberdade dos anos 1968. Mais do que uma expresso das luzes de todo um corpo social

    representado por seus melhores elementos, identificou-se e denunciou-se nessa prtica um

    complacente mecanismo de auto-reproduo de uma casta. Da mesma forma, tornou-se impossvel

    no reconhecer que, longe de se estabelecer como terreno sensvel manifestao do novo e, assim,

    como razo para renovao da confiana no futuro e nas capacidades das novas geraes em

    dominar os acontecimentos, a prtica se petrificava em rituais mumificados. Assim, face

    decadncia dos concursos, que culminou na escola do imediato ps-guerra, a idia de olimpadas

    pde aparecer como duplamente vantajosa. De um lado, ela possui um carter popular e uma

    dimenso internacional que supe-se poderem atrair de uma s vez as populaes confinadas de

    bons alunos para o grande horizonte e a grande verdade das comunidades reais. De outro lado, ela

    desenvolve a gratuidade de um jogo que articula a busca da excelncia por ela mesma e o

    reconhecimento, por tantos quantos dele participem, dessa excelncia como virtude devendo,

    pois, liberar as performances da reproduo caricatural das divises sociais instaladas. Por esses

    dois traos, a idia de olimpada parece, de fato, participar de dois plos que persistem em se

    manter s margens da lgica imposta centralmente pelos poderes econmicos e sociais: o plo

    popular, que protesta contra a amarga necessidade do trabalho e do salrio atravs do prazer que os

    jogos propiciam, e o plo aristocrtico, que v na nobreza do jogo uma forma de lembrar que no se

    considera inteiramente submetido s contingncias da produo burguesa das riquezas. Ligada a

    esses dois extremos, a idia de olimpadas manifesta seu pertencimento, menos lgica social real

    ao poder que impe sua dominao na configurao do presente do que lgica do jogo que

    subsiste, apesar de tudo, entre a diversidade de elementos em presena. No jogo continuam a agir as

    possibilidades de outras tramas diferentes da que existe, que exprimem, no a sociedade em guerra

    contra ela mesma, condenada paz do vencedor, mas uma paz inventiva, susceptvel de instituir

    ajustamentos abertos entre foras sociais heterogneas.

    Confrontada ao mundo dos concursos, a idia olmpica parece super-lo no que se refere

    diferena afirmada por Kant entre o domnio da experincia e o reino da Idia. Em lugar de tornar

    visvel a capacidade de as comunidades estabelecidas resolverem continuamente os problemas

    oriundos de seu modo prprio de existncia, ela parece fornecer um terreno de manifestao para

    performances relativas a uma legislao mais elevada e universal. Em razo dessa ambio, ela

  • tambm deve enfrentar outras crticas. O relatrio redigido ao trmino dos ltimos Jogos pelo

    Comit Olmpico Internacional se felicita ( prprio desse tipo de relatrios a auto-felicitao) por

    ter contido dentro de limites que pareceram encorajadores a corrupo que gangrena os Jogos. No

    sem riscos, com efeito, que se elege o reino da Idia como lugar de existncia e de ao

    A questo sobre aquilo que corrompe a idia olmpica ultrapassa a questo constantemente

    levantada acerca dos interesses financeiros que a desnaturariam. O que pode realmente,

    filosoficamente corromper uma idia de outra ordem. , ao que parece, para comeo de conversa,

    o antigo problema do nmero de idias. O da diviso da idia (platnica) do Bem em uma

    pluralidade de idias. No plano olmpico, essa questo a da afirmao das disciplinas olmpicas,

    que tm nmero finito, porm modificvel. A escolha dessas disciplinas, que excluem

    provavelmente para sempre (ou ao menos o que se imagina) campees tais como o campeo de

    jejum de Kafka, o lugar de todas as iniciativas corruptoras pelas quais certos pases podem buscar

    obter certas vantagens relativas a suas capacidades particulares. este ainda, fundamentalmente, o

    lugar em que os estudos antropolgicos e sociolgicos revelam a corrupo de fato originria da

    idia olmpica, quando ela passou a ser regulada pelas virtudes do citius, altius, fortius, isso , por

    um nmero finito de qualidades cuja afinidade com aquelas destinadas a acompanhar o

    desenvolvimento da organizao capitalista das sociedades no seria difcil de demonstrar. No, no

    evidentemente sem riscos que o renascimento do olimpismo, no sculo XX, submeteu a

    pluralidade de idias de excelncia investidas pelas disciplinas olmpicas lei do citius, altius,

    fortius, e no quela do Bem platnico.

    O que prope a organizao de olimpadas filosficas nada mais , na realidade, do que a

    definio de uma nova disciplina olmpica. No deixa de ser instrutivo que isso se faa fora do

    Comit Olmpico Internacional: que essa disciplina no seja aceitvel como tal, mas requeira uma

    organizao autnoma, sem real relao com o olimpismo. Considerando que esses torneios

    olmpicos do esprito mantenham alguma ligao com a idia platnica do Bem e com a relao

    dessa Idia com as outras idias, isso demonstra a persistncia real, no olimpismo de nossa poca,

    da lei, ao contrrio do citius, altius, fortius e de seus compromissos com a sociedade real.

    Mas nada assegura que a orientao que as olimpadas filosficas manifestam, ao colocar

    em destaque os grandes problemas da filosofia e sua eterna inspirao, tenha tambm puramente

    essa virtude. Nada assegura que a distncia em relao sociedade real que a instituio escolar

    mantm, quanto a ela, tendo por condio de possibilidade o lazer, a schol, o otium (isso ,

    cabendo ao lazer, schol e o otium religar todas as habilidades e todos os saberes adquiridos na

    escola a uma srie determinada de idias fundamentais que s se deixam organizar sob a idia do

    Bem, ou equivalente) seja efetivamente o que se exprime nas olimpadas filosficas. Pois essa

    idia ainda filosoficamente exposta a uma outra corrupo: a que conduz a idia para o lado do

    reflexo, da imagem, do fantasma, do espetculo.

    Talvez no seja a virtude (e a tenso entre a virtude do citius, altius, fortius e a virtude do

  • amor do Bem) que conduza a filosofia s olimpadas, mas aquilo que, em todo espetculo, causa o

    fascnio. A aventura no teria, no fundo, nada de novo. , com efeito, nos Jogos Pan-helnicos que

    se teria inventado o que move nossa literatura que se teriam inventado as tragdias encenadas

    como representaes. Vindo se estabelecer nos espaos criados pelos jogos olmpicos, as tragdias

    gregas se fizeram, ao longo de toda a Antigidade, no mais acontecimento, mas texto, espetculo,

    patrimnio nacional e internacional. Sem dvida no fcil, hoje, levantar a voz contra a literatura.

    Ela parece suficientemente frgil, frente s mquinas e lgicas econmicas, polticas, de

    divertimento, para a supormos um bem que a escola deveria defender a todo custo. Se a organizao

    de olimpadas filosficas tivesse, na verdade, por essncia e origem o gesto que, no olimpismo pan-

    helnico, introduziu na Antigidade a criatividade trgica sob a forma da literatura, produzindo

    dessa forma um vasto e popular acesso s dimenses que essa ltima contm, ento isso deveria,

    certamente, acima de tudo, ser repetido em todas as variantes de que nosso tempo for capaz. Mas a

    filosofia no emerge de forma completamente outra? Em aventuras e acontecimentos intelectuais

    que a ocasionam ? Porque deveria ela estar ansiosa por reunir as espetaculares mediaes de seu

    agir ? Em vista de que literatura ?