O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE …

182
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Max Rogério Vicentini O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE São Paulo 2011

Transcript of O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE …

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

Max Rogeacuterio Vicentini

O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES

SANDERS PEIRCE

Satildeo Paulo

2011

MAX ROGEacuteRIO VICENTINI

O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES

SANDERS PEIRCE

Tese apresentada ao programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr

Pablo Rubeacuten Mariconda

Satildeo Paulo

2011

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por

qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e

pesquisa desde que citada a fonte

Vicentini Max Rogeacuterio

O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders

Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-

182 f

Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda

1 Cosmologia

Nome VICENTINI Max Rogeacuterio

Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

DEDICATOacuteRIA

Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam

agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini

e aos amigos presentes e ausentes

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha

orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha

compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem

como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash

Denis Diderot e agrave equipe Sphere

Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees

Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos

professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e

aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese

Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a

realizaccedilatildeo deste trabalho

Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos

integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana

Belmonte

Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos

juntos

Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei

Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou

ambos

RESUMO

VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011

Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce

particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que

faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos

naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as

caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo

arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode

ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum

que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e

lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo

evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo

finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees

restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo

Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia

ABSTRACT

VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce

2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao

Paulo Sao Paulo 2011

This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the

relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance

determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of

explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his

thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the

concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of

Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological

categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the

cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The

law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of

phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however

exhausting it

Keywords cosmology synechism abduction teleology

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo

W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de

composiccedilatildeo

CN x p y

MS x

-

-

Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)

Manuscritos nuacutemero do manuscrito

EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y

HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x

p y

NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns

estudiosos usam NE)

CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO 11

CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28

11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29

12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38

121 O NADA 41

122 O ACASO 50

123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54

13 A LEI 64

131 O IDEALISMO OBJETIVO 65

132 A LEI DA MENTE 66

CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68

21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71

211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74

22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78

221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81

222 PERIacuteODO CANTORIANO 83

223 PERIacuteODO KANTIANO 86

CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89

31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90

32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94

33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104

34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106

35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107

36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109

37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111

CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115

41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116

42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128

CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140

51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143

52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151

53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159

54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163

55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167

CONCLUSAtildeO 169

REFEREcircNCIAS 175

11

INTRODUCcedilAtildeO

Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of

mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be

considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the

imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two

ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle

force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly

prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)

12

A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e

abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e

poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em

Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce

foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu

fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber

Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos

pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos

existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e

sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos

dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande

contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento

Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista

entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua

eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em

casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard

desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via

nele o potencial de um gecircnio

Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879

mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras

Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel

(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo

quarenta e quatro anos

1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a

base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e

da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891

13

O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas

entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes

estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a

continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce

ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163

1897)3

Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo

O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final

desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava

determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos

sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a

sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de

natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da

falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento

quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes

aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como

veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se

lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui

lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos

Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual

uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste

na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais

variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande

auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar

alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada

2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema

filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy

14

pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo

significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos

detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento

da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a

realizaccedilatildeo da pesquisa

Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo

inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um

ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a

compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada

natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se

nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave

determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o

fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da

experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias

Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do

saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do

escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima

que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273

1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que

para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a

toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para

tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio

do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu

alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais

possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5

sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese

sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a

abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor

15

O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia

parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento

peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus

escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos

daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE

1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida

de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses

amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de

cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos

axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas

apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito

acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete

suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo

haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se

na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo

de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente

aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que

como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos

Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo

eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas

para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o

projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com

Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta

dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda

atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros

passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da

accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo

temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel

fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo

16

pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e

TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis

e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e

resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos

Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o

mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O

elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer

avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do

funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou

tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a

descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva

natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia

satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o

desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()

minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes

agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos

naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4

Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se

aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial

Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect

269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade

da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante

nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos

desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)

4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion

that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf SPEDDING 1989 p 571)

17

afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se

considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse

modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia

na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar

Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto

inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista

do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a

causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da

cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no

futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de

determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p

200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a

concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida

Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas

podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por

Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais

ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos

dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the

Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a

causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo

caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7

Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um

seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser

6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation

7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is

worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank

nothing

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totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo

original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que

desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido

realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um

papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem

eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos

naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a

epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia

O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada

por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE

1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a

atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese

que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo

de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar

uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect

538 1902)

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto

central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la

expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns

princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto

inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional

para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias

satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo

racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua

8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce

incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e

Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)

19

postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito

de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A

hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de

possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a

necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser

explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido

Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual

dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia

possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees

natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)

como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo

A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a

passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro

continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse

capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo

No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim

como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP

6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a

inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como

aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo

fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p

630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas

consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma

quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo

princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das

9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha

exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser

classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica

20

principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10

e o sinequismo O problema eacute

colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o

crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia

cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo

A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa

explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como

inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no

seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e

consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso

indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os

pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira

de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da

mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e

matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica

O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute

algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da

atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de

hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio

metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior

nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina

metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser

substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria

preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie

descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11

agravequela que afirma a existecircncia

de descontinuidades radicais

10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza

(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11

() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities

21

A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre

da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute

permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas

expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para

designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a

inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no

acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos

fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo

responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades

A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave

abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86

1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da

evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute

imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos

componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia

evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de

conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de

novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou

seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los

como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da

liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral

produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este

aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que

A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios

aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo

compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem

tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da

identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se

22

potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)

Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute

elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a

relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do

princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro

ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por

Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)

Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese

evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das

explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto

subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de

produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na

medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros

conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um

fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave

inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das

explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute

utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua

formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce

soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)

A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e

segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo

incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se

assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo

seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo

23

original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no

tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12

lhes

dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva

aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser

compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)

Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP

1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o

raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o

cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo

processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das

transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a

compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees

de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as

questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409

1878)

O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo

entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual

Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo

indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha

A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor

verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do

processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13

12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei

na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13

Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence

This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio

sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation

24

Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo

indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um

refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a

qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo

constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim

levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf

SKAGESTAD 1981)

A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o

cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o

ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de

regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14

Peirce afirma que a

atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou

palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir

animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para

testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria

das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis

(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o

resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva

para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da

inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que

poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)

Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas

requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua

concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se

14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)

25

trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana

Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da

causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a

concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf

CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a

necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto

ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado

pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15

Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja

realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do

mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza

a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento

cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e

comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)

Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos

da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma

espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se

considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect

204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes

da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser

buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na

experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que

enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)

Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel

15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave

causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na

discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana

26

mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas

teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia

A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da

realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total

abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce

para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o

mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos

com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria

fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)

Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a

doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o

sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o

idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis

fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16

O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo

se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto

desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da

mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia

Retomemos as palavras do proacuteprio autor

A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas

da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que

pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir

haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente

segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo

mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto

por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade

eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute

16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits

becoming physical laws

27

igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP

6 sect 101 1902)17

As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como

etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o

processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um

instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis

17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other

laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this

same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in

the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true

to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of

efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully

intelligent

28

CAPIacuteTULO 01

A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA

The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in

the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very

development of Reason (CP 1 sect 615 1903)

29

Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma

discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da

explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel

central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica

poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo

do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse

projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de

continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de

continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos

moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo

peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo

Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua

metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma

cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela

evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua

hipoacutetese cosmoloacutegica

1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO

Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo

com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da

verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP

5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se

ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida

pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto

30

peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer

Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce

analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O

principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da

afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias

Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos

condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo

representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras

enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de

premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo

mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses

textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e

faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las

(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as

quatro incapacidades humanas

1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute

derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico

2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente

por cogniccedilotildees preacutevias

3 Natildeo temos poder de pensar sem signos

4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18

18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical

reasoning from our knowledge of external facts

2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions

3 We have no power of thinking without signs

4 We have no conception of the absolutely incognizable

31

Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento

intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira

() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e

consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por

uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em

primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a

cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26

1868)19

Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20

natildeo

parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a

caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem

inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a

Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo

tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas

tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente

ldquopragmaticismordquo

Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um

primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de

maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21

um outro caminho

para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum

postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples

19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the

cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition

then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a

cognition only exists so far as it is known 20

Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa

respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21

Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin

32

para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio

evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de

fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo

representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos

uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute

a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa

acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a

evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo

O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral

Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por

objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a

existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que

podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a

incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que

eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto

de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)

Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se

como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram

daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua

eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento

para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente

Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real

Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes

Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era

necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de

22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias

meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo

aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo

pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista

33

papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de

tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo

estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e

sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23

Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a

surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura

encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no

consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de

abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo

imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder

deduzir o particular a partir do universal dadordquo

A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute

investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do

filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do

sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e

por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da

loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo

O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio

regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave

consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio

segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como

explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24

23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down

upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting

of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a

real and living doubt and without this all discussion is idle 24

Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing

what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that

inexplicabilities are not to be considered as possible explanations

34

Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela

encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo

similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande

importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana

Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos

processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de

constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia

que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o

caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele

afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos

celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente

antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo

(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos

ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em

justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro

lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos

nos seguintes termos

Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟

Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma

hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que

realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave

conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25

25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific

explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is

analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses

35

Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual

retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a

forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam

segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce

Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando

deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica

Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas

maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na

predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos

E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis

da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber

a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo

trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a

descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo

dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um

sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713

1883)26

Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e

mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo

prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que

satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a

esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma

concepccedilatildeo antropomoacuterfica

26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and

anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses

We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which

are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the

laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we

naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction

(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is

accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all

these natural conceptions

36

A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao

seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico

para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos

Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de

um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em

consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas

as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as

quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser

encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre

outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma

humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute

Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a

mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das

recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect

47 1903)27

Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem

elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma

decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou

em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente

concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico

de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e

possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos

27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises

from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all

conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots

would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember

that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that

affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same

thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact

Logician

37

() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu

sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a

uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o

homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica

possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que

ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles

limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve

pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de

uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer

coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim

como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua

isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536

1905)28

O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter

antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais

uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho

cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que

natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29

Os elementos de todo conceito diz o autor entram

no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que

ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo

autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30

A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal

caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes

de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma

hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis

28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that

doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely

hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his

needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it

is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits

of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply

cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump

just as high as he possibly could 29

() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific

working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30

() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason

38

(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316

1903)31

A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se

perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32

entatildeo aceitas

como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis

2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA

A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente

reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890

tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce

oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto

ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos

psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser

a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na

proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos

homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das

regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir

um comportamento autocontrolado

Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo

mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um

texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com

31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to

suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering

them comprehensible 32

Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal

caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado

por lei (cf CP 6 sect 36 1892)

39

uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara

Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da

consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de

ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma

imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada

com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser

considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada

expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute

suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito

Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute

algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um

sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o

que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado

conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado

eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma

potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33

Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute

estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis

Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico

para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei

Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica

peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo

dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34

Assim ao

falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e

33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action

such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An

imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature

and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For

our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces

a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to

the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is

actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34

() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals

40

constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja

deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua

determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do

universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que

ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria

passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia

A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a

cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia

peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem

() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais

o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia

Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o

germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser

evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao

haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas

as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo

entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o

mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual

a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33

1891)35

Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho

deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta

abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do

acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para

35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without

connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure

arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but

this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other

principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of

pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical

system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future

41

formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia

21 O NADA

Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do

universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois

tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa

O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto

nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em

que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito

ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)

Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que

sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades

consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)

a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao

introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma

Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um

espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a

natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um

siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36

36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an

interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is

ipso facto itself a symbol although a wholly vague one

42

Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as

possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de

infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect

203 1898)

Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade

surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo

da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma

mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas

platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38

Nessa evoluccedilatildeo o

possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo

A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio

inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de

formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a

dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza

daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o

mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se

definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39

Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a

origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas

37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta

daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre

continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja

verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem

se estabelecer 38

The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which

the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39

The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or

is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be

distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in

particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted

43

Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um

resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo

tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40

O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente

mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira

Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da

continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da

mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas

espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem

agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo

tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter

estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de

dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo

essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41

Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um

processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que

se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a

tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute

a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o

princiacutepio de semelhanccedila e contraste

A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz

que

40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same

thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41

Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the

human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth

etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of

feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number

of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities

44

Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um

mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras

elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele

ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves

outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42

Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida

em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas

seguintes palavras de Peirce

() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se

encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo

elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem

generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43

Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a

hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa

origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se

o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce

A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser

puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um

estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um

modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor

42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere

nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or

less resemblance and contrast with one and other 43

() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

45

uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e

assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44

e acrescenta

Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei

Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado

Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash

possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem

fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45

O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo

com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46

A existecircncia do

universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo

existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior

do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf

CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O

terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua

atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo

na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o

reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada

vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo

44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a

state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a

logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in

which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45

There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the

whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --

boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46

Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os

elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo

diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo

46

triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47

Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre

os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o

mundo e falar sobre ele

() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de

sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de

ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto

de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um

grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a

respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute

outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de

Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente

do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois

modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do

Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A

primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em

minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a

associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute

como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz

de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho

De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de

sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa

unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que

denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente

adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves

outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo

Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos

qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base

os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma

expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo

podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em

um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por

ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior

representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo

intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar

um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo

de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras

de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele

identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e

47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana

primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade

caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)

47

palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias

compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees

de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4

sect 157 1897)48

A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que

continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o

incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade

peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei

da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a

respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana

O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que

parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular

essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade

na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila

Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de

48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits

are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of

feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes

a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is

the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are

two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association

based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it

is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea

of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself

resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of

which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes

what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the

ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop

general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits

of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing

can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can

crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents

things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a

cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double

mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which

denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names

and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words

are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc

48

sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade

ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada

variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o

sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute

natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do

que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada

vez maior (ROSA 2003 p 297-8)

A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em

desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria

bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas

Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade

secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf

HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao

estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a

secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita

acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o

tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute

o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade

de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que

Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute

impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se

tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda

que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo

Como aponta Hookway

Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim

poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um

tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um

limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p

273)

49

Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente

ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem

contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos

infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem

mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos

A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo

e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra

forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a

presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de

desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da

tendecircncia ao haacutebito

Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da

existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce

afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o

mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de

existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a

abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos

inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas

radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de

existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo

(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou

flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave

aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos

anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de

haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse

ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua

49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce

50

origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial

22 O ACASO

Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria

teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico

alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel

tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884

ldquoDesiacutegnio e acasordquo

() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute

explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo

esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de

modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto

(W 4 p 549 1883-4)50

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras

uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas

encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que

dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo

outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do

indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas

que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo

da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da

50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not

absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition

but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit

51

hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o

percebemos

Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um

princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a

muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade

de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de

necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de

certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade

radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado

eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento

da complexidade de forma irreversiacutevel

O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo

(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo

um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva

mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do

desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees

iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que

pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo

A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma

epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas

aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada

pelo homem Para o filoacutesofo

() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O

mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da

experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses

52

fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51

Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as

proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor

() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo

meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para

a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que

opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente

soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a

abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu

concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto

meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje

Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um

longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser

refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado

de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo

conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52

Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do

falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-

las com os fatos natildeo mentais

51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its

characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has

opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52

() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of

premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but

opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions

He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of

them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no

competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time

upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be

glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of

belief

53

O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o

falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas

sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e

indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da

mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53

A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou

crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo

acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo

Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos

acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para

Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo

cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos

elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse

universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma

decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da

natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na

passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o

autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos

Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a

Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin

(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da

mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a

variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de

53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is

never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine

of continuity is that all things so swim in continua 54

Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation

sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda

jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)

54

cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a

busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio

23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE

Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade

examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto

de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36

1892)55

Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as

mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem

determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute

mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo

aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem

cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)

o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no

determinismo nas seguintes palavras

A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer

tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de

coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute

indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as

leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir

desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou

55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law

56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu

curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57

Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs

modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou

influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36

1892)

55

agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58

A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana

carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser

colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59

que poderia muito bem ser admitida

pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais

defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente

mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60

Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de

argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um

postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar

acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua

defesa

Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das

justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e

responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir

como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect

41 1892)61

Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia

Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo

faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida

isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()

58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws

completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus

given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind

could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59

Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a

liberdade e espontaneidade 60

() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61

It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is

requisite to the validity of an inference

56

cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa

inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62

O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio

indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo

mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos

contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise

Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se

coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos

um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima

amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada

elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes

nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41

1892)63

Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada

amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que

se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos

obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras

Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes

ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo

(CP 6 sect 41 1892)64

Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido

a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1

Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em

consideraccedilatildeo

Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A

62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference

63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity

64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle

of universal causation

57

praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe

que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de

valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas

Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a

primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa

aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo

obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente

A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()

certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65

mas como a

observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se

for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na

fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo

Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada

natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que

aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja

qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza

A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor

de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria

posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades

agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser

elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as

observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas

palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais

precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP

65 () certain continuous quantities have certain exact values

58

6 sect 46 1892)66

Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a

admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso

Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor

aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser

pensado o acaso absoluto

Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em

face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na

ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural

esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser

produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47

1892)67

Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute

disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o

fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da

termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees

que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute

utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do

autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso

Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila

natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento

Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante

cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A

aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()

produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68

Mas esse tipo de

66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they

will be to show irregular departures from the law 67

() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects

such as could not pass unobserved 68

() genetic products to recognizable utilities or ends

59

adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal

modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo

aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69

Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel

Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma

Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se

especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal

afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de

atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso

Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute

ininteligiacutevel isto eacute

() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o

como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser

justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca

poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na

produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70

Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois

anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado

sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis

natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo

havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais

Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do

69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the

principle of causation 70

() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and

since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any

right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature

60

determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso

absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria

Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega

a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas

e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de

leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que

podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por

exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo

Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das

leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir

As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os

fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como

aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no

uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento

Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de

equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas

como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma

reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)

Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento

que inverta a flecha do tempo Por exemplo

Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute

com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos

absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente

nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si

proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo

(REYNOLDS 2002 p 3)

61

A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce

aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande

maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem

do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio

As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem

crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem

determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar

(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce

sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm

no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta

inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que

haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo

(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente

explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que

causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da

atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente

(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no

momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite

ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que

explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que

a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no

universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como

fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo

bloquear a investigaccedilatildeo

62

(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema

explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel

explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de

fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos

(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de

que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis

capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect

62 1892)71

Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o

suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como

parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica

cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da

diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras

pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza

Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute

poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo

(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel

(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma

inequiacutevoca

(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa

Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da

tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das

71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with

mathematical precision into considerable detail

63

uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que

desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um

suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma

vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute

sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que

ele produz consequecircncias ou permanece inerte

A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os

avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia

permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses

fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor

Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos

mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro

explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear

o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72

Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde

dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta

acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que

a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado

Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida

que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o

caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em

uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes

72 () to block the road of inquiry

64

3 A LEI

Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro

encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que

Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele

estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em

capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que

suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia

para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109

1892)73

A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias

do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias

do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim

como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo

infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74

Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a

concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve

ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um

determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo

de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no

tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu

iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do

passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75

Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da

73 How can a past idea be present

74 () through an infinitesimal interval of time

75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of

course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling

65

categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A

ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma

inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade

Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um

tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no

momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76

Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma

abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo

A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos

passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que

se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo

consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua

31 O IDEALISMO OBJETIVO

Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua

diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o

monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o

idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande

problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou

natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui

propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou

propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica

76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the

result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment

66

A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da

combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos

aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser

entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce

A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo

autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a

tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e

as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita

de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada

32 A LEI DA MENTE

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as

() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que

permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta

dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras

mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP

6 sect 104 1892)77

Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da

fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a

conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23

77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

67

1891)78

A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da

mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve

ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a

atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade

a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo

perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute

suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade

organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79

O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental

da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo

adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua

maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade

final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um

estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo

78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and

prevent all further formation of habit 79

() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

68

CAPIacuteTULO 02

O SINEQUISMO

Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)

69

Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80

uma investigaccedilatildeo sobre

a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do

pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande

importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam

verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81

Em carta a William James de 1900 Peirce

afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82

isto eacute o ponto de

apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia

Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o

interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e

filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como

afirma em 1897

() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de

continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito

e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver

a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes

os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por

exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute

logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma

delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o

todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da

loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica

(CP 3 sect 526 1897)83

80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese

81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime

importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82

() synechism which is the keystone of the arch 83

() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition

of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical

doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an

inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically

possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a

part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further

development of the conception of logical possibility

70

De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute

poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de

continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo

desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na

construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das

explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem

algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de

continuum

Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da

abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que

apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que

a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta

investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de

explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto

eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da

evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua

funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a

necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto

possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas

teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando

relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de

continuidade

71

1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA

Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum

haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas

pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para

obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma

perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto

natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse

modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica

A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e

mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho

da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)

84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que

isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85

Pois descontinuidades como pontos ou

instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo

explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute

fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do

continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos

Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-

los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade

ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos

procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana

A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento

ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no

84 Do not block the way of inquiry

85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable

72

modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram

certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam

responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A

primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86

hipoacutetese

explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de

matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao

sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do

acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter

elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende

dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando

de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo

As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente

estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia

de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua

verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e

significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7

sect 535)87

Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo

termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas

compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um

problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom

nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como

classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes

recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um

que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A

questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a

soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias

86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho

87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences

73

entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma

espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo

envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe

natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A

questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados

Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em

sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois

eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute

transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo

Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da

continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo

tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma

explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses

agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar

Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela

bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88

eacute mais claramente apresentada por Hookway na

seguinte passagem

() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo

podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais

a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza

do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter

Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um

nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando

um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos

pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina

conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos

um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel

88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes

74

para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais

que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo

(HOOKWAY 1985 p 178)

11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM

Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de

continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo

sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros

pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para

diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade

transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos

finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse

silogismo uma delas eacute a seguinte

Todo texano mata um texano

Nenhum texano eacute morto por mais que um texano

Desse modo todo texano eacute morto por um texano

A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as

demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo

que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma

coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que

excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89

Os seus

constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de

potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa

89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum

75

Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude

dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de

indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um

possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do

existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse

poder (ROSA 2003 p 223)

Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de

ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na

seguinte passagem

Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser

individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa

indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode

haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo

consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um

qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que

o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto

o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer

conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute

composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees

gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo

nosso)90

Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a

curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem

90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

76

uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta

cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto

ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses

estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa

ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado

manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago

na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo

permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a

existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida

Os infinitesimais91

surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes

do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92

e

eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo

for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre

qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha

sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do

continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os

infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do

real Peirce toma o exemplo do dado e afirma

Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade

91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute

menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo

XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos

trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em

funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute

considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um

trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de

nossa parte 92

O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to

trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are

continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)

77

bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o

ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do

que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e

formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma

de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o

haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que

tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como

que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute

necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que

afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute

de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect

664 1910)93

Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos

da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo

que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da

passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir

como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o

Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade

como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos

A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma

ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94

A resposta por ele proposta eacute de que

devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma

lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do

passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem

93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might

have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the

dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul

and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and

upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to

define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would

bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of

the die consists in such behaviour 94

How can a past idea be present

78

uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar

conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95

Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser

consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes

infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um

instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do

fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM

3 p 126)96

2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM

A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que

busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma

parte dos criacuteticos97

insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo

coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema

Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de

Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em

oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas

que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica

Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a

necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma

95 () through an infinitesimal interval of time

96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the

present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97

Por exemplo GALLIE 1952

79

Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado

desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha

por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada

pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais

deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento

humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da

ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido

bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade

aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria

filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o

estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de

resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98

A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer

uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais

duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra

sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre

ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica

Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce

que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma

semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS

620 p 09)

A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos

aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum

98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full

import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who

wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human

knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect

each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of

the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study

of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)

80

topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria

expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos

princiacutepios de desenvolvimento do continuum real

A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos

parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em

sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que

nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio

desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99

Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo

refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas

motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do

desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees

de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914

Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer

uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer

quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100

preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano

(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)

99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de

continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100

Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum

denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas

e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente

compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de

coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador

81

21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO

O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre

as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os

problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele

tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101

essa caracteriacutestica ficou conhecida na

literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce

leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de

Cantor

Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a

necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de

uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro

incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em

oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de

apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute

determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo

raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da

cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e

que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele

Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e

considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a

vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo

comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia

Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo

que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo

101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense

82

objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como

representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102

Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve

existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se

em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira

seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma

outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita

divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se

tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto

que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria

Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873

Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas

atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O

filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias

segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por

processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103

Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais

detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais

uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio

dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104

102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the

liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object

quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the

cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two

such lines represent that they are two different cognitions 103

First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous

processes 104

In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another

or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established

83

Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar

agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo

da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a

implicaccedilatildeo entre ideias105

Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo

formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo

mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se

apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa

propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o

continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que

possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao

estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema

mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante

22 PERIacuteODO CANTORIANO

Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade

poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em

propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca

Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma

anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com

aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente

adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas

105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa

de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os

caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento

seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no

processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese

84

do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma

conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar

com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre

continuidade (MOORE 2007 p 434)

Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade

deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a

definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a

tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do

continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas

propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade

(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia

agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106

ou ainda que a

ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107

Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um

limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108

ou ainda

que

A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do

seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria

infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum

conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma

seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP

6 sect 123)109

106 property of infinite intermediety or divisibility

107 The Kanticity is having a point between any two points

108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system

109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every

endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in

using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both

of the limits

85

Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce

jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo

escreve

[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou

outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de

tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode

mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada

instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo

eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um

exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes

tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato

que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema

dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a

de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de

pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect

164 1889)110

Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum

que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia

evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo

continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a

beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na

linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse

110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that

of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move

from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This

statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old

definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact

that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The

less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --

words which must be understood in special senses

86

assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect

171 1897)111

23 PERIacuteODO KANTIANO112

Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por

Kant113

de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168

1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo

que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma

abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees

Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos

pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da

linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114

Peirce afirma pois que continuidade eacute

totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto

maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum

As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115

expressavam o seu desacordo com

uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e

descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116

Em termos mais

111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of

continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the

entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112

Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo

de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113

Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado

era somente o de infinita divisibilidade 114

(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there

is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115

No texto A lei da mente 116

It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is

87

compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e

Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias

partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de

natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as

partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de

1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova

elaboraccedilatildeo

24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO

Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma

coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo

pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo

tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6

sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma

coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de

alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as

partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642

1908)117

Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes

devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo

uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de

tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave

definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das

pequenas partes temporais

manifestly non-metrical 117

(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole

88

Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para

demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso

que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo

Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo

fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect

642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou

da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja

vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)

Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento

de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu

pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees

cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final

se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi

indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de

generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo

modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo

capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final

89

CAPIacuteTULO 03

A EVOLUCcedilAtildeO

Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the

doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP

6 sect 554 1887)

90

Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se

efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana

Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A

negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser

sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de

fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas

tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu

origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da

perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz

Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)

1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA

Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva

epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a

evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees

oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua

adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o

estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como

candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito

anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo

Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado

que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa

(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos

eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos

desperta o menor interesse Peirce diz

91

Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade

definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que

deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da

experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado

de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute

regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo

correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas

quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189

1901)118

Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito

que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade

motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A

maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem

() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se

fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado

aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de

ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute

tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197

1901)119

O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso

ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese

118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites

any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and

regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why

there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which

I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that

119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true

before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at

least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical

consequence necessary or probable

92

que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses

segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao

fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido

Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo

necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o

caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das

explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese

evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o

uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma

explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como

aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de

explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para

compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo

(Hookway 1985 p 267-68)

Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada

como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis

entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da

seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das

semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees

De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria

capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele

afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em

geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120

em outro momento afirma que

Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida

que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei

120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them

results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely

93

ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia

acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como

eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121

Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que

A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e

corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo

cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel

afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a

buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)

Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar

o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e

agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o

resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se

impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A

discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e

regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus

Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce

identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante

para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante

crescimento de complexidade

A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo

atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese

121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past

not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was

always as rigidly necessary as it is now

94

evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as

variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos

aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo

de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de

investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais

autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da

razoabilidade concreta no universo

2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX

Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na

insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados

por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do

mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo

podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista

dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo

como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das

explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute

mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin

que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda

metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do

de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora

que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu

sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de

coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo

teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o

tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides

95

tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122

O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem

mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais

geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que

levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos

paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel

A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da

abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser

explicada Diz Peirce

Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma

caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos

limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave

lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e

diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo

pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa

variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar

conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade

e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa

espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na

morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123

Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta

da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados

dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar

esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de

122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important

philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist

123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since

96

se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que

considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute

interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na

natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124

A

fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos

1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com

desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos

2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves

moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e

3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP

1 sect 193 1903)

Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior

importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua

insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que

possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma

() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente

daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo

muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso

Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as

forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP

1 sect 347 1903)125

124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity

and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say

how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions

97

Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos

irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar

apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na

teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de

atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel

fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o

crescimento do universo como um todo

A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que

ficou conhecido como a lei da vis viva126

que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio

segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na

vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768

ca 1889)127

As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos

corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema

inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo

forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa

Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos

implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas

ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia

unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas

precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo

oposta (CD p 2319 ca 1889)128

126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como

sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo

de partiacuteculas

127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system

depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental

forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative

forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but

opposite in direction

98

A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo

conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos

sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas

fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto

conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma

direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da

vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma

Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da

mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os

sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)

As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo

bem indicadas por Peirce na seguinte passagem

Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de

energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o

preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo

determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa

sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em

qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes

em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente

na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129

ou ainda

129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical

universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent

does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the

velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were

Everything that had happened would happen again in reverse order

99

Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes

quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de

energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas

natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse

modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12

m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)

2 unicamente como o

quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele

da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo

indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2

p 481)130

O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o

universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se

pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas

direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta

aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma

avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios

momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais

fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode

igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131

Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em

algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio

A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a

maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu

respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees

experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau

130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of

the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon

nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the

analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)

2 only as squared

Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two

directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing

that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance

100

extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a

atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma

aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua

tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a

conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam

por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os

ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees

extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de

que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132

O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo

emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos

fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles

que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de

irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que

(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa

atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de

Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na

linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o

nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a

resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das

cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas

desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a

experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133

132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural

philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential

verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard

to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation

to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of

the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for

example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of

energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be

absurd to doubt

133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that

is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be

reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion

resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids

() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their

mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals

101

Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do

caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo

como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo

isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora

como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce

A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot

(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a

tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o

calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de

que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo

encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a

direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds

Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos

irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell

Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria

da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma

abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O

tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do

vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p

42)

Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher

todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas

uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das

probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das

partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior

do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o

102

compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo

determinadas pelo acaso

Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos

propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of

chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais

sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134

Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo

paraacutegrafo

Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma

variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a

teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as

peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir

algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia

estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma

coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de

accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo

os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135

Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo

denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas

principais

a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para

a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final

134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of

chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science

135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were

not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected

map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of

energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to

show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the

means of proving its presence

103

b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)

Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que

se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar

uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final

(cf CP 7 sect 471 1898)

Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo

que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como

criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo

isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo

dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em

funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da

interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a

irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber

este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final

Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute

uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria

termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece

ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos

de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que

compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com

a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento

da ciecircncia

104

3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO

As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que

tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136

isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos

encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira

intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da

Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o

ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte

Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha

um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo

orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em

atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes

de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias

propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a

reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o

desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana

ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia

assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a

destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a

taxa de mortalidade

Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas

nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua

vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a

interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na

136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary

loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88

e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema

105

medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar

lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce

afirma

Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute

evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a

evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP

6 sect 16 1891)137

E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de

acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face

dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees

que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash

como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo

individual mas respostas a mudanccedilas ambientais

Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos

parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da

biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator

na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente

natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em

geral (CP 6 sect 17 1891)138

137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance

and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort

138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the

broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the

historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the

process of evolution of the universe in general

106

4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO

Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no

interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto

eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos

Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos dos mais variados campos

A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de

explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu

Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e

concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma

darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute

bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um

determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de

elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas

seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-

se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas

almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista

A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de

nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que

mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139

Embora esse tipo de evoluccedilatildeo

natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute

o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O

exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu

no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)

139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known

facts as more and more observations came to be collected

107

Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o

impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar

sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140

Como exemplo o autor indica a descoberta dos

micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -

1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos

observacionais

5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA

Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos

acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de

aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo

Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita

denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada

denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da

causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo

ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica

proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por

cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica

corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana

Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo

Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa

possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de

140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning

about the observations

108

maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas

degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)

Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui

contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o

fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu

lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no

qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados

ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da

mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304

1893)141

O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na

medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada

perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o

fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142

Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o

hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava

mirando

O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando

submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se

necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja

uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma

Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas

as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143

O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo

141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind

142 () living freedom is practically omitted from its method

143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits

109

que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144

Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145

Eacute a causa final

acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender

essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o

sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)146

6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO

Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa

final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985

p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o

define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e

a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um

contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta

Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do

mundo (cf CP 6 sect 101 1902)

144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus

in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character

146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

110

A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser

in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce

expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa

desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo

Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia

possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos

adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce

O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias

mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente

cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas

por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que

a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da

mente () (CP 6 sect 307 1893)147

Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio

primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo

(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que

() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual

devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que

devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de

tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal

modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de

147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as

in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate

attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is

by virtue of the continuity of mind ()

111

regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148

Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se

autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao

monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente

um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as

leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149

O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das

leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o

princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso

em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos

e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150

Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para

Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na

mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo

7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE

No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem

tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos

148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as

far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so

that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high

degree of mechanical regularity or routine

149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of

matter a special result of the laws of mind

150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance

tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and

the cosmos of order and law

112

estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por

meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus

estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e

isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect

433 1905)151

Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila

de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por

trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs

modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a

mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute

auxiliado pela disposiccedilatildeo

A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]

para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um

haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152

A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar

com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre

acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados

satildeo estabelecidos Peirce indica que

O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o

sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo

satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o

tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo

mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute

repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153

151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the

pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general

152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit

and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an

attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the

113

Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande

disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais

plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154

pois apresenta em

maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade

desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de

tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional

Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa

que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a

qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O

objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa

desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em

outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer

outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras

ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se

subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155

Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie

de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o

autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156

Cabe agrave

loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191

1903)

Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao

kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently

matured agent and the evil is the repulsive to the same

154 The most plastic of all things is the human mind ()

155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the

development of concrete reasonableness ()

156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-

control is a perfect mirror of ethical self-control

114

cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo

claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho

intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de

obter a verdade

A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada

no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada

eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode

ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo

assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo

ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto

podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar

nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o

mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na

loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute

seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()

(CP 4 sect 615 1903)157

157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is

going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more

satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness

is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it

Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by

giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In

logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods

as must develop knowledge the most speedily ()

115

CAPIacuteTULO 04

A ABDUCcedilAtildeO

Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of

heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you

and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a

conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with

experiments (CP 6 sect 461 1908)

116

1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS

Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou

natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE

(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985

entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a

quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia

que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas

ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua

reflexatildeo

A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus

primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica

da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com

relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-

relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica

como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes

dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio

autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se

divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica

Criacutetica e Metodecircutica

A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute

neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica

tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata

dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez

compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua

abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do

uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado

117

Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da

perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da

filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de

um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo

Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento

seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos

problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados

com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus

textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte

de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta

aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por

essas mesmas concepccedilotildees

Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute

essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais

para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais

elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave

abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute

em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e

se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua

melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois

eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do

que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160

A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado

158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a

longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que

todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que

as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159

Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160

From this definition pragmatism is scarce more than a corollary

118

de duacutevida autecircntica161

que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e

verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e

em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que

ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se

que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos

incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma

privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a

utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374

1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de

um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles

produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um

homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)162

Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do

tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711

1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como

autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e

inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um

processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o

futuro

161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo

desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a

natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta

maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de

vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um

conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162

() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit

119

Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral

refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa

coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo

pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser

eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163

Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas

vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se

necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo

passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de

maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo

desse modo o autocontrole

Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute

indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164

Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma

caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador

principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a

questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com

aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe

as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas

podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo

O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as

investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as

primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP

5 sect 116)165

uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como

163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past

contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot

be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164

() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165

() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question

120

Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade

de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de

cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira

Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se

forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela

de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma

proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um

percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo

(CP 5 sect 115 1903)166

Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito

que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para

justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo

perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo

pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma

boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute

fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo

da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida

em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o

suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela

realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente

nesse processo

Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do

senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN

166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to

me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of

formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand

is an image or moving picture or other exhibition

121

1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas

comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para

penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho

efetivo (ver REILLY 1970)

Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais

meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele

descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer

naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter

crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma

duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa

muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem

agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas

assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo

incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por

criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na

tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf

CP 5 sect 377 1877)

O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por

levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo

toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo

custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo

afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou

tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a

posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo

basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos

das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)

O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz

122

Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel

que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma

questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)

Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da

tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao

governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel

(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos

terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas

estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a

experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)

Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167

cabe a

Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer

crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas

crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por

alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168

e

acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o

pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169

O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia

estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo

processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A

vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de

investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se

fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa

refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos

167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana

168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but

by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169

But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real

123

desse meacutetodo Peirce afirma que

Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das

nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis

regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam

nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo

podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente

satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido

o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect

384 1877)170

A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos

demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita

suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem

que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete

com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute

resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel

natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o

conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer

elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom

funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e

racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171

Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser

[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo

ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e

deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172

Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma

170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect

our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects

yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and

any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171

() rationalization and of rationalization by us 172

That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country

124

hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A

aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos

produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os

mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser

compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia

realizaacutevel

Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de

intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao

menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do

conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo

modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce

buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e

posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de

outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo

de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta

teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que

Peirce denominou de abduccedilatildeo174

No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do

universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce

desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou

ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)175

Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas

ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173

Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174

Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175

() the inferential process involves the formation of a habit

125

anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de

trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a

deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo

A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em

muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis

esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no

interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa

teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja

como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da

formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo

de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio

para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos

perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns

comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica

com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica

que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade

dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo

Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute

encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade

de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam

aproximar-se da verdade

A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da

epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees

para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os

juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira

126

() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem

qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas

primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um

caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem

absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176

Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico

polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o

fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute

por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo

tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e

compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se

as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se

acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)

A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute

como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo

geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de

natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a

principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se

natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como

entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena

A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem

o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega

Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte

176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or

in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive

inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism

127

integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as

iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais

faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que

possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)

A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes

contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a

grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas

tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que

cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa

claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o

processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma

ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente

desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177

Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como

um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo

atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia

como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se

passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo

quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma

forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a

proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O

argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira

entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie

Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que

noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves

177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces

any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary

consequences of a pure hypothesis

128

conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178

e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que

provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect

54 1902)179

Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre

inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz

Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para

indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de

nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem

criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar

natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que

usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma

razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)

De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a

abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma

inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo

uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem

2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO

Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma

maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se

178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a

conclusion 179

Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an

entirely different construction from the thinking process

129

novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo

A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o

raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou

falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo

igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua

justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo

possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo

deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de

uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com

os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer

a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145

1903)180

No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma

descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os

seguintes silogismos

Deduccedilatildeo

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth

or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction

is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the

investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error

The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it

measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can

deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction

130

Induccedilatildeo

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Hipoacutetese

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria

silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo

ldquoObserva-se um fato surpreendente C

Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente

Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181

Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem

comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo

possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena

181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to

suspect that A is true

131

consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em

que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou

plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem

posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo

com os fatos por meio da induccedilatildeo

Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo

estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo

deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas

indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz

ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os

caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP

5 sect 173 1903)183

O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos

sinteacuteticos184

em 1868 o autor afirma

De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os

juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os

juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute

absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a

particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia

(CP 5 sect 348 1868)185

182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well

be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include

abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class

in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183

However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-

controlled and critical logic 184

Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185

According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But

antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how

synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one

will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy

132

O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema

bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a

partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que

no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta

questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade

dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo

encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de

hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do

sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por

meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do

nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de

hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo

conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo

implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia

e sua epistemologia

A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima

Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos

de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do

tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se

altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem

loacutegica legada por Aristoacuteteles

Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos

argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste

depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p

31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo

de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais

tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo

133

Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita

entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que

compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia

dedutiva186

dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas

e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a

elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico

Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que

realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada

pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja

perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na

fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre

qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as

suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o

seguinte comentaacuterio

Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo

verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de

um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de

acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente

resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo

do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194

1878)187

Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese

186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century

Dictionary 187

By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we

conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws

something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter

from effect to cause The former classifies the latter explains

134

fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz

referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que

enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em

um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua

cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo

honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se

encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em

algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos

e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que

ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos

Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina

o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses

Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um

outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo

sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito

seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute

encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do

escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma

hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que

duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por

acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes

termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em

um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao

objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188

O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso

envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade

grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima

188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the

characters of that class belong to the object in question

135

apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que

correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito

na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente

diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira

ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos

similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p

198)189

Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada

neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce

ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de

novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que

no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o

nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar

e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores

Em um texto de 1901 lemos

Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas

ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes

de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas

confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a

induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)

como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190

189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas

hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190

Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to

distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of

these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together

(often mixed also with deduction) as a simple argument

136

No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo

seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas

aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem

mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas

eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se

verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira

razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um

haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a

hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta

esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia

ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o

resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191

A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do

pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa

distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam

segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos

leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de

descobrir

Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o

primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A

experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe

conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual

for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192

Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser

considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu

sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia

191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar

musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192

All knowledge whatever comes from observation

137

do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo

inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees

apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente

atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e

acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou

pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo

cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193

Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que

alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o

curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador

A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto

externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute

sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter

consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo

A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta

explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende

para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste

Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo

deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria

eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma

vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a

necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder

agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome

induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original

empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por

193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great

effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain

grade of reality or independence of our cognitive exertion

138

meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo

conformes agrave experiecircncia

As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia

somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por

meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou

agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a

investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de

autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o

investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este

estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se

verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese

A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem

testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da

economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo

desempenha neste estaacutegio Peirce diz

Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro

esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes

tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode

fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo

se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194

194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it

remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can

stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any

rational way

139

A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf

CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto

surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse

das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que

devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica

tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses

que Peirce estabelece satildeo

1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel

2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos

3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo

do princiacutepio de economia da pesquisa

A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um

certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de

uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma

prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195

Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma

teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do

diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir

uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf

CHAUVIREacute 2003 p 84)

E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes

devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou

esforccedilo em seus testes

195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted

140

CAPIacuteTULO 05

A CAUSALIDADE FINAL

Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly

intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the

contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of

conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)

141

Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas

agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas

e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo

da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original

Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central

que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte

proposto no todo desta tese

Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da

causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de

esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial

do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de

vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo

do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A

teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b

p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196

eacute visto pelo

filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma

() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor

de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de

absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS

478)197

Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no

seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)

196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197

() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and

nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her

haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)

142

afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute

mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade

junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas

eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como

acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas

explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo

da situaccedilatildeo atual

() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor

das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior

das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na

barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo

os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a

suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito

incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem

mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a

compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos

Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa

prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado

como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo

filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer

incompreensiacutevel

Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os

fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro

descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo

da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a

explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a

proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute

o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo

143

(HULSWIT 1996 P 183)198

Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o

tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada

e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua

inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das

descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos

1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL

Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199

Peirce daacute tanto agrave causalidade

final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia

certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira

como foi definida por Aristoacuteteles

O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na

declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes

ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a

verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar

fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem

consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo

particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado

geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa

final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o

resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200

198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997

199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996

200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all

causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the

truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a

general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this

or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one

time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is

to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma

144

Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos

A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela

condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa

situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual

for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente

Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um

tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente

nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no

momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de

um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave

estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a

bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer

relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute

verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo

geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e

compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201

Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de

maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos

comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute

realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da

afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica

peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em

relevo essas diferenccedilas 201

Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a

compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general

character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the

wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it

but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it

is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient

causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient

causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the

bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force

is compulsion and compulsion is hic et nunc

145

Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes

compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo

chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero

chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo

viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do

que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um

nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202

A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado

com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo

experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos

de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo

peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico

desempenhado pela causa final no sistema peirceano

Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a

causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela

pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins

Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a

sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A

fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo

elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito

maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados

Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205

1902)203

Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo

autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a

202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of

causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling

for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient

causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so

much as chaos without final causation it is blank nothing 203

A purpose is an operative desire

146

atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo

reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica

Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao

pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como

um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio

de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos

para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com

que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se

tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as

leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204

Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta

tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente

antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que

isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e

marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar

que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz

Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute

alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute

assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana

satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205

Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza

tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa

204 This is to say we guess out the laws bit by bit

205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which

the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human

convenience are witness

147

caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia

a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206

Como

afirma Hulswit

() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave

experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se

elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e

nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um

problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p

184)

A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser

considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida

como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade

humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica

que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash

uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo

O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que

naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o

autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em

evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos

detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral

Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar

dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro

categorial

Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de

206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations

148

causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo

presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo

aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a

torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos

de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e

inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua

atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar

exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um

curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)

Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final

que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer

evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere

categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e

concretos

Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute

afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo

eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas

eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o

desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma

classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto

quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim

continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto

definido e concreto

Em segundo lugar207

embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa

influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e

207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer

tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which

may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for

149

futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo

cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas

trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina

natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de

Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia

resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui

o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra

coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo

transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela

mediaccedilatildeo

Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos

um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a

dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema

perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado

teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de

estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo

poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto

expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como

condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes

mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante

processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da

causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos

processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a

originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas

palavras de Peirce

future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a

uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos

de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente

150

Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas

uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem

Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser

in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos

fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo

bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do

futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208

O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva

de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas

tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada

Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou

inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em

suas palavras

Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute

realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua

realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute

realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica

(NEM 4 p 66 1902)209

208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension

of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears

in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a

quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of

something else 209

By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that

if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about

or approached by an independent line of mechanical causation

151

2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE

A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela

restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal

como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a

qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a

ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da

nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do

mecanicismo e a pura espontaneidade do caos

Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de

uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim

chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica

claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo

Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica

sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas

satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam

em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo

de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para

aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia

em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas

eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210

As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas

caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita

aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira

210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due

to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in

one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is

too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state

The other character of non-conservative action is that they are irreversible

152

controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra

maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as

causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para

a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto

Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo

perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou

daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus

veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a

face da terra (CP 1 sect 217 1902)211

Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia

a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente

apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que

a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212

Eacute a causa final

diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa

atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual

sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)213

Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce

211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are

not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and

having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212

Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character 213

What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

153

apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa

distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220

1902)214

Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as

propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido

por Peirce

Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado

Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos

livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com

os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira

Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista

cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um

espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que

ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor

definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente

natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como

as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa

final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215

A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que

jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo

enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)

Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo

crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente

inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de

214 A man is a wave but not a vortex

215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels

entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary

canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so

that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a

singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now

the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the

object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final

causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account

154

aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das

formas diferenciadas Como indica o autor

Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de

aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser

descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟

(CP 6 sect 23 1891)216

A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um

determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em

funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das

hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou

estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se

manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute

presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural

como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma

montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo

passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou

uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira

esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa

final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes

cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela

accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)

Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal

216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked

by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the

general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

155

criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente

ressaltando a sua complementaridade

A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e

todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O

tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser

imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele

exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu

punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente

destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria

eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter

hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217

A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos

naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais

eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do

xerife e do tribunal

A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal

sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum

cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial

que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia

estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas

permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218

217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The

court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no

whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if

there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess

efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies

potential regularity 218

A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament

might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who

unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the

perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen

156

A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo

as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter

Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro

brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em

referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem

sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade

eficiente e final (POTTER 1997 p114)

Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos

trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de

tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira

existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em

confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser

consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que

O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o

dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a

concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam

cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o

menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo

significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado

deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o

mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os

fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como

pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente

separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute

caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais

e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de

liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam

teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219

219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to

exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or

that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate

meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated

chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and

157

Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que

os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta

ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220

A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a

chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente

em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e

que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro

texto

Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e

onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas

natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem

gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e

intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159

1897)221

A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese

natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em

toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das

restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao

descrever a tessitura da realidade

Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica

do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos

psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely

separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental

and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint

which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220

Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221

It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients

imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell

the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of

nature

158

limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as

grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade

do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser

compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel

variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode

minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da

espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia

desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-

na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece

facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222

Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a

continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem

introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o

acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que

a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada

O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser

individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado

contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um

agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas

condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos

distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado

uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado

eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude

possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo

conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que

permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223

222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my

view appears to me not easily controverted 223

That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

159

A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de

criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos

abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de

um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute

foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de

algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos

concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo

3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO

Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua

atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo

peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo

da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede

Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos nos mais variados campos

A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de

1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento

(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado

pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

160

esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN

1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um

indiviacuteduo Peirce afirma que

() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade

esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-

determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A

ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma

medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224

Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade

com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que

caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse

inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a

proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em

crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento

da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos

teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes

sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais

variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a

possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de

desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final

desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade

imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT

1994 p 406)

224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere

purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea

living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now

conscious

161

Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo

como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu

processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das

limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo

de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman

O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da

complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do

tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento

uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir

(HAUSMAN 1998 p 630)

A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada

por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas

O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras

de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si

cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela

virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225

Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde

a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo

possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que

aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar

Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees

em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute

completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect

225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is

divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind

162

288 1893)226

Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o

universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os

germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289

1893)227

Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a

hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por

sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar

dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel

por si mesmo

O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos

individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter

sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de

incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas

ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na

medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida

nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim

entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de

mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as

cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido

lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute

em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve

lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute

acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da

Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do

que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja

admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo

compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob

esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na

operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel

sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar

que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os

meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP

1 sect 615 1903)228

226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and

drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula

we call the Golden rule 227

() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228

The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of

Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of

growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will

make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully

163

Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo

de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica

O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem

descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em

si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo

poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto

a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos

indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou

b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em

simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a

atratividade da ideia ou

c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de

seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si

(POTTER 1997 p 187)

4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA

Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas

principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos

em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi

manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of

more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including

pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment

that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the

year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how

one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing

whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we

can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation

of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to

us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to

follow such methods as must develop knowledge the most speedily

164

dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece

ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos

presentes em ambas as noccedilotildees

Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de

causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute

bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de

um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as

ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua

obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as

concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade

Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro

da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos

interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes

questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por

necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera

tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas

acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por

produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais

necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias

independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as

coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem

que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo

(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que

exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)

O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que

acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na

parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e

165

constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm

a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente

construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas

inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de

modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que

ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo

devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002

200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de

acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro

causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento

Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute

bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)

A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles

(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e

afirma

A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes

integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa

material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa

eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute

chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo

de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute

chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo

consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como

o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229

229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its

matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum

is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute

the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is

hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics

the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)

166

Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente

antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e

o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta

forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute

compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo

propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A

causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa

Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder

causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas

potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila

algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim

Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a

consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as

instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa

eficiente do acaso e da causa final

Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma

causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra

Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou

objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo

atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer

processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida

com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que

no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de

novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso

Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo

peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do

167

acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana

de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final

5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL

O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos

do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo

peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O

problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do

mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade

final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf

HULSWIT 1997)

Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no

texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar

com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja

de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a

questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a

resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um

caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-

lo em grupos distintos

Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do

mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria

classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230

Ao tratar da classificaccedilatildeo

natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo

230 () desire creates classes and extremely broad classes

168

naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes

eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista

arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda

natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute

definido por Peirce da seguinte maneira

() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo

consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas

ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o

nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O

nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das

palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso

mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231

Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo

sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute

vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo

vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo

Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra

possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel

231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects

merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being

of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that

they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our

everyday world consists of

169

CONCLUSAtildeO

() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts

comprehensible (CP 8 sect 168 1903)

170

A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o

horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias

cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada

sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da

investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas

formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para

constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das

categorias faneroscoacutepicas232

reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e

terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o

exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um

processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da

lei da mente e da causalidade final

Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado

de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica

que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um

continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o

filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra

(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo

a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo

A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da

reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de

infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui

pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais

continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o

tempo e o espaccedilo

232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia

171

O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O

processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e

liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa

por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei

da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que

natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela

oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por

meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer

pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o

aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se

impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de

abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem

Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da

mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de

qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos

fenocircmenos e marcante em outros

A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios

incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute

uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse

tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor

isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas

reveladas pela experiecircncia

Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se

verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos

irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que

tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese

172

Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da

cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou

essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma

conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no

capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o

regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de

bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos

Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua

investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser

refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O

primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no

entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses

equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma

explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila

para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a

serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela

mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

mostrou-se uma ilusatildeo

A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito

claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo

eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor

Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo

poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A

efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um

instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a

conduta adequada para a sobrevivecircncia

173

A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo

adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade

de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo

chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista

natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do

universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo

evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas

Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a

desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um

princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica

Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP

1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)

A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por

meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do

estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito

mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro

suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da

vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente

determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso

cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33

1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde

agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado

final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce

como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias

peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como

inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o

infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a

tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do

174

mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz

ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem

175

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MAX ROGEacuteRIO VICENTINI

O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES

SANDERS PEIRCE

Tese apresentada ao programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr

Pablo Rubeacuten Mariconda

Satildeo Paulo

2011

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por

qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e

pesquisa desde que citada a fonte

Vicentini Max Rogeacuterio

O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders

Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-

182 f

Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda

1 Cosmologia

Nome VICENTINI Max Rogeacuterio

Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

DEDICATOacuteRIA

Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam

agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini

e aos amigos presentes e ausentes

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha

orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha

compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem

como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash

Denis Diderot e agrave equipe Sphere

Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees

Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos

professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e

aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese

Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a

realizaccedilatildeo deste trabalho

Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos

integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana

Belmonte

Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos

juntos

Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei

Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou

ambos

RESUMO

VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011

Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce

particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que

faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos

naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as

caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo

arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode

ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum

que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e

lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo

evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo

finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees

restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo

Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia

ABSTRACT

VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce

2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao

Paulo Sao Paulo 2011

This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the

relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance

determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of

explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his

thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the

concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of

Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological

categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the

cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The

law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of

phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however

exhausting it

Keywords cosmology synechism abduction teleology

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo

W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de

composiccedilatildeo

CN x p y

MS x

-

-

Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)

Manuscritos nuacutemero do manuscrito

EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y

HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x

p y

NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns

estudiosos usam NE)

CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO 11

CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28

11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29

12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38

121 O NADA 41

122 O ACASO 50

123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54

13 A LEI 64

131 O IDEALISMO OBJETIVO 65

132 A LEI DA MENTE 66

CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68

21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71

211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74

22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78

221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81

222 PERIacuteODO CANTORIANO 83

223 PERIacuteODO KANTIANO 86

CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89

31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90

32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94

33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104

34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106

35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107

36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109

37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111

CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115

41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116

42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128

CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140

51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143

52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151

53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159

54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163

55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167

CONCLUSAtildeO 169

REFEREcircNCIAS 175

11

INTRODUCcedilAtildeO

Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of

mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be

considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the

imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two

ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle

force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly

prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)

12

A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e

abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e

poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em

Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce

foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu

fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber

Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos

pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos

existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e

sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos

dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande

contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento

Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista

entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua

eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em

casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard

desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via

nele o potencial de um gecircnio

Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879

mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras

Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel

(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo

quarenta e quatro anos

1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a

base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e

da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891

13

O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas

entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes

estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a

continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce

ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163

1897)3

Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo

O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final

desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava

determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos

sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a

sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de

natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da

falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento

quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes

aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como

veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se

lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui

lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos

Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual

uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste

na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais

variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande

auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar

alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada

2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema

filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy

14

pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo

significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos

detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento

da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a

realizaccedilatildeo da pesquisa

Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo

inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um

ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a

compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada

natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se

nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave

determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o

fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da

experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias

Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do

saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do

escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima

que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273

1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que

para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a

toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para

tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio

do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu

alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais

possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5

sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese

sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a

abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor

15

O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia

parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento

peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus

escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos

daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE

1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida

de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses

amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de

cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos

axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas

apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito

acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete

suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo

haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se

na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo

de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente

aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que

como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos

Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo

eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas

para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o

projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com

Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta

dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda

atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros

passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da

accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo

temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel

fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo

16

pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e

TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis

e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e

resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos

Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o

mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O

elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer

avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do

funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou

tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a

descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva

natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia

satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o

desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()

minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes

agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos

naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4

Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se

aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial

Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect

269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade

da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante

nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos

desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)

4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion

that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf SPEDDING 1989 p 571)

17

afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se

considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse

modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia

na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar

Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto

inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista

do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a

causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da

cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no

futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de

determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p

200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a

concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida

Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas

podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por

Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais

ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos

dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the

Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a

causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo

caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7

Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um

seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser

6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation

7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is

worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank

nothing

18

totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo

original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que

desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido

realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um

papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem

eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos

naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a

epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia

O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada

por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE

1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a

atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese

que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo

de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar

uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect

538 1902)

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto

central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la

expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns

princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto

inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional

para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias

satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo

racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua

8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce

incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e

Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)

19

postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito

de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A

hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de

possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a

necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser

explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido

Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual

dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia

possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees

natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)

como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo

A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a

passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro

continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse

capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo

No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim

como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP

6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a

inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como

aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo

fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p

630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas

consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma

quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo

princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das

9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha

exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser

classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica

20

principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10

e o sinequismo O problema eacute

colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o

crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia

cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo

A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa

explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como

inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no

seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e

consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso

indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os

pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira

de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da

mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e

matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica

O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute

algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da

atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de

hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio

metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior

nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina

metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser

substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria

preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie

descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11

agravequela que afirma a existecircncia

de descontinuidades radicais

10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza

(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11

() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities

21

A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre

da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute

permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas

expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para

designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a

inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no

acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos

fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo

responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades

A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave

abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86

1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da

evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute

imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos

componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia

evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de

conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de

novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou

seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los

como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da

liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral

produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este

aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que

A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios

aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo

compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem

tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da

identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se

22

potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)

Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute

elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a

relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do

princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro

ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por

Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)

Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese

evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das

explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto

subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de

produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na

medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros

conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um

fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave

inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das

explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute

utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua

formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce

soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)

A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e

segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo

incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se

assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo

seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo

23

original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no

tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12

lhes

dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva

aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser

compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)

Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP

1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o

raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o

cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo

processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das

transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a

compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees

de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as

questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409

1878)

O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo

entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual

Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo

indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha

A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor

verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do

processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13

12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei

na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13

Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence

This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio

sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation

24

Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo

indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um

refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a

qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo

constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim

levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf

SKAGESTAD 1981)

A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o

cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o

ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de

regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14

Peirce afirma que a

atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou

palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir

animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para

testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria

das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis

(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o

resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva

para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da

inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que

poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)

Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas

requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua

concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se

14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)

25

trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana

Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da

causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a

concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf

CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a

necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto

ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado

pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15

Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja

realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do

mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza

a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento

cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e

comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)

Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos

da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma

espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se

considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect

204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes

da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser

buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na

experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que

enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)

Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel

15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave

causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na

discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana

26

mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas

teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia

A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da

realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total

abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce

para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o

mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos

com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria

fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)

Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a

doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o

sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o

idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis

fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16

O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo

se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto

desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da

mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia

Retomemos as palavras do proacuteprio autor

A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas

da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que

pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir

haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente

segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo

mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto

por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade

eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute

16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits

becoming physical laws

27

igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP

6 sect 101 1902)17

As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como

etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o

processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um

instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis

17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other

laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this

same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in

the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true

to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of

efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully

intelligent

28

CAPIacuteTULO 01

A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA

The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in

the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very

development of Reason (CP 1 sect 615 1903)

29

Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma

discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da

explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel

central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica

poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo

do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse

projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de

continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de

continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos

moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo

peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo

Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua

metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma

cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela

evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua

hipoacutetese cosmoloacutegica

1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO

Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo

com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da

verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP

5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se

ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida

pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto

30

peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer

Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce

analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O

principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da

afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias

Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos

condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo

representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras

enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de

premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo

mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses

textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e

faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las

(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as

quatro incapacidades humanas

1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute

derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico

2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente

por cogniccedilotildees preacutevias

3 Natildeo temos poder de pensar sem signos

4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18

18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical

reasoning from our knowledge of external facts

2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions

3 We have no power of thinking without signs

4 We have no conception of the absolutely incognizable

31

Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento

intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira

() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e

consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por

uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em

primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a

cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26

1868)19

Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20

natildeo

parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a

caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem

inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a

Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo

tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas

tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente

ldquopragmaticismordquo

Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um

primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de

maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21

um outro caminho

para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum

postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples

19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the

cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition

then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a

cognition only exists so far as it is known 20

Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa

respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21

Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin

32

para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio

evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de

fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo

representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos

uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute

a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa

acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a

evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo

O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral

Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por

objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a

existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que

podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a

incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que

eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto

de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)

Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se

como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram

daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua

eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento

para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente

Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real

Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes

Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era

necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de

22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias

meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo

aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo

pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista

33

papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de

tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo

estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e

sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23

Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a

surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura

encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no

consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de

abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo

imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder

deduzir o particular a partir do universal dadordquo

A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute

investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do

filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do

sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e

por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da

loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo

O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio

regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave

consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio

segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como

explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24

23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down

upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting

of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a

real and living doubt and without this all discussion is idle 24

Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing

what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that

inexplicabilities are not to be considered as possible explanations

34

Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela

encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo

similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande

importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana

Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos

processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de

constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia

que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o

caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele

afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos

celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente

antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo

(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos

ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em

justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro

lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos

nos seguintes termos

Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟

Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma

hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que

realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave

conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25

25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific

explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is

analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses

35

Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual

retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a

forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam

segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce

Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando

deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica

Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas

maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na

predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos

E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis

da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber

a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo

trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a

descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo

dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um

sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713

1883)26

Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e

mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo

prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que

satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a

esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma

concepccedilatildeo antropomoacuterfica

26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and

anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses

We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which

are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the

laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we

naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction

(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is

accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all

these natural conceptions

36

A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao

seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico

para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos

Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de

um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em

consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas

as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as

quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser

encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre

outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma

humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute

Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a

mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das

recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect

47 1903)27

Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem

elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma

decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou

em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente

concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico

de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e

possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos

27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises

from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all

conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots

would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember

that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that

affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same

thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact

Logician

37

() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu

sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a

uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o

homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica

possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que

ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles

limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve

pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de

uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer

coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim

como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua

isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536

1905)28

O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter

antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais

uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho

cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que

natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29

Os elementos de todo conceito diz o autor entram

no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que

ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo

autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30

A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal

caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes

de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma

hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis

28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that

doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely

hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his

needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it

is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits

of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply

cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump

just as high as he possibly could 29

() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific

working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30

() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason

38

(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316

1903)31

A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se

perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32

entatildeo aceitas

como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis

2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA

A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente

reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890

tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce

oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto

ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos

psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser

a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na

proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos

homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das

regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir

um comportamento autocontrolado

Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo

mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um

texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com

31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to

suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering

them comprehensible 32

Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal

caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado

por lei (cf CP 6 sect 36 1892)

39

uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara

Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da

consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de

ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma

imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada

com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser

considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada

expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute

suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito

Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute

algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um

sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o

que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado

conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado

eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma

potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33

Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute

estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis

Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico

para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei

Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica

peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo

dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34

Assim ao

falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e

33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action

such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An

imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature

and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For

our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces

a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to

the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is

actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34

() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals

40

constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja

deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua

determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do

universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que

ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria

passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia

A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a

cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia

peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem

() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais

o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia

Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o

germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser

evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao

haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas

as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo

entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o

mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual

a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33

1891)35

Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho

deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta

abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do

acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para

35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without

connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure

arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but

this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other

principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of

pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical

system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future

41

formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia

21 O NADA

Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do

universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois

tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa

O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto

nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em

que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito

ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)

Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que

sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades

consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)

a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao

introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma

Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um

espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a

natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um

siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36

36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an

interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is

ipso facto itself a symbol although a wholly vague one

42

Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as

possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de

infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect

203 1898)

Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade

surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo

da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma

mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas

platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38

Nessa evoluccedilatildeo o

possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo

A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio

inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de

formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a

dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza

daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o

mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se

definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39

Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a

origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas

37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta

daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre

continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja

verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem

se estabelecer 38

The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which

the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39

The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or

is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be

distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in

particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted

43

Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um

resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo

tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40

O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente

mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira

Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da

continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da

mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas

espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem

agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo

tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter

estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de

dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo

essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41

Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um

processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que

se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a

tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute

a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o

princiacutepio de semelhanccedila e contraste

A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz

que

40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same

thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41

Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the

human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth

etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of

feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number

of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities

44

Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um

mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras

elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele

ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves

outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42

Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida

em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas

seguintes palavras de Peirce

() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se

encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo

elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem

generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43

Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a

hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa

origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se

o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce

A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser

puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um

estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um

modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor

42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere

nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or

less resemblance and contrast with one and other 43

() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

45

uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e

assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44

e acrescenta

Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei

Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado

Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash

possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem

fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45

O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo

com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46

A existecircncia do

universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo

existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior

do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf

CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O

terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua

atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo

na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o

reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada

vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo

44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a

state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a

logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in

which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45

There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the

whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --

boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46

Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os

elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo

diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo

46

triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47

Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre

os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o

mundo e falar sobre ele

() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de

sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de

ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto

de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um

grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a

respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute

outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de

Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente

do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois

modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do

Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A

primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em

minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a

associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute

como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz

de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho

De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de

sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa

unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que

denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente

adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves

outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo

Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos

qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base

os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma

expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo

podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em

um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por

ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior

representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo

intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar

um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo

de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras

de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele

identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e

47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana

primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade

caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)

47

palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias

compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees

de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4

sect 157 1897)48

A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que

continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o

incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade

peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei

da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a

respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana

O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que

parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular

essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade

na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila

Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de

48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits

are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of

feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes

a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is

the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are

two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association

based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it

is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea

of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself

resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of

which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes

what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the

ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop

general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits

of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing

can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can

crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents

things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a

cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double

mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which

denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names

and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words

are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc

48

sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade

ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada

variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o

sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute

natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do

que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada

vez maior (ROSA 2003 p 297-8)

A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em

desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria

bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas

Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade

secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf

HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao

estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a

secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita

acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o

tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute

o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade

de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que

Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute

impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se

tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda

que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo

Como aponta Hookway

Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim

poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um

tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um

limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p

273)

49

Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente

ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem

contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos

infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem

mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos

A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo

e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra

forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a

presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de

desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da

tendecircncia ao haacutebito

Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da

existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce

afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o

mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de

existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a

abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos

inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas

radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de

existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo

(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou

flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave

aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos

anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de

haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse

ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua

49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce

50

origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial

22 O ACASO

Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria

teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico

alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel

tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884

ldquoDesiacutegnio e acasordquo

() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute

explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo

esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de

modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto

(W 4 p 549 1883-4)50

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras

uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas

encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que

dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo

outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do

indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas

que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo

da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da

50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not

absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition

but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit

51

hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o

percebemos

Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um

princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a

muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade

de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de

necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de

certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade

radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado

eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento

da complexidade de forma irreversiacutevel

O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo

(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo

um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva

mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do

desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees

iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que

pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo

A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma

epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas

aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada

pelo homem Para o filoacutesofo

() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O

mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da

experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses

52

fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51

Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as

proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor

() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo

meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para

a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que

opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente

soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a

abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu

concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto

meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje

Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um

longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser

refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado

de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo

conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52

Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do

falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-

las com os fatos natildeo mentais

51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its

characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has

opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52

() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of

premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but

opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions

He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of

them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no

competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time

upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be

glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of

belief

53

O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o

falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas

sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e

indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da

mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53

A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou

crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo

acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo

Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos

acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para

Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo

cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos

elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse

universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma

decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da

natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na

passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o

autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos

Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a

Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin

(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da

mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a

variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de

53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is

never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine

of continuity is that all things so swim in continua 54

Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation

sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda

jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)

54

cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a

busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio

23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE

Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade

examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto

de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36

1892)55

Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as

mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem

determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute

mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo

aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem

cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)

o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no

determinismo nas seguintes palavras

A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer

tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de

coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute

indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as

leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir

desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou

55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law

56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu

curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57

Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs

modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou

influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36

1892)

55

agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58

A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana

carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser

colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59

que poderia muito bem ser admitida

pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais

defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente

mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60

Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de

argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um

postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar

acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua

defesa

Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das

justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e

responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir

como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect

41 1892)61

Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia

Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo

faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida

isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()

58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws

completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus

given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind

could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59

Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a

liberdade e espontaneidade 60

() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61

It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is

requisite to the validity of an inference

56

cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa

inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62

O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio

indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo

mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos

contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise

Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se

coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos

um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima

amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada

elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes

nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41

1892)63

Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada

amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que

se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos

obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras

Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes

ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo

(CP 6 sect 41 1892)64

Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido

a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1

Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em

consideraccedilatildeo

Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A

62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference

63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity

64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle

of universal causation

57

praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe

que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de

valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas

Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a

primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa

aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo

obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente

A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()

certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65

mas como a

observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se

for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na

fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo

Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada

natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que

aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja

qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza

A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor

de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria

posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades

agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser

elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as

observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas

palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais

precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP

65 () certain continuous quantities have certain exact values

58

6 sect 46 1892)66

Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a

admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso

Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor

aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser

pensado o acaso absoluto

Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em

face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na

ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural

esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser

produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47

1892)67

Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute

disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o

fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da

termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees

que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute

utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do

autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso

Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila

natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento

Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante

cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A

aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()

produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68

Mas esse tipo de

66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they

will be to show irregular departures from the law 67

() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects

such as could not pass unobserved 68

() genetic products to recognizable utilities or ends

59

adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal

modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo

aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69

Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel

Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma

Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se

especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal

afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de

atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso

Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute

ininteligiacutevel isto eacute

() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o

como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser

justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca

poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na

produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70

Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois

anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado

sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis

natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo

havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais

Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do

69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the

principle of causation 70

() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and

since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any

right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature

60

determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso

absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria

Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega

a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas

e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de

leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que

podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por

exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo

Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das

leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir

As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os

fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como

aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no

uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento

Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de

equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas

como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma

reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)

Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento

que inverta a flecha do tempo Por exemplo

Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute

com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos

absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente

nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si

proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo

(REYNOLDS 2002 p 3)

61

A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce

aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande

maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem

do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio

As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem

crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem

determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar

(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce

sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm

no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta

inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que

haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo

(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente

explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que

causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da

atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente

(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no

momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite

ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que

explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que

a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no

universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como

fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo

bloquear a investigaccedilatildeo

62

(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema

explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel

explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de

fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos

(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de

que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis

capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect

62 1892)71

Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o

suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como

parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica

cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da

diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras

pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza

Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute

poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo

(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel

(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma

inequiacutevoca

(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa

Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da

tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das

71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with

mathematical precision into considerable detail

63

uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que

desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um

suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma

vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute

sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que

ele produz consequecircncias ou permanece inerte

A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os

avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia

permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses

fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor

Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos

mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro

explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear

o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72

Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde

dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta

acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que

a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado

Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida

que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o

caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em

uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes

72 () to block the road of inquiry

64

3 A LEI

Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro

encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que

Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele

estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em

capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que

suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia

para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109

1892)73

A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias

do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias

do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim

como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo

infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74

Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a

concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve

ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um

determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo

de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no

tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu

iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do

passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75

Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da

73 How can a past idea be present

74 () through an infinitesimal interval of time

75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of

course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling

65

categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A

ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma

inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade

Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um

tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no

momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76

Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma

abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo

A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos

passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que

se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo

consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua

31 O IDEALISMO OBJETIVO

Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua

diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o

monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o

idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande

problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou

natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui

propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou

propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica

76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the

result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment

66

A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da

combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos

aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser

entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce

A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo

autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a

tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e

as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita

de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada

32 A LEI DA MENTE

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as

() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que

permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta

dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras

mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP

6 sect 104 1892)77

Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da

fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a

conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23

77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

67

1891)78

A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da

mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve

ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a

atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade

a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo

perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute

suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade

organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79

O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental

da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo

adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua

maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade

final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um

estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo

78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and

prevent all further formation of habit 79

() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

68

CAPIacuteTULO 02

O SINEQUISMO

Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)

69

Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80

uma investigaccedilatildeo sobre

a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do

pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande

importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam

verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81

Em carta a William James de 1900 Peirce

afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82

isto eacute o ponto de

apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia

Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o

interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e

filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como

afirma em 1897

() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de

continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito

e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver

a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes

os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por

exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute

logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma

delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o

todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da

loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica

(CP 3 sect 526 1897)83

80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese

81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime

importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82

() synechism which is the keystone of the arch 83

() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition

of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical

doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an

inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically

possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a

part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further

development of the conception of logical possibility

70

De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute

poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de

continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo

desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na

construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das

explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem

algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de

continuum

Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da

abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que

apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que

a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta

investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de

explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto

eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da

evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua

funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a

necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto

possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas

teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando

relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de

continuidade

71

1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA

Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum

haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas

pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para

obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma

perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto

natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse

modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica

A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e

mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho

da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)

84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que

isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85

Pois descontinuidades como pontos ou

instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo

explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute

fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do

continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos

Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-

los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade

ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos

procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana

A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento

ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no

84 Do not block the way of inquiry

85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable

72

modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram

certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam

responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A

primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86

hipoacutetese

explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de

matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao

sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do

acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter

elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende

dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando

de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo

As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente

estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia

de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua

verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e

significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7

sect 535)87

Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo

termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas

compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um

problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom

nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como

classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes

recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um

que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A

questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a

soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias

86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho

87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences

73

entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma

espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo

envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe

natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A

questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados

Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em

sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois

eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute

transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo

Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da

continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo

tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma

explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses

agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar

Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela

bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88

eacute mais claramente apresentada por Hookway na

seguinte passagem

() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo

podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais

a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza

do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter

Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um

nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando

um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos

pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina

conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos

um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel

88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes

74

para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais

que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo

(HOOKWAY 1985 p 178)

11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM

Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de

continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo

sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros

pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para

diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade

transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos

finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse

silogismo uma delas eacute a seguinte

Todo texano mata um texano

Nenhum texano eacute morto por mais que um texano

Desse modo todo texano eacute morto por um texano

A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as

demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo

que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma

coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que

excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89

Os seus

constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de

potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa

89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum

75

Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude

dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de

indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um

possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do

existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse

poder (ROSA 2003 p 223)

Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de

ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na

seguinte passagem

Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser

individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa

indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode

haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo

consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um

qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que

o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto

o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer

conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute

composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees

gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo

nosso)90

Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a

curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem

90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

76

uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta

cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto

ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses

estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa

ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado

manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago

na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo

permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a

existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida

Os infinitesimais91

surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes

do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92

e

eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo

for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre

qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha

sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do

continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os

infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do

real Peirce toma o exemplo do dado e afirma

Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade

91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute

menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo

XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos

trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em

funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute

considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um

trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de

nossa parte 92

O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to

trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are

continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)

77

bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o

ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do

que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e

formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma

de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o

haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que

tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como

que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute

necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que

afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute

de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect

664 1910)93

Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos

da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo

que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da

passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir

como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o

Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade

como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos

A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma

ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94

A resposta por ele proposta eacute de que

devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma

lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do

passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem

93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might

have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the

dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul

and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and

upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to

define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would

bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of

the die consists in such behaviour 94

How can a past idea be present

78

uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar

conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95

Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser

consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes

infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um

instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do

fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM

3 p 126)96

2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM

A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que

busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma

parte dos criacuteticos97

insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo

coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema

Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de

Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em

oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas

que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica

Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a

necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma

95 () through an infinitesimal interval of time

96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the

present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97

Por exemplo GALLIE 1952

79

Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado

desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha

por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada

pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais

deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento

humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da

ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido

bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade

aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria

filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o

estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de

resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98

A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer

uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais

duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra

sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre

ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica

Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce

que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma

semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS

620 p 09)

A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos

aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum

98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full

import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who

wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human

knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect

each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of

the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study

of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)

80

topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria

expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos

princiacutepios de desenvolvimento do continuum real

A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos

parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em

sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que

nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio

desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99

Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo

refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas

motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do

desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees

de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914

Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer

uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer

quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100

preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano

(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)

99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de

continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100

Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum

denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas

e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente

compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de

coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador

81

21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO

O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre

as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os

problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele

tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101

essa caracteriacutestica ficou conhecida na

literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce

leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de

Cantor

Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a

necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de

uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro

incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em

oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de

apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute

determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo

raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da

cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e

que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele

Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e

considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a

vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo

comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia

Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo

que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo

101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense

82

objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como

representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102

Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve

existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se

em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira

seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma

outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita

divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se

tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto

que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria

Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873

Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas

atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O

filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias

segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por

processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103

Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais

detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais

uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio

dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104

102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the

liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object

quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the

cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two

such lines represent that they are two different cognitions 103

First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous

processes 104

In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another

or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established

83

Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar

agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo

da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a

implicaccedilatildeo entre ideias105

Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo

formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo

mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se

apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa

propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o

continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que

possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao

estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema

mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante

22 PERIacuteODO CANTORIANO

Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade

poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em

propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca

Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma

anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com

aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente

adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas

105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa

de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os

caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento

seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no

processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese

84

do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma

conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar

com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre

continuidade (MOORE 2007 p 434)

Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade

deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a

definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a

tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do

continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas

propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade

(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia

agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106

ou ainda que a

ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107

Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um

limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108

ou ainda

que

A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do

seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria

infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum

conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma

seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP

6 sect 123)109

106 property of infinite intermediety or divisibility

107 The Kanticity is having a point between any two points

108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system

109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every

endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in

using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both

of the limits

85

Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce

jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo

escreve

[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou

outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de

tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode

mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada

instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo

eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um

exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes

tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato

que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema

dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a

de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de

pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect

164 1889)110

Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum

que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia

evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo

continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a

beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na

linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse

110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that

of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move

from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This

statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old

definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact

that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The

less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --

words which must be understood in special senses

86

assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect

171 1897)111

23 PERIacuteODO KANTIANO112

Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por

Kant113

de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168

1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo

que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma

abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees

Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos

pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da

linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114

Peirce afirma pois que continuidade eacute

totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto

maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum

As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115

expressavam o seu desacordo com

uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e

descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116

Em termos mais

111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of

continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the

entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112

Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo

de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113

Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado

era somente o de infinita divisibilidade 114

(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there

is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115

No texto A lei da mente 116

It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is

87

compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e

Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias

partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de

natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as

partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de

1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova

elaboraccedilatildeo

24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO

Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma

coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo

pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo

tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6

sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma

coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de

alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as

partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642

1908)117

Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes

devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo

uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de

tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave

definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das

pequenas partes temporais

manifestly non-metrical 117

(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole

88

Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para

demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso

que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo

Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo

fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect

642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou

da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja

vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)

Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento

de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu

pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees

cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final

se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi

indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de

generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo

modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo

capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final

89

CAPIacuteTULO 03

A EVOLUCcedilAtildeO

Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the

doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP

6 sect 554 1887)

90

Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se

efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana

Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A

negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser

sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de

fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas

tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu

origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da

perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz

Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)

1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA

Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva

epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a

evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees

oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua

adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o

estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como

candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito

anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo

Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado

que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa

(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos

eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos

desperta o menor interesse Peirce diz

91

Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade

definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que

deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da

experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado

de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute

regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo

correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas

quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189

1901)118

Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito

que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade

motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A

maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem

() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se

fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado

aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de

ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute

tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197

1901)119

O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso

ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese

118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites

any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and

regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why

there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which

I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that

119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true

before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at

least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical

consequence necessary or probable

92

que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses

segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao

fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido

Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo

necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o

caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das

explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese

evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o

uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma

explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como

aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de

explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para

compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo

(Hookway 1985 p 267-68)

Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada

como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis

entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da

seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das

semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees

De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria

capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele

afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em

geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120

em outro momento afirma que

Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida

que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei

120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them

results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely

93

ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia

acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como

eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121

Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que

A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e

corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo

cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel

afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a

buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)

Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar

o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e

agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o

resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se

impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A

discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e

regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus

Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce

identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante

para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante

crescimento de complexidade

A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo

atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese

121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past

not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was

always as rigidly necessary as it is now

94

evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as

variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos

aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo

de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de

investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais

autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da

razoabilidade concreta no universo

2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX

Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na

insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados

por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do

mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo

podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista

dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo

como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das

explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute

mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin

que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda

metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do

de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora

que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu

sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de

coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo

teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o

tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides

95

tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122

O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem

mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais

geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que

levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos

paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel

A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da

abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser

explicada Diz Peirce

Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma

caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos

limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave

lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e

diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo

pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa

variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar

conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade

e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa

espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na

morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123

Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta

da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados

dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar

esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de

122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important

philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist

123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since

96

se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que

considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute

interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na

natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124

A

fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos

1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com

desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos

2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves

moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e

3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP

1 sect 193 1903)

Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior

importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua

insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que

possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma

() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente

daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo

muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso

Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as

forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP

1 sect 347 1903)125

124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity

and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say

how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions

97

Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos

irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar

apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na

teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de

atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel

fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o

crescimento do universo como um todo

A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que

ficou conhecido como a lei da vis viva126

que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio

segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na

vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768

ca 1889)127

As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos

corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema

inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo

forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa

Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos

implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas

ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia

unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas

precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo

oposta (CD p 2319 ca 1889)128

126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como

sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo

de partiacuteculas

127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system

depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental

forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative

forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but

opposite in direction

98

A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo

conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos

sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas

fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto

conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma

direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da

vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma

Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da

mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os

sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)

As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo

bem indicadas por Peirce na seguinte passagem

Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de

energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o

preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo

determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa

sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em

qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes

em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente

na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129

ou ainda

129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical

universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent

does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the

velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were

Everything that had happened would happen again in reverse order

99

Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes

quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de

energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas

natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse

modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12

m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)

2 unicamente como o

quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele

da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo

indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2

p 481)130

O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o

universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se

pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas

direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta

aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma

avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios

momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais

fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode

igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131

Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em

algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio

A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a

maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu

respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees

experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau

130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of

the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon

nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the

analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)

2 only as squared

Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two

directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing

that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance

100

extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a

atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma

aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua

tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a

conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam

por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os

ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees

extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de

que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132

O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo

emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos

fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles

que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de

irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que

(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa

atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de

Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na

linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o

nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a

resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das

cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas

desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a

experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133

132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural

philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential

verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard

to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation

to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of

the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for

example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of

energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be

absurd to doubt

133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that

is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be

reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion

resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids

() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their

mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals

101

Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do

caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo

como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo

isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora

como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce

A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot

(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a

tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o

calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de

que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo

encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a

direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds

Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos

irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell

Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria

da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma

abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O

tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do

vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p

42)

Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher

todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas

uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das

probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das

partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior

do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o

102

compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo

determinadas pelo acaso

Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos

propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of

chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais

sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134

Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo

paraacutegrafo

Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma

variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a

teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as

peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir

algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia

estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma

coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de

accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo

os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135

Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo

denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas

principais

a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para

a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final

134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of

chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science

135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were

not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected

map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of

energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to

show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the

means of proving its presence

103

b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)

Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que

se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar

uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final

(cf CP 7 sect 471 1898)

Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo

que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como

criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo

isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo

dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em

funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da

interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a

irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber

este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final

Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute

uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria

termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece

ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos

de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que

compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com

a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento

da ciecircncia

104

3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO

As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que

tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136

isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos

encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira

intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da

Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o

ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte

Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha

um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo

orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em

atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes

de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias

propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a

reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o

desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana

ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia

assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a

destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a

taxa de mortalidade

Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas

nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua

vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a

interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na

136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary

loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88

e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema

105

medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar

lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce

afirma

Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute

evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a

evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP

6 sect 16 1891)137

E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de

acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face

dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees

que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash

como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo

individual mas respostas a mudanccedilas ambientais

Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos

parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da

biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator

na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente

natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em

geral (CP 6 sect 17 1891)138

137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance

and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort

138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the

broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the

historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the

process of evolution of the universe in general

106

4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO

Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no

interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto

eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos

Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos dos mais variados campos

A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de

explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu

Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e

concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma

darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute

bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um

determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de

elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas

seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-

se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas

almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista

A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de

nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que

mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139

Embora esse tipo de evoluccedilatildeo

natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute

o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O

exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu

no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)

139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known

facts as more and more observations came to be collected

107

Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o

impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar

sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140

Como exemplo o autor indica a descoberta dos

micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -

1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos

observacionais

5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA

Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos

acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de

aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo

Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita

denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada

denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da

causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo

ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica

proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por

cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica

corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana

Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo

Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa

possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de

140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning

about the observations

108

maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas

degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)

Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui

contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o

fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu

lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no

qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados

ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da

mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304

1893)141

O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na

medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada

perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o

fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142

Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o

hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava

mirando

O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando

submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se

necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja

uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma

Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas

as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143

O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo

141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind

142 () living freedom is practically omitted from its method

143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits

109

que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144

Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145

Eacute a causa final

acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender

essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o

sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)146

6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO

Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa

final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985

p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o

define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e

a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um

contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta

Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do

mundo (cf CP 6 sect 101 1902)

144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus

in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character

146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

110

A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser

in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce

expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa

desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo

Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia

possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos

adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce

O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias

mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente

cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas

por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que

a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da

mente () (CP 6 sect 307 1893)147

Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio

primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo

(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que

() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual

devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que

devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de

tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal

modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de

147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as

in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate

attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is

by virtue of the continuity of mind ()

111

regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148

Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se

autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao

monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente

um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as

leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149

O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das

leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o

princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso

em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos

e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150

Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para

Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na

mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo

7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE

No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem

tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos

148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as

far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so

that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high

degree of mechanical regularity or routine

149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of

matter a special result of the laws of mind

150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance

tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and

the cosmos of order and law

112

estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por

meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus

estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e

isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect

433 1905)151

Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila

de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por

trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs

modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a

mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute

auxiliado pela disposiccedilatildeo

A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]

para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um

haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152

A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar

com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre

acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados

satildeo estabelecidos Peirce indica que

O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o

sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo

satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o

tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo

mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute

repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153

151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the

pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general

152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit

and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an

attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the

113

Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande

disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais

plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154

pois apresenta em

maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade

desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de

tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional

Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa

que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a

qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O

objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa

desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em

outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer

outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras

ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se

subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155

Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie

de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o

autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156

Cabe agrave

loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191

1903)

Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao

kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently

matured agent and the evil is the repulsive to the same

154 The most plastic of all things is the human mind ()

155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the

development of concrete reasonableness ()

156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-

control is a perfect mirror of ethical self-control

114

cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo

claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho

intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de

obter a verdade

A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada

no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada

eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode

ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo

assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo

ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto

podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar

nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o

mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na

loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute

seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()

(CP 4 sect 615 1903)157

157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is

going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more

satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness

is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it

Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by

giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In

logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods

as must develop knowledge the most speedily ()

115

CAPIacuteTULO 04

A ABDUCcedilAtildeO

Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of

heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you

and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a

conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with

experiments (CP 6 sect 461 1908)

116

1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS

Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou

natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE

(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985

entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a

quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia

que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas

ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua

reflexatildeo

A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus

primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica

da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com

relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-

relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica

como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes

dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio

autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se

divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica

Criacutetica e Metodecircutica

A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute

neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica

tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata

dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez

compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua

abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do

uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado

117

Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da

perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da

filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de

um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo

Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento

seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos

problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados

com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus

textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte

de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta

aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por

essas mesmas concepccedilotildees

Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute

essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais

para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais

elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave

abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute

em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e

se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua

melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois

eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do

que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160

A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado

158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a

longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que

todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que

as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159

Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160

From this definition pragmatism is scarce more than a corollary

118

de duacutevida autecircntica161

que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e

verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e

em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que

ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se

que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos

incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma

privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a

utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374

1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de

um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles

produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um

homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)162

Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do

tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711

1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como

autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e

inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um

processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o

futuro

161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo

desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a

natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta

maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de

vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um

conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162

() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit

119

Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral

refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa

coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo

pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser

eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163

Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas

vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se

necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo

passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de

maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo

desse modo o autocontrole

Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute

indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164

Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma

caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador

principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a

questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com

aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe

as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas

podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo

O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as

investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as

primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP

5 sect 116)165

uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como

163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past

contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot

be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164

() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165

() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question

120

Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade

de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de

cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira

Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se

forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela

de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma

proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um

percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo

(CP 5 sect 115 1903)166

Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito

que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para

justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo

perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo

pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma

boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute

fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo

da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida

em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o

suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela

realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente

nesse processo

Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do

senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN

166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to

me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of

formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand

is an image or moving picture or other exhibition

121

1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas

comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para

penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho

efetivo (ver REILLY 1970)

Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais

meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele

descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer

naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter

crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma

duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa

muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem

agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas

assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo

incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por

criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na

tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf

CP 5 sect 377 1877)

O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por

levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo

toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo

custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo

afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou

tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a

posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo

basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos

das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)

O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz

122

Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel

que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma

questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)

Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da

tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao

governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel

(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos

terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas

estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a

experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)

Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167

cabe a

Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer

crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas

crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por

alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168

e

acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o

pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169

O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia

estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo

processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A

vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de

investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se

fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa

refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos

167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana

168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but

by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169

But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real

123

desse meacutetodo Peirce afirma que

Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das

nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis

regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam

nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo

podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente

satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido

o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect

384 1877)170

A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos

demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita

suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem

que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete

com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute

resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel

natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o

conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer

elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom

funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e

racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171

Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser

[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo

ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e

deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172

Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma

170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect

our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects

yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and

any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171

() rationalization and of rationalization by us 172

That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country

124

hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A

aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos

produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os

mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser

compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia

realizaacutevel

Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de

intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao

menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do

conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo

modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce

buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e

posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de

outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo

de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta

teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que

Peirce denominou de abduccedilatildeo174

No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do

universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce

desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou

ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)175

Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas

ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173

Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174

Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175

() the inferential process involves the formation of a habit

125

anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de

trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a

deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo

A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em

muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis

esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no

interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa

teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja

como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da

formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo

de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio

para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos

perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns

comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica

com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica

que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade

dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo

Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute

encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade

de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam

aproximar-se da verdade

A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da

epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees

para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os

juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira

126

() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem

qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas

primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um

caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem

absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176

Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico

polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o

fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute

por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo

tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e

compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se

as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se

acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)

A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute

como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo

geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de

natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a

principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se

natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como

entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena

A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem

o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega

Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte

176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or

in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive

inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism

127

integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as

iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais

faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que

possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)

A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes

contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a

grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas

tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que

cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa

claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o

processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma

ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente

desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177

Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como

um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo

atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia

como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se

passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo

quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma

forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a

proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O

argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira

entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie

Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que

noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves

177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces

any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary

consequences of a pure hypothesis

128

conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178

e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que

provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect

54 1902)179

Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre

inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz

Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para

indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de

nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem

criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar

natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que

usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma

razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)

De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a

abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma

inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo

uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem

2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO

Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma

maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se

178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a

conclusion 179

Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an

entirely different construction from the thinking process

129

novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo

A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o

raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou

falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo

igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua

justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo

possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo

deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de

uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com

os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer

a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145

1903)180

No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma

descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os

seguintes silogismos

Deduccedilatildeo

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth

or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction

is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the

investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error

The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it

measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can

deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction

130

Induccedilatildeo

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Hipoacutetese

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria

silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo

ldquoObserva-se um fato surpreendente C

Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente

Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181

Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem

comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo

possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena

181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to

suspect that A is true

131

consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em

que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou

plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem

posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo

com os fatos por meio da induccedilatildeo

Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo

estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo

deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas

indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz

ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os

caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP

5 sect 173 1903)183

O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos

sinteacuteticos184

em 1868 o autor afirma

De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os

juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os

juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute

absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a

particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia

(CP 5 sect 348 1868)185

182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well

be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include

abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class

in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183

However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-

controlled and critical logic 184

Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185

According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But

antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how

synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one

will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy

132

O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema

bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a

partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que

no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta

questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade

dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo

encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de

hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do

sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por

meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do

nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de

hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo

conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo

implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia

e sua epistemologia

A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima

Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos

de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do

tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se

altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem

loacutegica legada por Aristoacuteteles

Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos

argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste

depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p

31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo

de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais

tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo

133

Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita

entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que

compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia

dedutiva186

dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas

e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a

elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico

Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que

realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada

pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja

perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na

fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre

qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as

suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o

seguinte comentaacuterio

Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo

verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de

um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de

acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente

resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo

do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194

1878)187

Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese

186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century

Dictionary 187

By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we

conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws

something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter

from effect to cause The former classifies the latter explains

134

fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz

referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que

enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em

um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua

cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo

honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se

encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em

algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos

e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que

ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos

Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina

o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses

Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um

outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo

sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito

seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute

encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do

escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma

hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que

duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por

acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes

termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em

um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao

objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188

O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso

envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade

grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima

188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the

characters of that class belong to the object in question

135

apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que

correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito

na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente

diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira

ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos

similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p

198)189

Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada

neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce

ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de

novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que

no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o

nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar

e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores

Em um texto de 1901 lemos

Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas

ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes

de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas

confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a

induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)

como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190

189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas

hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190

Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to

distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of

these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together

(often mixed also with deduction) as a simple argument

136

No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo

seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas

aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem

mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas

eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se

verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira

razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um

haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a

hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta

esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia

ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o

resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191

A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do

pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa

distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam

segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos

leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de

descobrir

Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o

primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A

experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe

conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual

for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192

Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser

considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu

sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia

191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar

musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192

All knowledge whatever comes from observation

137

do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo

inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees

apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente

atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e

acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou

pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo

cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193

Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que

alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o

curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador

A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto

externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute

sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter

consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo

A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta

explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende

para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste

Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo

deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria

eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma

vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a

necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder

agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome

induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original

empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por

193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great

effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain

grade of reality or independence of our cognitive exertion

138

meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo

conformes agrave experiecircncia

As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia

somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por

meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou

agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a

investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de

autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o

investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este

estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se

verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese

A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem

testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da

economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo

desempenha neste estaacutegio Peirce diz

Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro

esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes

tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode

fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo

se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194

194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it

remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can

stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any

rational way

139

A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf

CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto

surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse

das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que

devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica

tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses

que Peirce estabelece satildeo

1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel

2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos

3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo

do princiacutepio de economia da pesquisa

A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um

certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de

uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma

prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195

Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma

teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do

diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir

uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf

CHAUVIREacute 2003 p 84)

E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes

devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou

esforccedilo em seus testes

195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted

140

CAPIacuteTULO 05

A CAUSALIDADE FINAL

Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly

intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the

contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of

conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)

141

Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas

agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas

e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo

da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original

Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central

que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte

proposto no todo desta tese

Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da

causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de

esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial

do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de

vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo

do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A

teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b

p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196

eacute visto pelo

filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma

() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor

de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de

absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS

478)197

Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no

seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)

196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197

() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and

nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her

haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)

142

afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute

mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade

junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas

eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como

acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas

explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo

da situaccedilatildeo atual

() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor

das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior

das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na

barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo

os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a

suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito

incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem

mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a

compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos

Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa

prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado

como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo

filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer

incompreensiacutevel

Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os

fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro

descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo

da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a

explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a

proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute

o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo

143

(HULSWIT 1996 P 183)198

Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o

tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada

e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua

inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das

descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos

1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL

Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199

Peirce daacute tanto agrave causalidade

final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia

certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira

como foi definida por Aristoacuteteles

O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na

declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes

ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a

verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar

fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem

consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo

particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado

geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa

final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o

resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200

198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997

199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996

200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all

causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the

truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a

general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this

or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one

time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is

to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma

144

Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos

A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela

condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa

situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual

for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente

Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um

tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente

nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no

momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de

um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave

estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a

bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer

relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute

verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo

geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e

compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201

Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de

maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos

comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute

realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da

afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica

peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em

relevo essas diferenccedilas 201

Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a

compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general

character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the

wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it

but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it

is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient

causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient

causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the

bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force

is compulsion and compulsion is hic et nunc

145

Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes

compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo

chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero

chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo

viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do

que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um

nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202

A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado

com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo

experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos

de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo

peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico

desempenhado pela causa final no sistema peirceano

Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a

causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela

pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins

Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a

sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A

fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo

elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito

maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados

Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205

1902)203

Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo

autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a

202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of

causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling

for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient

causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so

much as chaos without final causation it is blank nothing 203

A purpose is an operative desire

146

atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo

reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica

Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao

pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como

um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio

de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos

para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com

que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se

tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as

leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204

Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta

tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente

antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que

isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e

marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar

que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz

Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute

alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute

assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana

satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205

Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza

tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa

204 This is to say we guess out the laws bit by bit

205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which

the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human

convenience are witness

147

caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia

a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206

Como

afirma Hulswit

() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave

experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se

elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e

nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um

problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p

184)

A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser

considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida

como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade

humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica

que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash

uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo

O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que

naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o

autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em

evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos

detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral

Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar

dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro

categorial

Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de

206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations

148

causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo

presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo

aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a

torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos

de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e

inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua

atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar

exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um

curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)

Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final

que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer

evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere

categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e

concretos

Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute

afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo

eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas

eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o

desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma

classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto

quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim

continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto

definido e concreto

Em segundo lugar207

embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa

influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e

207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer

tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which

may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for

149

futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo

cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas

trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina

natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de

Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia

resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui

o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra

coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo

transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela

mediaccedilatildeo

Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos

um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a

dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema

perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado

teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de

estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo

poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto

expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como

condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes

mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante

processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da

causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos

processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a

originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas

palavras de Peirce

future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a

uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos

de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente

150

Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas

uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem

Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser

in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos

fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo

bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do

futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208

O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva

de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas

tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada

Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou

inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em

suas palavras

Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute

realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua

realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute

realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica

(NEM 4 p 66 1902)209

208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension

of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears

in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a

quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of

something else 209

By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that

if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about

or approached by an independent line of mechanical causation

151

2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE

A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela

restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal

como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a

qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a

ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da

nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do

mecanicismo e a pura espontaneidade do caos

Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de

uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim

chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica

claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo

Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica

sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas

satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam

em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo

de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para

aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia

em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas

eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210

As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas

caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita

aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira

210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due

to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in

one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is

too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state

The other character of non-conservative action is that they are irreversible

152

controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra

maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as

causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para

a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto

Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo

perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou

daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus

veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a

face da terra (CP 1 sect 217 1902)211

Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia

a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente

apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que

a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212

Eacute a causa final

diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa

atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual

sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)213

Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce

211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are

not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and

having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212

Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character 213

What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

153

apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa

distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220

1902)214

Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as

propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido

por Peirce

Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado

Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos

livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com

os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira

Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista

cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um

espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que

ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor

definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente

natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como

as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa

final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215

A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que

jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo

enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)

Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo

crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente

inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de

214 A man is a wave but not a vortex

215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels

entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary

canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so

that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a

singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now

the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the

object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final

causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account

154

aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das

formas diferenciadas Como indica o autor

Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de

aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser

descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟

(CP 6 sect 23 1891)216

A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um

determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em

funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das

hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou

estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se

manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute

presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural

como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma

montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo

passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou

uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira

esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa

final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes

cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela

accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)

Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal

216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked

by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the

general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

155

criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente

ressaltando a sua complementaridade

A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e

todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O

tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser

imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele

exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu

punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente

destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria

eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter

hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217

A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos

naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais

eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do

xerife e do tribunal

A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal

sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum

cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial

que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia

estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas

permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218

217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The

court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no

whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if

there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess

efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies

potential regularity 218

A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament

might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who

unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the

perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen

156

A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo

as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter

Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro

brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em

referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem

sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade

eficiente e final (POTTER 1997 p114)

Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos

trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de

tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira

existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em

confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser

consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que

O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o

dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a

concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam

cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o

menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo

significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado

deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o

mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os

fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como

pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente

separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute

caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais

e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de

liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam

teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219

219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to

exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or

that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate

meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated

chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and

157

Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que

os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta

ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220

A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a

chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente

em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e

que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro

texto

Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e

onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas

natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem

gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e

intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159

1897)221

A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese

natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em

toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das

restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao

descrever a tessitura da realidade

Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica

do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos

psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely

separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental

and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint

which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220

Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221

It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients

imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell

the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of

nature

158

limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as

grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade

do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser

compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel

variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode

minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da

espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia

desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-

na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece

facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222

Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a

continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem

introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o

acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que

a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada

O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser

individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado

contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um

agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas

condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos

distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado

uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado

eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude

possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo

conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que

permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223

222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my

view appears to me not easily controverted 223

That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

159

A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de

criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos

abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de

um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute

foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de

algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos

concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo

3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO

Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua

atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo

peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo

da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede

Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos nos mais variados campos

A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de

1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento

(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado

pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

160

esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN

1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um

indiviacuteduo Peirce afirma que

() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade

esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-

determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A

ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma

medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224

Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade

com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que

caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse

inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a

proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em

crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento

da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos

teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes

sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais

variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a

possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de

desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final

desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade

imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT

1994 p 406)

224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere

purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea

living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now

conscious

161

Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo

como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu

processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das

limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo

de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman

O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da

complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do

tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento

uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir

(HAUSMAN 1998 p 630)

A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada

por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas

O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras

de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si

cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela

virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225

Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde

a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo

possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que

aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar

Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees

em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute

completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect

225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is

divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind

162

288 1893)226

Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o

universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os

germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289

1893)227

Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a

hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por

sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar

dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel

por si mesmo

O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos

individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter

sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de

incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas

ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na

medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida

nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim

entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de

mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as

cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido

lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute

em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve

lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute

acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da

Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do

que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja

admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo

compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob

esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na

operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel

sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar

que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os

meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP

1 sect 615 1903)228

226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and

drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula

we call the Golden rule 227

() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228

The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of

Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of

growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will

make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully

163

Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo

de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica

O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem

descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em

si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo

poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto

a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos

indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou

b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em

simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a

atratividade da ideia ou

c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de

seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si

(POTTER 1997 p 187)

4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA

Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas

principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos

em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi

manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of

more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including

pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment

that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the

year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how

one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing

whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we

can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation

of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to

us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to

follow such methods as must develop knowledge the most speedily

164

dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece

ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos

presentes em ambas as noccedilotildees

Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de

causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute

bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de

um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as

ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua

obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as

concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade

Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro

da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos

interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes

questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por

necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera

tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas

acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por

produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais

necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias

independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as

coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem

que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo

(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que

exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)

O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que

acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na

parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e

165

constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm

a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente

construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas

inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de

modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que

ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo

devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002

200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de

acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro

causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento

Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute

bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)

A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles

(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e

afirma

A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes

integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa

material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa

eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute

chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo

de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute

chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo

consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como

o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229

229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its

matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum

is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute

the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is

hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics

the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)

166

Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente

antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e

o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta

forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute

compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo

propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A

causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa

Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder

causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas

potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila

algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim

Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a

consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as

instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa

eficiente do acaso e da causa final

Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma

causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra

Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou

objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo

atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer

processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida

com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que

no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de

novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso

Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo

peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do

167

acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana

de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final

5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL

O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos

do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo

peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O

problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do

mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade

final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf

HULSWIT 1997)

Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no

texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar

com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja

de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a

questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a

resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um

caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-

lo em grupos distintos

Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do

mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria

classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230

Ao tratar da classificaccedilatildeo

natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo

230 () desire creates classes and extremely broad classes

168

naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes

eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista

arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda

natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute

definido por Peirce da seguinte maneira

() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo

consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas

ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o

nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O

nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das

palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso

mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231

Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo

sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute

vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo

vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo

Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra

possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel

231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects

merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being

of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that

they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our

everyday world consists of

169

CONCLUSAtildeO

() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts

comprehensible (CP 8 sect 168 1903)

170

A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o

horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias

cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada

sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da

investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas

formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para

constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das

categorias faneroscoacutepicas232

reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e

terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o

exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um

processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da

lei da mente e da causalidade final

Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado

de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica

que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um

continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o

filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra

(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo

a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo

A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da

reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de

infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui

pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais

continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o

tempo e o espaccedilo

232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia

171

O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O

processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e

liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa

por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei

da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que

natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela

oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por

meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer

pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o

aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se

impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de

abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem

Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da

mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de

qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos

fenocircmenos e marcante em outros

A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios

incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute

uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse

tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor

isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas

reveladas pela experiecircncia

Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se

verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos

irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que

tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese

172

Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da

cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou

essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma

conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no

capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o

regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de

bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos

Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua

investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser

refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O

primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no

entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses

equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma

explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila

para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a

serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela

mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

mostrou-se uma ilusatildeo

A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito

claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo

eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor

Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo

poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A

efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um

instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a

conduta adequada para a sobrevivecircncia

173

A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo

adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade

de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo

chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista

natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do

universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo

evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas

Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a

desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um

princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica

Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP

1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)

A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por

meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do

estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito

mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro

suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da

vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente

determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso

cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33

1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde

agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado

final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce

como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias

peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como

inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o

infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a

tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do

174

mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz

ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem

175

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Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por

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pesquisa desde que citada a fonte

Vicentini Max Rogeacuterio

O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders

Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-

182 f

Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda

1 Cosmologia

Nome VICENTINI Max Rogeacuterio

Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

DEDICATOacuteRIA

Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam

agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini

e aos amigos presentes e ausentes

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha

orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha

compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem

como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash

Denis Diderot e agrave equipe Sphere

Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees

Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos

professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e

aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese

Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a

realizaccedilatildeo deste trabalho

Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos

integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana

Belmonte

Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos

juntos

Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei

Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou

ambos

RESUMO

VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011

Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce

particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que

faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos

naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as

caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo

arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode

ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum

que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e

lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo

evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo

finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees

restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo

Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia

ABSTRACT

VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce

2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao

Paulo Sao Paulo 2011

This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the

relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance

determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of

explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his

thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the

concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of

Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological

categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the

cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The

law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of

phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however

exhausting it

Keywords cosmology synechism abduction teleology

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo

W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de

composiccedilatildeo

CN x p y

MS x

-

-

Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)

Manuscritos nuacutemero do manuscrito

EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y

HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x

p y

NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns

estudiosos usam NE)

CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO 11

CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28

11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29

12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38

121 O NADA 41

122 O ACASO 50

123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54

13 A LEI 64

131 O IDEALISMO OBJETIVO 65

132 A LEI DA MENTE 66

CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68

21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71

211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74

22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78

221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81

222 PERIacuteODO CANTORIANO 83

223 PERIacuteODO KANTIANO 86

CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89

31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90

32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94

33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104

34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106

35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107

36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109

37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111

CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115

41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116

42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128

CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140

51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143

52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151

53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159

54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163

55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167

CONCLUSAtildeO 169

REFEREcircNCIAS 175

11

INTRODUCcedilAtildeO

Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of

mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be

considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the

imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two

ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle

force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly

prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)

12

A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e

abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e

poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em

Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce

foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu

fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber

Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos

pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos

existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e

sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos

dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande

contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento

Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista

entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua

eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em

casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard

desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via

nele o potencial de um gecircnio

Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879

mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras

Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel

(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo

quarenta e quatro anos

1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a

base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e

da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891

13

O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas

entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes

estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a

continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce

ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163

1897)3

Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo

O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final

desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava

determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos

sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a

sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de

natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da

falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento

quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes

aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como

veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se

lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui

lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos

Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual

uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste

na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais

variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande

auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar

alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada

2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema

filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy

14

pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo

significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos

detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento

da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a

realizaccedilatildeo da pesquisa

Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo

inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um

ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a

compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada

natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se

nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave

determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o

fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da

experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias

Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do

saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do

escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima

que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273

1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que

para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a

toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para

tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio

do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu

alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais

possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5

sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese

sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a

abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor

15

O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia

parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento

peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus

escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos

daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE

1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida

de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses

amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de

cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos

axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas

apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito

acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete

suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo

haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se

na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo

de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente

aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que

como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos

Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo

eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas

para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o

projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com

Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta

dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda

atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros

passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da

accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo

temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel

fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo

16

pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e

TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis

e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e

resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos

Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o

mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O

elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer

avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do

funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou

tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a

descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva

natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia

satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o

desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()

minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes

agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos

naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4

Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se

aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial

Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect

269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade

da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante

nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos

desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)

4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion

that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf SPEDDING 1989 p 571)

17

afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se

considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse

modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia

na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar

Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto

inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista

do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a

causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da

cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no

futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de

determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p

200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a

concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida

Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas

podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por

Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais

ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos

dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the

Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a

causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo

caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7

Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um

seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser

6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation

7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is

worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank

nothing

18

totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo

original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que

desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido

realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um

papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem

eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos

naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a

epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia

O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada

por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE

1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a

atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese

que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo

de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar

uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect

538 1902)

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto

central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la

expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns

princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto

inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional

para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias

satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo

racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua

8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce

incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e

Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)

19

postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito

de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A

hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de

possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a

necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser

explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido

Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual

dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia

possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees

natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)

como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo

A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a

passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro

continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse

capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo

No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim

como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP

6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a

inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como

aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo

fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p

630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas

consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma

quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo

princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das

9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha

exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser

classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica

20

principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10

e o sinequismo O problema eacute

colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o

crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia

cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo

A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa

explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como

inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no

seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e

consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso

indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os

pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira

de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da

mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e

matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica

O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute

algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da

atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de

hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio

metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior

nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina

metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser

substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria

preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie

descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11

agravequela que afirma a existecircncia

de descontinuidades radicais

10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza

(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11

() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities

21

A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre

da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute

permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas

expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para

designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a

inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no

acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos

fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo

responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades

A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave

abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86

1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da

evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute

imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos

componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia

evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de

conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de

novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou

seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los

como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da

liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral

produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este

aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que

A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios

aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo

compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem

tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da

identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se

22

potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)

Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute

elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a

relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do

princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro

ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por

Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)

Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese

evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das

explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto

subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de

produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na

medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros

conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um

fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave

inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das

explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute

utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua

formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce

soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)

A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e

segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo

incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se

assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo

seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo

23

original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no

tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12

lhes

dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva

aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser

compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)

Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP

1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o

raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o

cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo

processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das

transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a

compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees

de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as

questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409

1878)

O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo

entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual

Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo

indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha

A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor

verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do

processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13

12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei

na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13

Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence

This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio

sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation

24

Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo

indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um

refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a

qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo

constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim

levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf

SKAGESTAD 1981)

A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o

cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o

ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de

regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14

Peirce afirma que a

atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou

palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir

animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para

testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria

das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis

(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o

resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva

para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da

inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que

poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)

Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas

requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua

concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se

14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)

25

trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana

Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da

causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a

concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf

CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a

necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto

ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado

pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15

Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja

realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do

mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza

a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento

cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e

comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)

Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos

da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma

espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se

considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect

204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes

da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser

buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na

experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que

enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)

Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel

15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave

causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na

discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana

26

mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas

teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia

A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da

realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total

abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce

para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o

mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos

com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria

fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)

Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a

doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o

sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o

idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis

fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16

O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo

se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto

desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da

mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia

Retomemos as palavras do proacuteprio autor

A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas

da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que

pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir

haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente

segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo

mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto

por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade

eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute

16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits

becoming physical laws

27

igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP

6 sect 101 1902)17

As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como

etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o

processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um

instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis

17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other

laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this

same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in

the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true

to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of

efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully

intelligent

28

CAPIacuteTULO 01

A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA

The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in

the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very

development of Reason (CP 1 sect 615 1903)

29

Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma

discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da

explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel

central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica

poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo

do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse

projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de

continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de

continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos

moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo

peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo

Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua

metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma

cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela

evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua

hipoacutetese cosmoloacutegica

1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO

Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo

com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da

verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP

5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se

ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida

pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto

30

peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer

Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce

analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O

principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da

afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias

Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos

condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo

representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras

enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de

premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo

mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses

textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e

faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las

(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as

quatro incapacidades humanas

1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute

derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico

2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente

por cogniccedilotildees preacutevias

3 Natildeo temos poder de pensar sem signos

4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18

18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical

reasoning from our knowledge of external facts

2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions

3 We have no power of thinking without signs

4 We have no conception of the absolutely incognizable

31

Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento

intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira

() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e

consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por

uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em

primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a

cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26

1868)19

Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20

natildeo

parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a

caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem

inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a

Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo

tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas

tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente

ldquopragmaticismordquo

Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um

primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de

maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21

um outro caminho

para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum

postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples

19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the

cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition

then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a

cognition only exists so far as it is known 20

Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa

respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21

Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin

32

para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio

evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de

fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo

representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos

uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute

a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa

acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a

evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo

O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral

Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por

objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a

existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que

podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a

incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que

eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto

de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)

Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se

como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram

daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua

eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento

para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente

Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real

Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes

Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era

necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de

22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias

meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo

aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo

pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista

33

papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de

tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo

estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e

sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23

Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a

surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura

encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no

consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de

abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo

imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder

deduzir o particular a partir do universal dadordquo

A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute

investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do

filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do

sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e

por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da

loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo

O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio

regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave

consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio

segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como

explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24

23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down

upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting

of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a

real and living doubt and without this all discussion is idle 24

Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing

what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that

inexplicabilities are not to be considered as possible explanations

34

Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela

encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo

similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande

importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana

Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos

processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de

constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia

que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o

caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele

afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos

celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente

antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo

(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos

ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em

justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro

lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos

nos seguintes termos

Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟

Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma

hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que

realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave

conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25

25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific

explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is

analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses

35

Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual

retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a

forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam

segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce

Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando

deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica

Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas

maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na

predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos

E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis

da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber

a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo

trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a

descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo

dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um

sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713

1883)26

Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e

mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo

prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que

satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a

esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma

concepccedilatildeo antropomoacuterfica

26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and

anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses

We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which

are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the

laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we

naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction

(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is

accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all

these natural conceptions

36

A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao

seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico

para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos

Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de

um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em

consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas

as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as

quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser

encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre

outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma

humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute

Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a

mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das

recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect

47 1903)27

Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem

elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma

decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou

em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente

concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico

de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e

possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos

27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises

from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all

conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots

would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember

that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that

affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same

thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact

Logician

37

() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu

sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a

uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o

homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica

possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que

ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles

limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve

pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de

uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer

coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim

como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua

isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536

1905)28

O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter

antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais

uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho

cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que

natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29

Os elementos de todo conceito diz o autor entram

no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que

ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo

autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30

A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal

caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes

de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma

hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis

28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that

doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely

hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his

needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it

is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits

of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply

cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump

just as high as he possibly could 29

() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific

working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30

() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason

38

(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316

1903)31

A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se

perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32

entatildeo aceitas

como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis

2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA

A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente

reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890

tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce

oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto

ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos

psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser

a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na

proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos

homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das

regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir

um comportamento autocontrolado

Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo

mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um

texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com

31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to

suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering

them comprehensible 32

Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal

caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado

por lei (cf CP 6 sect 36 1892)

39

uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara

Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da

consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de

ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma

imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada

com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser

considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada

expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute

suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito

Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute

algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um

sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o

que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado

conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado

eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma

potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33

Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute

estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis

Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico

para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei

Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica

peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo

dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34

Assim ao

falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e

33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action

such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An

imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature

and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For

our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces

a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to

the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is

actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34

() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals

40

constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja

deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua

determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do

universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que

ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria

passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia

A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a

cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia

peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem

() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais

o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia

Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o

germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser

evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao

haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas

as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo

entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o

mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual

a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33

1891)35

Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho

deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta

abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do

acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para

35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without

connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure

arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but

this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other

principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of

pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical

system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future

41

formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia

21 O NADA

Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do

universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois

tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa

O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto

nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em

que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito

ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)

Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que

sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades

consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)

a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao

introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma

Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um

espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a

natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um

siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36

36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an

interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is

ipso facto itself a symbol although a wholly vague one

42

Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as

possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de

infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect

203 1898)

Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade

surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo

da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma

mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas

platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38

Nessa evoluccedilatildeo o

possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo

A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio

inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de

formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a

dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza

daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o

mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se

definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39

Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a

origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas

37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta

daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre

continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja

verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem

se estabelecer 38

The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which

the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39

The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or

is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be

distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in

particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted

43

Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um

resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo

tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40

O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente

mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira

Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da

continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da

mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas

espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem

agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo

tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter

estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de

dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo

essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41

Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um

processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que

se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a

tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute

a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o

princiacutepio de semelhanccedila e contraste

A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz

que

40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same

thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41

Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the

human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth

etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of

feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number

of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities

44

Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um

mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras

elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele

ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves

outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42

Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida

em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas

seguintes palavras de Peirce

() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se

encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo

elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem

generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43

Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a

hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa

origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se

o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce

A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser

puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um

estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um

modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor

42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere

nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or

less resemblance and contrast with one and other 43

() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

45

uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e

assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44

e acrescenta

Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei

Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado

Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash

possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem

fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45

O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo

com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46

A existecircncia do

universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo

existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior

do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf

CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O

terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua

atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo

na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o

reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada

vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo

44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a

state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a

logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in

which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45

There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the

whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --

boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46

Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os

elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo

diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo

46

triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47

Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre

os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o

mundo e falar sobre ele

() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de

sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de

ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto

de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um

grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a

respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute

outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de

Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente

do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois

modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do

Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A

primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em

minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a

associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute

como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz

de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho

De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de

sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa

unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que

denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente

adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves

outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo

Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos

qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base

os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma

expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo

podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em

um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por

ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior

representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo

intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar

um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo

de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras

de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele

identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e

47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana

primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade

caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)

47

palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias

compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees

de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4

sect 157 1897)48

A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que

continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o

incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade

peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei

da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a

respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana

O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que

parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular

essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade

na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila

Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de

48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits

are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of

feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes

a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is

the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are

two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association

based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it

is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea

of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself

resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of

which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes

what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the

ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop

general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits

of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing

can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can

crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents

things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a

cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double

mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which

denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names

and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words

are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc

48

sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade

ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada

variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o

sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute

natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do

que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada

vez maior (ROSA 2003 p 297-8)

A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em

desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria

bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas

Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade

secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf

HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao

estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a

secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita

acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o

tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute

o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade

de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que

Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute

impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se

tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda

que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo

Como aponta Hookway

Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim

poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um

tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um

limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p

273)

49

Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente

ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem

contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos

infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem

mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos

A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo

e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra

forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a

presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de

desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da

tendecircncia ao haacutebito

Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da

existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce

afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o

mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de

existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a

abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos

inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas

radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de

existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo

(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou

flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave

aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos

anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de

haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse

ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua

49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce

50

origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial

22 O ACASO

Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria

teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico

alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel

tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884

ldquoDesiacutegnio e acasordquo

() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute

explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo

esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de

modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto

(W 4 p 549 1883-4)50

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras

uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas

encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que

dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo

outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do

indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas

que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo

da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da

50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not

absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition

but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit

51

hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o

percebemos

Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um

princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a

muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade

de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de

necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de

certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade

radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado

eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento

da complexidade de forma irreversiacutevel

O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo

(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo

um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva

mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do

desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees

iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que

pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo

A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma

epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas

aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada

pelo homem Para o filoacutesofo

() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O

mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da

experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses

52

fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51

Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as

proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor

() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo

meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para

a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que

opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente

soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a

abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu

concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto

meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje

Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um

longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser

refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado

de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo

conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52

Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do

falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-

las com os fatos natildeo mentais

51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its

characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has

opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52

() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of

premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but

opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions

He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of

them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no

competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time

upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be

glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of

belief

53

O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o

falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas

sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e

indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da

mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53

A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou

crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo

acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo

Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos

acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para

Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo

cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos

elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse

universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma

decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da

natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na

passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o

autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos

Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a

Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin

(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da

mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a

variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de

53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is

never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine

of continuity is that all things so swim in continua 54

Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation

sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda

jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)

54

cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a

busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio

23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE

Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade

examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto

de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36

1892)55

Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as

mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem

determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute

mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo

aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem

cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)

o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no

determinismo nas seguintes palavras

A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer

tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de

coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute

indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as

leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir

desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou

55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law

56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu

curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57

Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs

modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou

influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36

1892)

55

agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58

A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana

carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser

colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59

que poderia muito bem ser admitida

pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais

defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente

mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60

Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de

argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um

postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar

acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua

defesa

Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das

justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e

responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir

como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect

41 1892)61

Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia

Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo

faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida

isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()

58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws

completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus

given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind

could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59

Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a

liberdade e espontaneidade 60

() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61

It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is

requisite to the validity of an inference

56

cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa

inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62

O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio

indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo

mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos

contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise

Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se

coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos

um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima

amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada

elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes

nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41

1892)63

Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada

amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que

se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos

obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras

Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes

ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo

(CP 6 sect 41 1892)64

Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido

a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1

Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em

consideraccedilatildeo

Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A

62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference

63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity

64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle

of universal causation

57

praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe

que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de

valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas

Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a

primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa

aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo

obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente

A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()

certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65

mas como a

observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se

for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na

fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo

Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada

natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que

aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja

qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza

A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor

de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria

posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades

agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser

elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as

observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas

palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais

precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP

65 () certain continuous quantities have certain exact values

58

6 sect 46 1892)66

Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a

admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso

Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor

aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser

pensado o acaso absoluto

Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em

face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na

ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural

esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser

produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47

1892)67

Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute

disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o

fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da

termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees

que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute

utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do

autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso

Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila

natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento

Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante

cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A

aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()

produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68

Mas esse tipo de

66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they

will be to show irregular departures from the law 67

() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects

such as could not pass unobserved 68

() genetic products to recognizable utilities or ends

59

adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal

modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo

aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69

Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel

Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma

Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se

especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal

afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de

atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso

Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute

ininteligiacutevel isto eacute

() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o

como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser

justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca

poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na

produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70

Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois

anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado

sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis

natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo

havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais

Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do

69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the

principle of causation 70

() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and

since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any

right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature

60

determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso

absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria

Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega

a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas

e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de

leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que

podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por

exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo

Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das

leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir

As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os

fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como

aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no

uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento

Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de

equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas

como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma

reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)

Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento

que inverta a flecha do tempo Por exemplo

Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute

com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos

absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente

nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si

proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo

(REYNOLDS 2002 p 3)

61

A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce

aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande

maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem

do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio

As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem

crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem

determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar

(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce

sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm

no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta

inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que

haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo

(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente

explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que

causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da

atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente

(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no

momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite

ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que

explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que

a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no

universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como

fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo

bloquear a investigaccedilatildeo

62

(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema

explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel

explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de

fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos

(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de

que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis

capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect

62 1892)71

Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o

suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como

parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica

cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da

diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras

pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza

Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute

poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo

(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel

(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma

inequiacutevoca

(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa

Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da

tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das

71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with

mathematical precision into considerable detail

63

uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que

desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um

suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma

vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute

sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que

ele produz consequecircncias ou permanece inerte

A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os

avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia

permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses

fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor

Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos

mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro

explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear

o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72

Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde

dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta

acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que

a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado

Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida

que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o

caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em

uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes

72 () to block the road of inquiry

64

3 A LEI

Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro

encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que

Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele

estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em

capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que

suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia

para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109

1892)73

A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias

do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias

do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim

como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo

infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74

Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a

concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve

ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um

determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo

de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no

tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu

iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do

passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75

Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da

73 How can a past idea be present

74 () through an infinitesimal interval of time

75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of

course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling

65

categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A

ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma

inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade

Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um

tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no

momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76

Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma

abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo

A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos

passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que

se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo

consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua

31 O IDEALISMO OBJETIVO

Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua

diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o

monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o

idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande

problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou

natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui

propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou

propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica

76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the

result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment

66

A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da

combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos

aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser

entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce

A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo

autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a

tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e

as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita

de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada

32 A LEI DA MENTE

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as

() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que

permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta

dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras

mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP

6 sect 104 1892)77

Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da

fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a

conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23

77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

67

1891)78

A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da

mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve

ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a

atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade

a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo

perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute

suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade

organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79

O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental

da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo

adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua

maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade

final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um

estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo

78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and

prevent all further formation of habit 79

() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

68

CAPIacuteTULO 02

O SINEQUISMO

Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)

69

Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80

uma investigaccedilatildeo sobre

a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do

pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande

importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam

verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81

Em carta a William James de 1900 Peirce

afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82

isto eacute o ponto de

apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia

Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o

interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e

filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como

afirma em 1897

() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de

continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito

e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver

a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes

os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por

exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute

logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma

delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o

todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da

loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica

(CP 3 sect 526 1897)83

80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese

81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime

importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82

() synechism which is the keystone of the arch 83

() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition

of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical

doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an

inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically

possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a

part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further

development of the conception of logical possibility

70

De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute

poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de

continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo

desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na

construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das

explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem

algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de

continuum

Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da

abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que

apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que

a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta

investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de

explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto

eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da

evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua

funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a

necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto

possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas

teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando

relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de

continuidade

71

1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA

Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum

haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas

pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para

obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma

perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto

natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse

modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica

A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e

mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho

da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)

84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que

isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85

Pois descontinuidades como pontos ou

instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo

explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute

fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do

continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos

Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-

los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade

ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos

procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana

A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento

ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no

84 Do not block the way of inquiry

85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable

72

modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram

certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam

responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A

primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86

hipoacutetese

explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de

matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao

sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do

acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter

elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende

dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando

de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo

As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente

estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia

de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua

verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e

significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7

sect 535)87

Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo

termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas

compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um

problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom

nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como

classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes

recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um

que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A

questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a

soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias

86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho

87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences

73

entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma

espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo

envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe

natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A

questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados

Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em

sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois

eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute

transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo

Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da

continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo

tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma

explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses

agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar

Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela

bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88

eacute mais claramente apresentada por Hookway na

seguinte passagem

() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo

podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais

a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza

do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter

Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um

nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando

um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos

pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina

conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos

um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel

88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes

74

para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais

que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo

(HOOKWAY 1985 p 178)

11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM

Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de

continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo

sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros

pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para

diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade

transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos

finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse

silogismo uma delas eacute a seguinte

Todo texano mata um texano

Nenhum texano eacute morto por mais que um texano

Desse modo todo texano eacute morto por um texano

A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as

demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo

que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma

coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que

excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89

Os seus

constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de

potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa

89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum

75

Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude

dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de

indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um

possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do

existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse

poder (ROSA 2003 p 223)

Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de

ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na

seguinte passagem

Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser

individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa

indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode

haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo

consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um

qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que

o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto

o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer

conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute

composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees

gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo

nosso)90

Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a

curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem

90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

76

uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta

cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto

ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses

estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa

ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado

manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago

na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo

permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a

existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida

Os infinitesimais91

surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes

do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92

e

eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo

for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre

qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha

sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do

continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os

infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do

real Peirce toma o exemplo do dado e afirma

Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade

91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute

menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo

XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos

trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em

funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute

considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um

trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de

nossa parte 92

O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to

trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are

continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)

77

bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o

ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do

que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e

formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma

de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o

haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que

tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como

que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute

necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que

afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute

de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect

664 1910)93

Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos

da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo

que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da

passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir

como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o

Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade

como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos

A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma

ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94

A resposta por ele proposta eacute de que

devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma

lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do

passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem

93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might

have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the

dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul

and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and

upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to

define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would

bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of

the die consists in such behaviour 94

How can a past idea be present

78

uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar

conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95

Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser

consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes

infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um

instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do

fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM

3 p 126)96

2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM

A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que

busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma

parte dos criacuteticos97

insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo

coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema

Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de

Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em

oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas

que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica

Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a

necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma

95 () through an infinitesimal interval of time

96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the

present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97

Por exemplo GALLIE 1952

79

Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado

desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha

por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada

pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais

deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento

humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da

ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido

bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade

aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria

filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o

estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de

resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98

A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer

uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais

duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra

sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre

ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica

Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce

que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma

semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS

620 p 09)

A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos

aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum

98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full

import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who

wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human

knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect

each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of

the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study

of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)

80

topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria

expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos

princiacutepios de desenvolvimento do continuum real

A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos

parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em

sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que

nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio

desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99

Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo

refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas

motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do

desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees

de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914

Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer

uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer

quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100

preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano

(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)

99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de

continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100

Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum

denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas

e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente

compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de

coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador

81

21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO

O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre

as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os

problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele

tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101

essa caracteriacutestica ficou conhecida na

literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce

leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de

Cantor

Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a

necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de

uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro

incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em

oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de

apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute

determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo

raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da

cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e

que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele

Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e

considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a

vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo

comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia

Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo

que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo

101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense

82

objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como

representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102

Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve

existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se

em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira

seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma

outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita

divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se

tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto

que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria

Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873

Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas

atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O

filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias

segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por

processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103

Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais

detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais

uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio

dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104

102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the

liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object

quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the

cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two

such lines represent that they are two different cognitions 103

First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous

processes 104

In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another

or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established

83

Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar

agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo

da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a

implicaccedilatildeo entre ideias105

Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo

formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo

mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se

apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa

propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o

continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que

possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao

estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema

mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante

22 PERIacuteODO CANTORIANO

Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade

poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em

propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca

Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma

anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com

aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente

adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas

105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa

de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os

caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento

seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no

processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese

84

do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma

conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar

com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre

continuidade (MOORE 2007 p 434)

Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade

deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a

definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a

tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do

continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas

propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade

(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia

agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106

ou ainda que a

ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107

Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um

limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108

ou ainda

que

A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do

seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria

infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum

conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma

seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP

6 sect 123)109

106 property of infinite intermediety or divisibility

107 The Kanticity is having a point between any two points

108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system

109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every

endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in

using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both

of the limits

85

Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce

jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo

escreve

[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou

outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de

tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode

mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada

instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo

eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um

exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes

tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato

que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema

dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a

de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de

pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect

164 1889)110

Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum

que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia

evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo

continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a

beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na

linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse

110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that

of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move

from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This

statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old

definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact

that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The

less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --

words which must be understood in special senses

86

assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect

171 1897)111

23 PERIacuteODO KANTIANO112

Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por

Kant113

de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168

1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo

que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma

abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees

Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos

pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da

linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114

Peirce afirma pois que continuidade eacute

totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto

maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum

As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115

expressavam o seu desacordo com

uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e

descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116

Em termos mais

111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of

continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the

entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112

Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo

de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113

Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado

era somente o de infinita divisibilidade 114

(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there

is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115

No texto A lei da mente 116

It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is

87

compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e

Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias

partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de

natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as

partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de

1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova

elaboraccedilatildeo

24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO

Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma

coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo

pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo

tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6

sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma

coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de

alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as

partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642

1908)117

Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes

devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo

uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de

tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave

definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das

pequenas partes temporais

manifestly non-metrical 117

(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole

88

Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para

demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso

que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo

Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo

fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect

642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou

da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja

vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)

Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento

de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu

pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees

cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final

se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi

indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de

generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo

modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo

capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final

89

CAPIacuteTULO 03

A EVOLUCcedilAtildeO

Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the

doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP

6 sect 554 1887)

90

Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se

efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana

Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A

negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser

sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de

fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas

tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu

origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da

perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz

Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)

1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA

Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva

epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a

evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees

oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua

adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o

estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como

candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito

anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo

Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado

que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa

(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos

eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos

desperta o menor interesse Peirce diz

91

Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade

definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que

deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da

experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado

de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute

regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo

correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas

quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189

1901)118

Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito

que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade

motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A

maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem

() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se

fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado

aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de

ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute

tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197

1901)119

O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso

ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese

118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites

any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and

regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why

there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which

I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that

119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true

before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at

least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical

consequence necessary or probable

92

que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses

segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao

fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido

Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo

necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o

caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das

explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese

evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o

uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma

explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como

aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de

explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para

compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo

(Hookway 1985 p 267-68)

Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada

como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis

entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da

seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das

semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees

De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria

capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele

afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em

geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120

em outro momento afirma que

Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida

que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei

120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them

results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely

93

ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia

acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como

eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121

Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que

A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e

corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo

cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel

afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a

buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)

Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar

o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e

agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o

resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se

impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A

discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e

regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus

Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce

identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante

para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante

crescimento de complexidade

A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo

atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese

121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past

not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was

always as rigidly necessary as it is now

94

evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as

variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos

aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo

de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de

investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais

autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da

razoabilidade concreta no universo

2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX

Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na

insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados

por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do

mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo

podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista

dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo

como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das

explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute

mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin

que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda

metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do

de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora

que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu

sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de

coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo

teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o

tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides

95

tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122

O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem

mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais

geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que

levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos

paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel

A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da

abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser

explicada Diz Peirce

Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma

caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos

limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave

lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e

diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo

pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa

variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar

conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade

e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa

espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na

morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123

Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta

da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados

dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar

esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de

122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important

philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist

123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since

96

se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que

considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute

interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na

natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124

A

fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos

1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com

desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos

2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves

moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e

3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP

1 sect 193 1903)

Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior

importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua

insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que

possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma

() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente

daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo

muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso

Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as

forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP

1 sect 347 1903)125

124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity

and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say

how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions

97

Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos

irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar

apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na

teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de

atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel

fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o

crescimento do universo como um todo

A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que

ficou conhecido como a lei da vis viva126

que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio

segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na

vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768

ca 1889)127

As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos

corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema

inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo

forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa

Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos

implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas

ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia

unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas

precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo

oposta (CD p 2319 ca 1889)128

126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como

sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo

de partiacuteculas

127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system

depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental

forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative

forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but

opposite in direction

98

A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo

conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos

sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas

fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto

conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma

direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da

vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma

Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da

mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os

sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)

As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo

bem indicadas por Peirce na seguinte passagem

Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de

energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o

preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo

determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa

sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em

qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes

em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente

na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129

ou ainda

129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical

universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent

does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the

velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were

Everything that had happened would happen again in reverse order

99

Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes

quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de

energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas

natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse

modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12

m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)

2 unicamente como o

quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele

da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo

indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2

p 481)130

O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o

universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se

pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas

direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta

aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma

avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios

momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais

fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode

igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131

Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em

algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio

A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a

maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu

respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees

experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau

130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of

the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon

nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the

analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)

2 only as squared

Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two

directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing

that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance

100

extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a

atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma

aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua

tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a

conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam

por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os

ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees

extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de

que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132

O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo

emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos

fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles

que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de

irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que

(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa

atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de

Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na

linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o

nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a

resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das

cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas

desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a

experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133

132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural

philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential

verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard

to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation

to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of

the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for

example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of

energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be

absurd to doubt

133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that

is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be

reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion

resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids

() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their

mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals

101

Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do

caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo

como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo

isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora

como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce

A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot

(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a

tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o

calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de

que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo

encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a

direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds

Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos

irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell

Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria

da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma

abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O

tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do

vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p

42)

Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher

todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas

uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das

probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das

partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior

do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o

102

compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo

determinadas pelo acaso

Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos

propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of

chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais

sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134

Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo

paraacutegrafo

Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma

variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a

teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as

peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir

algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia

estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma

coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de

accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo

os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135

Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo

denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas

principais

a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para

a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final

134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of

chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science

135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were

not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected

map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of

energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to

show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the

means of proving its presence

103

b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)

Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que

se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar

uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final

(cf CP 7 sect 471 1898)

Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo

que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como

criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo

isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo

dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em

funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da

interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a

irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber

este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final

Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute

uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria

termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece

ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos

de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que

compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com

a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento

da ciecircncia

104

3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO

As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que

tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136

isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos

encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira

intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da

Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o

ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte

Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha

um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo

orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em

atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes

de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias

propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a

reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o

desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana

ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia

assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a

destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a

taxa de mortalidade

Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas

nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua

vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a

interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na

136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary

loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88

e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema

105

medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar

lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce

afirma

Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute

evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a

evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP

6 sect 16 1891)137

E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de

acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face

dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees

que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash

como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo

individual mas respostas a mudanccedilas ambientais

Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos

parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da

biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator

na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente

natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em

geral (CP 6 sect 17 1891)138

137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance

and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort

138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the

broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the

historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the

process of evolution of the universe in general

106

4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO

Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no

interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto

eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos

Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos dos mais variados campos

A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de

explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu

Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e

concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma

darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute

bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um

determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de

elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas

seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-

se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas

almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista

A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de

nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que

mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139

Embora esse tipo de evoluccedilatildeo

natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute

o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O

exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu

no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)

139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known

facts as more and more observations came to be collected

107

Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o

impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar

sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140

Como exemplo o autor indica a descoberta dos

micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -

1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos

observacionais

5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA

Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos

acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de

aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo

Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita

denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada

denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da

causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo

ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica

proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por

cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica

corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana

Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo

Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa

possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de

140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning

about the observations

108

maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas

degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)

Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui

contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o

fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu

lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no

qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados

ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da

mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304

1893)141

O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na

medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada

perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o

fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142

Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o

hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava

mirando

O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando

submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se

necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja

uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma

Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas

as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143

O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo

141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind

142 () living freedom is practically omitted from its method

143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits

109

que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144

Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145

Eacute a causa final

acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender

essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o

sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)146

6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO

Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa

final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985

p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o

define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e

a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um

contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta

Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do

mundo (cf CP 6 sect 101 1902)

144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus

in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character

146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

110

A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser

in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce

expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa

desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo

Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia

possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos

adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce

O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias

mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente

cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas

por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que

a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da

mente () (CP 6 sect 307 1893)147

Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio

primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo

(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que

() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual

devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que

devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de

tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal

modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de

147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as

in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate

attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is

by virtue of the continuity of mind ()

111

regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148

Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se

autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao

monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente

um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as

leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149

O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das

leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o

princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso

em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos

e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150

Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para

Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na

mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo

7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE

No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem

tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos

148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as

far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so

that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high

degree of mechanical regularity or routine

149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of

matter a special result of the laws of mind

150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance

tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and

the cosmos of order and law

112

estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por

meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus

estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e

isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect

433 1905)151

Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila

de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por

trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs

modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a

mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute

auxiliado pela disposiccedilatildeo

A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]

para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um

haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152

A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar

com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre

acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados

satildeo estabelecidos Peirce indica que

O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o

sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo

satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o

tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo

mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute

repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153

151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the

pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general

152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit

and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an

attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the

113

Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande

disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais

plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154

pois apresenta em

maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade

desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de

tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional

Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa

que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a

qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O

objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa

desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em

outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer

outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras

ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se

subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155

Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie

de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o

autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156

Cabe agrave

loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191

1903)

Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao

kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently

matured agent and the evil is the repulsive to the same

154 The most plastic of all things is the human mind ()

155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the

development of concrete reasonableness ()

156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-

control is a perfect mirror of ethical self-control

114

cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo

claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho

intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de

obter a verdade

A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada

no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada

eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode

ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo

assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo

ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto

podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar

nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o

mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na

loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute

seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()

(CP 4 sect 615 1903)157

157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is

going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more

satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness

is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it

Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by

giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In

logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods

as must develop knowledge the most speedily ()

115

CAPIacuteTULO 04

A ABDUCcedilAtildeO

Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of

heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you

and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a

conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with

experiments (CP 6 sect 461 1908)

116

1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS

Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou

natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE

(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985

entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a

quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia

que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas

ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua

reflexatildeo

A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus

primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica

da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com

relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-

relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica

como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes

dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio

autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se

divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica

Criacutetica e Metodecircutica

A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute

neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica

tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata

dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez

compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua

abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do

uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado

117

Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da

perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da

filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de

um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo

Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento

seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos

problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados

com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus

textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte

de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta

aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por

essas mesmas concepccedilotildees

Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute

essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais

para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais

elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave

abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute

em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e

se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua

melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois

eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do

que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160

A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado

158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a

longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que

todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que

as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159

Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160

From this definition pragmatism is scarce more than a corollary

118

de duacutevida autecircntica161

que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e

verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e

em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que

ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se

que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos

incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma

privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a

utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374

1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de

um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles

produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um

homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)162

Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do

tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711

1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como

autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e

inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um

processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o

futuro

161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo

desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a

natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta

maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de

vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um

conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162

() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit

119

Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral

refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa

coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo

pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser

eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163

Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas

vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se

necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo

passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de

maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo

desse modo o autocontrole

Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute

indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164

Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma

caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador

principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a

questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com

aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe

as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas

podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo

O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as

investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as

primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP

5 sect 116)165

uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como

163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past

contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot

be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164

() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165

() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question

120

Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade

de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de

cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira

Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se

forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela

de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma

proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um

percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo

(CP 5 sect 115 1903)166

Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito

que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para

justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo

perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo

pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma

boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute

fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo

da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida

em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o

suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela

realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente

nesse processo

Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do

senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN

166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to

me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of

formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand

is an image or moving picture or other exhibition

121

1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas

comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para

penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho

efetivo (ver REILLY 1970)

Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais

meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele

descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer

naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter

crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma

duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa

muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem

agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas

assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo

incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por

criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na

tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf

CP 5 sect 377 1877)

O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por

levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo

toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo

custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo

afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou

tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a

posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo

basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos

das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)

O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz

122

Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel

que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma

questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)

Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da

tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao

governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel

(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos

terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas

estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a

experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)

Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167

cabe a

Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer

crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas

crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por

alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168

e

acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o

pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169

O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia

estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo

processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A

vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de

investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se

fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa

refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos

167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana

168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but

by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169

But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real

123

desse meacutetodo Peirce afirma que

Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das

nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis

regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam

nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo

podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente

satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido

o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect

384 1877)170

A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos

demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita

suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem

que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete

com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute

resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel

natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o

conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer

elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom

funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e

racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171

Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser

[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo

ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e

deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172

Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma

170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect

our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects

yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and

any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171

() rationalization and of rationalization by us 172

That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country

124

hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A

aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos

produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os

mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser

compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia

realizaacutevel

Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de

intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao

menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do

conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo

modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce

buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e

posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de

outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo

de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta

teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que

Peirce denominou de abduccedilatildeo174

No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do

universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce

desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou

ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)175

Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas

ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173

Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174

Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175

() the inferential process involves the formation of a habit

125

anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de

trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a

deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo

A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em

muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis

esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no

interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa

teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja

como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da

formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo

de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio

para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos

perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns

comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica

com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica

que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade

dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo

Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute

encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade

de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam

aproximar-se da verdade

A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da

epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees

para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os

juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira

126

() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem

qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas

primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um

caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem

absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176

Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico

polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o

fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute

por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo

tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e

compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se

as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se

acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)

A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute

como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo

geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de

natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a

principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se

natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como

entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena

A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem

o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega

Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte

176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or

in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive

inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism

127

integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as

iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais

faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que

possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)

A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes

contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a

grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas

tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que

cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa

claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o

processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma

ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente

desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177

Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como

um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo

atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia

como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se

passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo

quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma

forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a

proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O

argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira

entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie

Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que

noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves

177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces

any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary

consequences of a pure hypothesis

128

conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178

e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que

provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect

54 1902)179

Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre

inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz

Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para

indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de

nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem

criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar

natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que

usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma

razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)

De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a

abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma

inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo

uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem

2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO

Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma

maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se

178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a

conclusion 179

Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an

entirely different construction from the thinking process

129

novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo

A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o

raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou

falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo

igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua

justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo

possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo

deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de

uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com

os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer

a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145

1903)180

No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma

descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os

seguintes silogismos

Deduccedilatildeo

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth

or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction

is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the

investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error

The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it

measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can

deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction

130

Induccedilatildeo

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Hipoacutetese

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria

silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo

ldquoObserva-se um fato surpreendente C

Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente

Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181

Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem

comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo

possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena

181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to

suspect that A is true

131

consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em

que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou

plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem

posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo

com os fatos por meio da induccedilatildeo

Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo

estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo

deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas

indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz

ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os

caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP

5 sect 173 1903)183

O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos

sinteacuteticos184

em 1868 o autor afirma

De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os

juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os

juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute

absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a

particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia

(CP 5 sect 348 1868)185

182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well

be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include

abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class

in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183

However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-

controlled and critical logic 184

Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185

According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But

antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how

synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one

will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy

132

O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema

bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a

partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que

no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta

questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade

dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo

encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de

hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do

sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por

meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do

nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de

hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo

conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo

implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia

e sua epistemologia

A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima

Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos

de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do

tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se

altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem

loacutegica legada por Aristoacuteteles

Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos

argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste

depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p

31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo

de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais

tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo

133

Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita

entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que

compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia

dedutiva186

dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas

e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a

elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico

Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que

realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada

pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja

perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na

fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre

qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as

suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o

seguinte comentaacuterio

Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo

verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de

um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de

acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente

resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo

do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194

1878)187

Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese

186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century

Dictionary 187

By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we

conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws

something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter

from effect to cause The former classifies the latter explains

134

fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz

referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que

enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em

um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua

cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo

honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se

encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em

algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos

e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que

ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos

Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina

o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses

Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um

outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo

sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito

seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute

encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do

escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma

hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que

duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por

acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes

termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em

um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao

objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188

O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso

envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade

grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima

188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the

characters of that class belong to the object in question

135

apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que

correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito

na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente

diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira

ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos

similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p

198)189

Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada

neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce

ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de

novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que

no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o

nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar

e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores

Em um texto de 1901 lemos

Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas

ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes

de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas

confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a

induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)

como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190

189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas

hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190

Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to

distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of

these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together

(often mixed also with deduction) as a simple argument

136

No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo

seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas

aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem

mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas

eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se

verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira

razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um

haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a

hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta

esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia

ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o

resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191

A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do

pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa

distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam

segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos

leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de

descobrir

Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o

primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A

experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe

conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual

for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192

Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser

considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu

sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia

191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar

musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192

All knowledge whatever comes from observation

137

do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo

inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees

apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente

atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e

acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou

pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo

cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193

Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que

alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o

curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador

A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto

externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute

sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter

consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo

A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta

explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende

para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste

Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo

deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria

eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma

vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a

necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder

agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome

induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original

empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por

193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great

effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain

grade of reality or independence of our cognitive exertion

138

meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo

conformes agrave experiecircncia

As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia

somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por

meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou

agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a

investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de

autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o

investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este

estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se

verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese

A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem

testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da

economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo

desempenha neste estaacutegio Peirce diz

Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro

esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes

tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode

fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo

se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194

194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it

remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can

stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any

rational way

139

A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf

CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto

surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse

das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que

devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica

tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses

que Peirce estabelece satildeo

1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel

2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos

3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo

do princiacutepio de economia da pesquisa

A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um

certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de

uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma

prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195

Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma

teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do

diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir

uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf

CHAUVIREacute 2003 p 84)

E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes

devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou

esforccedilo em seus testes

195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted

140

CAPIacuteTULO 05

A CAUSALIDADE FINAL

Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly

intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the

contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of

conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)

141

Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas

agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas

e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo

da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original

Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central

que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte

proposto no todo desta tese

Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da

causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de

esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial

do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de

vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo

do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A

teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b

p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196

eacute visto pelo

filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma

() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor

de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de

absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS

478)197

Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no

seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)

196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197

() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and

nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her

haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)

142

afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute

mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade

junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas

eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como

acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas

explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo

da situaccedilatildeo atual

() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor

das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior

das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na

barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo

os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a

suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito

incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem

mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a

compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos

Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa

prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado

como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo

filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer

incompreensiacutevel

Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os

fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro

descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo

da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a

explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a

proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute

o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo

143

(HULSWIT 1996 P 183)198

Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o

tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada

e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua

inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das

descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos

1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL

Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199

Peirce daacute tanto agrave causalidade

final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia

certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira

como foi definida por Aristoacuteteles

O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na

declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes

ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a

verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar

fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem

consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo

particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado

geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa

final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o

resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200

198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997

199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996

200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all

causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the

truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a

general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this

or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one

time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is

to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma

144

Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos

A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela

condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa

situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual

for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente

Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um

tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente

nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no

momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de

um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave

estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a

bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer

relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute

verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo

geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e

compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201

Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de

maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos

comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute

realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da

afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica

peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em

relevo essas diferenccedilas 201

Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a

compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general

character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the

wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it

but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it

is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient

causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient

causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the

bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force

is compulsion and compulsion is hic et nunc

145

Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes

compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo

chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero

chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo

viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do

que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um

nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202

A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado

com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo

experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos

de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo

peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico

desempenhado pela causa final no sistema peirceano

Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a

causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela

pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins

Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a

sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A

fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo

elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito

maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados

Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205

1902)203

Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo

autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a

202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of

causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling

for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient

causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so

much as chaos without final causation it is blank nothing 203

A purpose is an operative desire

146

atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo

reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica

Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao

pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como

um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio

de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos

para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com

que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se

tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as

leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204

Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta

tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente

antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que

isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e

marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar

que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz

Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute

alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute

assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana

satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205

Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza

tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa

204 This is to say we guess out the laws bit by bit

205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which

the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human

convenience are witness

147

caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia

a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206

Como

afirma Hulswit

() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave

experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se

elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e

nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um

problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p

184)

A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser

considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida

como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade

humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica

que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash

uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo

O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que

naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o

autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em

evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos

detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral

Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar

dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro

categorial

Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de

206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations

148

causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo

presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo

aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a

torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos

de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e

inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua

atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar

exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um

curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)

Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final

que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer

evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere

categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e

concretos

Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute

afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo

eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas

eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o

desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma

classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto

quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim

continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto

definido e concreto

Em segundo lugar207

embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa

influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e

207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer

tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which

may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for

149

futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo

cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas

trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina

natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de

Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia

resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui

o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra

coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo

transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela

mediaccedilatildeo

Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos

um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a

dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema

perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado

teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de

estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo

poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto

expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como

condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes

mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante

processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da

causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos

processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a

originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas

palavras de Peirce

future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a

uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos

de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente

150

Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas

uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem

Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser

in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos

fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo

bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do

futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208

O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva

de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas

tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada

Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou

inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em

suas palavras

Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute

realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua

realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute

realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica

(NEM 4 p 66 1902)209

208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension

of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears

in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a

quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of

something else 209

By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that

if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about

or approached by an independent line of mechanical causation

151

2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE

A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela

restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal

como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a

qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a

ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da

nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do

mecanicismo e a pura espontaneidade do caos

Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de

uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim

chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica

claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo

Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica

sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas

satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam

em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo

de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para

aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia

em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas

eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210

As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas

caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita

aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira

210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due

to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in

one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is

too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state

The other character of non-conservative action is that they are irreversible

152

controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra

maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as

causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para

a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto

Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo

perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou

daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus

veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a

face da terra (CP 1 sect 217 1902)211

Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia

a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente

apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que

a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212

Eacute a causa final

diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa

atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual

sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)213

Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce

211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are

not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and

having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212

Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character 213

What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

153

apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa

distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220

1902)214

Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as

propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido

por Peirce

Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado

Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos

livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com

os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira

Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista

cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um

espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que

ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor

definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente

natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como

as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa

final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215

A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que

jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo

enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)

Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo

crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente

inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de

214 A man is a wave but not a vortex

215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels

entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary

canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so

that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a

singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now

the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the

object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final

causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account

154

aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das

formas diferenciadas Como indica o autor

Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de

aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser

descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟

(CP 6 sect 23 1891)216

A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um

determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em

funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das

hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou

estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se

manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute

presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural

como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma

montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo

passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou

uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira

esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa

final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes

cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela

accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)

Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal

216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked

by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the

general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

155

criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente

ressaltando a sua complementaridade

A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e

todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O

tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser

imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele

exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu

punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente

destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria

eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter

hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217

A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos

naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais

eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do

xerife e do tribunal

A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal

sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum

cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial

que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia

estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas

permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218

217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The

court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no

whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if

there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess

efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies

potential regularity 218

A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament

might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who

unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the

perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen

156

A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo

as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter

Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro

brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em

referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem

sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade

eficiente e final (POTTER 1997 p114)

Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos

trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de

tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira

existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em

confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser

consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que

O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o

dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a

concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam

cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o

menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo

significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado

deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o

mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os

fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como

pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente

separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute

caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais

e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de

liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam

teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219

219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to

exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or

that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate

meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated

chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and

157

Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que

os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta

ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220

A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a

chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente

em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e

que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro

texto

Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e

onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas

natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem

gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e

intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159

1897)221

A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese

natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em

toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das

restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao

descrever a tessitura da realidade

Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica

do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos

psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely

separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental

and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint

which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220

Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221

It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients

imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell

the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of

nature

158

limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as

grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade

do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser

compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel

variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode

minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da

espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia

desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-

na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece

facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222

Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a

continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem

introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o

acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que

a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada

O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser

individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado

contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um

agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas

condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos

distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado

uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado

eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude

possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo

conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que

permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223

222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my

view appears to me not easily controverted 223

That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

159

A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de

criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos

abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de

um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute

foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de

algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos

concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo

3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO

Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua

atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo

peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo

da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede

Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos nos mais variados campos

A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de

1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento

(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado

pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

160

esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN

1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um

indiviacuteduo Peirce afirma que

() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade

esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-

determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A

ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma

medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224

Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade

com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que

caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse

inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a

proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em

crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento

da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos

teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes

sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais

variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a

possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de

desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final

desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade

imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT

1994 p 406)

224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere

purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea

living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now

conscious

161

Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo

como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu

processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das

limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo

de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman

O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da

complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do

tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento

uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir

(HAUSMAN 1998 p 630)

A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada

por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas

O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras

de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si

cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela

virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225

Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde

a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo

possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que

aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar

Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees

em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute

completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect

225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is

divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind

162

288 1893)226

Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o

universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os

germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289

1893)227

Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a

hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por

sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar

dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel

por si mesmo

O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos

individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter

sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de

incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas

ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na

medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida

nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim

entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de

mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as

cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido

lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute

em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve

lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute

acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da

Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do

que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja

admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo

compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob

esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na

operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel

sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar

que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os

meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP

1 sect 615 1903)228

226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and

drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula

we call the Golden rule 227

() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228

The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of

Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of

growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will

make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully

163

Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo

de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica

O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem

descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em

si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo

poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto

a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos

indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou

b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em

simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a

atratividade da ideia ou

c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de

seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si

(POTTER 1997 p 187)

4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA

Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas

principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos

em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi

manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of

more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including

pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment

that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the

year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how

one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing

whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we

can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation

of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to

us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to

follow such methods as must develop knowledge the most speedily

164

dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece

ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos

presentes em ambas as noccedilotildees

Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de

causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute

bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de

um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as

ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua

obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as

concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade

Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro

da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos

interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes

questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por

necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera

tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas

acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por

produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais

necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias

independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as

coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem

que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo

(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que

exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)

O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que

acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na

parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e

165

constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm

a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente

construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas

inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de

modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que

ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo

devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002

200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de

acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro

causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento

Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute

bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)

A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles

(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e

afirma

A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes

integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa

material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa

eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute

chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo

de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute

chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo

consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como

o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229

229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its

matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum

is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute

the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is

hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics

the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)

166

Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente

antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e

o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta

forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute

compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo

propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A

causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa

Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder

causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas

potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila

algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim

Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a

consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as

instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa

eficiente do acaso e da causa final

Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma

causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra

Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou

objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo

atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer

processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida

com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que

no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de

novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso

Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo

peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do

167

acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana

de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final

5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL

O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos

do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo

peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O

problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do

mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade

final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf

HULSWIT 1997)

Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no

texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar

com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja

de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a

questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a

resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um

caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-

lo em grupos distintos

Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do

mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria

classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230

Ao tratar da classificaccedilatildeo

natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo

230 () desire creates classes and extremely broad classes

168

naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes

eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista

arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda

natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute

definido por Peirce da seguinte maneira

() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo

consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas

ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o

nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O

nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das

palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso

mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231

Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo

sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute

vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo

vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo

Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra

possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel

231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects

merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being

of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that

they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our

everyday world consists of

169

CONCLUSAtildeO

() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts

comprehensible (CP 8 sect 168 1903)

170

A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o

horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias

cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada

sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da

investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas

formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para

constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das

categorias faneroscoacutepicas232

reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e

terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o

exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um

processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da

lei da mente e da causalidade final

Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado

de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica

que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um

continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o

filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra

(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo

a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo

A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da

reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de

infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui

pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais

continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o

tempo e o espaccedilo

232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia

171

O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O

processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e

liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa

por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei

da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que

natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela

oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por

meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer

pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o

aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se

impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de

abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem

Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da

mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de

qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos

fenocircmenos e marcante em outros

A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios

incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute

uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse

tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor

isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas

reveladas pela experiecircncia

Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se

verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos

irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que

tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese

172

Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da

cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou

essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma

conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no

capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o

regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de

bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos

Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua

investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser

refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O

primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no

entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses

equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma

explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila

para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a

serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela

mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

mostrou-se uma ilusatildeo

A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito

claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo

eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor

Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo

poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A

efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um

instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a

conduta adequada para a sobrevivecircncia

173

A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo

adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade

de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo

chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista

natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do

universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo

evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas

Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a

desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um

princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica

Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP

1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)

A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por

meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do

estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito

mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro

suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da

vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente

determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso

cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33

1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde

agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado

final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce

como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias

peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como

inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o

infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a

tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do

174

mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz

ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem

175

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Nome VICENTINI Max Rogeacuterio

Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Filosofia

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________

Julgamento ___________ Assinatura ______________

DEDICATOacuteRIA

Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam

agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini

e aos amigos presentes e ausentes

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha

orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha

compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem

como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash

Denis Diderot e agrave equipe Sphere

Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees

Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos

professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e

aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese

Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a

realizaccedilatildeo deste trabalho

Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos

integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana

Belmonte

Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos

juntos

Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei

Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou

ambos

RESUMO

VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011

Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce

particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que

faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos

naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as

caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo

arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode

ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum

que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e

lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo

evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo

finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees

restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo

Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia

ABSTRACT

VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce

2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao

Paulo Sao Paulo 2011

This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the

relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance

determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of

explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his

thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the

concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of

Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological

categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the

cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The

law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of

phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however

exhausting it

Keywords cosmology synechism abduction teleology

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo

W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de

composiccedilatildeo

CN x p y

MS x

-

-

Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)

Manuscritos nuacutemero do manuscrito

EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y

HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x

p y

NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns

estudiosos usam NE)

CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO 11

CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28

11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29

12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38

121 O NADA 41

122 O ACASO 50

123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54

13 A LEI 64

131 O IDEALISMO OBJETIVO 65

132 A LEI DA MENTE 66

CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68

21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71

211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74

22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78

221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81

222 PERIacuteODO CANTORIANO 83

223 PERIacuteODO KANTIANO 86

CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89

31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90

32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94

33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104

34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106

35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107

36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109

37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111

CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115

41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116

42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128

CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140

51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143

52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151

53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159

54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163

55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167

CONCLUSAtildeO 169

REFEREcircNCIAS 175

11

INTRODUCcedilAtildeO

Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of

mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be

considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the

imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two

ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle

force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly

prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)

12

A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e

abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e

poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em

Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce

foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu

fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber

Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos

pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos

existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e

sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos

dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande

contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento

Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista

entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua

eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em

casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard

desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via

nele o potencial de um gecircnio

Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879

mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras

Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel

(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo

quarenta e quatro anos

1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a

base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e

da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891

13

O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas

entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes

estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a

continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce

ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163

1897)3

Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo

O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final

desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava

determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos

sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a

sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de

natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da

falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento

quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes

aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como

veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se

lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui

lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos

Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual

uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste

na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais

variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande

auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar

alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada

2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema

filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy

14

pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo

significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos

detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento

da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a

realizaccedilatildeo da pesquisa

Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo

inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um

ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a

compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada

natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se

nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave

determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o

fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da

experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias

Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do

saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do

escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima

que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273

1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que

para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a

toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para

tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio

do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu

alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais

possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5

sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese

sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a

abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor

15

O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia

parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento

peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus

escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos

daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE

1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida

de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses

amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de

cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos

axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas

apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito

acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete

suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo

haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se

na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo

de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente

aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que

como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos

Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo

eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas

para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o

projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com

Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta

dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda

atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros

passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da

accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo

temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel

fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo

16

pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e

TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis

e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e

resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos

Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o

mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O

elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer

avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do

funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou

tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a

descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva

natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia

satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o

desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()

minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes

agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos

naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4

Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se

aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial

Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect

269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade

da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante

nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos

desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)

4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion

that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf SPEDDING 1989 p 571)

17

afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se

considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse

modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia

na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar

Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto

inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista

do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a

causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da

cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no

futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de

determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p

200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a

concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida

Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas

podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por

Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais

ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos

dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the

Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a

causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo

caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7

Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um

seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser

6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation

7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is

worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank

nothing

18

totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo

original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que

desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido

realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um

papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem

eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos

naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a

epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia

O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada

por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE

1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a

atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese

que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo

de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar

uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect

538 1902)

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto

central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la

expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns

princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto

inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional

para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias

satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo

racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua

8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce

incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e

Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)

19

postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito

de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A

hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de

possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a

necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser

explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido

Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual

dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia

possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees

natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)

como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo

A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a

passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro

continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse

capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo

No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim

como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP

6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a

inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como

aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo

fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p

630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas

consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma

quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo

princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das

9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha

exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser

classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica

20

principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10

e o sinequismo O problema eacute

colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o

crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia

cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo

A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa

explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como

inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no

seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e

consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso

indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os

pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira

de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da

mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e

matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica

O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute

algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da

atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de

hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio

metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior

nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina

metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser

substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria

preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie

descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11

agravequela que afirma a existecircncia

de descontinuidades radicais

10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza

(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11

() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities

21

A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre

da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute

permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas

expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para

designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a

inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no

acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos

fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo

responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades

A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave

abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86

1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da

evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute

imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos

componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia

evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de

conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de

novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou

seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los

como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da

liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral

produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este

aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que

A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios

aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo

compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem

tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da

identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se

22

potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)

Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute

elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a

relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do

princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro

ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por

Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)

Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese

evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das

explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto

subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de

produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na

medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros

conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um

fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave

inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das

explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute

utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua

formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce

soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)

A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e

segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo

incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se

assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo

seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo

23

original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no

tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12

lhes

dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva

aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser

compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)

Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP

1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o

raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o

cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo

processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das

transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a

compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees

de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as

questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409

1878)

O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo

entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual

Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo

indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha

A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor

verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do

processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13

12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei

na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13

Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence

This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio

sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation

24

Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo

indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um

refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a

qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo

constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim

levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf

SKAGESTAD 1981)

A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o

cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o

ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de

regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14

Peirce afirma que a

atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou

palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir

animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para

testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria

das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis

(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o

resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva

para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da

inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que

poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)

Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas

requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua

concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se

14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)

25

trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana

Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da

causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a

concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf

CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a

necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto

ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado

pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15

Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja

realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do

mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza

a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento

cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e

comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)

Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos

da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma

espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se

considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect

204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes

da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser

buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na

experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que

enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)

Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel

15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave

causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na

discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana

26

mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas

teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia

A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da

realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total

abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce

para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o

mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos

com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria

fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)

Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a

doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o

sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o

idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis

fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16

O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo

se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto

desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da

mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia

Retomemos as palavras do proacuteprio autor

A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas

da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que

pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir

haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente

segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo

mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto

por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade

eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute

16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits

becoming physical laws

27

igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP

6 sect 101 1902)17

As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como

etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o

processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um

instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis

17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other

laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this

same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in

the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true

to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of

efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully

intelligent

28

CAPIacuteTULO 01

A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA

The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in

the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very

development of Reason (CP 1 sect 615 1903)

29

Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma

discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da

explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel

central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica

poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo

do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse

projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de

continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de

continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos

moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo

peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo

Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua

metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma

cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela

evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua

hipoacutetese cosmoloacutegica

1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO

Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo

com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da

verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP

5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se

ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida

pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto

30

peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer

Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce

analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O

principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da

afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias

Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos

condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo

representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras

enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de

premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo

mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses

textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e

faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las

(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as

quatro incapacidades humanas

1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute

derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico

2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente

por cogniccedilotildees preacutevias

3 Natildeo temos poder de pensar sem signos

4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18

18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical

reasoning from our knowledge of external facts

2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions

3 We have no power of thinking without signs

4 We have no conception of the absolutely incognizable

31

Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento

intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira

() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e

consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por

uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em

primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a

cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26

1868)19

Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20

natildeo

parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a

caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem

inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a

Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo

tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas

tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente

ldquopragmaticismordquo

Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um

primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de

maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21

um outro caminho

para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum

postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples

19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the

cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition

then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a

cognition only exists so far as it is known 20

Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa

respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21

Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin

32

para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio

evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de

fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo

representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos

uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute

a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa

acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a

evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo

O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral

Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por

objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a

existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que

podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a

incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que

eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto

de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)

Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se

como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram

daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua

eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento

para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente

Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real

Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes

Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era

necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de

22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias

meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo

aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo

pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista

33

papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de

tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo

estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e

sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23

Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a

surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura

encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no

consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de

abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo

imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder

deduzir o particular a partir do universal dadordquo

A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute

investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do

filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do

sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e

por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da

loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo

O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio

regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave

consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio

segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como

explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24

23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down

upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting

of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a

real and living doubt and without this all discussion is idle 24

Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing

what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that

inexplicabilities are not to be considered as possible explanations

34

Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela

encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo

similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande

importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana

Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos

processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de

constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia

que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o

caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele

afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos

celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente

antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo

(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos

ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em

justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro

lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos

nos seguintes termos

Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟

Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma

hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que

realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave

conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25

25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific

explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is

analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses

35

Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual

retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a

forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam

segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce

Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando

deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica

Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas

maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na

predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos

E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis

da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber

a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo

trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a

descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo

dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um

sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713

1883)26

Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e

mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo

prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que

satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a

esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma

concepccedilatildeo antropomoacuterfica

26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and

anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses

We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which

are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the

laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we

naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction

(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is

accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all

these natural conceptions

36

A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao

seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico

para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos

Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de

um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em

consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas

as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as

quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser

encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre

outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma

humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute

Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a

mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das

recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect

47 1903)27

Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem

elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma

decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou

em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente

concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico

de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e

possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos

27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises

from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all

conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots

would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember

that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that

affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same

thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact

Logician

37

() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu

sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a

uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o

homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica

possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que

ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles

limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve

pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de

uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer

coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim

como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua

isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536

1905)28

O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter

antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais

uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho

cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que

natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29

Os elementos de todo conceito diz o autor entram

no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que

ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo

autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30

A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal

caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes

de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma

hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis

28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that

doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely

hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his

needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it

is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits

of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply

cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump

just as high as he possibly could 29

() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific

working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30

() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason

38

(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316

1903)31

A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se

perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32

entatildeo aceitas

como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis

2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA

A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente

reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890

tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce

oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto

ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos

psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser

a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na

proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos

homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das

regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir

um comportamento autocontrolado

Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo

mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um

texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com

31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to

suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering

them comprehensible 32

Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal

caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado

por lei (cf CP 6 sect 36 1892)

39

uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara

Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da

consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de

ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma

imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada

com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser

considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada

expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute

suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito

Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute

algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um

sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o

que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado

conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado

eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma

potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33

Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute

estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis

Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico

para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei

Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica

peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo

dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34

Assim ao

falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e

33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action

such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An

imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature

and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For

our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces

a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to

the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is

actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34

() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals

40

constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja

deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua

determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do

universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que

ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria

passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia

A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a

cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia

peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem

() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais

o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia

Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o

germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser

evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao

haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas

as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo

entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o

mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual

a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33

1891)35

Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho

deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta

abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do

acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para

35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without

connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure

arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but

this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other

principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of

pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical

system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future

41

formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia

21 O NADA

Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do

universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois

tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa

O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto

nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em

que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito

ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)

Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que

sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades

consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)

a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao

introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma

Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um

espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a

natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um

siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36

36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an

interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is

ipso facto itself a symbol although a wholly vague one

42

Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as

possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de

infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect

203 1898)

Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade

surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo

da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma

mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas

platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38

Nessa evoluccedilatildeo o

possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo

A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio

inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de

formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a

dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza

daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o

mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se

definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39

Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a

origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas

37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta

daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre

continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja

verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem

se estabelecer 38

The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which

the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39

The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or

is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be

distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in

particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted

43

Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um

resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo

tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40

O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente

mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira

Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da

continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da

mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas

espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem

agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo

tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter

estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de

dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo

essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41

Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um

processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que

se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a

tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute

a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o

princiacutepio de semelhanccedila e contraste

A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz

que

40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same

thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41

Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the

human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth

etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of

feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number

of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities

44

Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um

mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras

elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele

ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves

outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42

Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida

em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas

seguintes palavras de Peirce

() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se

encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo

elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem

generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43

Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a

hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa

origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se

o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce

A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser

puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um

estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um

modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor

42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere

nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or

less resemblance and contrast with one and other 43

() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

45

uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e

assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44

e acrescenta

Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei

Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado

Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash

possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem

fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45

O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo

com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46

A existecircncia do

universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo

existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior

do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf

CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O

terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua

atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo

na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o

reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada

vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo

44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a

state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a

logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in

which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45

There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the

whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --

boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46

Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os

elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo

diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo

46

triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47

Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre

os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o

mundo e falar sobre ele

() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de

sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de

ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto

de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um

grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a

respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute

outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de

Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente

do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois

modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do

Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A

primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em

minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a

associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute

como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz

de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho

De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de

sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa

unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que

denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente

adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves

outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo

Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos

qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base

os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma

expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo

podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em

um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por

ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior

representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo

intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar

um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo

de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras

de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele

identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e

47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana

primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade

caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)

47

palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias

compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees

de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4

sect 157 1897)48

A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que

continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o

incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade

peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei

da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a

respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana

O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que

parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular

essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade

na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila

Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de

48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits

are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of

feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes

a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is

the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are

two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association

based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it

is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea

of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself

resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of

which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes

what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the

ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop

general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits

of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing

can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can

crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents

things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a

cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double

mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which

denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names

and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words

are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc

48

sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade

ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada

variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o

sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute

natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do

que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada

vez maior (ROSA 2003 p 297-8)

A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em

desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria

bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas

Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade

secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf

HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao

estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a

secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita

acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o

tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute

o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade

de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que

Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute

impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se

tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda

que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo

Como aponta Hookway

Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim

poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um

tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um

limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p

273)

49

Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente

ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem

contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos

infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem

mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos

A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo

e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra

forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a

presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de

desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da

tendecircncia ao haacutebito

Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da

existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce

afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o

mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de

existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a

abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos

inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas

radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de

existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo

(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou

flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave

aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos

anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de

haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse

ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua

49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce

50

origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial

22 O ACASO

Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria

teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico

alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel

tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884

ldquoDesiacutegnio e acasordquo

() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute

explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo

esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de

modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto

(W 4 p 549 1883-4)50

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras

uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas

encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que

dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo

outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do

indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas

que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo

da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da

50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not

absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition

but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit

51

hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o

percebemos

Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um

princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a

muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade

de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de

necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de

certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade

radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado

eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento

da complexidade de forma irreversiacutevel

O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo

(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo

um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva

mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do

desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees

iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que

pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo

A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma

epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas

aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada

pelo homem Para o filoacutesofo

() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O

mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da

experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses

52

fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51

Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as

proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor

() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo

meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para

a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que

opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente

soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a

abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu

concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto

meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje

Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um

longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser

refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado

de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo

conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52

Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do

falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-

las com os fatos natildeo mentais

51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its

characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has

opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52

() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of

premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but

opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions

He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of

them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no

competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time

upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be

glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of

belief

53

O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o

falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas

sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e

indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da

mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53

A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou

crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo

acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo

Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos

acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para

Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo

cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos

elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse

universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma

decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da

natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na

passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o

autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos

Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a

Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin

(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da

mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a

variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de

53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is

never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine

of continuity is that all things so swim in continua 54

Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation

sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda

jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)

54

cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a

busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio

23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE

Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade

examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto

de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36

1892)55

Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as

mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem

determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute

mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo

aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem

cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)

o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no

determinismo nas seguintes palavras

A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer

tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de

coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute

indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as

leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir

desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou

55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law

56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu

curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57

Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs

modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou

influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36

1892)

55

agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58

A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana

carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser

colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59

que poderia muito bem ser admitida

pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais

defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente

mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60

Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de

argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um

postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar

acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua

defesa

Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das

justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e

responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir

como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect

41 1892)61

Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia

Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo

faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida

isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()

58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws

completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus

given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind

could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59

Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a

liberdade e espontaneidade 60

() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61

It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is

requisite to the validity of an inference

56

cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa

inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62

O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio

indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo

mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos

contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise

Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se

coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos

um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima

amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada

elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes

nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41

1892)63

Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada

amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que

se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos

obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras

Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes

ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo

(CP 6 sect 41 1892)64

Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido

a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1

Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em

consideraccedilatildeo

Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A

62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference

63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity

64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle

of universal causation

57

praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe

que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de

valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas

Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a

primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa

aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo

obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente

A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()

certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65

mas como a

observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se

for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na

fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo

Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada

natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que

aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja

qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza

A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor

de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria

posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades

agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser

elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as

observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas

palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais

precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP

65 () certain continuous quantities have certain exact values

58

6 sect 46 1892)66

Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a

admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso

Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor

aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser

pensado o acaso absoluto

Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em

face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na

ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural

esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser

produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47

1892)67

Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute

disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o

fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da

termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees

que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute

utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do

autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso

Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila

natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento

Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante

cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A

aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()

produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68

Mas esse tipo de

66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they

will be to show irregular departures from the law 67

() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects

such as could not pass unobserved 68

() genetic products to recognizable utilities or ends

59

adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal

modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo

aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69

Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel

Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma

Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se

especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal

afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de

atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso

Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute

ininteligiacutevel isto eacute

() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o

como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser

justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca

poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na

produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70

Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois

anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado

sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis

natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo

havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais

Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do

69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the

principle of causation 70

() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and

since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any

right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature

60

determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso

absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria

Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega

a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas

e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de

leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que

podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por

exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo

Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das

leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir

As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os

fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como

aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no

uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento

Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de

equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas

como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma

reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)

Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento

que inverta a flecha do tempo Por exemplo

Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute

com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos

absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente

nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si

proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo

(REYNOLDS 2002 p 3)

61

A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce

aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande

maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem

do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio

As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem

crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem

determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar

(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce

sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm

no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta

inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que

haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo

(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente

explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que

causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da

atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente

(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no

momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite

ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que

explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que

a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no

universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como

fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo

bloquear a investigaccedilatildeo

62

(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema

explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel

explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de

fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos

(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de

que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis

capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect

62 1892)71

Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o

suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como

parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica

cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da

diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras

pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza

Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute

poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo

(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel

(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma

inequiacutevoca

(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa

Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da

tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das

71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with

mathematical precision into considerable detail

63

uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que

desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um

suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma

vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute

sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que

ele produz consequecircncias ou permanece inerte

A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os

avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia

permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses

fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor

Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos

mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro

explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear

o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72

Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde

dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta

acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que

a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado

Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida

que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o

caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em

uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes

72 () to block the road of inquiry

64

3 A LEI

Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro

encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que

Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele

estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em

capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que

suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia

para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109

1892)73

A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias

do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias

do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim

como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo

infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74

Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a

concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve

ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um

determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo

de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no

tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu

iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do

passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75

Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da

73 How can a past idea be present

74 () through an infinitesimal interval of time

75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of

course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling

65

categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A

ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma

inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade

Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um

tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no

momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76

Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma

abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo

A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos

passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que

se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo

consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua

31 O IDEALISMO OBJETIVO

Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua

diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o

monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o

idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande

problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou

natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui

propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou

propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica

76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the

result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment

66

A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da

combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos

aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser

entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce

A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo

autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a

tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e

as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita

de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada

32 A LEI DA MENTE

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as

() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que

permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta

dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras

mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP

6 sect 104 1892)77

Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da

fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a

conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23

77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

67

1891)78

A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da

mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve

ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a

atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade

a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo

perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute

suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade

organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79

O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental

da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo

adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua

maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade

final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um

estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo

78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and

prevent all further formation of habit 79

() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

68

CAPIacuteTULO 02

O SINEQUISMO

Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)

69

Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80

uma investigaccedilatildeo sobre

a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do

pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande

importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam

verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81

Em carta a William James de 1900 Peirce

afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82

isto eacute o ponto de

apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia

Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o

interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e

filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como

afirma em 1897

() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de

continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito

e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver

a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes

os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por

exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute

logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma

delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o

todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da

loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica

(CP 3 sect 526 1897)83

80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese

81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime

importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82

() synechism which is the keystone of the arch 83

() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition

of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical

doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an

inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically

possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a

part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further

development of the conception of logical possibility

70

De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute

poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de

continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo

desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na

construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das

explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem

algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de

continuum

Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da

abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que

apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que

a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta

investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de

explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto

eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da

evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua

funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a

necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto

possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas

teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando

relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de

continuidade

71

1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA

Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum

haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas

pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para

obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma

perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto

natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse

modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica

A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e

mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho

da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)

84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que

isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85

Pois descontinuidades como pontos ou

instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo

explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute

fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do

continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos

Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-

los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade

ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos

procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana

A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento

ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no

84 Do not block the way of inquiry

85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable

72

modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram

certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam

responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A

primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86

hipoacutetese

explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de

matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao

sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do

acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter

elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende

dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando

de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo

As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente

estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia

de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua

verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e

significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7

sect 535)87

Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo

termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas

compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um

problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom

nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como

classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes

recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um

que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A

questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a

soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias

86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho

87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences

73

entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma

espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo

envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe

natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A

questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados

Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em

sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois

eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute

transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo

Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da

continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo

tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma

explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses

agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar

Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela

bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88

eacute mais claramente apresentada por Hookway na

seguinte passagem

() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo

podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais

a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza

do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter

Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um

nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando

um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos

pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina

conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos

um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel

88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes

74

para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais

que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo

(HOOKWAY 1985 p 178)

11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM

Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de

continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo

sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros

pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para

diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade

transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos

finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse

silogismo uma delas eacute a seguinte

Todo texano mata um texano

Nenhum texano eacute morto por mais que um texano

Desse modo todo texano eacute morto por um texano

A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as

demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo

que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma

coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que

excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89

Os seus

constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de

potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa

89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum

75

Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude

dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de

indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um

possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do

existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse

poder (ROSA 2003 p 223)

Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de

ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na

seguinte passagem

Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser

individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa

indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode

haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo

consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um

qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que

o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto

o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer

conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute

composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees

gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo

nosso)90

Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a

curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem

90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

76

uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta

cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto

ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses

estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa

ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado

manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago

na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo

permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a

existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida

Os infinitesimais91

surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes

do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92

e

eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo

for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre

qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha

sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do

continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os

infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do

real Peirce toma o exemplo do dado e afirma

Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade

91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute

menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo

XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos

trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em

funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute

considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um

trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de

nossa parte 92

O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to

trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are

continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)

77

bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o

ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do

que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e

formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma

de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o

haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que

tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como

que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute

necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que

afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute

de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect

664 1910)93

Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos

da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo

que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da

passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir

como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o

Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade

como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos

A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma

ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94

A resposta por ele proposta eacute de que

devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma

lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do

passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem

93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might

have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the

dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul

and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and

upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to

define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would

bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of

the die consists in such behaviour 94

How can a past idea be present

78

uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar

conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95

Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser

consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes

infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um

instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do

fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM

3 p 126)96

2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM

A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que

busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma

parte dos criacuteticos97

insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo

coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema

Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de

Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em

oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas

que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica

Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a

necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma

95 () through an infinitesimal interval of time

96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the

present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97

Por exemplo GALLIE 1952

79

Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado

desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha

por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada

pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais

deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento

humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da

ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido

bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade

aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria

filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o

estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de

resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98

A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer

uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais

duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra

sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre

ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica

Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce

que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma

semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS

620 p 09)

A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos

aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum

98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full

import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who

wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human

knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect

each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of

the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study

of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)

80

topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria

expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos

princiacutepios de desenvolvimento do continuum real

A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos

parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em

sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que

nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio

desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99

Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo

refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas

motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do

desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees

de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914

Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer

uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer

quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100

preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano

(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)

99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de

continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100

Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum

denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas

e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente

compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de

coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador

81

21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO

O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre

as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os

problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele

tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101

essa caracteriacutestica ficou conhecida na

literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce

leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de

Cantor

Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a

necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de

uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro

incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em

oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de

apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute

determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo

raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da

cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e

que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele

Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e

considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a

vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo

comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia

Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo

que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo

101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense

82

objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como

representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102

Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve

existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se

em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira

seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma

outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita

divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se

tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto

que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria

Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873

Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas

atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O

filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias

segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por

processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103

Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais

detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais

uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio

dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104

102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the

liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object

quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the

cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two

such lines represent that they are two different cognitions 103

First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous

processes 104

In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another

or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established

83

Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar

agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo

da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a

implicaccedilatildeo entre ideias105

Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo

formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo

mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se

apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa

propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o

continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que

possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao

estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema

mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante

22 PERIacuteODO CANTORIANO

Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade

poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em

propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca

Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma

anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com

aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente

adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas

105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa

de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os

caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento

seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no

processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese

84

do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma

conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar

com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre

continuidade (MOORE 2007 p 434)

Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade

deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a

definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a

tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do

continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas

propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade

(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia

agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106

ou ainda que a

ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107

Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um

limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108

ou ainda

que

A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do

seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria

infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum

conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma

seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP

6 sect 123)109

106 property of infinite intermediety or divisibility

107 The Kanticity is having a point between any two points

108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system

109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every

endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in

using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both

of the limits

85

Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce

jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo

escreve

[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou

outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de

tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode

mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada

instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo

eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um

exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes

tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato

que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema

dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a

de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de

pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect

164 1889)110

Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum

que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia

evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo

continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a

beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na

linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse

110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that

of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move

from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This

statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old

definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact

that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The

less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --

words which must be understood in special senses

86

assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect

171 1897)111

23 PERIacuteODO KANTIANO112

Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por

Kant113

de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168

1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo

que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma

abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees

Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos

pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da

linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114

Peirce afirma pois que continuidade eacute

totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto

maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum

As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115

expressavam o seu desacordo com

uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e

descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116

Em termos mais

111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of

continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the

entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112

Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo

de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113

Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado

era somente o de infinita divisibilidade 114

(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there

is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115

No texto A lei da mente 116

It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is

87

compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e

Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias

partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de

natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as

partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de

1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova

elaboraccedilatildeo

24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO

Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma

coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo

pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo

tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6

sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma

coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de

alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as

partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642

1908)117

Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes

devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo

uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de

tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave

definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das

pequenas partes temporais

manifestly non-metrical 117

(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole

88

Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para

demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso

que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo

Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo

fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect

642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou

da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja

vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)

Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento

de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu

pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees

cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final

se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi

indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de

generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo

modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo

capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final

89

CAPIacuteTULO 03

A EVOLUCcedilAtildeO

Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the

doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP

6 sect 554 1887)

90

Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se

efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana

Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A

negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser

sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de

fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas

tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu

origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da

perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz

Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)

1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA

Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva

epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a

evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees

oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua

adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o

estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como

candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito

anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo

Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado

que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa

(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos

eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos

desperta o menor interesse Peirce diz

91

Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade

definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que

deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da

experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado

de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute

regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo

correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas

quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189

1901)118

Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito

que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade

motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A

maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem

() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se

fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado

aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de

ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute

tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197

1901)119

O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso

ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese

118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites

any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and

regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why

there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which

I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that

119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true

before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at

least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical

consequence necessary or probable

92

que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses

segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao

fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido

Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo

necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o

caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das

explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese

evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o

uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma

explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como

aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de

explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para

compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo

(Hookway 1985 p 267-68)

Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada

como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis

entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da

seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das

semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees

De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria

capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele

afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em

geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120

em outro momento afirma que

Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida

que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei

120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them

results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely

93

ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia

acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como

eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121

Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que

A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e

corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo

cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel

afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a

buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)

Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar

o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e

agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o

resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se

impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A

discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e

regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus

Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce

identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante

para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante

crescimento de complexidade

A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo

atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese

121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past

not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was

always as rigidly necessary as it is now

94

evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as

variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos

aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo

de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de

investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais

autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da

razoabilidade concreta no universo

2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX

Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na

insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados

por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do

mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo

podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista

dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo

como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das

explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute

mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin

que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda

metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do

de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora

que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu

sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de

coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo

teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o

tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides

95

tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122

O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem

mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais

geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que

levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos

paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel

A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da

abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser

explicada Diz Peirce

Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma

caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos

limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave

lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e

diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo

pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa

variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar

conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade

e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa

espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na

morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123

Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta

da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados

dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar

esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de

122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important

philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist

123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since

96

se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que

considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute

interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na

natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124

A

fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos

1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com

desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos

2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves

moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e

3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP

1 sect 193 1903)

Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior

importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua

insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que

possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma

() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente

daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo

muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso

Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as

forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP

1 sect 347 1903)125

124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity

and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say

how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions

97

Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos

irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar

apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na

teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de

atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel

fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o

crescimento do universo como um todo

A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que

ficou conhecido como a lei da vis viva126

que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio

segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na

vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768

ca 1889)127

As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos

corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema

inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo

forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa

Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos

implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas

ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia

unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas

precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo

oposta (CD p 2319 ca 1889)128

126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como

sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo

de partiacuteculas

127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system

depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental

forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative

forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but

opposite in direction

98

A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo

conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos

sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas

fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto

conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma

direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da

vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma

Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da

mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os

sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)

As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo

bem indicadas por Peirce na seguinte passagem

Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de

energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o

preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo

determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa

sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em

qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes

em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente

na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129

ou ainda

129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical

universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent

does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the

velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were

Everything that had happened would happen again in reverse order

99

Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes

quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de

energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas

natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse

modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12

m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)

2 unicamente como o

quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele

da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo

indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2

p 481)130

O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o

universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se

pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas

direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta

aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma

avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios

momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais

fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode

igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131

Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em

algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio

A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a

maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu

respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees

experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau

130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of

the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon

nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the

analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)

2 only as squared

Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two

directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing

that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance

100

extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a

atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma

aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua

tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a

conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam

por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os

ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees

extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de

que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132

O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo

emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos

fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles

que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de

irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que

(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa

atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de

Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na

linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o

nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a

resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das

cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas

desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a

experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133

132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural

philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential

verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard

to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation

to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of

the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for

example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of

energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be

absurd to doubt

133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that

is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be

reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion

resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids

() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their

mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals

101

Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do

caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo

como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo

isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora

como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce

A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot

(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a

tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o

calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de

que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo

encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a

direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds

Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos

irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell

Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria

da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma

abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O

tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do

vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p

42)

Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher

todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas

uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das

probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das

partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior

do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o

102

compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo

determinadas pelo acaso

Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos

propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of

chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais

sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134

Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo

paraacutegrafo

Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma

variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a

teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as

peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir

algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia

estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma

coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de

accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo

os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135

Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo

denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas

principais

a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para

a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final

134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of

chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science

135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were

not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected

map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of

energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to

show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the

means of proving its presence

103

b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)

Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que

se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar

uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final

(cf CP 7 sect 471 1898)

Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo

que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como

criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo

isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo

dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em

funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da

interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a

irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber

este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final

Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute

uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria

termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece

ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos

de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que

compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com

a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento

da ciecircncia

104

3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO

As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que

tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136

isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos

encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira

intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da

Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o

ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte

Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha

um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo

orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em

atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes

de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias

propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a

reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o

desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana

ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia

assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a

destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a

taxa de mortalidade

Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas

nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua

vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a

interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na

136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary

loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88

e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema

105

medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar

lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce

afirma

Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute

evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a

evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP

6 sect 16 1891)137

E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de

acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face

dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees

que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash

como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo

individual mas respostas a mudanccedilas ambientais

Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos

parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da

biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator

na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente

natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em

geral (CP 6 sect 17 1891)138

137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance

and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort

138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the

broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the

historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the

process of evolution of the universe in general

106

4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO

Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no

interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto

eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos

Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos dos mais variados campos

A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de

explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu

Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e

concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma

darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute

bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um

determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de

elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas

seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-

se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas

almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista

A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de

nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que

mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139

Embora esse tipo de evoluccedilatildeo

natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute

o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O

exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu

no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)

139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known

facts as more and more observations came to be collected

107

Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o

impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar

sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140

Como exemplo o autor indica a descoberta dos

micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -

1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos

observacionais

5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA

Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos

acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de

aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo

Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita

denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada

denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da

causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo

ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica

proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por

cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica

corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana

Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo

Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa

possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de

140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning

about the observations

108

maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas

degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)

Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui

contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o

fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu

lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no

qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados

ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da

mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304

1893)141

O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na

medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada

perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o

fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142

Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o

hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava

mirando

O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando

submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se

necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja

uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma

Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas

as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143

O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo

141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind

142 () living freedom is practically omitted from its method

143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits

109

que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144

Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145

Eacute a causa final

acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender

essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o

sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)146

6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO

Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa

final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985

p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o

define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e

a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um

contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta

Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do

mundo (cf CP 6 sect 101 1902)

144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus

in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character

146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

110

A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser

in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce

expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa

desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo

Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia

possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos

adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce

O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias

mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente

cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas

por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que

a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da

mente () (CP 6 sect 307 1893)147

Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio

primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo

(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que

() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual

devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que

devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de

tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal

modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de

147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as

in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate

attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is

by virtue of the continuity of mind ()

111

regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148

Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se

autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao

monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente

um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as

leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149

O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das

leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o

princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso

em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos

e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150

Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para

Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na

mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo

7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE

No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem

tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos

148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as

far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so

that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high

degree of mechanical regularity or routine

149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of

matter a special result of the laws of mind

150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance

tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and

the cosmos of order and law

112

estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por

meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus

estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e

isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect

433 1905)151

Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila

de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por

trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs

modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a

mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute

auxiliado pela disposiccedilatildeo

A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]

para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um

haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152

A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar

com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre

acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados

satildeo estabelecidos Peirce indica que

O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o

sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo

satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o

tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo

mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute

repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153

151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the

pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general

152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit

and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an

attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the

113

Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande

disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais

plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154

pois apresenta em

maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade

desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de

tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional

Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa

que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a

qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O

objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa

desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em

outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer

outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras

ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se

subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155

Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie

de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o

autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156

Cabe agrave

loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191

1903)

Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao

kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently

matured agent and the evil is the repulsive to the same

154 The most plastic of all things is the human mind ()

155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the

development of concrete reasonableness ()

156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-

control is a perfect mirror of ethical self-control

114

cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo

claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho

intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de

obter a verdade

A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada

no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada

eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode

ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo

assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo

ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto

podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar

nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o

mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na

loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute

seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()

(CP 4 sect 615 1903)157

157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is

going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more

satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness

is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it

Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by

giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In

logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods

as must develop knowledge the most speedily ()

115

CAPIacuteTULO 04

A ABDUCcedilAtildeO

Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of

heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you

and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a

conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with

experiments (CP 6 sect 461 1908)

116

1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS

Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou

natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE

(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985

entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a

quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia

que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas

ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua

reflexatildeo

A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus

primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica

da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com

relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-

relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica

como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes

dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio

autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se

divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica

Criacutetica e Metodecircutica

A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute

neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica

tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata

dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez

compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua

abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do

uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado

117

Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da

perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da

filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de

um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo

Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento

seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos

problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados

com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus

textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte

de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta

aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por

essas mesmas concepccedilotildees

Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute

essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais

para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais

elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave

abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute

em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e

se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua

melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois

eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do

que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160

A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado

158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a

longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que

todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que

as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159

Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160

From this definition pragmatism is scarce more than a corollary

118

de duacutevida autecircntica161

que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e

verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e

em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que

ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se

que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos

incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma

privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a

utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374

1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de

um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles

produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um

homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)162

Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do

tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711

1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como

autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e

inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um

processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o

futuro

161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo

desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a

natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta

maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de

vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um

conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162

() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit

119

Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral

refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa

coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo

pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser

eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163

Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas

vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se

necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo

passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de

maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo

desse modo o autocontrole

Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute

indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164

Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma

caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador

principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a

questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com

aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe

as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas

podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo

O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as

investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as

primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP

5 sect 116)165

uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como

163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past

contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot

be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164

() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165

() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question

120

Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade

de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de

cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira

Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se

forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela

de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma

proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um

percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo

(CP 5 sect 115 1903)166

Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito

que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para

justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo

perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo

pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma

boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute

fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo

da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida

em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o

suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela

realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente

nesse processo

Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do

senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN

166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to

me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of

formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand

is an image or moving picture or other exhibition

121

1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas

comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para

penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho

efetivo (ver REILLY 1970)

Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais

meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele

descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer

naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter

crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma

duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa

muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem

agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas

assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo

incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por

criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na

tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf

CP 5 sect 377 1877)

O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por

levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo

toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo

custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo

afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou

tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a

posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo

basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos

das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)

O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz

122

Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel

que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma

questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)

Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da

tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao

governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel

(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos

terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas

estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a

experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)

Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167

cabe a

Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer

crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas

crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por

alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168

e

acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o

pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169

O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia

estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo

processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A

vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de

investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se

fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa

refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos

167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana

168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but

by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169

But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real

123

desse meacutetodo Peirce afirma que

Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das

nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis

regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam

nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo

podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente

satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido

o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect

384 1877)170

A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos

demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita

suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem

que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete

com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute

resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel

natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o

conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer

elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom

funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e

racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171

Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser

[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo

ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e

deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172

Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma

170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect

our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects

yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and

any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171

() rationalization and of rationalization by us 172

That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country

124

hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A

aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos

produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os

mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser

compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia

realizaacutevel

Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de

intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao

menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do

conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo

modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce

buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e

posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de

outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo

de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta

teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que

Peirce denominou de abduccedilatildeo174

No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do

universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce

desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou

ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)175

Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas

ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173

Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174

Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175

() the inferential process involves the formation of a habit

125

anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de

trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a

deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo

A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em

muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis

esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no

interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa

teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja

como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da

formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo

de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio

para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos

perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns

comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica

com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica

que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade

dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo

Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute

encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade

de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam

aproximar-se da verdade

A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da

epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees

para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os

juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira

126

() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem

qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas

primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um

caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem

absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176

Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico

polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o

fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute

por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo

tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e

compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se

as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se

acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)

A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute

como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo

geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de

natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a

principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se

natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como

entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena

A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem

o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega

Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte

176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or

in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive

inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism

127

integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as

iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais

faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que

possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)

A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes

contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a

grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas

tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que

cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa

claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o

processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma

ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente

desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177

Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como

um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo

atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia

como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se

passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo

quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma

forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a

proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O

argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira

entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie

Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que

noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves

177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces

any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary

consequences of a pure hypothesis

128

conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178

e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que

provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect

54 1902)179

Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre

inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz

Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para

indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de

nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem

criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar

natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que

usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma

razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)

De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a

abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma

inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo

uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem

2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO

Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma

maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se

178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a

conclusion 179

Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an

entirely different construction from the thinking process

129

novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo

A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o

raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou

falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo

igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua

justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo

possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo

deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de

uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com

os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer

a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145

1903)180

No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma

descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os

seguintes silogismos

Deduccedilatildeo

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth

or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction

is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the

investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error

The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it

measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can

deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction

130

Induccedilatildeo

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Hipoacutetese

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria

silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo

ldquoObserva-se um fato surpreendente C

Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente

Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181

Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem

comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo

possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena

181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to

suspect that A is true

131

consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em

que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou

plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem

posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo

com os fatos por meio da induccedilatildeo

Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo

estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo

deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas

indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz

ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os

caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP

5 sect 173 1903)183

O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos

sinteacuteticos184

em 1868 o autor afirma

De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os

juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os

juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute

absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a

particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia

(CP 5 sect 348 1868)185

182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well

be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include

abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class

in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183

However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-

controlled and critical logic 184

Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185

According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But

antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how

synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one

will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy

132

O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema

bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a

partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que

no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta

questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade

dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo

encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de

hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do

sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por

meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do

nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de

hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo

conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo

implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia

e sua epistemologia

A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima

Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos

de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do

tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se

altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem

loacutegica legada por Aristoacuteteles

Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos

argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste

depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p

31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo

de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais

tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo

133

Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita

entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que

compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia

dedutiva186

dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas

e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a

elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico

Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que

realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada

pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja

perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na

fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre

qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as

suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o

seguinte comentaacuterio

Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo

verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de

um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de

acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente

resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo

do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194

1878)187

Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese

186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century

Dictionary 187

By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we

conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws

something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter

from effect to cause The former classifies the latter explains

134

fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz

referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que

enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em

um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua

cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo

honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se

encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em

algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos

e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que

ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos

Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina

o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses

Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um

outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo

sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito

seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute

encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do

escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma

hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que

duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por

acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes

termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em

um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao

objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188

O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso

envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade

grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima

188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the

characters of that class belong to the object in question

135

apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que

correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito

na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente

diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira

ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos

similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p

198)189

Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada

neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce

ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de

novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que

no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o

nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar

e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores

Em um texto de 1901 lemos

Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas

ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes

de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas

confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a

induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)

como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190

189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas

hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190

Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to

distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of

these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together

(often mixed also with deduction) as a simple argument

136

No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo

seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas

aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem

mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas

eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se

verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira

razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um

haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a

hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta

esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia

ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o

resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191

A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do

pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa

distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam

segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos

leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de

descobrir

Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o

primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A

experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe

conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual

for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192

Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser

considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu

sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia

191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar

musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192

All knowledge whatever comes from observation

137

do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo

inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees

apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente

atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e

acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou

pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo

cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193

Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que

alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o

curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador

A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto

externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute

sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter

consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo

A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta

explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende

para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste

Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo

deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria

eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma

vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a

necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder

agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome

induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original

empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por

193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great

effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain

grade of reality or independence of our cognitive exertion

138

meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo

conformes agrave experiecircncia

As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia

somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por

meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou

agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a

investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de

autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o

investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este

estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se

verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese

A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem

testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da

economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo

desempenha neste estaacutegio Peirce diz

Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro

esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes

tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode

fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo

se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194

194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it

remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can

stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any

rational way

139

A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf

CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto

surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse

das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que

devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica

tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses

que Peirce estabelece satildeo

1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel

2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos

3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo

do princiacutepio de economia da pesquisa

A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um

certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de

uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma

prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195

Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma

teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do

diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir

uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf

CHAUVIREacute 2003 p 84)

E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes

devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou

esforccedilo em seus testes

195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted

140

CAPIacuteTULO 05

A CAUSALIDADE FINAL

Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly

intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the

contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of

conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)

141

Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas

agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas

e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo

da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original

Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central

que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte

proposto no todo desta tese

Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da

causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de

esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial

do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de

vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo

do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A

teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b

p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196

eacute visto pelo

filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma

() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor

de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de

absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS

478)197

Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no

seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)

196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197

() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and

nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her

haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)

142

afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute

mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade

junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas

eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como

acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas

explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo

da situaccedilatildeo atual

() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor

das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior

das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na

barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo

os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a

suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito

incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem

mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a

compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos

Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa

prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado

como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo

filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer

incompreensiacutevel

Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os

fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro

descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo

da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a

explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a

proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute

o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo

143

(HULSWIT 1996 P 183)198

Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o

tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada

e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua

inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das

descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos

1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL

Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199

Peirce daacute tanto agrave causalidade

final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia

certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira

como foi definida por Aristoacuteteles

O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na

declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes

ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a

verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar

fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem

consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo

particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado

geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa

final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o

resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200

198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997

199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996

200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all

causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the

truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a

general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this

or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one

time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is

to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma

144

Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos

A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela

condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa

situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual

for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente

Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um

tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente

nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no

momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de

um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave

estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a

bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer

relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute

verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo

geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e

compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201

Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de

maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos

comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute

realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da

afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica

peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em

relevo essas diferenccedilas 201

Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a

compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general

character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the

wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it

but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it

is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient

causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient

causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the

bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force

is compulsion and compulsion is hic et nunc

145

Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes

compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo

chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero

chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo

viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do

que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um

nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202

A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado

com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo

experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos

de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo

peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico

desempenhado pela causa final no sistema peirceano

Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a

causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela

pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins

Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a

sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A

fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo

elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito

maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados

Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205

1902)203

Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo

autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a

202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of

causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling

for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient

causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so

much as chaos without final causation it is blank nothing 203

A purpose is an operative desire

146

atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo

reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica

Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao

pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como

um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio

de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos

para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com

que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se

tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as

leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204

Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta

tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente

antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que

isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e

marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar

que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz

Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute

alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute

assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana

satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205

Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza

tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa

204 This is to say we guess out the laws bit by bit

205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which

the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human

convenience are witness

147

caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia

a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206

Como

afirma Hulswit

() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave

experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se

elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e

nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um

problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p

184)

A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser

considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida

como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade

humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica

que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash

uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo

O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que

naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o

autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em

evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos

detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral

Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar

dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro

categorial

Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de

206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations

148

causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo

presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo

aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a

torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos

de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e

inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua

atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar

exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um

curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)

Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final

que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer

evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere

categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e

concretos

Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute

afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo

eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas

eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o

desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma

classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto

quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim

continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto

definido e concreto

Em segundo lugar207

embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa

influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e

207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer

tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which

may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for

149

futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo

cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas

trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina

natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de

Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia

resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui

o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra

coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo

transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela

mediaccedilatildeo

Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos

um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a

dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema

perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado

teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de

estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo

poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto

expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como

condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes

mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante

processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da

causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos

processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a

originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas

palavras de Peirce

future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a

uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos

de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente

150

Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas

uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem

Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser

in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos

fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo

bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do

futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208

O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva

de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas

tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada

Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou

inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em

suas palavras

Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute

realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua

realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute

realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica

(NEM 4 p 66 1902)209

208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension

of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears

in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a

quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of

something else 209

By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that

if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about

or approached by an independent line of mechanical causation

151

2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE

A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela

restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal

como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a

qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a

ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da

nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do

mecanicismo e a pura espontaneidade do caos

Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de

uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim

chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica

claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo

Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica

sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas

satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam

em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo

de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para

aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia

em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas

eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210

As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas

caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita

aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira

210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due

to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in

one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is

too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state

The other character of non-conservative action is that they are irreversible

152

controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra

maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as

causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para

a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto

Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo

perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou

daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus

veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a

face da terra (CP 1 sect 217 1902)211

Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia

a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente

apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que

a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212

Eacute a causa final

diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa

atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual

sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)213

Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce

211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are

not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and

having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212

Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character 213

What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

153

apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa

distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220

1902)214

Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as

propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido

por Peirce

Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado

Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos

livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com

os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira

Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista

cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um

espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que

ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor

definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente

natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como

as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa

final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215

A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que

jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo

enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)

Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo

crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente

inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de

214 A man is a wave but not a vortex

215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels

entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary

canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so

that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a

singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now

the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the

object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final

causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account

154

aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das

formas diferenciadas Como indica o autor

Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de

aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser

descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟

(CP 6 sect 23 1891)216

A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um

determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em

funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das

hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou

estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se

manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute

presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural

como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma

montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo

passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou

uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira

esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa

final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes

cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela

accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)

Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal

216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked

by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the

general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

155

criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente

ressaltando a sua complementaridade

A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e

todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O

tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser

imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele

exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu

punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente

destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria

eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter

hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217

A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos

naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais

eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do

xerife e do tribunal

A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal

sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum

cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial

que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia

estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas

permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218

217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The

court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no

whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if

there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess

efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies

potential regularity 218

A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament

might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who

unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the

perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen

156

A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo

as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter

Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro

brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em

referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem

sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade

eficiente e final (POTTER 1997 p114)

Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos

trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de

tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira

existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em

confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser

consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que

O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o

dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a

concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam

cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o

menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo

significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado

deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o

mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os

fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como

pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente

separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute

caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais

e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de

liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam

teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219

219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to

exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or

that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate

meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated

chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and

157

Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que

os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta

ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220

A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a

chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente

em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e

que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro

texto

Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e

onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas

natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem

gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e

intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159

1897)221

A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese

natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em

toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das

restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao

descrever a tessitura da realidade

Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica

do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos

psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely

separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental

and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint

which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220

Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221

It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients

imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell

the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of

nature

158

limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as

grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade

do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser

compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel

variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode

minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da

espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia

desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-

na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece

facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222

Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a

continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem

introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o

acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que

a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada

O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser

individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado

contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um

agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas

condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos

distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado

uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado

eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude

possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo

conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que

permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223

222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my

view appears to me not easily controverted 223

That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

159

A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de

criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos

abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de

um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute

foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de

algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos

concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo

3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO

Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua

atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo

peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo

da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede

Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos nos mais variados campos

A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de

1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento

(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado

pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

160

esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN

1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um

indiviacuteduo Peirce afirma que

() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade

esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-

determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A

ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma

medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224

Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade

com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que

caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse

inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a

proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em

crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento

da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos

teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes

sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais

variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a

possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de

desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final

desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade

imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT

1994 p 406)

224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere

purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea

living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now

conscious

161

Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo

como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu

processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das

limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo

de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman

O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da

complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do

tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento

uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir

(HAUSMAN 1998 p 630)

A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada

por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas

O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras

de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si

cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela

virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225

Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde

a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo

possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que

aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar

Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees

em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute

completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect

225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is

divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind

162

288 1893)226

Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o

universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os

germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289

1893)227

Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a

hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por

sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar

dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel

por si mesmo

O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos

individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter

sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de

incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas

ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na

medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida

nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim

entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de

mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as

cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido

lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute

em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve

lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute

acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da

Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do

que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja

admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo

compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob

esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na

operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel

sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar

que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os

meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP

1 sect 615 1903)228

226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and

drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula

we call the Golden rule 227

() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228

The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of

Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of

growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will

make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully

163

Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo

de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica

O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem

descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em

si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo

poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto

a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos

indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou

b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em

simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a

atratividade da ideia ou

c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de

seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si

(POTTER 1997 p 187)

4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA

Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas

principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos

em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi

manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of

more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including

pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment

that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the

year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how

one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing

whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we

can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation

of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to

us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to

follow such methods as must develop knowledge the most speedily

164

dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece

ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos

presentes em ambas as noccedilotildees

Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de

causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute

bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de

um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as

ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua

obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as

concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade

Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro

da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos

interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes

questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por

necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera

tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas

acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por

produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais

necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias

independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as

coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem

que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo

(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que

exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)

O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que

acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na

parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e

165

constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm

a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente

construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas

inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de

modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que

ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo

devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002

200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de

acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro

causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento

Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute

bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)

A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles

(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e

afirma

A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes

integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa

material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa

eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute

chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo

de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute

chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo

consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como

o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229

229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its

matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum

is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute

the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is

hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics

the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)

166

Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente

antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e

o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta

forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute

compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo

propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A

causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa

Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder

causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas

potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila

algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim

Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a

consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as

instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa

eficiente do acaso e da causa final

Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma

causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra

Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou

objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo

atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer

processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida

com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que

no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de

novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso

Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo

peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do

167

acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana

de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final

5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL

O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos

do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo

peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O

problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do

mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade

final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf

HULSWIT 1997)

Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no

texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar

com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja

de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a

questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a

resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um

caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-

lo em grupos distintos

Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do

mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria

classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230

Ao tratar da classificaccedilatildeo

natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo

230 () desire creates classes and extremely broad classes

168

naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes

eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista

arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda

natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute

definido por Peirce da seguinte maneira

() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo

consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas

ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o

nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O

nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das

palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso

mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231

Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo

sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute

vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo

vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo

Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra

possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel

231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects

merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being

of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that

they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our

everyday world consists of

169

CONCLUSAtildeO

() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts

comprehensible (CP 8 sect 168 1903)

170

A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o

horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias

cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada

sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da

investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas

formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para

constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das

categorias faneroscoacutepicas232

reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e

terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o

exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um

processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da

lei da mente e da causalidade final

Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado

de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica

que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um

continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o

filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra

(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo

a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo

A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da

reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de

infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui

pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais

continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o

tempo e o espaccedilo

232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia

171

O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O

processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e

liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa

por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei

da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que

natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela

oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por

meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer

pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o

aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se

impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de

abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem

Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da

mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de

qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos

fenocircmenos e marcante em outros

A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios

incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute

uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse

tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor

isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas

reveladas pela experiecircncia

Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se

verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos

irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que

tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese

172

Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da

cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou

essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma

conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no

capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o

regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de

bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos

Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua

investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser

refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O

primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no

entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses

equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma

explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila

para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a

serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela

mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

mostrou-se uma ilusatildeo

A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito

claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo

eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor

Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo

poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A

efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um

instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a

conduta adequada para a sobrevivecircncia

173

A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo

adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade

de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo

chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista

natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do

universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo

evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas

Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a

desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um

princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica

Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP

1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)

A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por

meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do

estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito

mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro

suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da

vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente

determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso

cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33

1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde

agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado

final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce

como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias

peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como

inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o

infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a

tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do

174

mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz

ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem

175

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DEDICATOacuteRIA

Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam

agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini

e aos amigos presentes e ausentes

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha

orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha

compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem

como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash

Denis Diderot e agrave equipe Sphere

Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees

Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos

professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e

aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese

Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a

realizaccedilatildeo deste trabalho

Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos

integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana

Belmonte

Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos

juntos

Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei

Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou

ambos

RESUMO

VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce

2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011

Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce

particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que

faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos

naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as

caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo

arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode

ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum

que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e

lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo

evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo

finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees

restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo

Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia

ABSTRACT

VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce

2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao

Paulo Sao Paulo 2011

This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the

relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance

determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of

explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his

thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the

concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of

Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological

categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the

cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The

law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of

phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however

exhausting it

Keywords cosmology synechism abduction teleology

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo

W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de

composiccedilatildeo

CN x p y

MS x

-

-

Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)

Manuscritos nuacutemero do manuscrito

EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y

HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x

p y

NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns

estudiosos usam NE)

CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO 11

CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28

11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29

12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38

121 O NADA 41

122 O ACASO 50

123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54

13 A LEI 64

131 O IDEALISMO OBJETIVO 65

132 A LEI DA MENTE 66

CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68

21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71

211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74

22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78

221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81

222 PERIacuteODO CANTORIANO 83

223 PERIacuteODO KANTIANO 86

CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89

31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90

32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94

33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104

34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106

35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107

36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109

37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111

CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115

41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116

42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128

CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140

51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143

52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151

53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159

54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163

55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167

CONCLUSAtildeO 169

REFEREcircNCIAS 175

11

INTRODUCcedilAtildeO

Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of

mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be

considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the

imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two

ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle

force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly

prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)

12

A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e

abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e

poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em

Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce

foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu

fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber

Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos

pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos

existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e

sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos

dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande

contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento

Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista

entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua

eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em

casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard

desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via

nele o potencial de um gecircnio

Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879

mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras

Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel

(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo

quarenta e quatro anos

1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a

base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e

da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891

13

O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas

entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes

estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a

continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce

ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163

1897)3

Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo

O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final

desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava

determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos

sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a

sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de

natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da

falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento

quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes

aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como

veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se

lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui

lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos

Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual

uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste

na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais

variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande

auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar

alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada

2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema

filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy

14

pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo

significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos

detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento

da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a

realizaccedilatildeo da pesquisa

Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo

inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um

ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a

compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada

natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se

nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave

determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o

fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da

experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias

Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do

saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do

escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima

que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273

1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que

para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a

toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para

tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio

do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu

alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais

possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5

sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese

sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a

abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor

15

O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia

parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento

peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus

escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos

daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE

1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida

de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses

amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de

cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos

axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas

apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito

acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete

suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo

haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se

na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo

de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente

aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que

como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos

Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo

eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas

para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o

projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com

Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta

dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda

atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros

passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da

accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo

temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel

fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo

16

pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e

TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis

e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e

resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos

Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o

mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O

elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer

avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do

funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou

tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a

descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva

natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia

satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o

desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()

minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes

agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos

naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4

Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se

aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial

Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect

269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade

da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante

nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos

desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)

4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion

that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf SPEDDING 1989 p 571)

17

afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se

considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse

modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia

na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar

Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto

inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista

do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a

causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da

cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no

futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de

determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p

200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a

concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida

Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas

podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por

Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais

ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos

dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the

Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a

causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo

caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7

Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um

seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser

6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation

7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is

worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank

nothing

18

totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo

original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que

desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido

realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um

papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem

eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos

naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a

epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia

O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada

por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE

1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a

atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese

que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo

de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar

uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect

538 1902)

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto

central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la

expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns

princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto

inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional

para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias

satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo

racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua

8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce

incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e

Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)

19

postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito

de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A

hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de

possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a

necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser

explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido

Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual

dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia

possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees

natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)

como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo

A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a

passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro

continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse

capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo

No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim

como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP

6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a

inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como

aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo

fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p

630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas

consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma

quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo

princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das

9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha

exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser

classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica

20

principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10

e o sinequismo O problema eacute

colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o

crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia

cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo

A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa

explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como

inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no

seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e

consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso

indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os

pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira

de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da

mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e

matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica

O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute

algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da

atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de

hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio

metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior

nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina

metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser

substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria

preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie

descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11

agravequela que afirma a existecircncia

de descontinuidades radicais

10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza

(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11

() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities

21

A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre

da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute

permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas

expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para

designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a

inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no

acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos

fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo

responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades

A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave

abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86

1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da

evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute

imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos

componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia

evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de

conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de

novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou

seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los

como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da

liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral

produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este

aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que

A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios

aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo

compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem

tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da

identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se

22

potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)

Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute

elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a

relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do

princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro

ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por

Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)

Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese

evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das

explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto

subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de

produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na

medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros

conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um

fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave

inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das

explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute

utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua

formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce

soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)

A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e

segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo

incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se

assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo

seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo

23

original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no

tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12

lhes

dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva

aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser

compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)

Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP

1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o

raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o

cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo

processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das

transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a

compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees

de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as

questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409

1878)

O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo

entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual

Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo

indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha

A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor

verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do

processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13

12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei

na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13

Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence

This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio

sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation

24

Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo

indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um

refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a

qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo

constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim

levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf

SKAGESTAD 1981)

A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o

cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o

ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de

regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14

Peirce afirma que a

atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou

palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir

animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para

testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria

das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis

(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o

resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva

para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da

inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que

poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)

Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas

requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua

concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se

14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)

25

trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana

Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da

causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a

concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf

CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a

necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto

ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado

pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15

Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja

realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do

mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza

a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento

cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e

comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)

Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos

da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma

espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se

considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect

204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes

da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser

buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na

experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que

enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)

Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel

15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave

causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na

discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana

26

mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas

teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia

A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da

realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total

abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce

para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o

mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos

com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria

fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)

Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a

doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o

sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o

idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis

fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16

O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo

se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto

desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da

mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia

Retomemos as palavras do proacuteprio autor

A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas

da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que

pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir

haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente

segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo

mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto

por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade

eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute

16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits

becoming physical laws

27

igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP

6 sect 101 1902)17

As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como

etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o

processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um

instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis

17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other

laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this

same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in

the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true

to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of

efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully

intelligent

28

CAPIacuteTULO 01

A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA

The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in

the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very

development of Reason (CP 1 sect 615 1903)

29

Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma

discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da

explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel

central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica

poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo

do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse

projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de

continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de

continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos

moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo

peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo

Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua

metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma

cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela

evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua

hipoacutetese cosmoloacutegica

1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO

Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo

com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da

verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP

5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se

ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida

pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto

30

peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer

Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce

analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O

principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da

afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias

Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos

condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo

representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras

enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de

premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo

mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses

textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e

faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las

(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as

quatro incapacidades humanas

1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute

derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico

2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente

por cogniccedilotildees preacutevias

3 Natildeo temos poder de pensar sem signos

4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18

18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical

reasoning from our knowledge of external facts

2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions

3 We have no power of thinking without signs

4 We have no conception of the absolutely incognizable

31

Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento

intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira

() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e

consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo

eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por

uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em

primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a

cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26

1868)19

Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20

natildeo

parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a

caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem

inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a

Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo

tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas

tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente

ldquopragmaticismordquo

Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um

primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de

maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21

um outro caminho

para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum

postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples

19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the

cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition

then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a

cognition only exists so far as it is known 20

Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa

respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21

Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin

32

para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio

evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de

fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo

representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos

uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute

a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa

acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a

evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo

O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral

Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por

objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a

existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que

podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a

incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que

eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto

de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)

Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se

como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram

daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua

eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento

para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente

Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real

Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes

Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era

necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de

22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias

meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo

aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo

pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista

33

papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de

tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo

estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e

sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23

Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a

surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura

encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no

consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de

abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo

imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder

deduzir o particular a partir do universal dadordquo

A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute

investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do

filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do

sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e

por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da

loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo

O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio

regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave

consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio

segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como

explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24

23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down

upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting

of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a

real and living doubt and without this all discussion is idle 24

Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing

what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that

inexplicabilities are not to be considered as possible explanations

34

Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela

encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo

similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande

importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana

Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos

processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de

constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia

que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o

caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele

afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos

celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente

antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo

(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos

ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em

justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro

lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos

nos seguintes termos

Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟

Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma

hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que

realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave

conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25

25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific

explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is

analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses

35

Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual

retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a

forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam

segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce

Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando

deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica

Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas

maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na

predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos

E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis

da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber

a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo

trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a

descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo

dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um

sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713

1883)26

Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e

mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo

prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que

satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a

esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma

concepccedilatildeo antropomoacuterfica

26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and

anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses

We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which

are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the

laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we

naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction

(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is

accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all

these natural conceptions

36

A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao

seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico

para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos

Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de

um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em

consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas

as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as

quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser

encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre

outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma

humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute

Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a

mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das

recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect

47 1903)27

Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem

elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma

decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou

em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente

concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico

de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e

possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos

27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises

from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all

conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots

would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember

that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that

affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same

thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact

Logician

37

() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu

sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a

uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o

homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica

possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que

ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles

limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve

pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de

uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer

coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim

como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua

isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536

1905)28

O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter

antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais

uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho

cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que

natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29

Os elementos de todo conceito diz o autor entram

no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que

ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo

autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30

A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal

caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes

de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma

hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis

28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that

doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely

hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his

needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it

is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits

of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply

cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump

just as high as he possibly could 29

() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific

working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30

() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason

38

(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316

1903)31

A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se

perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32

entatildeo aceitas

como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis

2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA

A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente

reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890

tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce

oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto

ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos

psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser

a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na

proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos

homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das

regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir

um comportamento autocontrolado

Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo

mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um

texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com

31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to

suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering

them comprehensible 32

Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal

caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado

por lei (cf CP 6 sect 36 1892)

39

uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara

Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da

consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de

ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma

imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada

com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser

considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada

expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute

suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito

Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute

algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um

sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o

que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado

conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado

eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma

potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33

Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute

estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis

Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico

para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei

Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica

peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo

dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34

Assim ao

falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e

33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action

such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An

imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature

and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For

our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces

a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to

the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is

actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34

() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals

40

constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja

deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua

determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do

universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que

ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria

passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia

A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a

cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia

peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem

() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais

o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia

Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o

germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser

evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao

haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas

as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo

entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o

mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual

a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33

1891)35

Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho

deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta

abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do

acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para

35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without

connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure

arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but

this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other

principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of

pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical

system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future

41

formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia

21 O NADA

Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do

universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois

tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa

O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto

nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em

que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito

ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)

Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que

sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades

consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)

a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao

introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma

Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um

espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a

natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um

siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36

36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an

interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is

ipso facto itself a symbol although a wholly vague one

42

Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as

possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de

infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect

203 1898)

Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade

surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo

da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma

mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas

platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38

Nessa evoluccedilatildeo o

possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo

A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio

inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de

formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a

dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza

daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o

mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se

definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39

Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a

origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas

37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta

daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre

continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja

verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem

se estabelecer 38

The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which

the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39

The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or

is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be

distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in

particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted

43

Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um

resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo

tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40

O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente

mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira

Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da

continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da

mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas

espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem

agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo

tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter

estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de

dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo

essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41

Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um

processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que

se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a

tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute

a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o

princiacutepio de semelhanccedila e contraste

A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz

que

40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same

thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41

Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the

human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth

etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of

feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number

of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities

44

Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um

mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras

elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele

ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves

outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42

Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida

em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas

seguintes palavras de Peirce

() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se

encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo

elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem

generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43

Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a

hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa

origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se

o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce

A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser

puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um

estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um

modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor

42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere

nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or

less resemblance and contrast with one and other 43

() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

45

uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e

assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44

e acrescenta

Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei

Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado

Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash

possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem

fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45

O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo

com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46

A existecircncia do

universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo

existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior

do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf

CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O

terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua

atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo

na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o

reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada

vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo

44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a

state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a

logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in

which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45

There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the

whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --

boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46

Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os

elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo

diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo

46

triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47

Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre

os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o

mundo e falar sobre ele

() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de

sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de

ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto

de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um

grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a

respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute

outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de

Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente

do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois

modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do

Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A

primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em

minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a

associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute

como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz

de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho

De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de

sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa

unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que

denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente

adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves

outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo

Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos

qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base

os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma

expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo

podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em

um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por

ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior

representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo

intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar

um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo

de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras

de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele

identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e

47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana

primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade

caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)

47

palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias

compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees

de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4

sect 157 1897)48

A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que

continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o

incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade

peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei

da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a

respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana

O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que

parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular

essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade

na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila

Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de

48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits

are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of

feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes

a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is

the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are

two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association

based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it

is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea

of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself

resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of

which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes

what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the

ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop

general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits

of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing

can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can

crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents

things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a

cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double

mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which

denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names

and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words

are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc

48

sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade

ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada

variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o

sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute

natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do

que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada

vez maior (ROSA 2003 p 297-8)

A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em

desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria

bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas

Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade

secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf

HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao

estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a

secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita

acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o

tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute

o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade

de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que

Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute

impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se

tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda

que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo

Como aponta Hookway

Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim

poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um

tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um

limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p

273)

49

Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente

ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem

contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos

infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem

mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos

A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo

e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra

forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a

presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de

desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da

tendecircncia ao haacutebito

Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da

existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce

afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o

mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de

existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a

abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos

inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas

radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de

existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo

(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou

flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave

aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos

anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de

haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse

ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua

49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce

50

origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial

22 O ACASO

Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria

teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico

alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel

tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884

ldquoDesiacutegnio e acasordquo

() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute

explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo

esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de

modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto

(W 4 p 549 1883-4)50

O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras

uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas

encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que

dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo

outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do

indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas

que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo

da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da

50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not

absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition

but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit

51

hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o

percebemos

Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um

princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a

muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade

de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de

necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de

certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade

radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado

eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento

da complexidade de forma irreversiacutevel

O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo

(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo

um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva

mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do

desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees

iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que

pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo

A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma

epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas

aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada

pelo homem Para o filoacutesofo

() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O

mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da

experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses

52

fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51

Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as

proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor

() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo

meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para

a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que

opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente

soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a

abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu

concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto

meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje

Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um

longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser

refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado

de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo

conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52

Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do

falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-

las com os fatos natildeo mentais

51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its

characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has

opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52

() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of

premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but

opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions

He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of

them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no

competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time

upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be

glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of

belief

53

O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o

falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas

sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e

indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da

mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53

A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou

crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo

acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo

Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos

acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para

Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo

cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos

elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse

universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma

decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da

natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na

passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o

autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos

Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a

Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin

(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da

mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a

variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de

53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is

never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine

of continuity is that all things so swim in continua 54

Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation

sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda

jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)

54

cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a

busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio

23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE

Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade

examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto

de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36

1892)55

Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as

mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem

determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute

mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo

aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem

cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)

o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no

determinismo nas seguintes palavras

A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer

tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de

coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute

indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as

leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir

desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou

55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law

56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu

curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57

Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs

modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou

influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36

1892)

55

agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58

A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana

carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser

colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59

que poderia muito bem ser admitida

pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais

defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente

mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60

Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de

argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um

postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar

acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua

defesa

Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das

justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e

responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir

como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect

41 1892)61

Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia

Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo

faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida

isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()

58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws

completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus

given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind

could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59

Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a

liberdade e espontaneidade 60

() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61

It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is

requisite to the validity of an inference

56

cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa

inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62

O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio

indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo

mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos

contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise

Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se

coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos

um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima

amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada

elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes

nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41

1892)63

Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada

amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que

se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos

obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras

Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes

ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo

(CP 6 sect 41 1892)64

Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido

a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1

Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em

consideraccedilatildeo

Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A

62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference

63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity

64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle

of universal causation

57

praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe

que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de

valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas

Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a

primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa

aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo

obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente

A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()

certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65

mas como a

observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se

for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na

fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo

Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada

natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que

aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja

qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza

A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor

de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria

posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades

agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser

elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as

observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas

palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais

precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP

65 () certain continuous quantities have certain exact values

58

6 sect 46 1892)66

Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a

admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso

Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor

aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser

pensado o acaso absoluto

Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em

face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na

ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural

esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser

produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47

1892)67

Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute

disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o

fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da

termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees

que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute

utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do

autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso

Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila

natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento

Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante

cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A

aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()

produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68

Mas esse tipo de

66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they

will be to show irregular departures from the law 67

() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects

such as could not pass unobserved 68

() genetic products to recognizable utilities or ends

59

adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal

modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo

aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69

Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel

Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma

Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se

especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal

afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de

atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso

Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute

ininteligiacutevel isto eacute

() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o

como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser

justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca

poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na

produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70

Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois

anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado

sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis

natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo

havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais

Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do

69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the

principle of causation 70

() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and

since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any

right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature

60

determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso

absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria

Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega

a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas

e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de

leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que

podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por

exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo

Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das

leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir

As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os

fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como

aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no

uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento

Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de

equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas

como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma

reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)

Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento

que inverta a flecha do tempo Por exemplo

Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute

com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos

absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente

nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si

proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo

(REYNOLDS 2002 p 3)

61

A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce

aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande

maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem

do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio

As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem

crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem

determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar

(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce

sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm

no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta

inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que

haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo

(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente

explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que

causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da

atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente

(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no

momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite

ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que

explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que

a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no

universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como

fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo

bloquear a investigaccedilatildeo

62

(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema

explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel

explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de

fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos

(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de

que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis

capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect

62 1892)71

Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o

suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como

parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica

cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da

diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras

pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza

Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute

poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo

(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel

(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma

inequiacutevoca

(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa

Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da

tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das

71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with

mathematical precision into considerable detail

63

uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que

desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um

suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma

vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute

sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que

ele produz consequecircncias ou permanece inerte

A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os

avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia

permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses

fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor

Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos

mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro

explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear

o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72

Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde

dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta

acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que

a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado

Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida

que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o

caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em

uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes

72 () to block the road of inquiry

64

3 A LEI

Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro

encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que

Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele

estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em

capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que

suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia

para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109

1892)73

A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias

do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias

do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim

como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo

infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74

Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a

concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve

ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um

determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo

de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no

tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu

iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do

passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75

Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da

73 How can a past idea be present

74 () through an infinitesimal interval of time

75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of

course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling

65

categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A

ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma

inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade

Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um

tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no

momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76

Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma

abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo

A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos

passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que

se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo

consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua

31 O IDEALISMO OBJETIVO

Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua

diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o

monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o

idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande

problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou

natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui

propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou

propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica

76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the

result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment

66

A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da

combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos

aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser

entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce

A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo

autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a

tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e

as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita

de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada

32 A LEI DA MENTE

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as

() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que

permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta

dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras

mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP

6 sect 104 1892)77

Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da

fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a

conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23

77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of

affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality

and become welded with other ideas

67

1891)78

A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da

mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve

ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a

atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade

a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo

perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute

suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade

organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79

O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental

da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo

adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua

maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade

final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um

estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo

78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and

prevent all further formation of habit 79

() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

68

CAPIacuteTULO 02

O SINEQUISMO

Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)

69

Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80

uma investigaccedilatildeo sobre

a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do

pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande

importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam

verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81

Em carta a William James de 1900 Peirce

afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82

isto eacute o ponto de

apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia

Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o

interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e

filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como

afirma em 1897

() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de

continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito

e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver

a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes

os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por

exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute

logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma

delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o

todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da

loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica

(CP 3 sect 526 1897)83

80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese

81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime

importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82

() synechism which is the keystone of the arch 83

() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition

of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical

doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an

inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically

possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a

part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further

development of the conception of logical possibility

70

De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute

poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de

continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo

desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na

construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das

explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem

algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de

continuum

Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da

abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que

apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que

a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta

investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de

explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto

eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da

evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua

funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a

necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto

possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas

teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando

relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de

continuidade

71

1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA

Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum

haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas

pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para

obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma

perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto

natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse

modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica

A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e

mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho

da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)

84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que

isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85

Pois descontinuidades como pontos ou

instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo

explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute

fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do

continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos

Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-

los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade

ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos

procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana

A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento

ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no

84 Do not block the way of inquiry

85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable

72

modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram

certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam

responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A

primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86

hipoacutetese

explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de

matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao

sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do

acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter

elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende

dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando

de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo

As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente

estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia

de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua

verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e

significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7

sect 535)87

Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo

termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas

compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um

problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom

nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como

classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes

recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um

que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A

questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a

soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias

86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho

87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences

73

entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma

espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo

envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe

natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A

questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados

Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em

sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois

eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute

transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo

Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da

continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo

tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma

explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses

agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar

Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela

bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88

eacute mais claramente apresentada por Hookway na

seguinte passagem

() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo

podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais

a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza

do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter

Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um

nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando

um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos

pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina

conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos

um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel

88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes

74

para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais

que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo

(HOOKWAY 1985 p 178)

11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM

Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de

continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo

sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros

pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para

diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade

transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos

finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse

silogismo uma delas eacute a seguinte

Todo texano mata um texano

Nenhum texano eacute morto por mais que um texano

Desse modo todo texano eacute morto por um texano

A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as

demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo

que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma

coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que

excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89

Os seus

constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de

potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa

89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum

75

Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude

dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de

indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um

possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do

existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse

poder (ROSA 2003 p 223)

Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de

ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na

seguinte passagem

Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser

individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa

indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode

haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo

consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um

qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que

o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto

o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer

conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute

composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees

gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo

nosso)90

Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a

curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem

90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

76

uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta

cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto

ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses

estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa

ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado

manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago

na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo

permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a

existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida

Os infinitesimais91

surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes

do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92

e

eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo

for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre

qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha

sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do

continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os

infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do

real Peirce toma o exemplo do dado e afirma

Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade

91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute

menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo

XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos

trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em

funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute

considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um

trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de

nossa parte 92

O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to

trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are

continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)

77

bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o

ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do

que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e

formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma

de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o

haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que

tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como

que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute

necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que

afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute

de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect

664 1910)93

Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos

da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo

que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da

passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir

como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o

Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade

como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos

A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma

ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94

A resposta por ele proposta eacute de que

devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma

lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do

passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem

93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might

have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the

dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul

and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and

upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to

define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would

bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of

the die consists in such behaviour 94

How can a past idea be present

78

uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar

conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95

Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser

consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes

infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)

Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um

instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do

fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM

3 p 126)96

2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM

A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que

busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma

parte dos criacuteticos97

insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo

coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema

Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de

Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em

oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas

que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica

Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a

necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma

95 () through an infinitesimal interval of time

96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the

present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97

Por exemplo GALLIE 1952

79

Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado

desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha

por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada

pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais

deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento

humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da

ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido

bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade

aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria

filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o

estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de

resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98

A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer

uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais

duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra

sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre

ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica

Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce

que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma

semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS

620 p 09)

A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos

aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum

98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full

import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who

wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human

knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect

each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of

the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study

of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)

80

topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria

expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos

princiacutepios de desenvolvimento do continuum real

A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos

parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em

sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que

nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio

desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99

Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo

refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas

motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do

desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees

de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914

Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer

uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer

quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100

preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano

(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)

99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de

continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100

Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum

denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas

e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente

compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de

coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador

81

21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO

O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre

as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os

problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele

tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101

essa caracteriacutestica ficou conhecida na

literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce

leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de

Cantor

Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a

necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de

uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro

incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em

oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de

apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute

determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo

raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da

cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e

que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele

Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e

considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a

vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo

comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia

Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo

que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo

101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense

82

objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como

representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102

Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve

existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se

em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira

seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma

outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita

divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se

tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto

que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria

Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873

Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas

atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O

filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias

segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por

processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103

Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais

detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais

uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio

dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104

102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the

liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object

quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the

cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two

such lines represent that they are two different cognitions 103

First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous

processes 104

In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another

or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established

83

Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar

agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo

da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a

implicaccedilatildeo entre ideias105

Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo

formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo

mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se

apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa

propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o

continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que

possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao

estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema

mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante

22 PERIacuteODO CANTORIANO

Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade

poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em

propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca

Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma

anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com

aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente

adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas

105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa

de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os

caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento

seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no

processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese

84

do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma

conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar

com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre

continuidade (MOORE 2007 p 434)

Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade

deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a

definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a

tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do

continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas

propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade

(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia

agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106

ou ainda que a

ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107

Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um

limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108

ou ainda

que

A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do

seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria

infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum

conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma

seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP

6 sect 123)109

106 property of infinite intermediety or divisibility

107 The Kanticity is having a point between any two points

108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system

109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every

endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in

using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both

of the limits

85

Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce

jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo

escreve

[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou

outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de

tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode

mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada

instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo

eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um

exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes

tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato

que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema

dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a

de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de

pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect

164 1889)110

Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum

que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia

evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo

continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a

beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na

linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse

110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that

of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move

from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This

statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old

definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact

that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The

less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --

words which must be understood in special senses

86

assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect

171 1897)111

23 PERIacuteODO KANTIANO112

Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por

Kant113

de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168

1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo

que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma

abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees

Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos

pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da

linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114

Peirce afirma pois que continuidade eacute

totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto

maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum

As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115

expressavam o seu desacordo com

uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico

ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e

descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116

Em termos mais

111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of

continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the

entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112

Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo

de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113

Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado

era somente o de infinita divisibilidade 114

(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there

is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115

No texto A lei da mente 116

It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is

87

compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e

Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias

partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de

natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as

partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de

1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova

elaboraccedilatildeo

24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO

Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma

coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo

pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo

tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6

sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma

coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de

alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as

partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642

1908)117

Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes

devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo

uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de

tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave

definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das

pequenas partes temporais

manifestly non-metrical 117

(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole

88

Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para

demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso

que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo

Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo

fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect

642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou

da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja

vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)

Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento

de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu

pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees

cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final

se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi

indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de

generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo

modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo

capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final

89

CAPIacuteTULO 03

A EVOLUCcedilAtildeO

Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the

doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP

6 sect 554 1887)

90

Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se

efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana

Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A

negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser

sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de

fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas

tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu

origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da

perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz

Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)

1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA

Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva

epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a

evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees

oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua

adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o

estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como

candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito

anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo

Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado

que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa

(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos

eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos

desperta o menor interesse Peirce diz

91

Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade

definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que

deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da

experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado

de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute

regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo

correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas

quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189

1901)118

Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito

que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade

motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A

maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem

() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se

fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado

aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de

ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute

tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197

1901)119

O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso

ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese

118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites

any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and

regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why

there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which

I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that

119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true

before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at

least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical

consequence necessary or probable

92

que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses

segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao

fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido

Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo

necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o

caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das

explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese

evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o

uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma

explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como

aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de

explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para

compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo

(Hookway 1985 p 267-68)

Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada

como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis

entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da

seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das

semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees

De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria

capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele

afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em

geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120

em outro momento afirma que

Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida

que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei

120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them

results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely

93

ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia

acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como

eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121

Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que

A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e

corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo

cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel

afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a

buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)

Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar

o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e

agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o

resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se

impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A

discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e

regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus

Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce

identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante

para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante

crescimento de complexidade

A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo

atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese

121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past

not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was

always as rigidly necessary as it is now

94

evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as

variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos

aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo

de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de

investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais

autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da

razoabilidade concreta no universo

2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX

Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na

insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados

por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do

mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo

podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista

dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo

como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das

explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute

mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin

que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda

metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do

de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora

que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu

sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de

coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo

teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o

tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides

95

tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122

O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem

mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais

geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que

levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos

paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel

A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da

abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser

explicada Diz Peirce

Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma

caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos

limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave

lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e

diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo

pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa

variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar

conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade

e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa

espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na

morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123

Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta

da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados

dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar

esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de

122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important

philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist

123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since

96

se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que

considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute

interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na

natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124

A

fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos

1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com

desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos

2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves

moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e

3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP

1 sect 193 1903)

Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior

importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua

insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que

possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma

() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente

daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo

muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso

Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as

forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP

1 sect 347 1903)125

124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity

and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say

how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions

97

Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos

irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar

apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na

teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de

atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel

fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o

crescimento do universo como um todo

A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que

ficou conhecido como a lei da vis viva126

que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio

segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na

vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768

ca 1889)127

As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos

corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema

inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo

forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa

Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos

implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas

ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia

unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas

precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo

oposta (CD p 2319 ca 1889)128

126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como

sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo

de partiacuteculas

127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system

depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental

forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative

forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but

opposite in direction

98

A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo

conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos

sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas

fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto

conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma

direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da

vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma

Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da

mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os

sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)

As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo

bem indicadas por Peirce na seguinte passagem

Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de

energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o

preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo

determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa

sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em

qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes

em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente

na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129

ou ainda

129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical

universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent

does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the

velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were

Everything that had happened would happen again in reverse order

99

Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes

quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de

energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas

natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse

modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12

m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)

2 unicamente como o

quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele

da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo

indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2

p 481)130

O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o

universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se

pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas

direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta

aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma

avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios

momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais

fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode

igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131

Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em

algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio

A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a

maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu

respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees

experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau

130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of

the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon

nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the

analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)

2 only as squared

Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two

directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing

that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance

100

extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a

atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma

aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua

tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a

conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam

por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os

ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees

extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de

que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132

O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo

emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos

fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles

que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de

irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que

(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa

atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de

Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na

linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o

nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a

resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das

cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas

desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a

experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133

132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural

philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential

verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard

to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation

to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of

the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for

example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of

energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be

absurd to doubt

133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that

is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be

reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion

resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids

() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their

mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals

101

Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do

caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo

como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo

isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora

como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce

A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot

(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a

tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o

calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de

que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo

encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a

direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds

Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos

irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell

Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria

da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma

abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O

tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do

vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p

42)

Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher

todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas

uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das

probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das

partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior

do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o

102

compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo

determinadas pelo acaso

Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos

propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of

chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais

sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134

Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo

paraacutegrafo

Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma

variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a

teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as

peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir

algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia

estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma

coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de

accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo

os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135

Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo

denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas

principais

a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para

a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final

134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of

chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science

135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were

not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected

map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of

energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to

show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the

means of proving its presence

103

b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)

Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que

se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar

uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final

(cf CP 7 sect 471 1898)

Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo

que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como

criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo

isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo

dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em

funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da

interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a

irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber

este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final

Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute

uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria

termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece

ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos

de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que

compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com

a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento

da ciecircncia

104

3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO

As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que

tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136

isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos

encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira

intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da

Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o

ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte

Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha

um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo

orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em

atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes

de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias

propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a

reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o

desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana

ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia

assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a

destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a

taxa de mortalidade

Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas

nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua

vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a

interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na

136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary

loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88

e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema

105

medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar

lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce

afirma

Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute

evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a

evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP

6 sect 16 1891)137

E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de

acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face

dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees

que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash

como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo

individual mas respostas a mudanccedilas ambientais

Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos

parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da

biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator

na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente

natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em

geral (CP 6 sect 17 1891)138

137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance

and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort

138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the

broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the

historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the

process of evolution of the universe in general

106

4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO

Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no

interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto

eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos

Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos dos mais variados campos

A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de

explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu

Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e

concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma

darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute

bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um

determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de

elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas

seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-

se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas

almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista

A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de

nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que

mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139

Embora esse tipo de evoluccedilatildeo

natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute

o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O

exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu

no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)

139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known

facts as more and more observations came to be collected

107

Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o

impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar

sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140

Como exemplo o autor indica a descoberta dos

micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -

1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos

observacionais

5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA

Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos

acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de

aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo

Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita

denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada

denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da

causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo

ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica

proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por

cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica

corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana

Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo

Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa

possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de

140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning

about the observations

108

maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas

degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)

Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui

contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o

fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu

lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no

qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados

ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da

mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304

1893)141

O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na

medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada

perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o

fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142

Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o

hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava

mirando

O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando

submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se

necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja

uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma

Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas

as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143

O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo

141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind

142 () living freedom is practically omitted from its method

143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits

109

que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria

perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144

Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145

Eacute a causa final

acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender

essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o

sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)146

6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO

Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa

final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985

p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o

define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e

a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um

contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta

Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do

mundo (cf CP 6 sect 101 1902)

144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus

in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character

146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

110

A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser

in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce

expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa

desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo

Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia

possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos

adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce

O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias

mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente

cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas

por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que

a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da

mente () (CP 6 sect 307 1893)147

Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio

primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo

(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que

() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual

devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que

devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de

tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal

modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de

147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as

in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate

attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is

by virtue of the continuity of mind ()

111

regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148

Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se

autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao

monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente

um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as

leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149

O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das

leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o

princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso

em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos

e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150

Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para

Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na

mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo

7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE

No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem

tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos

148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as

far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so

that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high

degree of mechanical regularity or routine

149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of

matter a special result of the laws of mind

150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance

tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and

the cosmos of order and law

112

estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por

meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus

estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e

isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect

433 1905)151

Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila

de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por

trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs

modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a

mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute

auxiliado pela disposiccedilatildeo

A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]

para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um

haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152

A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar

com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre

acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados

satildeo estabelecidos Peirce indica que

O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o

sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo

satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o

tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo

mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute

repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153

151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the

pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general

152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit

and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an

attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the

113

Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande

disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais

plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154

pois apresenta em

maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade

desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de

tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional

Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa

que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a

qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O

objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa

desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em

outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer

outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras

ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se

subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155

Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie

de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o

autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156

Cabe agrave

loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191

1903)

Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao

kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently

matured agent and the evil is the repulsive to the same

154 The most plastic of all things is the human mind ()

155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the

development of concrete reasonableness ()

156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-

control is a perfect mirror of ethical self-control

114

cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo

claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho

intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de

obter a verdade

A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada

no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada

eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode

ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo

assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo

ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto

podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar

nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o

mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na

loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute

seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()

(CP 4 sect 615 1903)157

157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is

going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more

satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness

is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it

Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by

giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In

logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods

as must develop knowledge the most speedily ()

115

CAPIacuteTULO 04

A ABDUCcedilAtildeO

Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of

heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you

and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a

conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with

experiments (CP 6 sect 461 1908)

116

1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS

Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou

natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE

(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985

entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a

quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia

que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas

ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua

reflexatildeo

A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus

primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica

da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com

relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-

relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica

como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes

dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio

autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se

divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica

Criacutetica e Metodecircutica

A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute

neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica

tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata

dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez

compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua

abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do

uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado

117

Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da

perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da

filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de

um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo

Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento

seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos

problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados

com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus

textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte

de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta

aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por

essas mesmas concepccedilotildees

Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute

essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais

para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais

elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave

abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute

em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e

se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua

melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois

eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do

que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160

A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado

158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a

longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que

todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que

as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159

Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160

From this definition pragmatism is scarce more than a corollary

118

de duacutevida autecircntica161

que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e

verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e

em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que

ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se

que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos

incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma

privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a

utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374

1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de

um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles

produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um

homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)162

Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do

tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711

1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como

autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e

inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um

processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o

futuro

161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo

desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a

natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta

maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de

vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um

conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162

() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is

therefore in a general sense a habit

119

Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral

refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa

coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo

pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser

eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163

Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas

vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se

necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo

passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de

maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo

desse modo o autocontrole

Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute

indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164

Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma

caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador

principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a

questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com

aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe

as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas

podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo

O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as

investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as

primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP

5 sect 116)165

uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como

163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past

contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot

be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164

() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165

() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question

120

Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade

de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de

cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira

Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se

forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela

de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma

proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um

percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo

(CP 5 sect 115 1903)166

Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito

que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para

justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo

perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo

pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma

boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute

fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo

da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida

em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o

suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela

realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente

nesse processo

Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do

senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN

166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to

me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of

formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand

is an image or moving picture or other exhibition

121

1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas

comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para

penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho

efetivo (ver REILLY 1970)

Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais

meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele

descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer

naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter

crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma

duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa

muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem

agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas

assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo

incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por

criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na

tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf

CP 5 sect 377 1877)

O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por

levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo

toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo

custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo

afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou

tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a

posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo

basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos

das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)

O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz

122

Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel

que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma

questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)

Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da

tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao

governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel

(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos

terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas

estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a

experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)

Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167

cabe a

Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer

crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas

crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por

alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168

e

acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o

pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169

O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia

estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo

processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A

vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de

investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se

fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa

refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos

167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana

168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but

by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169

But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real

123

desse meacutetodo Peirce afirma que

Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das

nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis

regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam

nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo

podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente

satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido

o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect

384 1877)170

A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos

demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita

suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem

que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete

com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute

resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel

natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o

conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer

elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom

funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e

racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171

Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser

[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo

ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e

deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172

Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma

170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect

our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects

yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and

any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171

() rationalization and of rationalization by us 172

That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country

124

hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A

aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos

produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os

mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser

compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia

realizaacutevel

Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de

intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao

menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do

conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo

modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce

buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e

posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de

outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo

de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta

teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que

Peirce denominou de abduccedilatildeo174

No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do

universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce

desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou

ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect

148 1902)175

Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas

ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173

Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174

Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175

() the inferential process involves the formation of a habit

125

anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de

trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a

deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo

A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em

muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis

esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no

interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa

teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja

como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da

formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo

de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio

para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos

perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns

comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica

com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica

que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade

dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo

Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute

encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade

de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam

aproximar-se da verdade

A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da

epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees

para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os

juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira

126

() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem

qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas

primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um

caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem

absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176

Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico

polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o

fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute

por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo

tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e

compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se

as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se

acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)

A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute

como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo

geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de

natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a

principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se

natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como

entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena

A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem

o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega

Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte

176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or

in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive

inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism

127

integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as

iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais

faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que

possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)

A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes

contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a

grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas

tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que

cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa

claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o

processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma

ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente

desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177

Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como

um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo

atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia

como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se

passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo

quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma

forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a

proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O

argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira

entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie

Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que

noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves

177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces

any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary

consequences of a pure hypothesis

128

conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178

e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que

provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect

54 1902)179

Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre

inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz

Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para

indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de

nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem

criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar

natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que

usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma

razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)

De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a

abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma

inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo

uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem

2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO

Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma

maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se

178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a

conclusion 179

Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an

entirely different construction from the thinking process

129

novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo

A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o

raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou

falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo

igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua

justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo

possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo

deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de

uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com

os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer

a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145

1903)180

No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma

descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os

seguintes silogismos

Deduccedilatildeo

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth

or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction

is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the

investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error

The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it

measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can

deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction

130

Induccedilatildeo

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Hipoacutetese

Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos

Resultado Estes feijotildees satildeo brancos

Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola

Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria

silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo

ldquoObserva-se um fato surpreendente C

Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente

Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181

Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem

comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo

possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena

181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to

suspect that A is true

131

consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em

que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou

plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem

posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo

com os fatos por meio da induccedilatildeo

Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo

estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo

deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas

indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz

ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os

caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP

5 sect 173 1903)183

O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos

sinteacuteticos184

em 1868 o autor afirma

De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os

juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os

juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute

absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a

particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia

(CP 5 sect 348 1868)185

182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well

be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include

abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class

in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183

However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-

controlled and critical logic 184

Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185

According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But

antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how

synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one

will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy

132

O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema

bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a

partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que

no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta

questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade

dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo

encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de

hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do

sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por

meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do

nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de

hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo

conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo

implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia

e sua epistemologia

A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima

Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos

de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do

tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se

altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem

loacutegica legada por Aristoacuteteles

Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos

argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste

depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p

31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo

de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais

tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo

133

Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita

entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que

compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia

dedutiva186

dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas

e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a

elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico

Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que

realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada

pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja

perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na

fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre

qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as

suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o

seguinte comentaacuterio

Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo

verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de

um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de

acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente

resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo

do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194

1878)187

Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese

186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century

Dictionary 187

By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we

conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws

something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter

from effect to cause The former classifies the latter explains

134

fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz

referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que

enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em

um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua

cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo

honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se

encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em

algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos

e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que

ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos

Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina

o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses

Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um

outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo

sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito

seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute

encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do

escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma

hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que

duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por

acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes

termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em

um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao

objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188

O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso

envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade

grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima

188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the

characters of that class belong to the object in question

135

apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que

correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito

na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente

diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira

ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos

similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p

198)189

Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada

neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce

ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de

novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que

no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o

nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar

e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores

Em um texto de 1901 lemos

Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas

ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes

de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas

confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a

induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)

como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190

189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas

hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190

Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to

distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of

these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together

(often mixed also with deduction) as a simple argument

136

No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo

seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas

aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem

mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas

eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se

verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira

razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um

haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a

hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta

esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia

ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o

resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191

A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do

pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa

distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam

segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos

leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de

descobrir

Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o

primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A

experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe

conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual

for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192

Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser

considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu

sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia

191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar

musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192

All knowledge whatever comes from observation

137

do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo

inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees

apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente

atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e

acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou

pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo

cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193

Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que

alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o

curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador

A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto

externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute

sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter

consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo

A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta

explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende

para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste

Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo

deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria

eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma

vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a

necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder

agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome

induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original

empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por

193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great

effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain

grade of reality or independence of our cognitive exertion

138

meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo

conformes agrave experiecircncia

As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia

somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por

meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou

agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a

investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de

autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o

investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este

estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se

verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese

A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem

testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da

economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese

um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo

desempenha neste estaacutegio Peirce diz

Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro

esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes

tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode

fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo

se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194

194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it

remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can

stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any

rational way

139

A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf

CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto

surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse

das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que

devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica

tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses

que Peirce estabelece satildeo

1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel

2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos

3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo

do princiacutepio de economia da pesquisa

A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um

certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de

uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma

prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195

Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma

teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do

diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir

uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf

CHAUVIREacute 2003 p 84)

E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes

devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou

esforccedilo em seus testes

195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted

140

CAPIacuteTULO 05

A CAUSALIDADE FINAL

Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly

intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the

contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of

conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)

141

Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas

agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas

e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo

da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original

Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central

que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte

proposto no todo desta tese

Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da

causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de

esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial

do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de

vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo

do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A

teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b

p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196

eacute visto pelo

filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma

() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor

de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de

absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS

478)197

Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no

seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)

196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada

produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197

() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and

nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her

haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)

142

afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute

mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade

junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas

eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como

acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas

explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo

da situaccedilatildeo atual

() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor

das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior

das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na

barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo

os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a

suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito

incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem

mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a

compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos

Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa

prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado

como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo

filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer

incompreensiacutevel

Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os

fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro

descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo

da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a

explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a

proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute

o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo

143

(HULSWIT 1996 P 183)198

Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o

tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada

e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua

inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das

descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos

1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL

Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199

Peirce daacute tanto agrave causalidade

final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia

certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira

como foi definida por Aristoacuteteles

O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na

declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes

ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a

verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar

fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem

consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo

particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado

geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa

final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o

resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200

198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997

199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996

200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all

causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the

truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a

general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this

or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one

time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is

to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma

144

Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos

A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela

condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa

situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual

for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente

Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um

tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente

nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no

momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de

um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave

estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a

bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer

relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute

verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo

geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e

compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201

Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de

maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos

comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute

realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da

afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica

peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em

relevo essas diferenccedilas 201

Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a

compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general

character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the

wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it

but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it

is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient

causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient

causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the

bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force

is compulsion and compulsion is hic et nunc

145

Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes

compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo

chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero

chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo

viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do

que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um

nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202

A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado

com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo

experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos

de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo

peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico

desempenhado pela causa final no sistema peirceano

Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a

causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela

pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins

Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a

sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A

fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo

elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito

maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados

Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205

1902)203

Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo

autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a

202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of

causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling

for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient

causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so

much as chaos without final causation it is blank nothing 203

A purpose is an operative desire

146

atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo

reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica

Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao

pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como

um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio

de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos

para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com

que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se

tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as

leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204

Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta

tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente

antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que

isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e

marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar

que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz

Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute

alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute

assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana

satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205

Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza

tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa

204 This is to say we guess out the laws bit by bit

205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which

the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human

convenience are witness

147

caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia

a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206

Como

afirma Hulswit

() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave

experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se

elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e

nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um

problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p

184)

A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser

considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida

como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade

humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica

que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash

uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo

O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que

naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o

autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em

evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos

detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral

Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar

dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro

categorial

Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de

206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations

148

causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo

presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo

aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a

torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos

de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e

inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua

atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar

exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um

curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)

Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final

que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer

evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere

categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e

concretos

Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute

afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo

eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas

eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o

desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma

classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto

quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim

continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto

definido e concreto

Em segundo lugar207

embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa

influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e

207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer

tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which

may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for

149

futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo

cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas

trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina

natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de

Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia

resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui

o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra

coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo

transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela

mediaccedilatildeo

Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos

um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a

dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema

perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado

teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de

estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo

poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto

expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como

condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes

mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante

processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da

causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos

processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a

originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas

palavras de Peirce

future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a

uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos

de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente

150

Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas

uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem

Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser

in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos

fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo

bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do

futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208

O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva

de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas

tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada

Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou

inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em

suas palavras

Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute

realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua

realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute

realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica

(NEM 4 p 66 1902)209

208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension

of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears

in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a

quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of

something else 209

By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that

if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about

or approached by an independent line of mechanical causation

151

2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE

A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela

restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal

como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a

qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a

ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da

nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do

mecanicismo e a pura espontaneidade do caos

Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de

uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim

chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica

claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo

Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica

sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas

satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam

em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo

de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para

aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia

em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas

eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210

As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas

caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita

aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira

210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due

to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in

one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is

too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state

The other character of non-conservative action is that they are irreversible

152

controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra

maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as

causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para

a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto

Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo

perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou

daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus

veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a

face da terra (CP 1 sect 217 1902)211

Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia

a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente

apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que

a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo

Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas

unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212

Eacute a causa final

diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa

atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual

sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos

membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste

mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP

1 sect 220 1902)213

Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce

211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are

not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and

having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212

Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall

have a certain general character 213

What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon

them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in

one word life

153

apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa

distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220

1902)214

Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as

propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido

por Peirce

Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado

Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos

livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com

os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira

Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista

cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um

espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que

ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor

definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente

natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como

as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa

final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215

A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que

jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo

enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)

Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo

crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente

inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de

214 A man is a wave but not a vortex

215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels

entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary

canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so

that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a

singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now

the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the

object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final

causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account

154

aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das

formas diferenciadas Como indica o autor

Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de

aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo

natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser

descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟

(CP 6 sect 23 1891)216

A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um

determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em

funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das

hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou

estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se

manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute

presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural

como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma

montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo

passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou

uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira

esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa

final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes

cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela

accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)

Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal

216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked

by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the

general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety

155

criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente

ressaltando a sua complementaridade

A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e

todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O

tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser

imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele

exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu

punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente

destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria

eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter

hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217

A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos

naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais

eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do

xerife e do tribunal

A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal

sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum

cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial

que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia

estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas

permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218

217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The

court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no

whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if

there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess

efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies

potential regularity 218

A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament

might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who

unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the

perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen

156

A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo

as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter

Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro

brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em

referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem

sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade

eficiente e final (POTTER 1997 p114)

Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos

trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de

tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira

existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em

confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser

consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que

O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o

dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a

concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam

cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o

menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo

significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado

deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o

mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os

fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como

pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente

separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute

caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais

e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de

liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam

teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219

219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to

exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or

that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate

meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated

chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and

157

Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que

os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta

ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220

A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a

chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente

em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e

que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro

texto

Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e

onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas

natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem

gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e

intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159

1897)221

A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese

natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em

toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das

restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao

descrever a tessitura da realidade

Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica

do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos

psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely

separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental

and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint

which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220

Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221

It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients

imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell

the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of

nature

158

limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as

grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade

do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser

compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel

variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode

minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da

espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia

desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-

na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece

facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222

Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a

continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem

introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o

acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que

a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada

O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser

individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado

contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um

agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas

condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos

distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado

uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado

eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude

possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo

conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que

permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223

222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though

restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones

with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the

really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible

multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that

variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this

spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my

view appears to me not easily controverted 223

That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the

word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential

159

A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de

criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos

abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de

um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute

foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de

algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos

concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo

3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO

Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua

atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo

peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo

da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede

Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os

acontecimentos nos mais variados campos

A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de

1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento

(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado

pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman

aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given

any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more

multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude

greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not

contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals

160

esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN

1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um

indiviacuteduo Peirce afirma que

() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade

esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-

determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A

ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma

medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224

Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade

com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que

caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse

inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a

proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em

crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento

da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos

teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes

sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais

variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a

possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de

desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final

desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade

imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT

1994 p 406)

224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere

purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea

living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now

conscious

161

Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo

como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu

processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das

limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo

de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman

O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da

complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do

tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento

uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir

(HAUSMAN 1998 p 630)

A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada

por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas

O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras

de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si

cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela

virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225

Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde

a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo

possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que

aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar

Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees

em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute

completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect

225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is

divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind

162

288 1893)226

Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o

universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os

germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289

1893)227

Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a

hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por

sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar

dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel

por si mesmo

O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos

individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter

sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de

incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas

ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na

medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida

nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim

entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de

mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as

cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido

lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute

em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve

lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute

acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da

Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do

que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja

admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo

compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob

esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na

operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel

sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar

que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os

meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP

1 sect 615 1903)228

226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and

drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula

we call the Golden rule 227

() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228

The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of

Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of

growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will

make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully

163

Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo

de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica

O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem

descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em

si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo

poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto

a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos

indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou

b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em

simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a

atratividade da ideia ou

c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de

seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si

(POTTER 1997 p 187)

4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA

Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas

principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos

em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi

manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of

more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including

pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment

that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the

year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how

one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing

whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we

can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation

of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to

us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to

follow such methods as must develop knowledge the most speedily

164

dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece

ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos

presentes em ambas as noccedilotildees

Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de

causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute

bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de

um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as

ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua

obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as

concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade

Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro

da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos

interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes

questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por

necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera

tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas

acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por

produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais

necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias

independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as

coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem

que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo

(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que

exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)

O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que

acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na

parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e

165

constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm

a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente

construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas

inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de

modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que

ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo

devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002

200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de

acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro

causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento

Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute

bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)

A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles

(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e

afirma

A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes

integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa

material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa

eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute

chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo

de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute

chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo

consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como

o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229

229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its

matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum

is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute

the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is

hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics

the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)

166

Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente

antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e

o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta

forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute

compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo

propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A

causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa

Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder

causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas

potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila

algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim

Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a

consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as

instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa

eficiente do acaso e da causa final

Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma

causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra

Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou

objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo

atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer

processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida

com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que

no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de

novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso

Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo

peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do

167

acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana

de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final

5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL

O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos

do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo

peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O

problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do

mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade

final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf

HULSWIT 1997)

Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no

texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar

com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja

de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a

questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a

resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um

caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-

lo em grupos distintos

Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do

mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria

classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230

Ao tratar da classificaccedilatildeo

natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo

230 () desire creates classes and extremely broad classes

168

naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes

eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista

arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda

natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute

definido por Peirce da seguinte maneira

() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo

consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas

ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o

nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O

nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das

palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso

mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231

Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo

sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute

vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo

vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo

Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra

possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel

231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects

merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being

of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that

they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our

everyday world consists of

169

CONCLUSAtildeO

() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts

comprehensible (CP 8 sect 168 1903)

170

A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o

horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias

cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada

sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da

investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas

formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para

constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das

categorias faneroscoacutepicas232

reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e

terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o

exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um

processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da

lei da mente e da causalidade final

Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado

de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica

que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um

continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o

filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra

(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo

a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo

A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da

reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de

infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui

pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais

continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o

tempo e o espaccedilo

232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia

171

O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O

processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e

liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa

por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei

da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que

natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela

oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por

meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer

pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o

aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se

impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de

abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem

Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da

mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de

qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos

fenocircmenos e marcante em outros

A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios

incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute

uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do

incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse

tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor

isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas

reveladas pela experiecircncia

Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se

verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos

irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que

tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese

172

Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da

cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou

essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do

empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma

conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no

capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o

regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de

bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos

Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua

investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser

refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O

primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no

entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses

equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma

explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila

para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a

serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela

mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo

mostrou-se uma ilusatildeo

A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito

claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo

eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor

Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo

poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A

efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um

instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a

conduta adequada para a sobrevivecircncia

173

A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo

adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade

de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo

chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista

natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do

universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo

evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas

Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a

desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um

princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica

Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP

1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)

A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por

meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do

estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito

mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro

suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da

vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente

determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso

cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33

1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde

agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado

final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce

como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias

peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como

inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o

infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a

tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do

174

mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz

ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem

175

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