O papel da Cultura Pós Moderna no Tridimensionalismo de Reale

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O PAPEL DA CULTURA PÓS-MODERNA NO TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO DE MIGUEL REALE Arthur Roberto Capella Giannattasio  Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aluno do curso de Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, pesquisador em Direito.  SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Cultura e Cultura Pós-Moderna. 3 O Tridimensionalismo Jurídico e a Cultura Pós-Moderna. 4 Conclusões. Referências bibliográficas.  “Duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos, fragmentados. Sabemo-nos a caminho mas não exatamente onde estamos na jornada.” (SANTOS, 1988, p. 71)  1 INTRODUÇÃO  1 / 26

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O PAPEL DA CULTURA PÓS-MODERNA NO TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO DE MIGUEL REALE

Arthur Roberto Capella Giannattasio

 

Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,aluno do curso de Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo, pesquisador em Direito.

 

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Cultura e Cultura Pós-Moderna. 3 O Tridimensionalismo Jurídico ea Cultura Pós-Moderna. 4 Conclusões. Referências bibliográficas.

 

“Duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos,fragmentados. Sabemo-nos a caminho mas não exatamente onde estamos na jornada.”(SANTOS, 1988, p. 71)

 

1 INTRODUÇÃO

 

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O PAPEL DA CULTURA PÓS-MODERNA NO TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO DE MIGUEL REALE

Ao se pretender compreender o papel da concepção de cultura no TridimensionalismoJurídico de MIGUEL REALE, é necessário, em primeiro lugar, determinar, em linhas gerais, oque se entende por cultura, na medida em que será o prisma de análise de verificação do quese considerará como jurídico e, em segundo lugar, é necessário avaliar como aPós-Modernidade avalia a idéia de cultura, a fim de captar eventual alteração da forma decompreensão do jurídico, a partir da perspectiva Pós-Moderna de cultura.

 

Posteriormente, serão desenvolvidos os principais pontos fundamentais da Teoria Tridimensional do Direito de MIGUEL REALE, que se insere na linha do desenvolvimento dosestudos das denominadas “concepções culturalistas de Direito”, e, à luz do conceitoPós-Moderno de cultura, objetiva-se compreender a referida Teoria, de acordo a assunçãodeste prisma de percepção do fenômeno jurídico, a partir da contribuição do significado decultura dentro da condição Pós-Moderna.

 

2 CULTURA E CULTURA PÓS-MODERNA

 

Cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, que tem por particípiopassado cultus e, porparticípio futuro, culturus(BOSI, 2006, p. 11): cultura teria a ver, inicialmente, com o Moderno refinamento cultural, comcivilização, com tolhimento em prol de vida em comunidade segura (BAUMAN, 1998, p. 7 e161).

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Nesse sentido, a noção de cultura é a de algo que se vai cultivar, trabalhar, operar sobre outroalgo, ou seja, em outras palavras, cultura seria “o conjunto das práticas, das técnicas, dossímbolos e dos valores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reproduçãode um estado de coexistência social ”, umamodalidade de sujeitar e de adaptar, dentro de determinados dogmas, o não culto, o nãocivilizado, o bárbaro, o selvagem, adequando-o a um padrão entendido como superior, porquemelhor (BOSI, 2006, p. 16-7).

 

A cultura, nesse sentido, adquire uma feição conservadora, projeto de futuro imutável, vistodirecionar o presente a um eventual e único futuro delimitado por determinada formaçãovalorativa social, a Moderna, ou seja, o meio de produção de porvir esperado, seguro,ordenado em que haveria aperfeiçoamento moral e aprimoramento do gosto, de acordo com as pretensões tipicamente Modernas.

 

Essa, em linhas gerais, é a noção de cultura formada durante o século XVIII, no momentocrepuscular da Modernidade nos países europeus: cultura teria o caráter de esforço civilizador,aquilo que foi feito e que deveria continuar a ser feito, um correto processo racional a que sedeve submeter as pessoas, de modo a construir um mundo excelente, evitando que oHomem, entregue a si próprio e a sua própria sorte, pudesse cometer atrocidades desastrosaspara a humanidade: em suma, a retirada do ser humano da barbárie, domando as pulsões dabesta humana (BAUMAN, 1998, p. 161-2).

 

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No entanto, os conceitos em geral, assim como o de cultura, amadurecem após seudesenvolvimento, e movem-se, adentrando regiões e zonas, muitas vezes distantes de seulocal da origem, em busca de significações outras, além daquela original, por meio daexperiência dos seres humanos na concepção mental, dentro do intelecto, e do uso doconceito nas interações comunicativas humanas (BAUMAN, 1998, p. 160-1).

 

Desse modo, o conceito estratégico de cultura, outrora produtor da significação envolvendoidéias e noções envolvendo a demarcação de divisa pundonorosa do pensamento iluminista,pretensamente progressista, pôde adquirir outro significado além do originalmente atribuído aele, em razão de apropriações a preensões políticas no embate discursivo acerca de seusignificado (ANDERSON, 1999, p. 78-9).

 

Nesse sentido, a noção de cultura se tornou, em um primeiro momento, o bastião doconservadorismo (ANDERSON, 1999, p. 79), visto ser entendida como, de acordo com aproposta da Modernidade, um mecanismo de antialteridade voltado à construção e àmanutenção de uma ordem, a fim de evitar o caos social, negando a ambivalênciacomportamental pelas coerentes prescrições e proscrições de condutas únicas, as melhores porque as mais refinadas, organizando e separando elementos funcionais dos não funcionais,de acordo com o sistema cultural vigente, eliminando o inútil, o supérfluo, o descartável e oredundante (BAUMAN, 1998, p. 164-5).

 

Por outro lado, com o advento da Pós-Modernidade, a significação do termo cultura pareceapontar para outros caminhos adicionais de compreensão: a crise, ou a desordem parece seruma constância, a anormalidade passa a ser a norma, a exceção, a regra... A cultura passa aser entendida não mais como a estabelecedora da ordem, mas, sim, uma atividade dotada de inquietação, de adaptabilidade, de subdeterminação endêmica e de imprevisibilidade(BAUMAN, 1998, p. 165-8).

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Em outras palavras, a cultura de acordo com a visão Pós-Moderna é inquieta, nãoestacionária, mas processo dinâmico de alteração de possibilidades de ser, de forma rebelde einsubordinada, ordenadora, porém não ordenada, não buscando atingir a semelhança, porquenão prega a reprodução acrítica de saber e de viver que seja o de dividir, de separar, declassificar ou de diferenciar (BAUMAN, 1998, p. 167-8).

 

Isso porque, de fato, a Pós-Modernidade é marcada pela tendência à desdiferenciaçãotemporal, cultural e de campos, desgastando separações, inclusive, entre subtipos de cultura(de massa, criadora, popular e erudita) (BOSI, 2006, p. 326-37; JAMESON, 1985, p. 17;JAMESON, 2001, p. 73): nunca uma dimensão fechada, mas algo aberto a novaspossibilidades de mudança, conforme novas e livres opções e alternativas possíveis: ordenado, não ordenador, certo, porém instável.

 

É nesse específico sentido que se propõe a realização de uma leitura Pós-Moderna dasconcepções culturalistas de Direito, qual seja, o de não admitir a unidade de possibilidade deconformação de dispositivos normativo-jurídicos, dado o sem número de possibilidadesculturais ordenadores, porém não ordenados: a cultura, como elemento fundamental e fundante do Direito, para essas concepções, não pode pretender, segundo visãoPós-Moderna, admitir a imutabilidade das normas jurídicas, porque está sempre pronta a todasas outras formas possíveis de ordenação, nunca terminadas em si, mas sempre prontas epredispostas à mudança.

 

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3 O TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO E A CULTURA PÓS-MODERNA

 

Deve-se notar, em primeiro lugar, que as concepções culturalistas de Direito são construçõesteóricas que surgem como contraposição ao normativismo jurídico que se consolidou ao longoda primeira metade do século XX, cada um deles imbuído de concepções de cultura diversas.

 

Nesse sentido, para o positivismo jurídico, a noção de cultura se assemelharia à concepçãoModerna, admitindo uma única hipótese perfeita de ordenação jurídica, a verdadeira e pura,conforme os rigores lógicos e metódicos, devendo haver sua imposição na hipótese dedescumprimento: o Direito seria uma ordem social coativa, conformando a realidade (KELSEN, 2000, p. 35-48), um dos instrumentos do Projeto de civilização, próprios daconcepção Moderna de cultura.

 

No entanto, inúmeras foram as críticas à teoria do Direito como ordem social coativa deconduta, trazendo, em si, de modo subjacente, a discussão progressiva da alteração dopadrão de compreensão daquilo que seria cultura, implicando o desenvolvimento da idéia dacoercibilidade do Direito, ou seja, de que o uso da força não seria excluído da ordem jurídica,mas sua utilização seria apenas potencial.

 

Assim, a concepção Pós-Moderna de cultura se contraporia ao ordenado e ordenadormovimento de compreensão do Direito pelo normativismo, estando mais de acordo com aproposta das concepções culturalistas de Direito, na medida em que, apesar de objetivar a

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ordenação da sociedade, por meio coercível, não descarta a possibilidade de mudança, comose verá em seguida.

 

Deste modo, permanece a possibilidade de haver recurso à sanção coativa, mas ela se reduza um plano secundário das sanções, não havendo a importância lhe atribuída outrora,principalmente porque há outros meios de se obter obediência em relação às normas jurídicas(FARIA, 1978; FARIA, 1988) e, nesse sentido, importante perceber a influência de diferentesfatores culturais na arquitetura jurídica, aberta a inúmeras possibilidades de regulaçãonormativo-jurídica (REALE, 2000a, p. 677-8; REALE, 2001, p. 48).

 

A concepção culturalista de Direito a ser examinada a seguir parte do pressuposto damutabilidade da ordem jurídica diante da variação de fatores culturais, perpassando o tema daligação entre coação e juridicidade, dissociado da Moral e de outras formas de ordenaçãosocial pelo mundo ético, exatamente por estar mais próxima do paradigma Pós-Moderno decompreensão da cultura.

 

Dentre as possibilidades de concepções culturalistas de Direito existentes, será abordada aque tem tido grande repercussão nos estudos jusfilosóficos, a do tridimensionalismo dofenômeno jurídico, pautando a análise pelos principais estudos desenvolvidos, na literatura jurídica nacional, porMIGUEL REALE, dentro de sua posição específica dentre as diversas modalidades decompreensão cultural do Direito de caráter tridimensional.

 

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De fato, diversas são as visões teóricas sobre a tridimensionalidade do fenômeno jurídico(REALE, 1980, p. 23), sendo que, em todas elas, há a percepção de que há três dimensõesque o compõem, quais sejam, o fato, o valor e a norma, constituindo a diferença fundanteentre cada uma delas a maneira pela qual cada uma das dimensões do fenômeno jurídico se relacionam e implicam-se entre si.

 

O pensamento acerca do Direito de G. RADBRUCH e a de E. LASK, os pais da aproximaçãoteórica culturalista do Direito de caráter tridimensional, e de MIGUEL REALE, dentro dessacompreensão específica, devem ser entendidos como “reação ao empobrecimento a que opositivismo submetera a imagem do real (...).” (REALE, 1980, p. 23 e 68).

 

Em geral, deve-se perceber que essa corrente, em qualquer de suas vertentes depensamento, notou a existência, na compreensão kantiana, de um elemento essencial para oentendimento do mundo histórico, o conceito de valor, interpondo, entre este e a realidade, acultura, como elemento de conexão entre ambos, consistindo em realidade valiosa, ou referida a valores (REALE, 1980, p. 69-70); no entanto, as duas primeiras seriam tipicamentegenéricas e abstratas, enquanto que a última delas deteria um caráter concreto e dinâmico(REALE, 1980, p. 25 e 57).

 

E. LASK e G. RADBRUCH entendem haver uma conexão entre a realidade empírica e o idealdo Direito, qual seja, o mundo da cultura, “o complexo de bens espirituais e materiaisconstituído pela espécie humana através dos tempos”, compreensão essa denominada “culturalista do Direito”, tendo apenas em vista que aconcebe como um elemento de intermediação entre os valores ideais e os dados daexperiência jurídica (RADBRUCH, 1997, p. 79; REALE, 1980, p. 24).

 

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Por conceberem cada um dos três elementos de forma abstrata e separada, esses doispensadores desenvolveram a tridimensionalidade genérica e abstrata do direito, e cada umdos elementos corresponderia a determinados objeto, método e ordem específicos, próprios,havendo apenas uma completa Ciência do Direito quando “da justaposição das três perspectivas entre si irreconciliáveis e antinômicas (Radbruch)”, ou quando da “integração dos três estudos (Lask)” (REALE, 1980, p. 25-6), vacilando entre “uma justaposição extrínseca de perspectivas e uma confessada antinomia ou aporia entre ostrês pontos de vista possíveis suscitados pela experiência do direito.” (REALE, 1980, p. 47-8).

 

Há, por outro lado, uma concepção tridimensional mais específica do Direito, a concreta edinâmica, que pressupõe haver uma correlação dialética explícita dos três elementos em umaunidade integrante, diferentemente do que ocorria, até então, com as demais Teorias Tridimensionais do Direito, em que essa relação restava apenas subentendida, ou semrigorosa fundamentação epistemológica, mesmo em E. LASK e em G. RADBRUCH (REALE,1980, p. 48, 57 e 68); todavia, para compreender melhor a inovação da concepção culturalistade Direito de MIGUEL REALE, é necessária a retomada, em breve síntese, das premissasmetodológicas de seu pensamento.

 

Essa concepção tridimensional do fenômeno jurídico é expressão da compreensão culturalistado Direito que tem MIGUEL REALE, na medida em que funda seu entendimento sobre o queseja o Direito na própria idéia de experiência do Direito como manifestação da experiênciacultural em que há uma específica relação dialética entre os três fatores componentes doDireito, o fato, o valor e a norma.

 

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Todavia, não se pode se limitar à afirmação do “caráter fático-axiológico-normativo do direito,sem tirar desta colocação do problema todas as conseqüências nela implícitas”, porque ela existe em “qualquer porção ou momento da experiência jurídica oferecido à compreensão espiritual”, havendo, contudo, algum elemento que distinga a experiência jurídica das demaismodalidades de experiências éticas, como a Moral, a Religião e o costume, visto que todaspossuem esses três momentos se correlacionando entre si (REALE, 1980, p. 53-5).

 

Antes de diferenciar a experiência jurídica das demais, importante se mostra apresentar asbases do pensamento de MIGUEL REALE sobre Tridimensionalidade do Direito e experiênciajurídica (LAFER, 2004, p. 56).

 

De maneira sintetizada, fato, valor e norma estão presentes e correlacionados em qualquerexpressão da vida jurídica, não permanecendo, portanto, estagnados em seu específicoâmbito de abrangência, sendo que essa correlação entre os elementos “é de naturezafuncional e dialética, dada a implicação-polaridade existente entre fato e valor, de cuja tensãoresulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limitescircunstanciais de lugar e de tempo” (REALE, 1980, p. 57).

 

A compreensão do Direito como expressão da experiência cultural, é reflexo do entendimentode que a cultura, de per se, tem um papel fundamental na aproximação dos termos da relação,por ser um “ reino intercalado para unir dois mundos (o da naturezae o do valor) ”, em que cada um destes se correlaciona

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de acordo com aquela específica dialética, de maneira que há a superação cultural por meiode uma norma (REALE, 1980, p. 60).

 

Isso porque todo bem de cultura, como o Direito, é tridimensional em sua essência, em razãode ser bem de cultura, de per se, intermediador de realidades, por pressupor,sempre, um suporte natural, real, ou ideal, que adquire significado e forma próprios em virtudedo valor a que se refere (REALE, 1980, p. 70) .

 

É neste específico ponto que surge a importância da concepção Pós-Moderna de cultura, qualseja a de abertura a inúmeras possibilidades diferentes de normação, uma realidadeordenadora, mas não ordenada, disposta à constante mudança de acordo com as livresopções e escolhas surgidas a cada momento: a cultura, como elemento chave decompreensão da superação da relação fato-valor pela norma, se impõe certeza quanto à conduta a ser considerada normal pela ordem jurídica, no entanto, garante a incerteza e ainstabilidade nas futuras possibilidades de nova regulação, sempre deixando em aberto oprocesso nomogenético.

 

Assim, a superação da tensão dialética entre fato e valor por meio de uma norma ocorreriapor meio da intermediação dos caracteres e dos signos culturais espontâneos emomentâneos, ordenando a sociedade, como é o objetivo da ordem jurídica, mas semesquecer que, com a variação histórico cultural única, é possível a nova, e sempre renovada, regulamentação jurídica da sociedade.

 

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Por isso, se está de determinada forma a regulação jurídica, ela nem sempre permaneceráassim, podendo sofrer alterações no futuro, e admitir novos conteúdos de norma jurídica, oumesmo novos meio de produção de norma jurídica, em razão de a concepção Pós-Modernade cultura conceber como aceitável a possibilidade constante de mudança da ordem como aregra certa de sua incerteza.

 

Isso porque a relação de implicação-polaridade entre os termos componentes da estrutura doDireito (fato-valor-norma) permite que haja, sempre, inúmeras outras novas possibilidades desíntese em potencial, em caráter aberto, e inesgotável, sem haver, jamais, a conclusão desseprocesso, principalmente em razão da essencial irredutibilidade dos dois termos relacionadosou relacionáveis (o fato e o valor).

 

Deste modo, a implicação dos opostos elimina, temporariamente, a aparência da contradiçãoentre fato e valor, sem que com sua solução em determinado contexto espacial e temporaldetermine o fim da contradição entre ambos, porque cada um dos termos não se sintetiza como outro, permanecendo idêntico a si mesmo, apesar de estar em mútua e necessáriacorrelação.

 

De fato, o constante embate de cada um deles, dentro de determinada circunscrição culturalespacial e temporalmente localizada, permite, a cada momento, a superação da contradiçãopor meio diferentes normações possíveis, tendo em, vista que a cultura está aberta a diversasoutras novas possibilidades de ordenação da sociedade.

 

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Isso porque, deve-se frisar, não há redução de um aspecto ao outro (fato a valor, valor a fato),embora cada um deles, em relação ao outro, tenha natureza complementar: há uma unidadeentre ambos, decorrente da integração e da superação deles, por sua relação de específicadialética implicação-polaridade, de maneira progressiva e não final, por um terceiro elemento(norma), sem que um dos dois elementos “originais” (fato e valor) desapareça e sejaesquecido no outro (REALE, 1980, p. 72-4).

 

Deve-se lembrar que, a norma jurídica, como todo o Direito, é uma realidade cultural,resultado da experiência jurídica, não apenas ferramenta técnica, mas resultado dacomposição de conflitos de interesses, onde se integram “renovadas tensõesfático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência”: não pode ser, assim, o Direito, fruto puro da razão, porque decorre de uma superaçãonormativa de uma tensão entre fato e valor, com base nas mutáveis e instáveis experiênciasculturais e éticas.

 

Por isso, a elaboração de uma norma jurídica consistiria em um “momento culminante daexperiência jurídica ”, dentrode um processo em que se insere o Poder de forma positiva, ativa e atuante, seja formalizadoindividualmente em um Estado , seja por outro meio, como o anônimo difuso no corpo social:diante do complexo de fatos e de valores, o Poder opta por determinada solução regulativapossível, para aquele contexto, em função deles, mas sem fechar, ou excluir, a possibilidadede reordenação jurídica(REALE, 1980, p. 61).

 

A própria noção de experiência jurídica deve ser melhor desenvolvida para uma compreensãomais precisa do entender desse pensador: a experiência seria um processo de objetivação ede discriminação de modelos de organização e de conduta,uma forma

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de experiência histórico-cultural em que o valor atua como um do fator constitutivo dessarealidade (função ôntica) e, concomitantemente, como prisma de compreensão da realidadepor ele constituída (função gnoseológica), bem como, ainda, a de razão determinante deconduta (função deontológica) (REALE, 1980, p. 61-3; REALE, 1998, p. 32-62).

 

A idéia e a lógica de experiência, também aplicáveis à jurídica, para MIGUEL REALE, têmorigens no próprio processo cognitivo do ser humano, que também ocorre segundo a dialéticade implicação-polaridade; assim, da mesma maneira que o ser humano experimenta diversassituações, e com elas forma-se, informa-se, transforma-se, deforma-se e conforma-se, o Direito, também experiente com elas, forma-se, informa-se, transforma-se, deforma-se econforma-se, ou seja, desenvolve-se em novas sínteses progressivas possíveis, nãoesgotadas no desenrolar da História (REALE, 1980, p. 73-4).

 

A idéia de experiência aponta para a de vivência, ou seja, para o tomar contato com arealidade, agregando conhecimento, aprendendo com as contingências, com os sucessos,com os dissabores: experienciar possui o significado original de ser algo mais ou menospressuposto como sendo distinto, mas não separável,da pessoa que a observa e que a examinam qualquer que seja o fim visado (ético, estético ou científico) (REALE, 1999, p. 15;LAFER, 2004, p. 55) .

 

A experiência ética, normas de regulação de comportamento humano em geral, produz-sesegundo causas motivacionais, diferentemente das experiências naturais, as quais sedesenvolvem de acordo com as relações de causalidade e, assim, a experiência nos conduz adiferentes possibilidades de compreensões éticas relacionadas com informações práticas ouempíricas (REALE, 1999, p. 16).

 

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A idéia de experienciar está intimamente ligada ao processo cognitivo, sendo uma relaçãocom o real da qual resulta, com base em avaliação fundada em valores, determinado juízopositivo ou negativo sobre essa relação.

 

No caso particular da experiência ética, essa relação possui um sentido de experimentaçãocomo prova íntima que produz reflexos no consciente, e no subconsciente, de tal maneira quetudo o que for experimentado ou sofrido pelo homem implica formação ou deformação de suapersonalidade, porque esta não se confecciona isoladamente, de modo autônomo, no mundo, mas, sim, do relacionamento entre homens, e com eles, no mundo da vida comum (REALE,1999, p. 18-20).

 

Em outras palavras, a experiência compreende a atividade de aprender com as decepções ecom as contingências decorrentes de seus relacionamentos, marcando e determinandoespecífico “ser”, modelando-o de tal maneira que talformação-deformação-conformação-transformação da personalidade influencie suasposteriores atividades (REALE, 1999, p. 24).

 

Essa específica maneira de experienciar, característica das experiências éticas, inclui tambémo Direito, por ser modo particular da experiência ética: se a experiência ética reflete aexperiência humana, todo o processo de desenvolvimento humano repercute nas esferas deexperiência histórico-culturais, sendo essa lógica aplicável à experiência jurídica, na medidaem que “a experiência é o fator dinamizador da história, enquanto que a cultura (...) constitui oconjunto de tudo aquilo que o homem conseguiu objetivar (isto é, tornar, ao mesmo tempo,objeto e objetivo) em seu processo existencial ”, ou seja, em seu processo contínuo

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de experiência (REALE, 1999, p. 20).

 

Sendo assim, por ser a experiência jurídica uma das modalidades da experiênciahistórico-cultural, deve-se entender que o resultado da implicação fato-valor consiste em umprocesso nomogenético de caráter integrante e superador de tensões, constantementerenovado, o que significa dizer que cada norma, ou conjunto de normas, representa a compreensão de dado momento histórico-cultural, em específicas circunstâncias, acerca daconveniente, oportuna, e melhor, ordenação de fatos múltiplos por valores que, sobre eles,incidem, determinando a elaboração de certo, mas não eternos, modelos jurídicos compatíveiscom a mutável e complexa realidade, múltiplia e plural, a serem nela aplicados (REALE, 1980,p. 74).

 

Todavia, todas as modalidades de experiência histórico-cultural, como a Moral e os costumes,são tridimensionais, vale dizer, elaboram normas de conduta humana com base naexperiência resultante da implicação polar entre fato e valor (BITTAR, 2005, p. 92-4): no casodo Direito, sua nota essencial seria seu caráter normativo bilateral-atributivo, enquanto que esse elemento não estaria presente em cada uma das demais experiências éticas (REALE,2001, p. 57).

 

O autor, nesse sentido, distingüe a experiência jurídica das demais que compõem o amplodomínio da Ética, sem esquecer que todos possuem a característica de serem bilaterais(envolverem dois sujeitos) e tridimensionais (superação normativa da tensão fato-valor,conforme a dialética de implicação-polaridade).

 

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A experiência religiosa teria por nota característica o valor em que se baseia, de caráter transcendente, não se referindo à sociedade, ao indivíduo, ou à história, colocando-se além doplano da existência.

 

Por sua vez, a experiência Moral, cuja nota essencial é a espontaneidade na adesão avalores, não é compatível com sujeição forçada, visto que a regra de comportamento possuifundamento na própria pessoa que desempenha a conduta, tendo mais um caráter individualque social, sendo o agente “ legislador de si mesmo”, estandoa instância axiológica no plano da existência do sujeito que pratica a ação.

 

No caso da experiência costumeira, seu fundamento axiológico teria, também, umalocalização diversa das demais, visto se encontrar, não em algo que transcenda os sujeitos,nem no próprio foro do agente, mas, pelo contrário, no sujeito destinatário das condutas, ounos demais sujeitos, um campo vastíssimo que regula as ações relacionadas aos costumessociais, como as regras de etiqueta, cortesia oucavalheirismo , também conhecidacomo experiência moral social, visto o guia das ações de determinada pessoa ser mais osoutros do que ela mesma: o homem age conforme lhe ditam as regras de convivência(REALE, 2000a, p. 394-406).

 

O fenômeno jurídico, assim, teria por características, segundo o mesmo autor, a coercibilidade, a heteronomia, a bilateralidade e a atributividade, concomitantemente, nãosendo nem apenas coercível (e não coativo!), nem somente heterônomo, muito menosmeramente bilateral ou atributivo.

 

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A bilateralidade atributiva consiste no fato de, nas relações humanas reguladas pelo Direito(relações jurídicas), haver, sempre, “um nexo de validade objetiva que correlaciona entre siduas ou mais pessoas, conferindo-lhes e assegurando-lhes pretensões ou competências quepodem ser de reciprocidade contratual, ou de tipo institucional, sob forma de coordenação,subordinação ou integração ” (REALE, 1980, p. 75).

 

Em outras palavras, a bilateralidade atributiva, da qual decorrem a coercibilidade e aheteronomia (REALE, 2000a, p. 692 e 706-10), consistiria no caráter essencialmente social doDireito, na medida em que regula relações humanas, em que há o caráter de exigibilidade de conduta de uma pessoa em relação à outra, na qual o fenômeno jurídico atribui a uma delas afaculdade de exigir o desempenho de determinada conduta em suas relações, seja mediantepersuasão, seja mediante o uso de coerção: daí a coercibilidade, ou seja, possível, mas nãocausalmente necessária, aplicação da coerção (REALE, 2000a, p. 692-4).

 

A experiência jurídica é bilateral, visto que, por ser fato social, exige, como pressupostonecessário, a presença de dois ou mais indivíduos, por não existir ato jurídico fora dasociedade; no entanto, as condutas morais não são exigíveis como são as jurídicas, visto queas últimas são obrigatórias, vinculantes e exigíveis porque reconhecidas como tais (jurídicas),não necessariamente pelos sujeitos envolvidos na relação (agente ou destinatário), mas “poralgo que os entrelaça em uma objetividade discriminadora de pretensões, também nãonecessariamente recíprocas” (REALE, 2000a, p. 401-3).

 

Dessa forma, a instância valorativa pela qual se pauta a conduta jurídica se encontra, não

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necessariamente nos sujeitos da relação, por ser transubjetiva: “o enlace objetivo de condutaque constitui e delimita exigibilidades entre dois ou mais sujeitos, ambos integrados por algoque os supera, é o que chamamos de bilateralidade atributiva”, sendo que a relação jurídica, neste entender, “apresenta sempre a característica de unir duas pessoas entre si, em razão de algo que atribuiàs duas certo comportamento e certas exigibilidades” (REALE, 2000a, p. 403).

 

Assim, o caráter de jurídico – e, portanto, obrigatório, vinculante e exigível – de uma condutase baseia no fato de que algo, reconhecido objetivamente, distribui/atribui/discrimina, demaneira objetiva, pretensões aos sujeitos das relações, não de caráter transcendental, mas apenas transubjetivo, ou seja, superando a subjetividade das e nas relações.

 

Desde modo, o critério distintivo, para esse autor, do Direito, com relação às demaisexperiências histórico-culturais é o reconhecimento objetivo da atribuição de pretensões acada um dos eventuais sujeitos que se encontrarem em situações por ela reguladas,superando “as pessoas de um e de outro sujeito e se coloca[ndo] acima deles, unindo-os emum laço de exigibilidades ou de pretensões ” e, portanto, não o elemento coativo, aforça (REALE, 2000a, p. 403-4).

 

O nexo entre os sujeitos é transubjetivo, estabelecido conforme coordenação objetiva oumelhor, objetivamente, decorrendo dessa exigibilidade a própria coercibilidade, mas apenas etão-somente para lhes assegurar determinado campo de livre ação, com o escopo de garantira certeza e a segurança daquilo que é subjetivamente reconhecido como objetivamenteoutorgado (REALE, 2000, p. 686, 691-2).

 

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Assim, algo apenas é tido por obrigatório e devido quando em razão de algo que se põeacima de um ou de outro sujeito partícipe da relação, porque o “Direito não está em função doquerer ” de qualquer um,porque “ representa umaexigência do todo coletivo, (...) um nexo que se orienta para uma vinculação externa dasvontades em uma ordem firme e de validez geral, mercê da qual resultam determinadas asesferas de poder dos indivíduos em suas relações recíprocas, com o mundo das coisas e coma vontade comum” (REALE, 2000a, p. 694-5 e 701).

 

Assim, o Direito seria uma “realidade histórico-cultural tridimensional de natureza bilateralatributiva ”, ou ainda, uma “'realidade histórico-cultural ordenada deforma bilateral atributiva segundo valores de convivência'”, ou seja, o Direito tem por objeto fatos ordenados, segundo valores, em um processonomogenético intrinsecamente dotado de atributividade, por meio do qual se concretizamvalores historicamente construídos, de modo a ordenar e a regular as relações entre sujeitos,de acordo com as exigências complementares dos indivíduos e da sociedade (REALE, 2000a, p. 699).

 

Essa vinculação objetiva do Direito, enlaçando os indivíduos, que lhes confere “esferasautônomas de ser e de agir”, é expressão de exigências axiológicas relacionadas às circunstâncias de cada sociedade,às opções por ela tomadas, bem como às preferências por ela elencadas (REALE, 2000a, p.702), precisamente em função do espontâneo e temporário mandamento significativo culturalde determinada época e de determinado lugar.

 

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Dessa forma, essa regulação tida por obrigatória decorre do reconhecimento de que ela éjurídica, ou melhor, obrigatória porque reconhecida (objetiva) como expressão e concreçãodos anseios axiológicos de determinada circunstância espaço-temporal, resultantes daexperiência histórico-cultural e ética, em que se atribuem faculdades de agir e de exigibilidadequando há alguma falha no seguimento normal da atribuição conferida pela experiênciajurídica, decorrente de “valoração objetiva inter-homines” (REALE, 2000a, p. 707).

 

Assim, o Direito, de acordo com a concepção culturalista do Direito de MIGUEL REALE,apesar de coercível, não teria um caráter intrinsecamente coativo, de imposição, mas, sim,porque mais próximo de uma compreensão Pós-Moderna de cultura, não negaria apossibilidade de alteração transgressora, bem como a de mutabilidade constante, porque seriafruto de contínua e ininterrupta interação tensiva, superadora e integrante dos dois pólos darelação tridimensional, vinculada, ainda, de forma transubjetiva, aos sujeitos da relação,determinando-os heteronomamente.

 

4 CONCLUSÕES

 

O estudo das compreensões culturalistas do Direito e de suas propostas permite a percepçãode que, diante do empobrecimento causado pelo reducionismo normativo-positivista do Direito,o pensamento jusfilosófico sofreu significativa mutação em função da alteração do entendimento sobre o que se compreende significar cultura.

 

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Nesse sentido, a uma concepção tipicamente Moderna de cultura pode se contrapor umaconcepção Pós-Moderna de cultura, sendo que, para cada uma delas, corresponderia umadas compreensões do fenômeno jurídico: para a primeira, o positivismo jurídico, com seu rigordisciplinador do real, ordenado ordenador da sociedade, de caráter coativo; para a segunda, a concepção culturalista tridimensional analisada, que admite a mutabilidade da normaçãojurídica em função das características espácio-temporais da sociedade, abrangendo a eternainteração tensiva entre fato e valor, a ser superada, a cada momento, de modo inventivo, pornorma social de conduta.

 

Neste particular, é importante perceber que as concepções culturalistas de Direito admitem aalteridade e a transformação do Direito, constantemente, de acordo com as variações daexperiência ética, humana e histórico-cultural e, por isso mesmo, um ambiente normativoordenador, mas não exatamente ordenado, porque apto à constante mudança de propostasde ordenação social.

 

Por isso mesmo é que o Direito, segundo a concepção culturalista, espécie de experiênciaética, apesar de dotado da coercibilidade, não admite a noção de coatividade: o uso da coaçãopermanece como possível, mas ela não é necessária para caracterizar o fenômeno jurídico, ouseja, não é ela o que atribui a qualidade de juridicidade a normas, mas, sim, a específicasuperação normativa da tensão entre fato e valor, em função de um valor transubjetivo, dentrode determinada significação cultural que, heteronomamente, vincula, de forma impositiva, ascondutas humanas, que se tornam exigíveis em determinada localidade espácio-temporal.

 

Por isso mesmo, a alteração de superação cultural por normas não se mostra estanque,porque a conduta jurídica exigível, de acordo com as especificidades onde ocorreu, estásujeita a constantes alterações, motivo pelo qual se entende que o Tridimensionalismo

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Jurídico de MIGUEL REALE está mais próximo de uma percepção Pós-Moderna da cultura, admitindo uma ordem, uma regulação social certa, mas também que ela mesma não sejaordenada, porque aberta à instabilidade transgressora do processo nomogenéticoconstantemente retomado de modo inovador, avesso à estabilidade, e condescendente com amudança do presente jurídico.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

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