O PAPEL DO ACUSADO PARA A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO ... · PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA...

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MARCELO LOPES BARROSO O PAPEL DO ACUSADO PARA A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA: EXTENSÃO E LIMITES DO DIREITO DE DEFENDER-SE POR SI PRÓPRIO MESTRADO EM DIREITO UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – FACULDADE DE DIREITO FORTALEZA - 2008

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MARCELO LOPES BARROSO

O PAPEL DO ACUSADO PARA A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA:

EXTENSÃO E LIMITES DO DIREITO DE DEFENDER-SE POR SI PRÓPRIO

MESTRADO EM DIREITO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – FACULDADE DE DIREITO

FORTALEZA - 2008

2

MARCELO LOPES BARROSO

O PAPEL DO ACUSADO PARA A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA:

EXTENSÃO E LIMITES DO DIREITO DE DEFENDER-SE POR SI PRÓPRIO

Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade Federal do Ceará, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Francisco Régis Frota Araújo.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – FACULDADE DE DIREITO

FORTALEZA - 2008

3

À Larissa, querida filha, por tudo o que

você representa em minha vida.

4

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Francisco Régis

Frota Araújo, pela aceitação da árdua

tarefa de orientação.

Ao Professor Doutor Samuel Miranda

Arruda, pelo rigor científico e

cordialidade na apresentação das críticas.

Ao Professor Livre Docente Raimundo

Bezerra Falcão, grande mestre, na pessoa

do qual agradeço a todos os docentes do

curso de mestrado em Direito da

Universidade Federal do Ceará

5

“A liberdade nunca é dada de livre vontade pelo opressor, tem de ser exigida pelo

oprimido” (Martin Luther King).

6

RESUMO

O nosso ordenamento constitucional albergou uma série de garantias processuais como forma de ressaltar a posição de prevalência do indivíduo em face do Estado. Além das garantias explícitas enumeradas no texto da Carta Magna, há outras decorrentes dos princípios e dos tratados dos quais a República Federativa do Brasil faz parte. Nesse passo, analisa-se, no presente estudo, a autodefesa como garantia constitucional. O processo penal do século XXI há de ser entendido sob uma perspectiva constitucional, um instrumento para a concreção dos princípios garantistas previstos na Carta Magna, dentre eles a autodefesa. Estudam-se o exercício da atividade defensiva pelo próprio réu, sua caracterização, amplitude, repercussão e limites. O direito ao conhecimento da acusação é pressuposto para o exercício da autodefesa. O direito de defender-se por si próprio, em seu aspecto positivo, divide-se no direito de presença, no direito de audiência, no direito de postular em causa própria e no direito de constituir advogado. Em sua feição negativa, a autodefesa envolve o privilégio contra a auto-incriminação e o direito ao silêncio. Aborda-se o interrogatório no processo penal, uma vez que é neste ato processual que a autodefesa encontra sua maior expressividade. Investiga-se o novel interrogatório por videoconferência, a sua compatibilidade com os princípios do processo penal.

Palavras-chave: Garantias constitucionais. Processo Penal. Autodefesa. Videoconferência.

7

ABSTRACT

The Brazilian constitutional system shelters a series of procedural guarantees as a way to point out the position of the individual´s prevalence in view of the state. Besides the explicit guarantees listed/enumerated in the Magna Carta´s text, others arise from principles and treaties in which the Federal Republic of Brazil takes part. In this stage of this study, the self-defense is analyzed as a constitutional guarantee. The penal procedure in the 21th century has to be understood, under a constitutional perspective, as a tool to realize the guaranty principles foreseen in the Magna Carta, among them the self-defense. The practice of the defensive activity by the accused himself, its characterization, amplitude, repercussion and limits is studied. The right to know the accusation is presupposition for the practice of self-defense. The right to defend yourself by yourself, in its positive aspect, is divided in the right of presence, of hearing, to postulate for the own cause and of the right to retainer a lawyer. In its negative aspect, the self-defense involves the privilege against self-incrimination and the right to remain silent. It is dealt with the interrogation during the penal procedure, once it is in this procedural act that the self-defense finds its greatest expression. It is done research on the new interrogation by videoconference, its compatibility with the principles of penal procedure. Keywords: Constitutional guarantees. Penal Procedure. Self-defense. Videoconferencing.

8

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12

2 PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO ................................................................ 15

3 A GARANTIA DA AMPLA DEFESA ...................................................................... 20

3.1 Direitos e garantias fundamentais ........................................................................ 20

3.1.1 Distinção entre direitos e garantias ........................................................... 22

3.1.2 Dupla face da defesa: direito e garantia .................................................... 23

3.2 Acepções do termo defesa .................................................................................. 25

3.2.1 Significado originário ................................................................................ 25

3.2.2 Defesa como direito individual .................................................................. 26

3.2.3 Defesa como garantia do processo ........................................................... 30

3.2.4 Defesa como qualquer atividade desenvolvida pelo sujeito passivo no

processo penal.................................................................................................... 31

3.2.5 Defesa como parte no processo penal ...................................................... 32

3.3 Conteúdo da defesa ............................................................................................ 33

3.4 As modalidades do exercício da ampla defesa .................................................. 34

4 DEFESA TÉCNICA ................................................................................................... 36

4.1 Conceito ............................................................................................................... 36

4.2 Fundamentos ........................................................................................................ 37

4.3 Natureza jurídica das funções desempenhadas pelo advogado ........................... 40

5 A AUTODEFESA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL................................ 45

5.1 Extração constitucional da autodefesa ................................................................ 45

5.1.1 Sustentáculo da autodefesa em outros princípios constitucionais

expressos............................................................................................................. 47

9

5.1.2 A autodefesa e os tratados internacionais versando sobre direitos

humanos ............................................................................................................. 51

5.2 A relevância do reconhecimento da autodefesa como garantia

constitucional............................................................................................................. 58

5.2.1 A vinculação do legislador ..................................................................... 60

5.2.2 A vinculação dos juízes e tribunais ........................................................ 61

6 A AUTODEFESA SOB A PERSPECTIVA DE UM PROCESSO PENAL

GARANTISTA .............................................................................................................. 64

6.1 O Garantismo Penal ............................................................................................. 64

6.1.1 Garantismo e verdade ............................................................................... 67

6.2 Conceito ............................................................................................................... 69

6.3 Pressuposto .......................................................................................................... 72

6.3.1 A acusação formulada ............................................................................... 73

6.3.2 A citação e a ciência dos atos processuais ................................................ 75

6.4 Autodefesa positiva ............................................................................................. 78

6.4.1 Direito de presença .................................................................................... 78

6.4.2 Direito de audiência ................................................................................... 84

6.4.3 Direito de postular em causa própria ........................................................ 85

6.4.4 Direito de escolha do defensor ................................................................... 88

6.5 Autodefesa negativa ............................................................................................ 90

6.5.1 Privilégio contra a auto-incriminação ....................................................... 90

6.5.1.1 Destinatários ................................................................................... 93

6.5.1.2 Alcance do nemo tenetur se detegere ............................................. 94

6.5.2 Direito ao silêncio ...................................................................................... 96

6.5.2.1 A norma do art. 198 do Código de Processo Penal e as conseqüências

do exercício do direito ao silêncio ............................................................. 100

6.5.2.2 O silêncio no tribunal popular do júri ............................................ 102

10

6.6 Limites: Possibilidade de processo sem defensor? ............................................ 103

6.6.1 Corrente conferindo maior amplitude à autodefesa ................................ 104

6.6.2 Doutrina restritiva ................................................................................... 111

6.6.3 Posição do autor ...................................................................................... 113

7 INTERROGATÓRIO E AUTODEFESA ............................................................... 115

7.1 Um breve escorço histórico .............................................................................. 116

7.2 A natureza do interrogatório ............................................................................. 120

7.3 Obrigatoriedade ................................................................................................ 122

7.4 O interrogatório no modelo garantista e as inovações decorrentes da lei

10.792/2003 ............................................................................................................ 126

7.4.1 Direito ao silêncio e sua utilização pelo juiz ........................................... 126

7.4.1.1 Direito de mentir ............................................................................ 129

7.4.1.2 O registro das perguntas não respondidas e dos motivos levantados

pelo réu para permanecer calado .............................................................. 130

7.4.2 Estímulo ao exercício da autodefesa ........................................................ 132

7.4.3 Indispensabilidade da presença do defensor ............................................ 133

7.4.4 Direito de entrevista com o defensor ........................................................ 136

7.4.5 Possibilidade de formulação de reperguntas pelas partes ....................... 137

7.4.6 Inobservância das garantias processuais do acusado ............................. 140

7.5 Interrogatório na legislação extravagante ......................................................... 141

7.5.1 Interrogatório na lei dos juizados especiais criminais ........................... 141

7.5.2 Interrogatório na lei de drogas ............................................................... 143

7.6 Reflexos penais ................................................................................................ 145

7.7 O interrogatório por videoconferência ............................................................. 151

7.7.1 Surgimento e vantagens apontadas ........................................................ 153

7.7.2 A videoconferência no meio empresarial ............................................... 156

7.7.3 O interrogatório on-line no direito comparado ..................................... 157

11

7.7.4 A videoconferência e sua admissibilidade no ordenamento jurídico pátrio

........................................................................................................................... 161

7.7.4.1 Devido processo legal .................................................................. 161

7.7.4.1.1 O Projeto de Lei n.º 139/2006 ...................................... 163

7.7.4.1.2 O Projeto de Lei n.º 679/2007 ...................................... 164

7.7.4.2 Dignidade da pessoa humana ...................................................... 166

7.7.4.3 Ampla defesa .............................................................................. 169

7.7.4.4 Princípio da publicidade .............................................................. 173

7.7.4.5 Princípio da imediação ................................................................ 174

7.7.4.6 A norma do art. 185,§ 1.º do CPP ................................................ 177

8 CONCLUSÕES ........................................................................................................ 179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 190

ANEXO ....................................................................................................................... 201

12

1 INTRODUÇÃO

O tema da defesa realizada pelo próprio réu no processo penal desperta a atenção

daqueles que atuam diuturnamente perante a justiça criminal. Após algum tempo de

contato com as lides penais, tem-se a percepção de que a efetividade da defesa e o

resultado prático do processo decorrem não somente do labor desenvolvido pelo

profissional encarregado da defesa técnica, mas também da colaboração dada pelo réu.

Muitas vezes, em interrogatórios encetados, pode-se perceber a influência que as

palavras do réu exercem sobre o julgador, principalmente naqueles com a sensibilidade

mais aguçada. Quando as declarações prestadas pelo réu não possuem nenhuma

coerência lógica, seus efeitos são catastróficos para a defesa, globalmente considerada.

Mesmo que o advogado do acusado tente construir outras teses, as afirmações ditas pelo

réu perante o juiz são de grande valia para a formação do convencimento do magistrado.

Observa-se que, em audiências para a ouvida de testemunhas, determinadas

perguntas, que se mostraram preponderantes para a mudança do curso do processo,

foram elaboradas pelo próprio acusado, que as repassou para o advogado. Outra questão

que desperta interesse está relacionada ao papel que o juiz exerce diante dos direitos dos

acusados. Será que a busca desenfreada pela confissão é o melhor caminho para chegar

à verdade material?

A promulgação da Carta Republicana de 1988 modificou com profundidade o

tema referente às garantias constitucionais do processo. O nascimento de uma nova

ordem jurídica constitucional, entretanto, ainda não despertou nos operadores jurídicos a

consciência da necessidade de se conferir efetividade aos instrumentos normativos à

disposição dos jurisdicionados. O estatuto jurídico do acusado, que disciplina a

autodefesa, composto de normas previstas na Constituição e em tratados internacionais,

é respeitado no momento de sua aplicação prática?

O enfoque das garantias constitucionais do processo desperta mais interesse por

parte dos estudiosos do processo civil. No processo penal, a doutrina não vem

realizando uma análise sistemática da autodefesa. Esse desprezo da doutrina pelo

processo penal não é um fenômeno isolado.

13

A realidade nua a crua da prática forense mostra que o Judiciário Cível é o lugar

da vitória dos ricos e dos competentes ao passo que o Judiciário Penal mostra-se o palco

da derrota dos pobres. Quem conta com excelentes advogados, que se utilizam de todo o

manancial processual, que têm meios para atuar em todas as instâncias recursais, de

forma rápida e eficiente, certamente terá bem mais chances de obter um resultado mais

favorável ao final do litígio. No campo penal, vê-se, com certa freqüência, que as

desigualdades sociais são transportadas para o processo, em que os acusados pobres

sofrem com a ineficiência da assistência jurídica e, muitas vezes, com a complacência

judicial diante de defesas meramente contemplativas.

Não se pode conceber a realização de defesas meramente formais em processos

criminais somente por conta da hipossuficiência financeira dos acusados. O juiz deve

estar atento a essa realidade. O resultado de um processo criminal não pode ficar

condicionado ao sabor das relações entre advogados e seus clientes. Exige-se, pois,

nesse tipo de processo, a efetividade da defesa técnica. Trata-se de uma função que

transborda ao interesses do imputado, revelando um fator de legitimidade da própria

função jurisdicional. Os bens em litígio no processo penal impõem a sua preservação até

mesmo contra a vontade do acusado. Nessa área, devem ser evitadas concepções

individualistas e que privilegiam tão-só a vontade do réu, muitas vezes resultado da

formação de um juízo equivocado, despido das informações necessárias

Há um interesse público que torna legítima e fundamenta a função jurisdicional do

Estado, atividade esta que deve ensejar a toda e qualquer pessoa acusada da prática de

uma infração penal a mais ampla defesa, independentemente da condição econômica do

imputado.

O princípio constitucional da ampla defesa ganha belíssimas referências teóricas,

mas, quando é reclamada a sua aplicação no caso concreto, é alvo das mais variadas

agressões. Os princípios constitucionais possuem normatividade, não podendo ser

tratados como meros conselhos, recomendações.

A ampla defesa assenta-se na defesa técnica e na autodefesa. As duas modalidades

serão tratadas no presente trabalho - até porque se exigem reciprocamente –, com os

olhos sempre voltados ao contributo defensivo dado pelo próprio acusado. Cabe, pois,

na presente investigação estabelecer a extensão e os limites do direito do réu de

defender-se por si próprio. Na tentativa de responder a esse questionamento,

apresentam-se um perfil constitucional do processo penal, a análise do direito de defesa,

14

na perspectiva do réu e do advogado, e o papel do juiz no controle da efetividade desse

direito. É necessário também responder se a autodefesa é garantia constitucional

autônoma, mediante estudo de outros princípios constitucionais ligados bem como os

tratados internacionais acerca do tema. Indicam-se o pressuposto e manifestações do

direito de defesa manejado pelo acusado.

Nesse contexto, não pode passar desapercebida a influência do garantismo penal

para a colmatação de vazios normativos, bem como para a orientação do intérprete, de

modo a não esvaziar o próprio conteúdo do direito de defesa. Luigi Ferrajoli estabeleceu

um conjunto de princípios basilares do edifício garantista, após constatar a ineficiência

do sistema de proteção dos direitos. Após essa breve apresentação do garantismo penal,

percorre-se sobre a estrada conceitual do direito inerente a cada acusado de elaborar sua

própria defesa, seguindo-se de seu pressuposto (o direito ao conhecimento da acusação)

até chegar em suas modalidades (direito de presença, direito de audiência, direito de

postular em causa própria e o direito de escolha do defensor). O interrogatório é

investigado em terreno próprio, em razão de ser o palco principal do exercício da

autodefesa.

No campo de proteção à defesa realizada pelo próprio acusado, impõem-se que

sejam vistas com cautela algumas inovações tecnológicas a serem introduzidas no

campo processual penal, em especial, a adoção do interrogatório por videoconferência.

Busca-se, com apoio doutrinário e jurisprudencial, aferir a compatibilidade dessa

inovação tecnológica como mecanismo processual para oitiva do imputado com a

autodefesa e seus princípios que lhe conferem sustentação.

15

2 PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO

O ser humano busca, de forma contínua, a satisfação de suas mais variadas

necessidades. Muitas vezes, ao tentar a realização desses objetivos, entra em choque

com a liberdade de outros homens, também dotados de insatisfações próprias, com

desejos, aflições, angústias. Assim, sabe-se que cada indivíduo não pode simplesmente

ignorar a liberdade alheia e fazer tudo aquilo que pretende. Há, pois, uma tensão, um

choque “entre a pessoa enquanto indivíduo e membro do corpo social”1, conflito este

que espraia suas conseqüências nos mais diversos ramos da Ciência Jurídica.

O processo é meio indispensável para a resolução desse conflito. Não se pode,

pois, conceber outro mecanismo para a terminação dessa controvérsia senão mediante

uma seqüência de atos em contraditório, consistente na elaboração de uma tese

(acusação), na formulação de uma antítese (defesa) e na síntese (sentença), a fim do

acertamento da verdade.2

No que cabe ao processo penal, busca-se um “equilíbrio entre o direito de

liberdade o poder-dever estatal de punição do fato delituoso”.3 Na busca desse

equilíbrio, torna-se perigosa a tendência de aviltamento de direitos fundamentais em

nome da manutenção da ordem pública.

Com efeito, ao proteger o valor liberdade, a Constituição não despreza outros

valores também relevantes, como a propriedade, a integridade física e psíquica, a

estatura moral e a intimidade. A Constituição estabelece um processo que representa os

valores da pessoa humana e a proteção desses valores há de ser verificada em cada

situação posta à análise do juiz.4 Daí a atuação do Direito Penal, de modo a tutelar os

valores mais caros de cada sociedade. Há também, por meio do processo penal, a

tentativa de equilíbrio “entre a plena expansão da personalidade humana e os superiores

1 AZEVEDO, David Teixeira de. “O interrogatório do réu e o direito ao silêncio”. In RT 682. São Paulo: RT, 1992, p. 285. 2 PANSINI, Gustavo. La Contumácia nel Diritto Processuale Penale. Napole: Casa Editrice Dottore Eugenio Jovene, 1963, p. 39. Carlos Henrique Borlido Haddad ressalta: “No processo por acusação, a perquirição da verdade se faz por via de síntese, pois ambos os antagonistas apresentam as suas alegações e produzem as provas que as justificam”. (O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 71). 3 AZEVEDO, David Teixeira de. Op. cit, p. 285. 4 SABATINI. Giuseppe. Principii Costituzionali del Processo Penale. Napoli: Casa Editrice Dottore Eugenio Jovene, 1976, p. 129.

16

interesses sociais”.5 Não se ignora o cidadão nem o desenvolvimento de sua

personalidade, mas essa dimensão individual do ser humano há de ser compatibilizada

com os interesses do corpo social.

Tornou-se corrente na doutrina a afirmação de que não se pode estudar qualquer

ramo do Direito, olvidando dos seus fundamentos constitucionais. Com o Direito

Processual Penal não poderia ser diferente. É íntima a relação entre o processo penal e a

Constituição. Como aponta Heleno Cláudio Fragoso, na doutrina alemã entende-se que

o direito processual penal é o direito constitucional concretizado, a Constituição posta

em prática.6 De fato, a Carta Magna do Brasil é rica em dispositivos relativos ao

processo penal. Nessa perspectiva, esse ramo do Direito pode ser concebido como um

conjunto de garantias do cidadão que impõe limites ao poder estatal. Afinal, como

observa Jorge de Figueiredo Dias, “o Estado, protegendo o indivíduo, protege-se a si

próprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exercício”.7 É preciso todo o

cuidado com a adoção de concepções utilitaristas do processo penal, sob pena de

sacrifício de garantias já consagradas no plano constitucional. Não custa lembrar a

advertência de René Ariel Dotti, segundo a qual “o processo penal não pode se

desenvolver ‘a qualquer preço’, mas deverá salvaguardar o respeito aos direitos

fundamentais do acusado a fim de garantir uma justiça adequada”.8 Nesse ponto, o

legislador penal não pode se deixar influenciar por apelos sensacionalistas da mídia,

mesmo quando encontrar eco no seio da população.

Muitos dos valores essenciais do homem, previstos pela Constituição Federal, são

realizados por intermédio do processo. Assim, a Carta Magna modela o perfil do

sistema processual, de feição acusatória, com a nítida finalidade de efetivar, na prática,

os valores constitucionais. Há, portanto, uma relação de recíproca importância entre a

Constituição e o processo. As normas constitucionais apresentam os valores a serem

realizados, as premissas e o perfil do modelo processual. As normas de processo, por

seu turno, estabelecem os mecanismos aptos a transformar o Direito, como norma, em

5 Id. Ibid., p. 285. 6 Conforme ressalta esse Penalista: “É bastante natural que a Constituição Federal contenha inúmeros dispositivos reguladores da atividade processual penal, pois no processo penal é que se verificam com maior intensidade, pontos de tensão entre o Estado e o indivíduo. Autores alemães chegam a apresentar o Direito Processual Penal como o Direito Constitucional aplicado (angeandtes Verfassungsrecht), o que bem representa a conexão existente entre esses dois ramos do direito”. (Lições de Direito Penal. (Parte Geral). 17.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 9). 7 Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p.64-65. 8 “Princípios do Processo Penal”. In RT 687. São Paulo: RT, 1993, p. 267.

17

algo fruível e plenamente exercitável por seus titulares.9 Não basta a mera previsão de

direitos se não houver mecanismos plenos e eficazes para a sua realização empírica. De

tais mecanismos cuida o processo.

Representa o processo penal o principal ponto de tensão entre a necessidade que o

Estado tem de conferir segurança aos cidadãos e a liberdade daquele que é acusado de

violar a lei penal. De um lado, não se pode deixar de conferir proteção a toda a

sociedade reprimindo condutas que venham a desestabilizar a harmonia, a integridade

do tecido social. Ao mesmo tempo, porém, há que se ter em conta a carga fortemente

lesiva lançada sobre o acusado, seja qual for o desfecho do processo.10 Culpado ou

inocente, o simples desenvolvimento de um procedimento penal já impõe gravames ao

acusado.

O processo penal toca os valores mais caros ao homem, tais como a dignidade da

pessoa humana e a liberdade, motivo pelo qual a sua atuação deve ser pautada pelo

respeito aos direitos e garantias fundamentais. Nesse passo, Walter Nunes da Silva

Júnior assevera que o Poder Público pode se utilizar do processo como instrumento

legítimo para a preservação da ordem social; no entanto, a função precípua do processo

penal é a demarcação de limites do poder punitivo, a ser exercido contra aquele que

infringiu a lei penal.11 Com efeito, há uma tendência de que, quanto mais poder se dá a

um órgão ou agente do Estado, maiores serão as chances de exercício abusivo desse

poder. Não é à toa que o princípio da separação de poderes é proposição presente em

todas as constituições dos países democráticos.

A investigação criminal traz diversos prejuízos para a pessoa investigada, mesmo

que não recaia sobre ela a drástica e excepcional medida da prisão. O recebimento de

intimações, a realização de interrogatórios, acareações, a colheita de impressões digitais,

enfim, esse conjunto de solenidades avilta a dignidade do imputado na fase do inquérito

policial. Na persecução penal em juízo, muitas dessas cerimônias degradantes são

repetidas, mas, desta feita, sob o crivo do contraditório. É preciso que as autoridades

públicas responsáveis pela persecução penal entendam que os efeitos do processo sobre

9 AZEVEDO, David Teixeira de. Op. cit. p. 286. 10 CATENA, Victor Moreno; DOMÍNGUEZ, Valentin Cortés. Derecho Procesal Penal. 2.ª edição. Valencia: Tirant to Blanch, 2005, p. 35. 11 Curso de Direito Processual Penal: Teoria (Constitucional) do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 267. O autor, com uma perspectiva abrangente do processo penal, esclarece que, em sua óptica, a principal função de um processo criminal não é de aplicar o direito de punir ou de chegar à verdade dos fatos, mas a de procurar, em cada caso, a adoção da medida mais harmônica no combate à criminalidade. Id. Ibid., p. 277-279.

18

a vida do imputado não se esgotam com a prolação da sentença, não terminam com o

seu trânsito em julgado, nem mesmo com o cumprimento de eventual pena imposta. O

processo, por si, já inflige uma pena ao indivíduo, irradiando seus efeitos até a morte do

réu.12

Assim sendo, cumpre ao Estado ter um mínimo de cautela ao realizar a persecutio

criminis, pois os valores afetados pelo desempenho dessa atividade possuem dignidade

constitucional.13 O Iluminismo e o pensamento jurídico liberal do século XIX

projetaram uma mudança significativa no tratamento processual do acusado, não apenas

no que tange à proteção física, com a proibição de torturas e métodos degradantes de

investigação. Houve também uma mudança relacionada à posição e função ocupadas

pelo réu no processo.14 Nessa ordem de idéias, o sistema processual penal do Brasil há

de ser moldado, colocando-se o indivíduo e sua esfera jurídica em posição de destaque.

Anota Nicola Carulli que a história do processo penal se confunde com a história do

direito de defesa.15 As diversas concepções filosóficas, sociais e políticas que inspiram o

legislador na constituição do processo penal, ao tratar dos diversos princípios

processuais, centram-se no modo como o indivíduo é tratado no confronto com o

Estado, caracterizado pela constante e ferrenha disputa entra a autoridade e a liberdade,

o poder do Estado em confronto com a esfera de autonomia do indivíduo.

A clássica divisão tripartite dos sistemas processuais em acusatório, inquisitivo e

misto traduz a maior ou menor relevância conferida aos direitos do imputado.16 No

Brasil, adota-se o sistema acusatório, com algumas características de inquisição, como a

possibilidade de o juiz, de ofício, determinar a produção de provas ou a oitiva de

testemunhas. A feição acusatória do processo penal brasileiro confere ao réu o status de

parte, dotado de certo grau de autonomia, inclusive para realizar a sua defesa. Não se

12 Ressalta Francesco Carnelutti: “O processo penal, o qual não termina com a condenação, mas segue com a expiação, pode durar até a morte [...] O processo, sim, com a saída do cárcere está terminado, mas a pena não; quero dizer, o sofrimento e o castigo. In: As Misérias do Processo Penal. Campinas: Conam, 1995, pp. 74-75). No mesmo sentido: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 674. 13 “[...] Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa das ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso”. (STF. 2.ª Turma. HC 84.409/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. j. 14.12.2004. DJ 19.08.2005, p. 57). 14 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. El Interrogatório del Imputado. Valencia: Tirant to Blanc, 2000, p. 14. 15 Il Diritto di Difesa Dell´Imputato. Napole: Casa Editrice Dottore Eugenio Jovene, 1967, p. 3. 16 CARULLI, Nicolla, op, cit. p. 5.

19

pode esquecer, no entanto, da dimensão objetiva da defesa, reduzindo, assim, a

autonomia do indivíduo quando se põe em jogo bens indisponíveis, como a liberdade.

O processo penal de um Estado Democrático de Direito não pode ser encarado

tão-só como meio de aplicação do jus puniendi. Há outras funções relevantes a serem

desempenhadas pelo processo, tais como a proteção do direito à liberdade, a tutela da

vítima e a ressocialização do acusado.17 Essa função, a propósito, não passa de uma

utopia, em face da situação de falência do sistema carcerário.

A liberdade é tutelada, seja para evitar excessos na punição do culpado, seja para

evitar a aplicação de sanção ao inocente. Assim, para que o indivíduo culpado seja

condenado, há que se obedecer ao devido processo legal. De igual sorte, é interesse do

acusado inocente receber provimento jurisdicional negativo, que afaste por completo a

acusação contra si lançada. A vítima também deve ser objeto de preocupação do

legislador processual, estabelecendo-se mecanismos para uma célere reparação dos

danos sofridos. Nesse passo, o instituto da composição civil dos danos é um exemplo

claro da tutela dos interesses do ofendido, buscando a satisfação pecuniária dos

interesses deste ainda na fase preliminar da persecução penal. Não se pode ignorar ainda

a função de ressocialização do autor da infração penal, obtida não somente com a

imposição de pena privativa de liberdade, mas também por conduto das penas

alternativas, a serem impostas tanto na qualidade de penas substitutivas à pena privativa

de liberdade (art. 44 do CP), como no caso do instituto consensual da transação penal.

(art. 76 da lei 9.099/95). Tais medidas tiveram importante papel no processo de

reeducação do condenado ou do acusado por delitos menos graves, evitando a

submissão desse indivíduo ao cárcere, com seu conhecido efeito perverso.

Nesse diapasão, a defesa deve ser encarada em sua dupla dimensão, conferindo ao

réu a possibilidade de atuar nas jornadas processuais como forma de potencializar a

eficiência da atividade defensiva, não de modo a mantê-lo em posição de extrema

inferioridade em relação ao órgão acusatório.

17 SENDRA, Vicente Gimeno. Derecho Procesal Penal. Madrid: Colex, 2004, p. 45.

20

3 A GARANTIA DA AMPLA DEFESA

A Carta Constitucional de 1988 enumera uma série de direitos e garantias

fundamentais, sem, no entanto, estabelecer marcos conceituais para estes mesmos,

tarefa a cargo da doutrina. No processo penal, a defesa possui dupla face: direito e

garantia. Na doutrina, inclusive, há ensaios tratando exatamente da dupla face da

defesa.18 Hão de ser observados, pois, no direito de defesa, dois aspectos que têm

relevância diversa no plano constitucional.

Uma vez que a autodefesa é um corolário da ampla defesa, surge a necessidade de

uma análise geral sobre essa garantia constitucional, fornecedora de material genético

àquela outra.

3.1 Direitos e Garantias Fundamentais

Não é recente a dicotomia entre direitos e garantias fundamentais. Há sistemas

jurídicos onde há maior valorização à enunciação dos direitos, como o sistema francês,

e outros sistemas normativos onde se apresenta de forma mais acentuada o

fortalecimento das garantias, como se verifica nos países que seguem a Common Law.

Nesses países, é dito que os direitos decorrem das garantias e não o contrário,

demonstrando a pertinência do brocardo remedies precede rights.19

No Brasil, a Constituição é fértil na enumeração dos direitos e garantias

fundamentais, mas não estabelece a distinção entre essas realidades. Em um país onde

historicamente houve diversas rupturas ao regime democrático, a enumeração de forma

18 Na Itália conferir o clássico :DENTI, Vittorio. “La difesa come diritto e come garanzia”. In GREVI, Vittorio (org). Il Problema Dell´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982. No Brasil, um trabalho de referência: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. “Defesa Penal: Direito ou Garantia. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 04. São Paulo: RT, 1993. 19 Consoante anota o Professor Fábio Konder Comparato: “Tal como ocorria no direito romano, o direito inglês não concebe a existência de direitos sem uma ação judicial própria para a sua defesa. É da criação dessa ação em juízo que nascem os direitos subjetivos, e não o contrário. [...] Em matéria de direitos humanos, esse diferente método de criação do direito deu nascimento a duas linhas de tradição bem distintas: a inglesa e a francesa. Os ingleses, mais pragmáticos consideram que o progresso na proteção jurídica da pessoa humana provém mais das garantias, sobretudo judiciais, do que da simples declaração de direitos. Já para a tradição francesa, uma declaração de direitos tem sempre grande força político-pedagógica, como forma de mudança de mentalidades”. (A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos.. 4.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 85-86).

21

analítica dos direitos e garantias é algo louvável, tendo a finalidade pedagógica de

mostrar a importância dos valores expressos nessas normas, sem olvidar da forma de

proteção desses direitos, a serem realizados pelas garantias.20

A mode de ilustração, sente-se uma influência do sistema inglês na legislação

brasileira na redação conferida ao art. 75 do Código Civil de 1916, segundo o qual “ a

cada direito corresponde uma ação que o assegura”. Ora, reconhecendo a existência do

direito, caberia ao juiz conferir a tutela jurisdicional adequada ao caso em análise,

mesmo que o ordenamento não preveja instrumentos processuais típicos. Trata-se da

noção de efetividade do processo, traduzida na máxima chiovendiana, pela qual “o

processo deve dar a quem tem o direito tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem o

direito de obter”.

Infelizmente, porém, muito embora a incontestável prodigalidade da

enumeração de direitos e garantias, o Poder Judiciário pátrio mostra-se vacilante na

concreção judicial desses direitos. Cabe, pois, uma tarefa de auto-reflexão por parte de

cada magistrado, avaliando-se a aplicação automática de dispositivos legais sem

maiores reflexões sobre a harmonização da lei com a Constituição Federal. Repensar a

repercussão prática de seus atos e de suas decisões, tratando o acusado como ser

humano igual, é algo que deve ser considerado pelos magistrados. O juiz precisa ter em

mente a idéia de que os casos postos à sua análise, em cada processo, não são apenas

números a fazer parte de estatísticas forenses, mas dramas humanos, que não podem ser

ignorados.

De há muito já não se admite a afirmação de que o juiz é apenas a boca que

profere as palavras da lei.21

20 Para Luigi Ferrajoli “as garantias constituem em mecanismos que, porquanto a sua vez normativos, são asseguradas a direcionar a máxima correspondência entre a normatividade e efetividade da tutela dos direitos”. (Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 21). 21 “Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos; porém como órgão de aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos Códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade. Não o consideram autômato;e, sim, árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e o social. [...] Os juízes, oriundos do povo, devem ficar ao lado dele, e ter inteligência e coração atentos aos seus interesses e necessidades. A atividade dos pretórios não é meramente intelectual e abstrata; deve ter um cunho prático e humano; revelar a existência de bons sentimentos, tato, conhecimento exato das realidades duras da vida”.(MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 50-51).

22

3.1.1 Distinção entre direitos e garantias

Não é tarefa simples estabelecer a diferenciação conceitual entre direitos e

garantias, até porque não se podem estabelecer limites rígidos entre direitos e garantias,

uma vez que essas realidades se penetram. Um dos autores que se propôs distinguir

direitos e garantias e que obteve êxito foi Jorge Miranda:

Os direitos representam por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas de projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jus-racionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.22

Os direitos expressam os valores a serem observados e respeitados por todos os

cidadãos. As garantias objetivam preservar a eficácia dos direitos quando estes são

violados. José Afonso da Silva aponta que os direitos “são bens e vantagens conferidos

pela norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos”.23

Em seguida, o Professor das Arcadas denota a função protetiva das garantias,

concebendo-as como “instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo

daqueles bens e vantagens”.24 Na mesma senda Francisco Gérson Marques de Lima

arremata: “as garantias têm por fito instrumentalizar e assegurar direitos”.25

O caráter instrumental das garantias não quer significar a diminuição de sua

importância, pois de nada adiantaria a declaração de direitos se não houvesse meios de

fazê-los respeitados.26 Tais quais os direitos, as garantias estão previstas em normas,

mas têm por finalidade “assegurar a máxima correspondência entre a normatividade e

efetividade de tutela dos direitos”.27

O direito à liberdade é reconhecidamente um direito positivado no ordenamento

jurídico brasileiro, mas o constituinte achou por bem, além de deixar expressa a

existência do direito, por à disposição de todos os titulares desse direito um veículo

22 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, tomo IV, p. 95. 23 Curso de Direito Constitucional Positivo. 22.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 411. 24 Op. cit., p. 411. 25 Fundamentos Constitucionais do Processo: sob a perspectiva e eficácia dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 61. 26 DANTAS, Ivo. Constituição e Processo: Introdução ao Direito Processual Constitucional. Curitiba: Juruá, 2003, p. 52. 27 Op. cit. p. 21.

23

destinado à sua rápida proteção: o habeas corpus. De igual modo, ao enumerar o direito

à informação, a Carta Magna previu como instrumento de tutela desse direito o habeas

data. Para outros direitos não amparados por esses remédios, apresenta-se o mandado de

segurança. Há, dessa forma, uma relação de necessária dependência entre os direitos e

garantias. Faz-se necessária a previsão de direitos, de modo a dissipar dúvidas sobre sua

existência, como se mostra essencial o tratamento das garantias, de forma a assegurar a

reparação do direito lesado, ou de evitar ser consumada a agressão.

3.1.2 Dupla face da defesa: direito e garantia

Para Vittorio Denti, sob o primeiro aspecto, a defesa constitui direito do imputado,

que se especifica no exercício dos poderes processuais necessários para o defensor atuar

em juízo com o objetivo de influir positivamente na formação do convencimento do

juiz. O direito de defesa não é simplesmente o direito à defesa técnica, ou seja, o direito

a assistência de um defensor. Se assim fosse, seriam inconstitucionais todas as normas

que prevêem a defesa processual da parte em juízo.

Sob a segunda perspectiva, a defesa constitui garantia, como exigência de regular

desenvolvimento do processo, objetivando atingir um interesse público geral que

transcende a esfera do imputado. Esta garantia somente é considerada satisfeita quando

o contraditório é efetivo, quando a paridade de armas é real. Aqui se trata de assegurar o

devido processo legal, de realizar um fair trial, o que requer, na maioria dos casos, a

presença de um defensor.28

No sentir de Vittorio Grevi, sob uma óptica individualista que privilegia o

interesse individual sobre o geral, a defesa é um direito, ficando o seu exercício na livre

disponibilidade do imputado. A defesa, no entanto, também é uma garantia, tutelando

não somente o acusado, mas atuando como autêntico pressuposto de justiça da decisão a

ser proferida no processo.29

A defesa pode também ser considerada um direito, a depender do contexto em que

está sendo tratada. Por exemplo, em relação ao direito fundamental de liberdade, a

28 DENTI, Vitttorio. “La difesa come diritto e come garanzia”. GREVI, Vittorio (org). Il Problema Dell ´autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 49. 29 GREVI, Vittorio. Op. cit. p. 9.

24

defesa surge como garantia, tendo por finalidade proporcionar a proteção daquele

direito. Em outro contexto, pode ser vista como um direito. Nesse sentido, quando se

impetra habeas corpus30 com a finalidade de assegurar vista dos autos ao advogado do

acusado, a função do remédio heróico é de proteger a ampla defesa, malferida com a

negação judicial de análise dos autos. A função do writ é instrumental, servindo como

meio para tutelar outro valor.

Enfocada sob o ponto de vista que enaltece o interesse privado do réu sobre o

interesse geral, do correto exercício da função jurisdicional, a defesa pode ser entendida

“como direito do acusado, que possui disponibilidade quanto às formas e os modos de

exercício daquele direito”.31 Analisada segundo uma perspectiva pública, que ultrapassa

o mero interesse do imputado, a defesa pode ser concebida como uma garantia, “não só

do acusado, mas também de um justo processo”.32 Nesse caso, não é somente o próprio

acusado que será beneficiado quando se respeita a ampla defesa. Portanto, “a defesa,

vista como garantia, responde a objetiva exigência do processo, em razão do interesse

geral da justiça”.33

Destarte, sob a perspectiva do sujeito processual, a defesa é um direito, mas no

plano objetivo do processo representa uma garantia apta a atender a exigência de um

processo justo, desenvolvido mediante um contraditório pleno e efetivo. A defesa,

assim, pode ser tratada como direito ou como garantia, sem prejuízo da técnica

jurídica.34 Além dessas concepções, não se pode deixar de reconhecer a ampla defesa

30 O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a impossibilidade de ser negada vista dos autos ao advogado no inquérito policial. O sigilo inerente aos procedimentos administrativos encetados na persecução penal não pode ser invocado em face do advogado: “...Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), ...”. (1.ª Turma. HC 90232/AM. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 18.12.2006, DJ 02.03.2007, p. 38). Assim, o direito em foco pode ser objeto de habeas corpus, tal como foi na decisão do Excelso Pretório mas também não deve ser descartada a utilização do mandado de segurança. Sob a perspectiva do indiciado, há um interesse dele que seu advogado tenha acesso aos autos do inquérito policial, pois, do contrário, correrá o risco de sofrer uma restrição indevida do seu direito de liberdade, já que a defesa será arranhada ainda na fase do inquérito policial. Sob o ângulo do advogado, há uma lesão a uma prerrogativa institucional (art. 7.º, XIV da lei 8906/94) apta a ser sanada pela via mandamental. Destarte, os dois remédios podem viabilizar o direito ao acesso aos autos do inquérito policial. 31 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. “Defesa Penal: Direito ou Garantia. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 04. São Paulo: RT, 1993, p. 120. 32 MOURA, Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. Op. cit., p. 120. 33 Id. Ibid, p. 120. 34 José Carlos Vieira de Andrade entende que “todas as regras e princípios que garantem a liberdade e a integridade dos indivíduos em matéria penal e de processo penal [...] devem ser considerados como direitos-garantias”.(Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3.ª edição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 121).

25

como princípio expresso na Constituição Federal (art. 5.º, LV) e que “permeia todo o

sistema processual, informando o andamento do processo penal em cada um de seus

momentos”.35

3.2 Acepções do termo defesa

A palavra defesa é utilizada com diferentes significações.36 Com esteio na

doutrina de Alex Carocca Perez37, apontam-se os sentidos mais freqüentes e importantes

atribuídos à defesa.

3.2.1 Significado originário

Em um plano metajurídico, a defesa pode ser compreendida como decorrência do

instinto de sobrevivência, conservação. É indubitável que cada qual é levado a oferecer

reação diante de qualquer atitude agressiva. A origem da defesa, portanto, refoge ao

contexto do Direito, sendo inerente à própria natureza humana.

Defesa significa reação a uma agressão, repulsa a um ataque. Uma reação em face

da atuação de outra pessoa que pretende obter algo contrário ao seu interesse. Sem

prévia ofensa, não se concebe defesa.

Em suas origens, a defesa está intimamente ligada à possibilidade de atuação na

tutela de um interesse próprio, que o sujeito reputa digno de proteção. Não se trata de

uma reação espontânea, mas motivada pela atuação prévia de outra pessoa. Surge,

então, diante desse antagonismo de pretensões, um conflito, um litígio, a ser dirimido

por um terceiro: o Estado.

35 GIANELLA, Berenice Maria. Assistência Jurídica no Processo Penal: garantia para a efetividade do direito de defesa. São Paulo: RT, 2002, p. 115. 36 Para a Psicanálise, a defesa é o “conjunto de operações cuja finalidade é reduzir, suprimir qualquer modificação suscetível de por em perigo a integridade e a constância do indivíduo biopsicológico. O ego, na medida em que se constitui como instância que encarna esta constância e que procura mantê-la, pode ser descrito como o que está em jogo nessas operações e o agente delas”. (LAGACHE, Daniel. Vocabulário de Psicanálise: Laplanche e Pontalio. 4.ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 107. 37 Garantía Constitucional De La Defensa Procesal. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1998, p.13 e ss.

26

Da mesma forma que o ordenamento jurídico prevê normas proibindo condutas

ofensivas aos bens de maior envergadura, tipificando os crimes, o sistema de Direito

veda a reação física a essas condutas lesivas, salvo se presente alguma causa de

exclusão da ilicitude.38 Afinal, não pode o direito exigir que toda pessoa se comporte

como covarde, fugindo, ao invés de reagir; ou então ter de suportar uma agressão,

sofrendo todas as conseqüências, para não atacar o agressor.

O palco adequado para o desenvolvimento da atividade defensiva é o processo,

mecanismo escolhido pelo Estado para a solução dos conflitos de interesses. No

processo penal, a defesa surge como necessidade inafastável de tutela da liberdade do

acusado.

3.2.2 Defesa como direito individual

A Constituição de 1988 acolheu o modelo processual acusatório, em que as

funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a instituições distintas. O legislador

constituinte fez uma opção pelo sistema acusatório de processo penal, consectário de

um Estado Democrático de Direito. Assim, é totalmente incompatível com o

ordenamento constitucional, o modelo inquisitivo de processo penal, em que se

concentram em uma só pessoa as funções jurisdicional, acusatória e defensiva. A defesa

é uma exigência do processo penal do tipo acusatório. Em uma alusão newtoniana,

pode-se dizer que a toda acusação corresponde uma reação: a defesa.

No Brasil, a defesa é direito fundamental39, daí decorrendo as características da

irrenunciabilidade e da inalienabilidade.40 É irrenunciável, pois o acusado não pode, por

38 Estabelece o art. 23 do Código Penal: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”. 39 José Carlos Vieira de Andrade qualifica a defesa como direito fundamentalíssimo. (Op. cit., p. 338). 40 Opinam Andrés Bouzat e Alejandro S. Cântaro que as garantias processuais dos acusados, dentre as quais se insere a defesa, têm caráter disponível, não devendo o juiz se ocupar em proteger os interesses dos réus. Para os autores, os réus são pessoas dotadas de autonomia, com plena capacidade de decidir seus destinos, não havendo a necessidade da tutela de um juiz benevolente, paternalista. Sendo o sistema processual acusatório, o juiz permanece eqüidistante das partes, devendo estas suportar os efeitos de condutas omissivas. (“Liberalismo y garantismo: el problema de la disponibilidad de las garantias procesales”. Revista de Derecho Penal y Procesal Penal n.º 13. Buenos Aires: LexisNegis Aregentina S. A, 2005, p. 1336).

27

ato de vontade, decidir que não seja a si concedida a oportunidade de se defender.41

Conferir ao imputado a possibilidade de renunciar ao direito de defender-se importaria

em alteração no correto desempenho da função jurisdicional, fulcrada na regularidade

lógico-dialética do processo.42 Independentemente e, até mesmo contra o seu querer, há

que se ter defesa no processo penal; defesa plena, efetiva, que contesta a acusação,

refutando os argumentos explanados pelo Ministério Público, não se admitindo,

portanto, a defesa meramente formal, um arremedo de defesa, em que não se trata das

questões específicas dos autos, limitando-se a proferir afirmações vagas, genéricas, sem

adentrar a análise do caso concreto. Aqui, adota-se o conceito de defesa como atividade

que afaste a acusação. Não se olvida que o acusado pode manifestar livremente a opção

por confessar a prática do delito. Tal comportamento processual, ainda que se admita a

sua validade, não demonstra a prática de atividade defensiva.43 Advogado, na área

penal, é profissional necessariamente parcial. Aquele que objetivar exercer suas funções

com imparcialidade não pode atuar na função defensiva, podendo muito bem ocupar

cargos junto ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público.44 O acusado não precisa de

um defensor que pretenda ser um segundo juiz ou um outro órgão acusatório.

O profissional da advocacia que, por convicções religiosas, morais ou filosóficas,

entender que não tem condições de atuar de forma plena na defesa de um acusado, não

pode aceitar o munus, ou se já aceito, deve renunciar, para que o réu possa ser assistido

por um advogado que atue com combatividade e parcialidade. Deixe-se claro que a

atuação eficiente do advogado não pode transbordar para uma defesa criminosa.45 Há

41 Sobre a efetividade da defesa em juízo, adverte Alex Carocca Pérez: “[...] la defensa en juicio, es um buen ejemplo al respecto, ya que reconocida nivel constitucional, no puede considerarse satisfecha, con el mero respeto a la libertad de cada persona para decidir si asume o no, ya que, entre otros muchos aspectos, el próprio Tribunal Constitucional ha puesto de relieve que constituye uma exigencia esencial del proceso y que, por otra parte, tampoco se agota en una mera obligación formal del órgano jurisdicional de verificar el cumplimiento de los requisitos procesales que podrían permitir que la parte pueda actuar o, en su caso, disponer de abogado que asuma su defensa técnica, sino que, además, deberá velar porque tal actividad pueda efectivamente llevarse a cabo y que la actuación de su defensor técnico sobrepase determinados mínimos. (Op. cit. p. 56). 42 PANSINI, Gustavo. La Contumácia nel Diritto Processuale Penale. Napole: Casa Editrice Dottore Eugenio Jovene, 1963, p. 42. 43 A confissão, inclusive, em caso de condenação, poderá melhorar a situação do imputado, pois constitui circunstância atenuante (art. 65, III, “d”, do Código Penal). 44 Com maestria, escreveu Piero Calamandrei: “O advogado que pretendesse exercer seu ministério com imparcialidade não só constituiria uma incômoda duplicata do juiz, mas seria deste o pior inimigo: porque, não preenchendo sua função de contrapor ao partidarismo do contraditor a reação equilibradora de um partidarismo em sentido inverso, favoreceria, acreditando ajudar a justiça, o triunfo da injustiça adversária”. (Eles, os Juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 123). 45 Torna-se ilícito ao advogado, por exemplo, instruir testemunha a prestar falsas declarações em juízo. Nesse caso, testemunha e advogado respondem pelo delito de falso testemunho (art. 342 do Código Penal), como já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “...Advogado que instrui testemunha a prestar

28

limites éticos e jurídicos que devem ser levados em conta. O advogado que fornece

orientação ao seu cliente sobre a melhor forma de realizar empreitadas criminosas

também pratica o ilícito. A imunidade do advogado não alcança a atividade de

assessoramento jurídico para a realização de atos criminosos.46

No processo civil, aplica-se o princípio da lealdade processual, devendo as partes

comportarem-se de maneira transparente, expondo os fatos e tecendo suas

considerações conforme a verdade, vedando-se a produção de provas sem qualquer

relação com a demanda, com fito meramente procrastinatório. O art. 14 do Código de

Processo Civil acolhe expressamente o princípio da lealdade processual47, estabelecendo

ainda o art. 17 do mesmo diploma sanções para o litigante de má-fé.48

Por outro lado, no processo penal, não se aplica o princípio da lealdade processual,

pois não há que se exigir do réu um compromisso com a verdade.49 Daí que o direito de

defesa tem maior amplitude. O que está em jogo é a liberdade do indivíduo, bem por

demais precioso para exigir do acusado um comportamento que lhe venha acarretar um

prejuízo, pondo em risco sua liberdade. Se o réu tem ampla autonomia para prestar

declarações, em conseqüência, o advogado terá liberdade de expor seus argumentos

com base na declaração de seus clientes, ainda que com frágil apoio nos autos. Torna-se

depoimento inverídico nos autos de reclamação trabalhista. Conduta que contribuiu moralmente para o crime, fazendo nascer no agente a vontade delitiva. Art. 29 do CP. Possibilidade de co-autoria. Relevância do objeto jurídico tutelado pelo art. 342 do CP: a administração da justiça, no tocante à veracidade das provas e ao prestígio e seriedade da sua coleta.[...]”. (STF. 1.ª Turma. RHC 81327/SP. Rel. Min. Ellen Gracie. j. 11.12.2001, DJ 05.04.2002, p. 59). 46 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 784-785. O jurista norte-rio-grandense menciona, a título de exemplificação, que o advogado “[...] não pode orientar seu cliente quanto à forma de empregar ou movimentar a propriedade de bens, direitos ou valores oriundos dos crimes relacionados no art. 1.º da Lei n.º 9.613, de 03 de março de 1998, sob pena de prática do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos ou valores, previsto no citado diploma legal, sem prejuízo de sua responsabilidade criminal pelo delito antecedente, caso em relação a ele também tenha tido alguma participação”. Id. Ibid., p. 785. 47 “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – proceder com lealdade e boa-fé; III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito; V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.”. 48 “Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II – alterar a verdade dos fatos; III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI – provocar incidentes manifestamente infundados; VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”. 49 Com igual posicionamento: PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O Direito de Defesa: repercussão, amplitude e limites. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2001, p. 386.

29

perigoso o advogado filtrar com muito rigor as afirmações de seu constituinte, a fim de

concluir que não há nenhuma tese para levantar em defesa dele. Nesse caso, tornar-se-ía

um outro julgador, dificultando a tarefa do verdadeiro magistrado, que ficaria sem a

antítese necessária a lapidar sua decisão com as tintas da justiça.50 Cada vez que as

afirmações relativas à prática de um delito são postas em dúvida, tem-se mais uma

chance de reavaliá-las, de atestar a procedências das mesmas, afastando eventuais

obscuridades e contradições.

A inalienabilidade consiste na vedação da disposição do direito de defesa por seu

titular, cujo exercício não pode ser atribuído ou repassado a terceiras pessoas. Daí que o

réu tem controle sobre o exercício da defesa técnica, por possuir liberdade para

constituir o defensor que preferir, podendo destituí-lo da representação processual a

qualquer tempo, nomeando outro advogado. O juiz não interfere nessa atuação pessoal

do imputado, a menos, naturalmente, que o seu defensor constituído não exerça com

eficiência o seu munus, devendo o magistrado, nesse caso, intimar o réu para constituir

novo advogado antes de nomear defensor dativo. O controle jurisdicional reside na

eficiência da atuação processual do advogado, no sentido de evitar a inatividade do

patrono judicial do réu, tornando-o indefeso.51 Aqui, exige-se do magistrado especial

atenção para evitar um comportamento desidioso do advogado.

Portanto, a defesa pode ser concebida como direito integrante do patrimônio

jurídico de cada acusado, da qual ele não pode se desfazer, tendo por finalidade

preservar o imputado contra arbitrariedades e injustiças, sendo, por isso, um momento

essencial do processo penal.52

50 “Os advogados fornecem ao juiz as substâncias elementares a partir de cuja combinação é gerada, no junto meio, a decisão imparcial, síntese química de duas parcialidades contrapostas”. (CALAMANDREI, Piero. Op. cit., p. 126). 51 O artigo 24.1 da Constituição da Espanha estabelece: “Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e interesses legítimos, sin que, em ningún caso, pueda producirse indefensión”. Em análise ao artigo em referência, em especial ao termo indefensión, colocado na parte final do dispositivo, Ernesto Pedraz Penalva aponta que o termo apresenta elevado grau de indeterminação. Para o autor, o Tribunal Constitucional Espanhol toma a expressão indefensión em dois sentidos. Em uma acepção mais ampla, toda violação à norma processual prevista na Constituição seria considerada indefensión. Em sentido estrito, considera-se indefensión constitucionalmente tutelada quando a violação perpetrada às normas processuais acarretar conseqüências lesivas ao direito de defesa, traduzindo um prejuízo real e efetivo ao imputado. (Derecho Procesal Penal: princípios de derecho procesal penal. Madrid: Colex, 2000, tomo I, p. 226). Assim, na Constituição espanhola há previsão expressa vedando a chamada indefensión, exigindo, dessa forma, uma atuação efetiva e concreta do advogado (letrado). 52 CARULLI, Nicolla, op. cit. p. 9.

30

3.2.3 Defesa como garantia do processo

A defesa é atividade a ser desempenhada no decorrer de toda a jornada processual.

Elio Fazzalari concebe o processo como procedimento em contraditório.53 Todo aquele

que tiver a possibilidade de afetação de sua esfera jurídica pela decisão a ser proferida

no processo há de ter a garantia de que as suas argumentações, suas irresignações, serão

levadas em conta pelo órgão jurisdicional. Evidentemente, esses argumentos poderão

ser rechaçados, afastados, mas não se admite é que a decisão os ignore, fazendo de

conta que eles inexistem. Deve o juiz, pois, expor as razões pelas quais acolhe ou rejeita

os pedidos formulados pelas partes. Trata-se da exigência constitucional da motivação

das decisões judiciais.54 Observa-se, destarte, a ligação entre os princípios

constitucionais do contraditório (art. 5.º, LV, CF) e da fundamentação das decisões

emanadas do Poder Judiciário. (art. 93, IX, CF), pois somente tendo ciência das razões

pelas quais seus pedidos foram rejeitados pelo magistrado, é que o réu terá condições de

insurgir-se contra a decisão, com a finalidade de anulá-la ou reformá-la.

A garantia da defesa, no processo penal, não é destinada somente a tutelar aquela

pessoa em face da qual se imputa a prática de um delito. Ao garantir o direito de defesa,

a Constituição protege os interesses de toda a sociedade. É a chamada dimensão

objetiva dos direitos e garantias fundamentais. Como atesta Guilherme de Souza Nucci,

propugnar pela mais ampla proteção do direito de defesa não é “fomentar a impunidade

e a mentira, mas consolidar a democracia e lançar as bases para uma sociedade futura

cada vez mais justa e fortalecida”.55 A observância, no processo penal, da ampla defesa

traduz garantia que estende seu manto protetor sobre todo o corpo social, e não apenas

em benefício do acusado, pois há um interesse público no desenvolvimento de um

processo que estabeleça um equilíbrio entre acusação e defesa.

53 Disserta o jurista italiano: “Existe, em resumo, o “processo”, quando em uma ou mais fazes do iter de formação de um ato é contemplada a participação não só – e obviamente – do seu autor, mas também dos destinatários dos seus efeitos, em contraditório, de modo que eles possam desenvolver atividades que o autor do ato deve determinar, e cujos resultados ele pode desatender, mas não ignorar”. (Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 120). 54 O Supremo Tribunal Federal assentou a importância da análise, pelo órgão judicante, das teses esposadas pela defesa: “... a decisão judicial deve analisar todas as questões suscitadas pela defesa do réu. Reveste-se de nulidade o ato decisório, que, descumprindo o mandamento constitucional que impõe a qualquer Juiz ou Tribunal o dever de motivar a sentença ou o acórdão, deixa de examinar, com sensível prejuízo para o réu, fundamento relevante em que se apóia a defesa técnica do acusado”. (STF. HC 74073/RJ. 1.ª Turma. Rel. Min. Celso de Mello. j. 20.05.1997, DJ 27.06.1997, p. 30227). 55 O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 1999, p. 126.

31

3.2.4 Defesa como qualquer atividade desenvolvida pelo sujeito passivo no processo

penal

Utiliza-se o termo defesa para traduzir a oportunidade que a parte tem de se

manifestar sobre os fatos a si atribuídos. É a chance que o réu tem de contradizer a

acusação. Nesse sentido, confunde-se a defesa com o contraditório. Também a palavra

defesa é empregada para expressar a atividade, função ou ofício que o acusado realiza

contraposta à acusação; uma repulsa ao ataque fundado no direito de punir do Estado.56

Essa atividade pode ser desenvolvida pelo próprio réu bem como por seu advogado. Em

alguns momentos processuais, como no interrogatório – ato personalíssimo – o

advogado não pode responder às perguntas no lugar de seu cliente. O advogado pode

orientar o interrogando antes do ato, mas após seu início, cabe apenas ao próprio

interrogando rebater as acusações, caso entenda conveniente. O primeiro sentido está

mais ligado ao princípio do contraditório, que determina a ciência do acusado de todos

os atos do processo, para que, com suporte nesse conhecimento, possa produzir reação.

Nesse sentido, pois, a defesa está relacionada à possibilidade de participação.

No segundo significado, que expressa a atividade desenvolvida pelo réu no

processo penal, protegendo seus interesses, tal atividade tem início no momento em que

se atribui a prática do crime ao acusado, seja por ocasião do auto de prisão em flagrante,

do indiciamento ou do oferecimento da denúncia. Nesse sentido, dispõe a Súmula 523

do Supremo Tribunal Federal: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade

absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. É

preciso que se interprete o enunciado da mencionada súmula sob uma óptica que

privilegie uma defesa material, efetiva. Ausência de defesa e defesa deficiente

acarretam a mesma conseqüência: violação à ampla defesa. Tratando-se de agressão

direta e frontal a um princípio constitucional, a sanção de nulidade parece inevitável. Só

não haverá decretação de nulidade em decorrência de uma defesa deficiente ou

inexistente quando o provimento jurisdicional final for favorável ao acusado. Em outra

situação, há prejuízo pelo simples fato de não ter havido defesa efetiva.

56 CARULLI, Nicolla, op. cit. p. 8.

32

3.2.5 Defesa como parte no processo penal

A relação processual penal se estabelece entre autor, juiz e réu. No processo penal,

a defesa pode ser concebida como parte em oposição ao Ministério Público ou

querelante (nos crimes de ação penal privada). Essa perspectiva está relacionada àquela

tratada no tópico anterior, mas personificada nos indivíduos que a exercem.57

A adoção do modelo acusatório de processo penal no ordenamento jurídico do

Brasil implica o reconhecimento de um processo de partes (adversary system). Assim, a

defesa deve ser encarada como parte em oposição ao Ministério Público, não apenas

formalmente, mas garantindo-se ao réu uma defesa adequada e eficiente.58 Com efeito,

não há sentido em admitir-se que o resultado do processo seja obtido sem que o juiz

tenha tido a oportunidade de colher os argumentos da acusação e da defesa. Cada parte

dará sua interpretação da prova dos autos, ampliando o horizonte de conhecimento do

magistrado, antes que este profira sua decisão.

O sentido de defesa como parte é bastante utilizado pela doutrina, pela legislação e

na prática forense, quando em audiência o juiz faz constar no termo: “Dada à palavra à

defesa, esta nada requereu”; ou ainda quando profere despacho: “Embora intimada para

oferecer alegações finais, a defesa não se manifestou”.

No Código de Processo Penal pode-se mencionar o art. 474, caput, ao tratar da

sustentação oral no tribunal do júri: “O tempo destinado à acusação e à defesa será de

02 (duas) horas para cada um, e de meia hora a réplica e outro tanto para a tréplica”.

Considerar a defesa como parte constitui uma das principais premissas do sistema

acusatório. Com efeito, nesse sistema, distinguem-se com nitidez as funções de acusar,

defender e julgar. O moderno processo penal é um processo de partes. Não sendo o

acusado um objeto do processo, mas sujeito deste, tem o imputado o status de parte.59

Importante não só o reconhecimento da defesa como parte, mas também conferir a esta

tratamento que expresse um equilíbrio da relação processual.

57 PEREZ, Alex Carocca. Op. p. 32. 58 MUSSO, Rosanna Gambini. “Diritto di difesa e diritto ad essere difesi adeguatamente: uma garanzia indebolita negli Stati Uniti d´America”. Revista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffré Edittore, 1993, p. 722. 59 SENDRA, Vicente GIMENO. Constitucion y Proceso. Madrid: Editorial Tecnos S/A, 1988, p. 112.

33

3.3 Conteúdo da defesa

Vistas as diversas acepções contidas no termo defesa, cumpre agora apresentar a

divisão dessa atividade quanto à matéria a ser veiculada. Nessa perspectiva, a defesa

pode ser compartida em defesa processual e de mérito.

A modalidade processual ou indireta “dirige-se contra a forma processual do

ataque”60, insurgindo-se contra o modo mediante o qual a acusação é formulada. O

acusado, nessa modalidade defensiva, pugna pelo cumprimento de normas

constitucionais e também legais que estabelecem as diretrizes da atividade persecutória

do Estado. “Refere-se, portanto, ao procedimento e sua regularidade: forma de citação,

rito processual, competência, eventuais nulidades absolutas ou relativas”.61 Dessa

forma, quando o acusado suscita a incompetência do juízo, não repele a materialidade

nem a autoria do crime, mas pugna pela preservação da garantia do juiz natural,

permitindo o julgamento da causa pelo juiz previamente estabelecido nas normas de

competência. Nesse caso, o acolhimento da incompetência do juízo não leva à

absolvição do réu, mas tão-só ocasiona a remessa dos autos ao juízo competente.

A defesa direta ou de mérito “é dirigida contra o conteúdo da acusação, e seu

acolhimento enseja a finalização do processo, em virtude de sentença definitiva”.62

Nessa espécie de defesa, o réu promove ataque contra a imputação formulada, repelindo

a materialidade do crime, a autoria, suscitando causas excludentes da antijuridicidade,

da culpabilidade, que produzem a desclassificação do delito para outro menos grave ou

ainda que levem à diminuição da pena.

Em quaisquer de suas modalidades, defesa processual ou de mérito, o seu

exercício pode ocorrer no curso do processo, antes do julgamento, após a prolação da

sentença, com a interposição de recursos ou, em caráter excepcional, após o trânsito em

julgado de sentença penal condenatória, com o manejo da revisão criminal. A defesa

também é exercitável na fase de execução da pena, atacando-se a forma de cumprimento

da sanção penal ou ainda se manifestando previamente em relação a qualquer ato do juiz

que acarrete prejuízo ao patrimônio jurídico do apenado, como, por exemplo, uma

60 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. “Defesa Penal: Direito ou Garantia. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 04. São Paulo: RT, 1993, p. 115. 61 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. Op. cit. p. 115-116. 62 Id. Ibid., p. 116.

34

decisão que determine a regressão de regime ou que aplique sanção disciplinar ao

custodiado.

3.4 As modalidades do exercício da ampla defesa

Da garantia estampada no art. 5.º, LV, segundo a qual “aos litigantes, em processo

judicial e administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a

ampla defesa”, decorre a garantia da autodefesa. A garantia da ampla defesa desdobra-

se em duas: a defesa técnica e a autodefesa. A primeira traduz no plano da persecutio

criminis a exigência de profissional devidamente inscrito nos quadros da Ordem dos

Advogados do Brasil a atuar no munus defensivo.

No que respeita à defesa técnica, há previsão constitucional expressa em relação

ao preso63, garantindo a assistência por advogado. Ressalte-se que a norma alcança não

somente o preso, mas toda e qualquer pessoa formalmente acusada da prática de um

ilícito penal.

Doutra banda, a autodefesa consiste na execução da atividade defensiva pelo

próprio imputado, devendo ser respeitada durante toda a persecução penal, seja na fase

extrajudicial (inquérito policial), seja na fase judicial (ação penal). A autodefesa não se

circunscreve, pois, ao momento do interrogatório64, manifestando-se em diversas outras

fases procedimentais.

Estabelecida a premissa de que a garantia da defesa permite ao imputado

desenvolver uma atividade de resistência à ação desenvolvida pela parte adversa, cabe

agora investigar de que maneira o litigante pode realizar esse moto defensivo, fincando

os seus marcos conceituais, sua repercussão e limites no âmbito da persecução penal.

As faculdades proporcionadas pela garantia da defesa podem ser desenvolvidas

pelo próprio interessado ou por seu defensor. A primeira recebe o nome de autodefesa, a

segunda é chamada de defesa técnica. Essas duas atividades interpenetram-se no

decorrer da jornada processual.

63 Dispõe o art. 5.º, LXIII da CF/88: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. 64 Em sentido contrário, sustentando que a autodefesa ocorre somente no interrogatório: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 615.

35

O direito à autodefesa é, certamente, um direito constitucionalmente reconhecido,

constituindo um aspecto necessário do direito de defesa do imputado. A autodefesa, por

outro lado, não exclui a garantia da defesa técnica, com a conseqüente designação de

um defensor, independentemente da vontade do imputado.65

65 DENTI, Vittorio. Op. cit. p. 56.

36

4 DEFESA TÉCNICA

O juiz é figura imparcial do processo, a quem cabe buscar e analisar com total

isenção as provas contrárias e a favor do réu. Entrementes, o Ministério Público é a

instituição que não se resume a mero órgão acusatório, podendo requerer providências a

favor do imputado. Indaga-se, então, sobre a obrigatoriedade da atuação do advogado

nos feitos criminais. Não seria indispensável a presença do defensor no processo, pois o

juiz e o Ministério Público não estão vinculados a uma condenação, podendo adotar a

posição mais consentânea com as suas convicções. Tal pensamento, entretanto, há de

ser afastado.

Conforme mencionado no capítulo anterior, da ampla defesa decorrem as garantias

da defesa técnica e da autodefesa. A defesa técnica, no ordenamento jurídico brasileiro,

é indispensável, indeclinável, essencial, surgindo como condição de validade da relação

processual penal. Para Alex Carocca Pérez, a defesa penal não possui o caráter de

indeclinabilidade. No sentir do autor, a garantia da defesa confere ao acusado a

possibilidade de formular alegações e provas, porém, em nenhum caso, impõe a

obrigatoriedade de desenvolver uma atividade processual no sentido de rechaçar a

acusação. A passividade do imputado seria uma modalidade de autodefesa.66

Observa Bentham que, em um ordenamento jurídico onde as leis fossem simples e

acessíveis a todos, os cidadãos poderiam tratar dos processos judiciais como cuidam de

seus negócios, e seria, portanto, suficiente, a autodefesa.67 Não é o que se tem hoje,

quando os ordenamentos jurídicos dos mais diversos países apresentam elevado grau de

complexidade, de compreensão difícil até mesmo para os operadores jurídicos, o que se

dirá para uma pessoa leiga... Daí não se poder dispensar o advogado no campo penal.

4.1 Conceito

A defesa técnica é uma garantia assegurada a toda e qualquer pessoa acusada da

prática de uma infração penal de ser acompanhada no transcurso de toda a jornada

66 Op. cit, p. 198. 67 Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2.ª edição São Paulo, 2006, p. 565.

37

processual por um profissional detentor de conhecimento técnicos na área jurídica. O

defensor é uma pessoa encarregada de proteger os direitos e interesses do acusado,

dotado de autonomia, com sua atuação pautada por um interesse individual e social. 68Trata-se, pois, de garantia indeclinável, consoante denota-se dos arts. 5.º, LV69 e 13370

da CF, bem como da norma prevista no art. 261 do Código de Processo Penal.71

4.2 Fundamentos

Os bens que estão envolvidos no processo penal são de tal relevância que sua

tutela não deve ser reservada somente ao seu titular, por meio da autodefesa. Ao lado do

exercício pessoal da atividade defensiva, apresenta-se a defesa técnica. Um profissional

dotado de conhecimentos técnicos específicos em Direito terá mais condições de

resguardar os interesses do réu. Nenhum ordenamento que pretenda receber a

denominação de democrático pode prescindir da intervenção do defensor nos diversos

momentos do processo.72

Nicola Carulli73 aponta algumas razões pelas quais a presença do advogado se

afigura indispensável no processo penal:

a) a incapacidade do imputado de se defender sozinho por não possuir

conhecimentos de direito material e processual. Esse desconhecimento torna o imputado

incapaz para desenvolver uma defesa consentânea com um processo penal de partes,

necessário para a administração da justiça.74

68 CARRIZO, Mirta et al. “Derecho a la defensa por si, por um defensor de elección, o a otener uno proviso por El Estado”. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal. v. 10 fascículo 18/19. Buenos Aires: Ad Hoc, 2005, p. 549. 69 Art. 5.º, LV, da CF: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 70 Art. 133 da CF: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. 71 Art. 261 do CPP: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. 72 GREVI, Vittorio. Op. cit. p. 17. 73 Op. cit. p. 149-150. 74 CARRIZO, Mirta et al. Op. cit. p. 549.

38

Assim, a necessidade de conhecimentos jurídicos para a realização de uma

deficiente defesa é o substrato principal – mas não único - da existência da defesa

técnica. 75

b) pela exposição desprotegida diante dos poderes conferidos ao Ministério

Público.

Tal fundamento está ligado à isonomia processual. Com efeito, nas ações penais

públicas, sendo a função acusatória exercida pelo Ministério Público, instituição

formada por profissionais com saberes técnicos especializados, selecionados após

rigoroso certame público, não se poderia deixar o acusado sem um profissional

habilitado para oferecer resposta que possa contraditar os argumentos expostos pelo

órgão de acusação. A assistência de advogado é condição, pois, de equilíbrio da relação

processual;

c) a dificuldade de comportar-se adequadamente nos atos da instrução.

Como decorrência dessa fragilidade de conhecimentos jurídicos do réu, em muitos

atos da instrução criminal, exige-se uma familiaridade com o manejo das normas

jurídicas. Assim, não tem o réu condições para opor uma exceção de impedimento, de

suspeição, oferecer contradita a uma testemunha, protestar diante do surgimento de uma

nulidade ou de levantar corretamente as teses de mérito em audiência ou em alegações

finais. Seria facilmente dominado pelo parquet;

d) a situação psicológica de fragilidade, de instabilidade emocional e falta de

serenidade do acusado.

75 Na Inglaterra, a necessidade de atuação de um advogado em favor dos acusados foi percebida com mais acuidade pelas autoridades no período de 1670 a 1689, quando várias pessoas pertencentes a classes econômicas mais abastadas foram condenadas à pena capital com base em acusações infundadas. Nesses processos, a defesa era confiada apenas ao próprio acusado, que não desempenhava a contexto a função. Diante das injustiças cometidas, foi sancionado o Treason Act, em 1696, que passou a prever a atuação de um defensor nos processos criminais que tratavam do crime de traição, sancionado com a pena de morte. Não houve preocupação com as injustiças cometidas quando os réus eram pobres; mas, a partir do momento em que a classe dominante percebeu que “um deles” poderia ser vítima de uma injustiça, logo resolveram evitar novas condenações precipitadas. Tal fato parece atual e plenamente aplicável à realidade brasileira, mostrando a seletividade do seu sistema de justiça criminal. (TEDESCO, Ignácio F. “La libertad de declaración del imputado: uma análisis histórico-comparado. In HENDLER, Edmund S. Las garantias penales e procesales. Buenos Aires: Editora Del Puerto, 2004, p. 50). Em França, em 1897, após um conjunto de reformas no sistema processual conhecida como “Lei Constans”, foi consagrado o direito do réu de ser acompanhado por um advogado(TEDESCO, Ignácio F. Op. cit. p. 52).

39

A exaltação de ânimo76 diante de uma acusação penal impede normalmente a

realização de uma defesa eficiente, ainda quando o acusado é advogado. Decerto que,

em tese, o advogado acusado pode atuar em causa própria, mas, nessa situação, é

preciso uma atuação muito cuidadosa do magistrado, com o fito de verificar se o

réu/defensor vem desempenhando a contento tal mister.77 O distanciamento do fato é de

extrema importância para a serenidade da função defensiva. Até mesmo um profissional

experiente fica abalado ao atuar em causa própria, ou ainda na defesa de um ente

querido. O melhor caminho é a contratação de outro advogado.

e) a impossibilidade de atuação física quando o réu está preso.

Estando submetido ao cárcere, fica impossibilitado o acusado de contatar

testemunhas, diligenciar em busca de provas ou mesmo manusear os autos.

Nessa ordem de idéias, o direito à assistência por profissional do Direito tem por

finalidade assegurar a efetiva realização dos princípios da igualdade das partes e do

contraditório, que impõe aos órgãos jurisdicionais o dever de eliminar os desequilíbrios

entre as situações processuais das partes.78

Não se olvide da necessidade da defesa técnica como exigência de um processo

justo. Não revela a atuação do advogado apenas a proteção do interesse meramente

individual do imputado, assumindo o status de garantia de caráter público, ligada ao

regular exercício da atividade jurisdicional.

O advogado colabora, indiscutivelmente, com a qualidade da prestação

jurisdicional. Quanto melhor preparado for o advogado, quanto mais ele apresentar

argumentos sólidos na defesa de seu constituinte, mais o juiz será exigido. O nível da

magistratura está ligado ao nível dos profissionais da advocacia e também dos membros

do Ministério Público. Observando e analisando os argumentos defensivos, frutos de

uma atuação eficiente do defensor, diminuem as chances do erro judicial.

76 Nessa linha de pensamento, Alberto G. Spota aponta que “o defensor impede os efeitos perniciosos da inexperiência e da paixão do litigante”. (O Juiz, o Advogado e a Formação do Direito através da Jurisprudência. 2.ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987, p. 15). 77 Já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “...A condição de réu abala a capacidade psicológica e reflexiva que é necessária ao exercício adequado da advocacia, restando prejudicada a ampla defesa considerada materialmente”.(5.ª Câmara Criminal. Apelação Crime n.º 70004507562, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho. j. 07.08.2002, DJ 07.08.2002). 78 PÉREZ, Alex Carocca. Op. cit, p. 496.

40

4.3 Natureza jurídica das funções desempenhadas pelo advogado.

Um dos autores que se ocupou de elaborar uma sistematização sobre as teorias

referentes à natureza jurídica das atividades desenvolvidas pelo defensor do réu foi

Vicente Gimeno Sendra.79

As teorias sobre as atividades desempenhadas pelo advogado dividem-se em

privatistas e publicistas. Serão analisadas, primeiramente, as privatistas.

A primeira teoria menciona que o advogado atua como intérprete do réu. Com

efeito, a função do advogado consiste em transportar para a linguagem técnico-jurídica

as manifestações de vontade do imputado. O Direito, por possuir linguagem própria,

para ser bem compreendido, requer a análise de um profissional conhecedor desse

jargão peculiar. Nesse sentido, Carlo Fiore anota que o advogado deve transportar para

a terminologia jurídica a posição defensiva de seu cliente.80

Outra teoria busca explicar a relação entre o réu e seu advogado como um

mandato. Assim, o defensor é um representante da parte, atuando no nome desta.

Quando a representação advier de manifestação de vontade do acusado, tem-se a

modalidade de representação voluntária. Por outro lado, na hipótese de advogado

nomeado pelo juiz (advogado dativo), configura-se a representação legal.81

Há também a tese de que o advogado desempenha a função de substituto

processual, agindo em nome próprio na defesa de um interesse alheio.

As teorias privatistas pecam pelo reducionismo, não traduzindo a verdadeira

dimensão do mister do advogado no campo penal, onde a sua atuação é sempre

presente.

Passa-se, agora, ao exame, em apertada síntese, das doutrinas publicistas.

A primeira conceitua o defensor como o titular de um ofício, ou seja, uma

categoria que serve para descrever um complexo de funções atribuídas pela lei a um

sujeito, consubstanciadoras de um serviço de utilidade pública. 79 La naturaleza de La Defensa Penal y la Intervención del defensor em la instrución. Barcelona: RDP: 1977, p. 105 e ss. 80 “Prospettive e limiti dell ´autodifesa”. In GREVI, Vittorio. Il Problema Dell´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 59. 81 Defende essa corrente Jorge de Figueiredo Dias, para o qual: “trata-se, ao menos em princípio, de uma autêntica representação judiciária do argüido, cabendo ao defensor a prática, em nome e no interesse do representado – nos direitos e na posição jurídica que o processo atribua à própria parte”. (Op. cit. p. 467).

41

Outra doutrina, similar à idéia anterior, qualifica o advogado como órgão da

administração da justiça, integrando, ao lado do juiz e do Ministério Público, o

triunvirato judicial. O advogado, segundo essa corrente, atua ao lado do juiz para que

seja alcançado o principal objetivo do processo penal: a descoberta da verdade.

Não se deve acolher tal tese. O principal e inarredável dever do advogado é de

defender seu cliente, tutelando da melhor forma possível os seus interesses, não lhe

cabendo cuidar da proteção de interesses gerais, próprios das funções dos magistrados e

dos membros do Ministério Público. Não é, destarte, o advogado um auxiliar da justiça,

nem tem sua atividade lastreada pela busca da verdade, pouco importando se favorável

ou desfavorável ao seu cliente.82 Trata-se de tese ligada a concepções totalitárias do

processo, pois sustenta que o advogado deve fazer prevalecer o interesse da sociedade

sobre o interesse de seu defendido.83

Alex Carocca Pérez defende o argumento de que o advogado é um assistente

técnico da parte, com atuação necessariamente parcial, resguardando seu defendido,

sendo tal tarefa condiconada apenas à normas éticas, a restrições de caráter

deontológico.84

Roberto Delmanto Júnior entende que o defensor tem o dever de lutar com todas

as suas forças para obter a inocência do imputado. Tal dever não é reduzido em face do

princípio da presunção de inocência, que acarreta, no plano da persecução penal, o

inafastável ônus probatório a cargo do órgão ministerial. Referido princípio tem por

finalidade proteger o cidadão, não podendo servir de fundamento para rasgar outro

princípio de igual dignidade constitucional: a ampla defesa. 85

Vistas as várias correntes sobre a natureza das funções desempenhadas pelo

advogado, pode-se asseverar que a função desempenhada pelo patrono judicial do 82 CARRIZO, Mirta et al. Op. cit. p. 550. 83 PÉREZ, Alex Carocca, op. cit., p. 504. No mesmo sentido, refutando a tese do advogado como órgão da administração da justiça: CARULLI, Nicolla, op. cit. p. 162-163. 84 Op. cit., p. 509. 85 Ressalta o processualista: “É inadmissível, dessa forma, que o defensor técnico, sob a justificativa de acreditar na extrema precariedade dos elementos de prova em que se fundamenta a acusação, e de que o juiz, embora tenha recebido a denúncia, com equilíbrio e descortino, irá, por si só, chegar à mesma conclusão e absolver o acusado, deixe exercer, efetivamente, a defesa técnica. Admitir tal raciocínio significaria aceitar a possibilidade de haver “processo penal contumacial” no direito brasileiro, nos moldes do longínquo “juízo solitário” do processo civil romano (eremodicium), podendo haver julgamento de mérito sem contraditoriedade, aplicando-se a máxima si bona causa habuit, atrelada à ficta litiscontestatio, o que é totalmente descabido. Deve o advogado, constituído ou nomeado, atuar de forma diligente, empenhando-se ao máximo para impugnar todas as acusações, ainda mais as não comprovadas, baseadas em ilações, conjecturas [...]”. (Inatividade no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2004, p. 132).

42

acusado, no processo penal, é de natureza pública. Neste passo, prevê o § 1.º do art. 2.º

da Lei 8.906, de 04.07.1994 (Estatuto da OAB): “No seu ministério privado, o

advogado presta serviço público e exerce função social”.

Seguindo essa linha de pensamento, Vittorio Grevi revela que a proclamada

essencialidade da assistência defensiva, com todos os seus consectários, demonstra a

inegável conotação pública do defensor no processo penal, encontrando tal mister

substrato nos superiores interesses de justiça86 e no princípio da legalidade.87

Ao resguardar o interesse do réu, independentemente e até mesmo contra a

vontade deste, o defensor está funcionando como guardião de um valor que ultrapassa a

esfera subjetiva do imputado, na incessante tentativa de efetivação de um processo

justo. Goza, pois, o defensor de autonomia, podendo atuar até mesmo contra a vontade

do acusado, desde que seja para beneficiá-lo. Em algumas situações há conflitos entre a

vontade do réu e de seu defensor. Nos juizados especiais criminais, para aceitação dos

benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo, há necessidade

de aceitação do acusado e defensor. Havendo conflito de vontades, entende-se que

prevalece a vontade de autor do fato, desde que este tenha sido devidamente cientificado

da repercussão desse aceite.88 Ora, se o autor do fato pode constituir um novo advogado

somente para aceitar o benefício, não se mostra razoável impedir a homologação de

imediato desse benefício. No âmbito recursal, havendo divergência entre a opinião do

réu e do defensor, prepondera a manifestação daquele que interpõe o recurso.89

Essa autonomia, no entanto, não significa o total afastamento da autodefesa.90

Garantindo-se a defesa técnica para um acusado, toda a sociedade será beneficiada.

Como anota Vicente Gimeno Sendra, “a sociedade é que impõe a necessidade de que o

acusado seja assistido e defendido por um advogado”.91

Nessa ordem de idéias, o regime de assistência obrigatória por advogado é

irrepreensível, sob a óptica constitucional, representando uma opção legislativa com

86 Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 19. 87 Op. cit. p. 25. 88 Nesse sentido: GRINOVER et. al. Juizados Especiais Criminais. 5.ª edição. São Paulo: RT, 2005, p. 164. 89 Nesse sentido, dispõe a Súmula 705 do Supremo Tribunal Federal: “A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência de defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta”. 90 CATENA, Victor Moreno; DOMÍNGUEZ, Valentin Cortés. Op. cit. p. 151. 91 Tradução livre. Constitucion y Proceso. Madrid: Editorial Tecnos S/A, 1988, p. 116.

43

vistas a melhor proteger o direito de defesa do acusado. Ainda quando este não queira se

defender e recusa a defesa técnica, o ordenamento afasta essa escolha do réu,

preocupando-se o legislador com a dialética processual e a igualdade das partes,

buscando diminuir a posição de inferioridade do imputado.

Na persecução penal, não se pode deixar de reconhecer que o imputado se

encontra em situação de desvantagem em relação ao Estado. Com efeito, constata-se a

atuação da polícia, na fase de investigação. O ingresso da ação penal pública em juízo é

atribuição do Ministério Público, órgão bem estruturado e com profissionais altamente

qualificados, após rigoroso certame público. E, por fim, quem julgará o acusado será o

juiz e todo o aparato judiciário ao seu dispor. Tal posição de desvantagem é ainda mais

sentida quando os acusados são desprovidos de recursos para constituir advogados, pois

é notória a deficiência do serviço de assistência judiciária prestado pelo Estado. 92Isso

sem falar no desejo incontido de uma sociedade ávida por vingança.93

De fato, não há como deixar de se reconhecer que o acusado encontra-se em

posição de inferioridade em relação ao Estado durante toda a persecução penal. Com

efeito, a investigação criminal é realizada por órgãos do Estado (polícias civil e federal),

a acusação é formulada por instituição oficial94 e o julgamento ocorre por outro órgão

estatal. Acrescente-se ainda como fatores representativos dessa desigualdade a ausência

de conhecimentos técnicos, de experiência forense, de serenidade, a impossibilidade

física de atuação do réu quando preso. Desse modo, ao atuar na qualidade de guardião

dos interesses do acusado, o advogado contribui para o desenvolvimento de uma relação

92 Refletindo sobre o notório desequilíbrio entre o órgão do Estado encarregado da acusação e aquele destinado à defesa dos carentes, conclui Adriana Dias Paes Ristori:”Seria, portanto, indispensável que todo Estado criasse uma instituição tão forte e organizada como o Ministério Público, a fim de plenamente assegurar a ampla defesa, o contraditório, a paridade de armas, que patrocinasse o interesse daqueles que não possuem condições financeiras de contratar um bom advogado”. (Sobre o Silêncio de Argüido no Interrogatório no Processo Penal Português. Coimbra: Almedina, 2007, p. 136.). 93 Nesse sentido observam Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho: “Tem-se contra o réu toda a estrutura policial; todo o aparato de um Ministério Público bem aparelhado com profissionais recrutados em sofisticado processo de ingresso na carreira; toda a burocracia judiciária, em seus meandros quase sempre Kafkianos; e muitas vezes, toda a sociedade na busca neurótico-persecutória alimentada por parte da mídia”. (Reformas Penais em Debate. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 72). 94 Andrés Bouzat e Alejandro S. Cantaro sustentam que, em um sistema processual onde os indivíduos contam com garantias processuais reconhecidas e positivadas, não há que se falar em posição de inferioridade do réu no confronto com o Ministério Público. Para os autores, o que ocorre é o inverso, o indivíduo encontra-se em vantagem. Alegam que o réu detém o melhor conhecimento dos fatos atribuídos a ele mesmo: “quien conoce mejor el hecho passado domina la situación presente”. De outro lado, o Ministério Público tem que buscar a reconstrução desses fatos por intermédio do processo. Tem ainda o órgão acusatório o ônus de provar a acusação posta. O réu goza do benefício da dúvida. (“Liberalismo y garantismo: el problema de la disponibilidad de las garantias procesales”. Revista de Derecho Penal y Procesal Penal n.º 13. Buenos Aires: LexisNegis Argentina S. A, 2005, p. 1333).

44

processual penal caracterizada pelo equilíbrio e que forneça as condições necessárias

para a prolação de uma sentença que seja fruto de um debate efetivo entre as partes.95

95 Op. cit. p. 155.

45

5 A AUTODEFESA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL

Passando em revista as pátrias constituições, verifica-se que a principal

preocupação do constituinte está relacionada à organização do Estado, pondo em

segundo plano o indivíduo, com seu rol de direitos e garantias. Tal quadro veio a mudar

com o advento da Constituição Cidadã, promulgada em 05.10.1988. Topograficamente,

os direitos e garantias individuais são tratados antes da organização do Estado.

A autodefesa é garantia constitucional, defluindo de várias normas dispostas ao

longo do Texto Constitucional. Decerto, bastaria a previsão do devido processo legal

para que todas as demais garantias processuais estivessem tuteladas, em consideração

individual das garantias constitucionais configura fator de segurança, reduzindo a

margem discricionária do aplicador da norma, de modo a adequá-la à vontade pessoal e

não realizando as tarefas impostas pela Constituição.96

5.1 Extração Constitucional da Autodefesa

A aferição sobre o caráter constitucional de determinada garantia exige não

somente a sua construção conceitual, o estabelecimento de seus marcos teóricos, “mas

também o questionamento acerca dos preceitos constitucionais que lhe dão sustentação

e lhe garantem tal categoria”.97 Dessa forma, surgem como requisitos para o

reconhecimento de uma garantia com status constitucional a sua harmonização e a

fundamentação em outras normas constitucionais. Essa harmonia do preceito que está

sendo examinado com os demais dispositivos constitucionais que lhe fornecem suporte

há de ser feita, naturalmente, à luz da ordem constitucional. Suzane de Toledo Barros

aponta ainda outro requisito para que se tenha como constitucional uma garantia: a sua

aplicação pelos tribunais.98 Com o devido respeito à opinião da mencionada professora,

96 “Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem”. (HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19). 97 BARROS, Suzane de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3.ª edição. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 91. 98 Op. cit. p. 91.

46

a aplicação da garantia pelos tribunais é apenas conseqüência eventual da existência da

norma, a constatação de sua efetividade, mas não pode ser parâmetro para definir o

caráter constitucional de determinada norma jurídica. Em muitas oportunidades, os

tribunais decidem contrariamente a um determinado dispositivo constitucional e, nem

por isso, a norma violada deixará de ter assento na Constituição. O ideal, e, como ideal,

é apenas um caminho a ser trilhado, é que os juízes e tribunais julgassem de forma a

conferir proteção às garantias constitucionais em todos os julgamentos realizados, mas é

sabido que tal não ocorre.

Assim, cabe apontar as normas constitucionais que dão o substrato normativo para

o reconhecimento da autodefesa como garantia prevista na Constituição. São diversos os

dispositivos constitucionais relacionados à autodefesa, que conferem a essa garantia um

caráter autônomo.

Muito embora não haja dispositivo expresso tratando da autodefesa, é de se

reconhecer o seu caráter de garantia fundamental, uma vez que o Brasil adota o sistema

aberto de direitos e garantias fundamentais. Com efeito, prevê o art. 5.º, § 2.ª da CF/88:

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do

regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a

República Federativa do Brasil seja parte”.

Há, pois, um conjunto de normas que, embora não façam parte do texto da

Constituição, possuem dignidade constitucional, integrando o chamado bloco de

constitucionalidade. A Constituição de 1988, no momento em que estabeleceu essa

cláusula aberta, ofereceu amplo espaço para criar e proteger novos direitos. Em síntese,

pode-se afirmar a existência de três categorias de direitos e garantias constitucionais: os

expressos no corpo da Constituição, os direitos e garantias decorrentes do regime e dos

princípios adotados pelo Brasil e os direitos decorrentes dos tratados internacionais em

que a República Federativa do Brasil seja parte.99 De acordo com a classificação

exposta, a autodefesa decorre do regime e dos princípios encampados pela Carta Magna,

como também emerge dos tratados de que o País é signatário. Inicialmente, analisar-se-

ão os dispositivos constitucionais expressos que fornecem o substrato para o

reconhecimento da autodefesa como garantia autônoma, para depois aferir a existência

dos compromissos internacionais correlatos ao tema em estudo.

99 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 178.

47

5.1.1 Sustentáculo da autodefesa em outros princípios constitucionais expressos

Cabe, inicialmente, empreender ligeiro vôo sobre a Constituição para dela tirar os

princípios constitucionais expressos que fornecem o suporte para a garantia da

autodefesa.

a) Estado Democrático de Direito

O princípio do Estado de Direito surge como decorrência da necessidade de se

conferir uma solução aos problemas relacionados à atuação dos órgãos estatais.

Determinada ordem jurídica constitucional, ao consagrar o princípio do Estado de

Direito, “visa conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade

segundo a medida do direito”.100

Em trabalho específico sobre o tema, José Joaquim Gomes Canotilho sublinha os

elementos caracterizadores da ordem política denominada Estado de Direito, sendo este

um Estado que tem suas atividades, atua e positiva suas normas em conformidade com o

Direito.101 Tal Estado de Direito receberá a qualificação de democrático, quando

encontrar legitimação popular. Assim, Estado Democrático de Direito é a ordem política

que tem atuação pautada pela ordem jurídica que o instituiu, com poder limitado e

apoio popular. A norma do art. 1.º da Constituição nacional, ao estabelecer que a

República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, concebe o

ordenamento como um edifício a ser estruturado em função do indivíduo. Ora, se o

sistema jurídico é constituído em favor do indivíduo, é natural que se reconheça e se

fortaleça o exercício pessoal da atividade de reação a uma ofensa quando esse indivíduo

é acusado da prática de uma infração penal. Isso não significa, no entanto, deixar o

indivíduo na condição de senhor absoluto de suas ações, cuja vontade sempre

prevalecerá, ainda quando possa vir a prejudicá-lo.

Na visão de Willis Santiago Guerra Filho, o princípio do Estado Democrático de

Direito é uma fórmula política, que serve de alicerce para a construção de todo o

100 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª edição. Coimbra: Almedina, 2004, p. 243. 101 Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 49.

48

edifício constitucional. Segundo o autor, todas as demais normas da Constituição podem

ser entendidas como “explicitação do conteúdo dessa fórmula política”102, sendo essa

tarefa de explicitação algo sempre inconcluso.

No sentir de José Joaquim Gomes Canotilho, todo Estado de Direito é, ao mesmo

tempo, em Estado constitucional. Dessa premissa, parte o Jurista português a

demonstrar a repercussão do princípio do Estado de Direito em uma ordem jurídica que

tem na Constituição sua norma fundamental. O Estado de Direito possui fundamento

antropológico, de modo a garantir a “integridade física e espiritual do homem como

dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável”.103 Esse

reconhecimento do ser humano como ser dotado de responsabilidade e autonomia tem

repercussão no processo penal, concluindo-se pela possibilidade do exercício do direito

de defesa pelo próprio acusado.

b) Dignidade da pessoa humana

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana104 é moldado como um

dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Mencionado princípio é

considerado a matriz de todos os outros direitos fundamentais.105 Classicamente, com

102 Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4.ª edição. São Paulo: RCS Editora, 2005, p. 16. 103 CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª edição. Coimbra: Almedina, 2004, p. 248. 104 Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência humana e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais: na Constituição Federal de 1988. 4.ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 60). 105GUERRA, Marcelo Lima. “Prisão civil de depositário infiel e principio da proporcionalidade”. Revista de Processo n.º 105. São Paulo: RT, 2002, p. 34. Konrad Hesse, em análise ao princípio da dignidade da pessoa humana, revela que o ser humano não pode ser visto como uma “partícula isolada, indivíduo desposado de suas limitações históricas, nem sem realidade da ‘massa moderna’”. Ele é entendido, antes, como uma “pessoa de valor próprio indisponível, destinado ao livre desenvolvimento”. (Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 110).

49

base em Kant, o princípio proíbe o Estado, bem como toda e qualquer pessoa, de tratar

seu semelhante como um simples meio de se atingir determinadas finalidades. 106

O princípio da dignidade da pessoa humana tem ampla repercussão no processo

penal e, em especial, no que concerne à figura do réu. Não podendo ser tratado como

simples meio, o homem, acusado da prática de um delito, tem preservada sua esfera

jurídica contra invasões indevidas dos poderes públicos encarregados da persecução

penal. Walter Nunes da Silva Júnior ressalta que, sendo a dignidade da pessoa humana

um princípio retor do Estado Constitucional brasileiro, mencionado preceito “serve para

afastar qualquer discurso jurídico tendente a justificar um tratamento desfocado dos

valores imanentes a esse enunciado, a quem pratica o crime”.107 Revela o autor potiguar

que, como decorrência da adoção desse princípio na ordem constitucional patrícia,

veda-se a colocação do indivíduo, acusado da prática de um crime, em situações

humilhantes ou vexatórias. Antes de ser indiciado ou réu, o agente que responde a um

inquérito policial ou a uma ação penal é um cidadão, merecendo ser tratado com

humanidade.108

O acusado há de ser reconhecido como ser pensante, como alguém dotado de

capacidade de atuar em sua defesa, como pessoa que refuta a acusação lançada contra si.

Não é um mero objeto da investigação. Percebe-se, destarte, a harmonia entre a

dignidade da pessoa humana e a autodefesa.

c) Princípio da liberdade

A liberdade é um valor consagrado em qualquer ordenamento jurídico, pois está

associada à própria noção de Direito, bem como umbilicalmente relacionada à natureza

humana. Cada sistema de direito, entretanto, pode ampliar ou simplesmente reduzir ao

nada esse valor de tamanha relevância.

106 Hanna Arendt aponta que tal concepção de dignidade da pessoa humana de tratar o homem como um fim em si mesmo e não como meio recebe apoio antes de Kant, de Protágoras, ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas”. Se o homem goza desse status de ser a medida de tudo que o rodeia, então ele foge a essa relação de meios e fins. (A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 171). 107 Op. cit., p. 385. 108 Id. Ibid., p. 385.

50

Conforme a concepção kantiana, a liberdade permite ao homem fazer tudo

conforme a sua vontade, desde que não haja interferência na liberdade alheia.109

A Constituição não concebe a liberdade apenas como ausência de prisão, mas a

situação daquele ser humano que tem plenas condições de exercer os atributos inerentes

ao estado de pessoa, inclusive de exercer o direito de locomoção, mas também o direito

de participar do processo democrático, seja no âmbito político, seja no plano do

processo penal.

Como decorrência da liberdade, surge para o sujeito a possibilidade de decidir

como participará do processo. A autodefesa possui material genético no princípio da

liberdade, uma vez que o indivíduo, ao realizar pessoalmente a sua defesa, participa da

formação do convencimento do juiz.

d) Princípio da ampla defesa

É precisamente na ampla defesa que a autodefesa encontra maior apoio. O preceito

constitucional inscrito no art. 5.º, LV, segundo o qual “aos litigantes, em processo

judicial e administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a

ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes”, assegura a defesa técnica e a

autodefesa.

A garantia da ampla defesa foi interpretada de maneira concreta pelo Superior

Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula de n.º 343, que tem o seguinte enunciado:

“é obrigatória a presença do advogado em todas as fases do processo administrativo

disciplinar”. O entendimento sufragado pela mencionada súmula, caso venha a ser

seguido pela Administração Pública, elevará consideravelmente as atribuições da

109 Para Roscoe Pound, a liberdade “consiste na reserva, para o indivíduo, de certas expectativas fundamentais razoáveis, que entendem com a vida na sociedade civilizada e liberação em relação ao exercício arbitrário e desarrazoado do poder e da autoridade por parte daqueles que são nomeados ou escolhidos em sociedade politicamente organizada com o objetivo de ajustar relações e ordenar a conduta e se tornam, dessa maneira, capazes de aplicar a força dessa sociedade aos indivíduos”. (Liberdade e Garantias Constitucionais. 2.ª edição. São Paulo: IBRASA, 1976, p. 5). Na visão de Victor Moreno Catena e Valentín Cortés Dominguez, o termo liberdade apresenta diversas significações, “de modo que podem ser compreendidos em seu conceito todo o conjunto de atributos inerentes à pessoa humana para a sua completa realização, entendidos segundo o estágio da civilização e o modo da sociedade em que vivemos, assim, pode-se falar em liberdade de pensamento, de cátedra, de informação, de expressão”. (Op. cit. p. 272.

51

Defensoria Pública, já carente de estrutura física e de material humano. Com a realidade

atual, não há a menor condição de que o órgão de assistência jurídica estatal consiga

atender essa gama de atribuições. Considerando que muitas comarcas de fora das

capitais possuem sequer defensores, a autoridade administrativa refletirá bastante antes

de determinar a instauração de um processo administrativo disciplinar. Como buscar

advogados para atuação nesses procedimentos?

Demonstrando preocupação com os efeitos práticos da indispensabilidade da

atuação do advogado no âmbito dos processos administrativos, o Supremo Tribunal

Federal não acolheu o entendimento sufragado pelo STJ, ao concluir que é prescindível

a participação de um defensor técnico nos processos administrativos disciplinares. Com

efeito, dispõe a Súmula Vinculante n.º 05: “A falta de defesa técnica por advogado no

processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

No processo penal a ampla defesa será tanto mais efetiva quanto houver interação

e harmonia entre a autodefesa e a defesa técnica. Não há como dissociar essas duas

garantias marcantes do arcabouço normativo constitucional brasileiro.

5.1.2 A autodefesa e os tratados internacionais versando sobre direitos humanos

A compatibilidade da autodefesa com vários princípios constitucionais é o

primeiro ponto a demonstrar o caráter constitucional da garantia em foco. Acresça-se o

fato de que esse caráter é reforçado com a previsão do direito de defender-se por si só

nos compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil no plano

internacional. Essa feição transnacional da autodefesa revela que sua importância não

está circunscrita às fronteiras de um país, mas perpassa o ordenamento dos mais

diversos povos.

Assaca-se em relação às declarações de direitos o seu caráter de ineficácia

jurídica, pois, sem instrumentos concretos de proteção, tais declarações não passam de

letra morta. Como mostra Fábio Konder Comparato, no entanto, ainda que desprovidas

de meios eficazes de tutela, uma declaração de direitos, a depender do momento

histórico em que é apresentada, pode ter a função de configurar-se em “ato esclarecedor,

iluminando a consciência jurídica universal e instaurando a era da maioridade histórica

52

do homem”.110 No mesmo sentido, Walter Nunes da Silva Júnior ressalta que os

operadores jurídicos em geral, bem como o legislador, devem ter em mente a noção de

que as declarações de direitos “servem de baliza orientadora para revelar a existência de

direitos fundamentais que não foram, no plano interno, formalmente, insertos no sistema

jurídico”.111 A crítica que se faz em relação às declarações de direitos no que toca à

ausência de instrumentos eficazes de proteção dos direitos nela consagrados, não pode

ser dirigida aos tratados internacionais devidamente incorporados ao ordenamento

jurídico de um país.

Passa-se, agora, à abordagem dos principais tratados internacionais relacionados

ao direito de defesa do próprio réu.

a) A Convenção Européia dos Direitos Humanos

Esta foi celebrada em Roma em 04 de janeiro de 1950, formalmente denominada

de Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

Resultou de trabalhos do Conselho da Europa, formado por países da Europa Ocidental,

organização nascida com a finalidade de conferir proteção aos direitos humanos e

fomentar o progresso econômico e social.112

Sylvia Helena de Figueiredo Steiner aponta a relevância da Convenção Européia

dos Direitos Humanos por ter sido clara na definição dos direitos fundamentais, criando

uma corte para decidir sobre matéria relacionada a direitos humanos, com a previsão de

recebimento de petições individuais. Trata-se de mecanismo pioneiro, pois até aí, não se

tinha implementado um sistema baseado no qual o cidadão pudesse se dirigir a uma

corte internacional diretamente contra um Estado. Dessa forma, “o indivíduo passa da

condição não só de sujeito de direito internacional, mas alcança legitimidade para atuar

processualmente nas instâncias internacionais”.113

Muito embora o Brasil não tenha integrado a Comissão, composta apenas por

países da Europa Ocidental, foi a Convenção Européia dos Direitos Humanos o

110 A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 136. 111 Op, cit., p. 242. 112 COMPARATO, Fábio Konder. Id. ibid, p. 264. 113A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 43.

53

primeiro instrumento internacional em que se previu expressamente a defesa pelo

próprio réu como direito e não como imposição, sem olvidar da importância da defesa

técnica. Estabelece o art. 6.º, 3.:

Todo acusado (de haver cometido uma infração) tem os seguintes direitos, notadamente:

a) ser prontamente informado, numa língua que compreenda e de modo pormenorizado, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;

[...]

c) defender-se pessoalmente, ou ter a assistência de um defensor de sua escolha, e, se não tiver recursos para remunerar seu defensor, pode ser assistido gratuitamente por um advogado dativo, quando os interesses da justiça o exigirem.

d) inquirir ou fazer inquirir as testemunhas de acusação, bem como obter o comparecimento e a inquirição das testemunhas de defesa, nas mesmas condições que as testemunhas de acusação.

A alínea “a” do artigo em testilha ressalta a importância do conhecimento da

acusação por parte do réu, que configura autêntico pressuposto para o exercício da

atividade defensiva. Não se pode contestar algo de que não se tem pleno conhecimento.

Antes de pensar e armar sua defesa, deve o acusado ter noção do que lhe está sendo

imputado.

A alínea “c” expressa que o réu tem o direito de defender-se pessoalmente, usando

a conjunção ou para referir-se a assistência de advogado. Assim, na literalidade, é opção

do réu realizar sozinho sua defesa ou ter a assistência de advogado. A melhor

interpretação a ser dada ao dispositivo, no entanto, é que a autodefesa e o auxílio do

defensor são direitos que se complementam e não que são excludentes. Dessa forma,

estar-se-á protegendo de maneira mais eficiente o direito de defesa do acusado.

No que concerne à alínea “d”, denota-se a vertente da autodefesa denominada

direito de presença. Estar presente às audiências para oitiva de testemunhas é direito do

réu, podendo este confrontar as afirmações das testemunhas. Duas interpretações podem

ser dadas ao preceito. A primeira é a de que o próprio acusado poderia realizar

perguntas às testemunhas, pois afinal é direito dele inquirir as testemunhas de acusação.

A segunda é a de que o réu poderia fazer as perguntas às testemunhas por meio do seu

advogado. Dessas duas interpretações, aquela que confere maior proteção aos interesses

do acusado é a segunda, pois o advogado terá condições de selecionar as perguntas,

evitando, dessa forma, indagações que poderiam piorar a situação do réu, trazendo-se à

tona novos fatos incriminadores ou reforço dos fatos afirmados pelo órgão acusatório.

54

Em suma, a Convenção Européia dos Direitos Humanos mostrou-se instrumento

valioso para a proteção dos direitos humanos, servindo de inspiração para futuros

acordos no plano internacional.

b) O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

A cidade de Nova Iorque foi palco, em 16 de dezembro de 1966, da celebração do

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que veio a disciplinar de maneira

mais detalhada a Declaração Universal de 1948. Esse tratado representou avanço nos

mecanismos protetivos dos direitos da pessoa humana, uma vez que criou sanções às

violações perpetradas a tais direitos.114 Resultou da necessidade de efetivar os princípios

consubstanciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10.12.1948115,

tendo sido ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto n.º 592, de 06.07.1992.

A defesa exercida pelo réu foi tratada no Pacto dos Direitos Civis e Políticos de

Nova Iorque, sendo as disposições relacionadas à autodefesa mais amplas do que

aquelas contidas na Convenção Européia dos Direitos Humanos. De um total de 47

(quarenta e sete) artigos, a autodefesa foi disciplinada no art. 14, 1:

Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por Lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. [...]

Estabelece o artigo citado o direito de audiência, um dos componentes da

autodefesa. Aqui, já se deixa claro que o acusado não pode ser visto como simples

objeto da investigação, reconhecendo-se que ele é portador de direitos, dentre os quais o

de ser ouvido pelo juiz que irá julgá-lo, de modo a exercer influência nas decisões

emanadas do Poder Judiciário. Assim, o juiz não pode exercer o seu poder de forma tão

absoluta, devendo avaliar o que for dito pelo acusado, afastando ou acolhendo seus

argumentos.

Prevê ainda o art. 3.º do Pacto em análise:

114 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 275. 115 STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 37.

55

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias:

a) a ser informada, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada.

b) Dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e comunicar-se com defensor de sua escolha.

[...]

d) a estar presente no julgamento e a defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; a ser informada, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste e, sempre que o interesse da justiça assim exija, a ter um defensor designado ex-officio gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;

e) a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as da acusação;

[...]

g) a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

A alínea “a”, com redação semelhante à da Convenção Européia dos Direitos do

Homem, trata do direito do imputado de ter ciência da acusação formulada. Tendo

conhecimento da acusação, terá o réu condições de exercitar a autodefesa.

O item “b” demonstra a preocupação dos países signatários com o tempo

necessário para a preparação da defesa e da importância do direito de escolha do

defensor, uma das vertentes da autodefesa. Com relação ao tempo para a preparação da

defesa, é de se notar a impossibilidade de interrogar o réu no mesmo dia em que ele é

citado. Há de se conceder, pois, um prazo razoável para a elaboração da autodefesa,

permitindo-se ao acusado entrevistar-se com seu defensor, para que réu e advogado, em

harmonia, se debrucem sobre a tese defensiva.

O direito de presença está regulado no item “d”, que também expressamente

estabelece o direito de defender-se por si só, bem como o direito a receber assistência

jurídica por parte do Estado. Afinal, “sem a assistência judiciária, os pobres ficam

praticamente impedidos de pleitear em juízo o respeito a seus direitos fundamentais”.116

No dispositivo, há a possibilidade de se formular uma interpretação equivocada em

virtude da conjunção ou colocada entre a autodefesa e a defesa técnica. Como expresso,

o exercício da atividade defensiva por parte do réu não exclui a de seu defensor, pois

tais atividades são complementares.

116 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 305.

56

A autodefesa não é exercida somente quando o réu é ouvido no interrogatório,

oportunidade em que se apresenta o direito de audiência. O item “e”, anteriormente

transcrito, denota que a autodefesa é mais ampla, revelando-se por ocasião dos atos

instrutórios do processo criminal.

A grande inovação que o Pacto de Nova Iorque trouxe em termos de autodefesa

foi a sua previsão na modalidade negativa: o privilégio contra a auto-incriminação.

Segundo a alínea “g” do Pacto, o acusado não está obrigado a depor contra si mesmo

nem a declarar-se culpado, impondo-se dessa forma, o ônus que o Estado tem de colher

as provas que incriminem o acusado sem exigir a sua colaboração.

c) A Convenção Americana de Direitos Humanos

Em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, foi aprovada a Convenção

Americana de Direitos Humanos, conhecida mundialmente como o Pacto de San José

da Costa Rica. A maior parte das disposições desse pacto constitui repetição do Pacto

dos Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, de 1966. Sylvia Helena de Figueiredo

Steiner acentua que “desponta a Convenção Americana como um que mais se debruçou

sobre as chamadas garantias penais, destacando vários princípios relativos à proteção da

pessoa em face do poder-dever repressivo do Estado”.117

O professor Fábio Konder Comparato aponta como avanço desse Pacto a

proibição do restabelecimento da pena de morte aos países que já a aboliram.118 Por sua

vez, Roberto Delmanto Júnior indica como mérito do tratado a previsão da garantia do

juiz natural, estatuindo a necessidade de existência de um órgão judicante previamente

estabelecido em lei. (art. 14, 1, 2.ª parte)119. O Brasil incorporou a Convenção

Americana dos Direitos Humanos somente no ano de 1992, mediante o Decreto

Presidencial n.º 678, de 06.11.1992. Seguem as disposições do Pacto de San José da

Costa Rica que tratam da autodefesa:

Art. 7.º.

[...]

117 Op. cit, p. 103. 118 Op. cit., p. 363. 119 As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 49.

57

6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão oi detenção e ordene sua soltura se a prisão ou detenção forem ilegais. [...] tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

[...]

Art. 8.º.

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação formulada contra ela [...].

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

[...]

b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa.

d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.

e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei.

f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.

g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado.

h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

A Convenção Americana dos Direitos Humanos consagrou uma das facetas da

autodefesa, que é o direito de postular em causa própria, assegurando ao sentenciado

recorrer da condenação sem a necessidade de constituir advogado. (art. 8.º, 2, “h”). São

também previstos o direito de audiência (art. 8.º, 1.), o direito ao conhecimento da

acusação (art. 8.º,2, “b”), o direito a um prazo razoável para a elaboração da autodefesa,

(art. 8.º, 2, “c”), o direito de presença nos atos da instrução criminal (art. 8.º, 2, “f”) e a

autodefesa negativa (privilégio contra a autoincriminação). (Art. 8.2, “g”).

O ponto que merece maior reflexão é aquele constante no art 8.º, 2, “e”. Essa

norma admite a possibilidade da autodefesa exclusiva, uma vez que somente torna

obrigatória a atuação da defesa técnica quando o réu não tiver realizado a própria

defesa. Assim, estar-se-ía diante de um verdadeiro retrocesso na proteção dos direitos

humanos, pois admitir a autodefesa exclusiva é deixar o réu em posição de excessiva

58

inferioridade em relação ao órgão acusatório, não traduzindo a ampla defesa. Desse

modo, havendo norma no direito interno de cada país signatário que garanta a ampla

defesa – que pressupõe a atuação conjunta do réu e do defensor – prevalecerá esta, em

homenagem ao princípio da maior proteção dos direitos humanos. Entendimento

diverso, no sentido de afastar a obrigatoriedade da defesa técnica quando o réu decidir

produzir sua defesa, seria limitar a garantia da ampla defesa, tutelada

constitucionalmente.120 A discussão será retomada no tópico 6.6, onde será objeto de

análise a juridicidade da atuação exclusiva do réu nos processos criminais.

5.2 A relevância do reconhecimento da autodefesa como garantia constitucional

As guerras, em maior ou menor extensão, sempre marcam os povos, não somente

pela destruição e toda sorte de misérias que acarretam, mas também por sua repercussão

nos mais diversos segmentos políticos, econômicos, sociais e jurídicos.121 A Segunda

Guerra Mundial foi um acontecimento histórico dos mais relevantes para a humanidade.

O Direito, como mecanismo de proteção das relações sociais, também não se mostrou

alheio às influências ocasionadas em virtude da eclosão de grandes conflitos bélicos.122

As atrocidades cometidas pelos regimes totalitários em diversos países da Europa

repercutiram fortemente após o término da maior guerra a que o Planeta assistiu em

todos os tempos. O mundo ficou escandalizado, chocado, perplexo, diante de tanta

carnificina. Como forma de reação a um sistema jurídico que fortalecia o Estado em

detrimento do indivíduo, operou-se a constitucionalização das garantias processuais. No

120 A propósito, lembra Sylvia Helena de Figueiredo Steiner que “não pode-se interpretar uma norma contida na Convenção de forma a limitar-se um direito assegurado na Constituição”. (Op. cit., p. 117). 121 Para Alexis de Tocqueville, a guerra é o ato mais importante que pode ocorrer na vida de um povo, o que deixa cicatrizes mais duradouras, levando à confusão do homem com sua nação, do soldado com o exército: “Na guerra, um povo age diante dos povos estrangeiros como se fosse um só indivíduo: ele luta por sua existência mesma”. Ressalta ainda o autor francês que as guerras de maior proporção acarretam o fortalecimento do poder central: “...todos os povos que tiveram de travar grandes guerras foram levados, quase a contragosto, a aumentar a força do governo. Os que não tiveram êxito nisso foram conquistados. Uma longa guerra quase sempre coloca as nações nesta triste alternativa: sua derrota as entrega à destruição, seu triunfo ao despotismo”. (A Democracia na América. 2.ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 190).

122 Tratando dos reflexos da 2.ª Guerra Mundial no campo da proteção dos direitos humanos, Sylvia Helena de Figueiredo Steiner observa que, após o fim do conflito, “a internacionalização dos direitos humanos tomou rosto e forma, assumiu seu nome, e iniciou uma carreira mais agressiva de submissão das nações a compromissos mínimos de proteção e garantia efetiva do direito da pessoa”. (Op. cit., p. 33).

59

Brasil, a Constituição de 1946, reflexo indubitável da Guerra, é considerada uma das

mais democráticas - senão a mais - das cartas políticas republicanas do País.

Assim, diversas garantias processuais passaram a ter status constitucional. A

autodefesa é garantia prevista na Constituição de forma implícita (art. 5.º, § 2.º) e seu

reconhecimento no seio da Carta Magna traz importantes conseqüências. É preciso,

pois, que se fortaleça a autodefesa como garantia autônoma, embora intrinsecamente

ligada a outros direitos processuais. Assim posto, o grau de fortalecimento da garantia

será ampliado. Decerto, a autodefesa está, de forma genérica, tutelada pelo princípio da

ampla defesa. O conteúdo desta garantia, no entanto, muitas vezes, é de percepção

prática difícil. A constitucionalização expressa do direito à autodefesa traria relevantes

benefícios para uma melhor prestação jurisdicional, reforçando o caráter garantista do

processo penal. Fortalecendo-se a posição processual do imputado, com a previsão

explícita de seu direito de defender-se por si próprio, tornam-se mais claros os deveres

dos operadores jurídicos encarregados de concretizá-lo.123 Na dicção de Samuel

Miranda Arruda, “nenhum direito fundamental é corretamente preservado se ainda tem

sua existência dúbia ou negada, mesmo perante toda evidência em contrário”. 124

Já de decidiu, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que a autodefesa

não possui dignidade constitucional. Com efeito, em voto proferido pelo. Min. Octavio

Gallotti, foi incorporado o entendimento de que “A ampla defesa e o devido processo se

desenvolvem nos termos da lei, não havendo porque considerar seja a autodefesa uma

prerrogativa a decorrer, em qualquer hipótese, diretamente da Constituição”.125

Do reconhecimento da autodefesa como garantia constitucional, decorre a

imposição de limites à atuação de todos os poderes públicos, no Executivo, Legislativo

e Judiciário, bem como estabelecendo a obrigação para que esses poderes levem a cabo

a atividade necessária para a realização do preceito constitucional.

A constitucionalização da garantia processual da autodefesa põe em destaque a sua

superioridade normativa, que alcança a todos, tanto os órgãos do Estado como os

cidadãos.

123 ARRUDA, Samuel Miranda. O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006, p. 53. 124 Op. cit. p. 196. 125 STF. 1.ª Turma. RE 242.326/SP. j. 10.10.2000. DJ 04.05.2001, p. 37.

60

5.2.1 A vinculação do legislador

Da supremacia das normas constitucionais, já postas em relevo por Kelsen,

decorre a sua eficácia negativa. Assim, com a entrada em vigor de uma nova

Constituição, toda a legislação com ela incompatível é revogada. É vedado ao legislador

produzir normas ao arrepio da Constituição. Como forma de assegurar essa supremacia,

surgem os sistemas de controle de constitucionalidade, por via difusa e por caminho

concentrado.

É dever dos órgãos parlamentares elaborar normas em respeito à garantia

constitucional da autodefesa, quando, por exemplo, atribuem conseqüências prejudiciais

ao imputado ao exercitar esse direito. A título de ilustração, pode-se mencionar a norma

do art. 198 do Código de Processo Penal, ao estabelecer que “o silêncio do acusado não

importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento

do juiz”. Este dispositivo é flagrantemente incompatível com a garantia constitucional

da autodefesa. O silêncio não pode importar em confissão pois esta deve ser expressa126,

clara, recaindo sobre fatos determinados. Aqui, não se aplica o ditado “quem cala

consente”. Evidentemente, além de não importar confissão, o silêncio do acusado não

pode ser utilizado pelo juiz como motivo de sua decisão.

Assentado a idéia de que todas as normas incompatíveis com a garantia

constitucional da autodefesa foram revogadas em face da Constituição Federal. E, para

conferir efetividade à supremacia constitucional, disponibilizam-se os controles difuso e

concentrado de constitucionalidade. A constitucionalização da garantia processual da

autodefesa, porém, aliada à opção política fundamental do Estado Democrático de

Direito127, leva à conclusão de que os efeitos desse reconhecimento não se esgotam na

simples declaração de inconstitucionalidade ou de revogação das normas que faltarem

com o respeito a tal garantia, mas, vão além, impondo ao legislador a tarefa de

normatizar situações que confiram máxima efetividade à autodefesa.128

126 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 1999, p. 156. 127 Willis Santiago Guerra Filho mostra que o Estado Democrático de Direito é elemento caracterizador da Constituição, sendo o maior importante vetor para a interpretação das normas de um determinado ordenamento jurídico. (Op.cit. p. 16-17). 128 PÉREZ, Alex Carocca, op. cit. p. 68.

61

5.2.2 A vinculação dos juízes e tribunais

A garantia da defesa deve ganhar especial atenção por parte dos aplicadores do

direito. O juiz, em qualquer caso posto à sua apreciação, deve estar consciente de que

exerce uma atividade pública e que, dessa forma, presta conta de seus atos a toda a

sociedade.129 Integrando um dos três poderes estatais, o juiz exerce função de relevo no

contexto político de um país, sendo o papel desempenhado por ele, quando distribui

justiça, de interesse inegavelmente público.

A nenhuma autoridade é dada a chance de desconhecer as garantias

constitucionais. Com muito mais razão, não podem ser ignoradas pelo Judiciário. Ao

contrário, cabe a este poder estatal levá-las em consideração, efetivando-as por ocasião

dos julgamentos por ele proferidos. A eficácia dos direitos e garantias fundamentais está

a depender diretamente do Poder Judiciário.

Decerto, cabe ao legislador estabelecer procedimentos de maneira a ensejar o

exercício da defesa pessoal, mas a simples previsão em lei desses mecanismos de tutela

em muitos casos não é suficiente para assegurar a efetivação da autodefesa. Daí a

importância de que cada juiz tenha em mente que a Constituição deve nortear a sua

atuação e a lei deve obedecer aos comandos constitucionais.

Além da função de respeitar a Constituição, os juízes e tribunais adquirem

responsabilidade decorrente da função de fiscalização da constitucionalidade das leis e

atos normativos. Ao tratar da aplicação imediata dos preceitos constitucionais que

tocam de modo mais íntimo os direitos, liberdades e garantias, surge o dever dos juízes

de aplicar os princípios constitucionais e interpretar a legislação infraconstitucional em

conformidade com esses preceitos. Ao lado dessa missão de natureza positiva, cabe

outra, de índole negativa: a não-aplicação das normas jurídicas que afrontam a

Constituição ou de invalidar os atos que ofendam aqueles preceitos.

Essas tarefas, sem dúvidas relevantes, não querem significar a responsabilidade do

Judiciário pela garantia absoluta do cumprimento e respeito dos direitos fundamentais

em todos os níveis de relações sociais.130 O Judiciário atua diretamente diante de um

conflito de interesses levado ao seu conhecimento com vistas à sua resolução. Dessa

129 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit. p. 242. 130 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Id. ibid. p. 242-243.

62

forma, fora desses casos, não há como se atribuir aos juízes qualquer participação pelo

desrespeito aos direitos fundamentais.

O mais difícil de tudo é almejar a pretensão de enquadrar o Judiciário como

guardião dos direitos fundamentais quando se sabe que os juízes atuam e fazem parte de

um sistema de justiça criminal perverso131, seletivo, cuja maioria de sua clientela é

formada por pobres.132 Essa seletividade é percebida desde a atuação policial,

repercutindo perante as jornadas processuais futuras. Em muitas ocasiões, o juiz penal é

colocado em posição de grande dificuldade: de um lado o clamor da opinião pública

ávida por sangue, propulsionada pela imprensa sensacionalista, e de outro lado, a

necessidade de preservar os direitos e garantias fundamentais. Sobre o papel do juiz no

resguardo dos direitos fundamentais, é oportuno colacionar os escólios de Alberto Silva

Franco:

O juiz e a Constituição devem ter, em verdade, uma relação de intimidade direta, imediata, completa. Há um nível de cumplicidade que os atrai e os enlaça. Na medida em que, de maneira explícita ou implícita, dá-se positividade constitucional aos direitos fundamentais da pessoa humana, estabelece-se, ao mesmo tempo, um sistema de garantias com o objetivo de preservá-los. O juiz passa a ser o garantidor desse sistema. Não pode por isso, em face de violações ou de ameaça de lesão aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, permanecer num estado de inércia ou de indiferença ou mesmo admitir que o legislador infraconstitucional se interponha indevidamente entre ele e a Constituição.133

Reside precisamente nessa atuação do Poder Judiciário de guardião dos direitos e

garantias fundamentais o caráter de legitimidade134 desse poder. Há críticas

direcionadas aos membros do Judiciário de que eles não possuem legitimidade, já que 131 Michel Foucault entende que “a justiça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle mais mergulhado na sombra que visa engrenar uma sobre a outra polícia e delinqüência. Os juizes são os empregados, que quase sempre não se rebelam desse mecanismo. Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades, o controle, a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante”. (Vigiar e Punir. 31.ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2006, p. 234). 132 Em debate promovido pela Associação dos Juízes Federais (AJUFE) sobre o filme “Meu nome não é Jonhy”, em 25.03.2008, o deputado federal Flávio Dino (PC do B/MA), que exerceu por doze anos as funções de juiz federal, afirmou que o Sr. João Estrela, processado e condenado por tráfico de drogas, por ser branco e de classe média, recebeu um tratamento mais humano da juíza responsável pelo caso. Segundo o parlamentar maranhense, o resultado do processo seria outro se o réu fosse um pobre, um preto ou uma prostituta. Tais afirmações foram corroboradas pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça. 133 Crimes Hediondos. 6.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 71. 134 Fábio Konder Comparato entende que a legitimidade é uma forma de justiça, anotando: “[...] a noção de legitimidade corresponde à idéia de uma relação harmônica de uma instituição, uma pessoa, um ato determinado, com o seu fundamento ético, que pode ser um modelo pessoal, humano-herói, profeta ou super-homem – ou divino; ou então, da conformidade com um conjunto de princípios e regras de comportamento”. (Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 593).

63

não são escolhidos pela vontade popular, ao contrário dos representantes do Poder

Executivo e do Legislativo. Com efeito, o ingresso na magistratura dá-se mediante

concurso de provas e títulos, sem qualquer aquiescência do povo nesse processo

seletivo. A legitimidade do Judiciário não advém da vontade da maioria, mas do papel

que ele venha a exercer na proteção dos direitos fundamentais, ainda que tenha que

desagradar a maioria. A legitimação representativa ou consensual não se aplica ao Poder

Judicial. Não se admite condenar um cidadão inocente ou absolver um

reconhecidamente culpado apenas porque a maioria da população assim deseja. Luigi

Ferrajoli ressalta que, num sistema garantista, o “consenso majoritário ou a investidura

representativa do juiz não acrescentam nada à legitimidade da jurisdição, dado que nem

a vontade, nem o consenso, nem o interesse geral [...]”135 tem o condão de tranformar a

verdade em mentira.

É perigoso, pois, que o juiz se deixe influenciar pelo discurso midiático, que tão

facilmente propaga sua influência sobre a maior parte da sociedade. Não se trata de uma

missão fácil a de decidir contra uma maioria política; no entanto, o juiz penal tem que

passar por essas encruzilhadas.136

Nesse quadro, é importante que o juiz adote uma posição de compromisso com a

autodefesa, estimulando o acusado a comportar-se de maneira consciente, de modo a

estabelecer um debate equilibrado entre acusação e defesa. Não se admite a atitude

judicial que compactua com uma atuação defensiva deficiente.

135 “Garantias”. Revista do Ministério Público n.º 22. Lisboa: RMP, 2001, p. 16-17. 136 Tratando da difícil missão de julgar, Alberto Silva Franco arremata:“A opção do juiz penal pela Constituição, pela garantia da liberdade, pela dignidade da pessoa humana, enfim, pela proteção integral dos direitos humanos fundamentais tem um preço alto, custoso mesmo. Incompreensões, com freqüência, medos, não raro; angústias, tantas; carreiras cortadas ou destruídas, muitas”. (Op. cit. p. 73).

64

6 A AUTODEFESA SOB A PERSPECTIVA DE UM PROCESSO PENAL

GARANTISTA

Após deixar-se fincado o argumento de que a autodefesa é uma garantia

constitucional, cumpre agora estabelecer a sua amplitude, repercussão e limitações no

âmbito do processo penal, sob o enfoque da teoria garantista de Luigi Ferrajoli. Para

tanto, faz-se necessária breve abordagem acerca da mencionada teoria, ressaltando-se o

seu aspecto processual.

6.1 O Garantismo Penal

Deve-se a Luigi Ferrajoli a sistematização do estudo do garantismo penal e

processual penal. Trata-se, pois, do principal nome da corrente denominada garantista.

O termo garantismo, no sentido fiel de garantismo penal, surgiu de um movimento

encampado pela esquerda jurídica italiana, por volta de 1975, em resposta ao crescente

movimento legislativo e jurisprudencial que – com a justificativa de debelar o crime

organizado – tornou mais frágil o já debilitado sistema da garantias processuais naquele

país.137 Antes que se investiguem os impactos da teoria garantista na aplicabilidade e

amplitude da autodefesa, é mister se compreender o garantismo. Para Luig Ferrajoli, o

garantismo significa a proteção dos valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação

configura-se em uma espécie de imunidade dos cidadãos contra as investidas arbitrárias

do Poder Público, com o estabelecimento de regras iguais para todos, resguardando-se a

dignidade, a liberdade e a verdade do acusado. Somente com o respeito a esses valores,

aceita-se a atuação do Estado por meio do processo penal.138Trata-se, pois, de um

“modelo no qual se assenta o Estado de Direito, que adota como núcleo primário de sua

atuação a proteção aos direitos fundamentais dos seres humanos”.139 Representa o

garantismo penal um marco na história da humanidade, uma vez que o suposto autor de

uma infração penal passa a ser considerado sujeito de direitos, assumindo o Estado o

137 FERRAJOLI, Luigi. “Garantias”. Revista do Ministério Público n.º 22. Lisboa: RMP, 2001, p. 8. 138 Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2006, p. 312. 139 STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. Op.cit. p. 93.

65

dever de garantir o respeito a esses direitos, durante todas as fases da persecução penal,

da investigação dos fatos até o cumprimento da penal imposta.140

No prefácio da obra de Luigi Ferrajoli, Norberto Bobbio apresenta o garantismo

como uma meta a ser alcançada na aplicação do Direito:

Um modelo ideal ao qual a realidade pode mais ou menos se aproximar. Assim, mesmo que a aplicação do Direito ocorra de maneira diversa daquela prevista pelo modelo garantista, não se pode afirmar que o modelo desapareceu. [...] Como modelo representa uma meta que permanece tal mesmo quando não é alcançada e não pode ser nunca, de todo, alcançada.141

O modelo garantista tradicional funda-se nos princípios da legalidade, da

ofensividade, da intranscendência, do contraditório, da ampla defesa e da presunção de

inocência, frutos da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo.

O sistema penal garantista (SG) pode ser expresso em dez axiomas142, na

seqüência enumerados:

a) Nulla poena sine crimine. (Princípio da retributividade ou da

conseqüencialidade da pena em relação ao delito). Assim, só se impõe uma sanção

penal quando se pratica um fato definido como crime.

b) Nullum crimen sine lege. (Princípio da legalidade). A definição de um fato

como crime é matéria a ser tratada em lei.

c) Nulla lex (poenalis) sine necessitate. (Princípio da necessidade ou da economia

do Direito Penal). A intervenção punitiva somente pode ser utilizada como medida

extrema, de modo a resguardar os valores mais caros concernentes ao convívio dos

homens em sociedade.

d) Nulla necessitas sine injuria (Princípio da lesividade ou da ofensividade do

evento). A necessidade para a atuação do Direito Penal somente surge quando há, por

parte da conduta do agente, uma efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

e) Nulla injuria sine actione (Princípio da materialidade ou da exterioridade da

ação). Os crimes não resultam de atitudes humanas meramente internas, mas de ações

exteriorizadas e passíveis de serem descritas enquanto tais pela norma penal. Ninguém

pode ser punido pelo próprio pensamento.

140 STEINER, Id. ibid. p. 96. 141 Op. cit. p. 9. 142 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 2006, p.91.

66

f) Nulla actio sine culpa (Princípio da culpabilidade ou da responsabilidade

pessoal). Não há conduta penalmente relevante sem que o agente atue com dolo ou

culpa – stricto sensu. Aqui, afasta-se qualquer possibilidade de responsabilidade

objetiva no Direito Penal, somente sendo passíveis de punição aqueles atos intencionais

do agente. A culpabilidade consiste no elemento subjetivo ou psicológico do injusto.

Assim, como anota Ferrajoli,

[...] nenhum fato ou comportamento humano é valorado como ação se não é fruto de uma decisão; conseqüentemente, não pode ser castigado, nem sequer proibido, se não é intencional, isto é, realizado com consciência e vontade por uma pessoa capaz de compreender e querer.143

g) Nulla culpa sine judicio. (Princípio da jurisdicionariedade). A culpabilidade do

indivíduo a que se atribui a prática de um injusto penal só pode ser reconhecida por uma

autoridade judiciária.

h) Nullum crimen sine accusatione. (Princípio acusatório ou da separação entre

juiz e acusação. O juiz penal não pode atuar de ofício (ne procedat judex ex officio).

Somente julga os fatos materializados em uma acusação penal formulada por órgão

distinto: o Ministério Público. Afastam-se, pois, por meio desse princípio, as vinganças

e as penas privadas. A solução do conflito penal é atribuída a um terceiro, estranho às

partes interessadas, dotado de autoridade para decidir.

i) Nulla accusatio sine probatione (Princípio do ônus da prova ou da verificação).

Pelo postulado da presunção de inocência, o réu permanece nessa condição até que seja

declarado culpado por sentença transitada em julgado. Ao iniciar a acusação penal em

juízo, tentando afastar essa presunção de inocência, surge para o órgão acusatório o

ônus de demonstrar a veracidade dessa imputação.

j) Nulla probatio sine defensione. (Princípio da defesa ou da falseabilidade). Para

tutelar firmemente a presunção de inocência, exige-se uma investigação fulcrada no

conflito entre a acusação e na sua necessária refutação. Essa disputa ainda há de ser

desenvolvida em paridade de armas (par conditio), dotando-se a defesa dos mesmos

poderes e faculdades pertencentes ao órgão acusatório, realizando-se a atividade

defensiva em todo tipo de procedimento e grau de jurisdição.

Esses dez axiomas estabelecem os marcos conceituais do chamado garantismo

penal. Observe-se que, dos princípios há pouco formulados, há aqueles de conteúdo

penal e outros de teor processual penal. Assim, lato sensu, quando se fala em 143 Op. cit. p. 447.

67

garantismo penal, também se trata da vertente processual do garantismo. De nada

adiantaria que fossem estabelecidas somente as garantias penais sem o devido

acompanhamento das garantias processuais. O grau de efetividade das garantias penais

está ligado à proteção das garantias processuais.144

6.1.1 Garantismo e Verdade

Uma das principais bases lançadas para a construção do edifício garantista, no

âmbito do processo penal, está ligada à concepção de verdade. Para Hannah Arendt, a

verdade é “aquilo que não podemos modificar”.145

Trata-se de um tema empolgante e de infinita complexidade, no âmbito de

qualquer ciência. Não se pode alcançar uma verdade absoluta, despida de contestações.

Do ponto de vista científico, quando se fala de “verdade” de determinadas afirmações,

diz-se que estas são verdadeiras com base no conhecimento (restrito) que se tem sobre

elas. Trata-se, pois, de uma “verdade’ concebida sob perspectiva limitada, reduzida ao

conjunto de conhecimento daquele sujeito que a investiga.146

No processo penal, cabe ao juiz resolver a disputa entre duas teses contraditórias:

uma que sustenta a culpabilidade do acusado e a outra que clama por sua absolvição.

Aquela tese que for mais compatível com a prova dos autos merecerá o acolhimento,

consubstanciará a verdade processual. Não se permite ao juiz, pois, deixar de julgar por

insuficiência de provas, por não estar convencido nem da culpabilidade, nem da

144 Nessa trilha, posiciona-se Luigi Ferrajoli: “Entre os dois conjuntos de garantias existem nexos tanto estruturais como funcionais. As garantias penais, ao subordinar a pena aos pressupostos substanciais dos crimes – a lesão, a conduta e a culpabilidade -, são tanto efetivas quanto mais estes forem objeto de um juízo, em que sejam assegurados ao máximo a imparcialidade, a verdade e o controle. É por isso que as garantias processuais, e em geral as normas que disciplinam a jurisdição, são ditas também “instrumentais” no que tange as garantias e às normas penais, estas chamadas, por sua vez, “substanciais” A correlação funcional é, além disso, biunívoca, uma vez que as garantias penais podem, por seu turno, ser consideradas necessárias para garantir juízos não arbitrários: na sua ausência, de fato, juízos e penas seriam desvinculados de limites legalmente preestabelecidos e resultariam não menos potestativos do que se estivessem em ausência das garantias processuais. Em síntese, tanto as garantias penais como as processuais valem não apenas por si mesmas, mas, também, como garantia recíproca de efetividade. [...] Esquemas e culturas penais e processuais penais, como tenho dito muitas vezes, são sempre conexos entre si”. (Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 495). 145 Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 325. 146 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 53.

68

inocência do réu. A resposta judicial há de ser dada, nesse caso, favoravelmente à

defesa. É de se lembrar o célebre brocardo in dubio pro reo.147

Explica Ferrajoli que a verdade processual é uma verdade normativa. Para o autor,

não é somente a verdade que condiciona a validade, mas esta também condiciona a

verdade no processo. A verdade processual é uma verdade normativa, por três razões: a)

sendo comprovada em definitivo, tem valor normativo; b) está agasalhada por normas e

c) trata-se de verdade quando alcançada com obediência às normas.148

Destaque-se a noção de que nem todas as normas visam a alcançar uma

aproximação da verdade processual com a verdade histórica. Normas que concedem o

benefício da delação premiada, que tratam da transação penal e da suspensão

condicional do processo não se destinam precipuamente a dirimir dúvidas sobre

aspectos fáticos do processo.

Só se alcança a verdade processual com o respeito às garantias postas pelo

ordenamento, assegurando-se à defesa a possibilidade de rechaçar as afirmações da

acusação durante todo o iter procedimental, desde o oferecimento da denúncia até o

trânsito em julgado de decisão condenatória.149 Assim, não se admite a busca pela

verdade de forma irrestrita. Há limites éticos que não podem ser desprezados. Assinala

René Ariel Dotti que a verdade não pode ser obtida “em holocausto da ampla defesa e

do contraditório, que são conquistas da dignidade da pessoa humana, antes regras do

processo em geral”. 150Assim, não há qualquer incompatibilidade na proteção dos

direitos fundamentais dos acusados e a busca pela verdade, segundo o garantismo penal,

pois, neste sistema, só se alcançam os fins (verdade) com respeito aos meios (garantias

processuais).

Nessa ordem de idéias, o que justifica o processo penal é a garantia da liberdade

dos cidadãos, respeitando-se a verdade, não uma verdade pronta e acabada, mas obtida

após um intenso debate, alcançada mediante o salutar contraditório, apta a plasmar a

justiça quando da prolação da sentença; uma verdade obtida com a preservação da

147 É interessante apontar o entendimento esposado por Francesco Carnelutti. Segundo o jurista italiano, nos casos de processos que “terminam” em virtude de uma sentença absolutória fundamentada em ausência de provas, em verdade, o processo não termina nunca. O réu continua nessa condição pelo resto de sua vida.(Cf. As Misérias do Processo Penal. Campinas: Conam, 1995, p. 61). 148 Op. cit. p. 62. 149 Id. Ibid. p. 160. 150 “Breves Notas sobre a Emenda n.45”. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et al. Reforma do Judiciário: Primeiras Reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: RT, 2005, p. 633.

69

dignidade do imputado e de seu direito de defesa. Nesse passo, pontifica Jorge de

Figueiredo Dias que “não há verdade material onde não tenha sido dada ao argüido a

mais ampla e efetiva possibilidade de se defender”.151 O respeito ao direito de defesa é

condição necessária para que o juiz declare a verdade que prevalecerá ao final do litígio.

Daí a importância de que o juiz permaneça sereno e imparcial durante todo o

processo, sempre duvidando dos fatos postos à sua análise, de modo a evitar uma

formação de seu convencimento viciada e precipitada.152 Observa-se, às vezes, posição

equivocada do magistrado ao formar seu convencimento de forma antecipada. No

interrogatório, primeiro ato da instrução criminal, o juiz já firma sua convicção pela

culpa ou inocência do réu e passa a direcionar o restante dos demais atos instrutórios,

com o objetivo de reforçar sua opinião, prematura e indevidamente formada. Não pode

ignorar o magistrado que o momento processual adequado para exteriorizar o seu

convencimento é o da prolação da sentença.

6.2 Conceito

A autodefesa consiste na intervenção pessoal e direta do acusado no processo

penal, sem a assistência ou representação por advogado. É o direito que o réu possui de

exercer pessoalmente a atividade defensiva, rebatendo os argumentos postos pela

acusação, comparecendo aos atos processuais, escolhendo e auxiliando seu defensor ou,

quando esta for a opção mais vantajosa, permanecendo em silêncio. Segundo Victor

Moreno Catena e Valentin Cortés Dominguez, a autodefesa “consiste na intervenção

direta e pessoal do imputado no processo, realizando atividades destinadas a preservar

sua liberdade: impedindo a condenação ou obtendo a sanção penal mais branda

possível”.153 A autodefesa deve buscar o desfecho processual mais favorável ao réu,

evitando a perda da liberdade ou obtendo uma pena mais leve.

De maneira ampla, esse mecanismo de atuação do imputado no processo poderá

ocorrer ativamente ou de forma passiva. Ativa, quando o réu desenvolve efetivamente

uma conduta em face da acusação. Quando, por exemplo, resolve comparecer ao

interrogatório e fornece pessoalmente a sua versão dos fatos. Teria ele outra opção? 151 Op. cit. p. 429. 152 Id. Ibid. p. 503. 153 Tradução livre. Op. cit. p. 149.

70

Sim, fazendo-se presente e permanecendo em silêncio, ou, também, optando

simplesmente por não ir à presença do juiz. Na primeira hipótese, está-se diante da

autodefesa positiva. No segundo, da autodefesa negativa. Preferir ficar em silêncio é

uma escolha do imputado albergada pela autodefesa na modalidade negativa.

Evidentemente, se o réu exerce esse direito constitucional, não se pode, diante dessa

opção do imputado, atribuir-lhe qualquer sanção, prejudicando-o de qualquer modo.

A esfera jurídica do imputado, ao redor da qual orbita a autodefesa, não pode ser

arranhada pelo exercício da autodefesa negativa. Daí não deve o acusado ser

constrangido a comparecer ao interrogatório, participar da reconstituição do crime,

fornecer padrões gráficos para a realização do exame pertinente, bem como

disponibilizar qualquer espécie de material em seu poder, inclusive de seu corpo, com

vistas à feitura de exames periciais. Ao não contribuir para a constituição de provas que

possam ser utilizadas contra si próprio, o réu está exercitando o seu direito de defender-

se, pessoalmente, em seu aspecto negativo.154

No que tange à defesa técnica, como visto, em alguns momentos processuais,

permite-se ao advogado adotar uma atitude serena, de mera contemplação, deixando de

praticar determinada faculdade processual. Assim, não está obrigado o advogado a fazer

perguntas às testemunhas, à vítima ou acusado, pois poderá causar, eventualmente, um

prejuízo à defesa, no sentido de robustecer a prova da culpabilidade do réu. Informações

nebulosas podem vir a ser desvendadas em virtude de uma pergunta formulada por seu

próprio advogado.155 Da mesma sorte, poderá optar por não oferecer defesa prévia,

entendendo ser desnecessária a produção de prova testemunhal. Não há que se falar em

nulidade pelo não-oferecimento da defesa prévia pelo advogado do acusado que foi

devidamente intimado para praticar tal ato. Nulidade existe pela ausência de intimação,

já que nesse caso é tolhido o direito de escolha do advogado em trilhar o melhor

caminho para o resguardo dos interesses de seu cliente.

Em outros momentos de maior relevância para o processo, essa atitude passiva da

defesa técnica não é tolerada. Tal ocorre nas alegações finais, quando o advogado deve

não somente oferecer a peça processual, mas também apresentá-la fundamentadamente,

de forma consistente, afastando a acusação e procurando obter o provimento

154 Giovannio Conso e Vittorio Grevi anotam que o direito que possui o réu de não ser compelido a colaborar com a acusação é expressão insindicável do direito de defesa pessoal. (Compendio di Procedura Penale. Padova: Cedam, 2001, p. 102). 155 É terrível para o advogado constatar que sua pergunta robusteceu a tese acusatória.

71

jurisdicional mais favorável ao imputado. No plenário do júri, de igual sorte, rechaça-se

a defesa meramente formal, despida de fundamentação concreta, sem referência à

situação tratada nos autos. Não se olvide que o réu está sendo julgado por seus pares,

por magistrados leigos, que não expõem as razões de seu veredicto. Diante dos quesitos

expressos, respondem os jurados mediante singelos “sim” ou “não”, sem qualquer outra

forma de expressão do convencimento, ausente, pois, a fundamentação da decisão.

Assim, o defensor deve rebater de modo contundente a acusação.

Na autodefesa, não há que se exigir, em nenhum ato processual, comportamento

ativo do réu, por mais que essa conduta seja benéfica aos seus interesses. Daí alguns

autores acentuarem que o exercício da autodefesa é facultativo.156 Em outros momentos,

a atitude passiva do imputado é mais favorável ao resguardo de sua esfera jurídica. Em

determinado processo, onde há precárias provas indiciárias de autoria, o réu confessa a

prática do delito e ainda fornece informações necessárias à colheita dos vários meios de

prova. Nesse caso, não há autodefesa, pois esta atividade – em sua modalidade ativa –

ontologicamente, está ligada a uma reação em face da acusação. Quando se reconhece a

acusação contra si formulada, não se exerce autodefesa. Trata-se de comportamento

processual válido, se houver manifestação de vontade livre e esclarecida por parte do

réu157, mas não se trata de exercício de atividade defensiva. Embora a confissão seja

considerada pelo Código Penal como circunstância atenuante (art. 65, III, “d”) não se

tem defesa por parte do réu.

Posição judicial que viola a garantia da autodefesa é aquela que não enseja o seu

exercício, que inviabiliza a eleição, por parte do réu, de que comportamento adotará

perante a acusação. Assim, vedado está ao magistrado induzir o acusado a confessar,

mostrando ser aquela a melhor opção a ser seguida. Quem orienta o acusado é seu

advogado e não o juiz.

156 BADARÓ, Gustavo Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: RT, 2003, p. 230; QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 75. 157 Nessa trilha, esclarece Manuel da Costa Andrade: “O que aqui está fundamentalmente em jogo é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade. Na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual. Na verdade, só pode falar-se de um sujeito processual, como legitimidade para intervir com eficácia conformadora sobre o processo, quando o arguido persiste, por força da sua liberdade e responsabilidade, senhor das suas declarações, decidindo à margem de toda coerção sobre se e como quer pronunciar-se”.(Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 121-122).

72

A garantia em foco desdobra-se nos direitos de presença, no de audiência, no de

postular em causa própria e escolha do defensor. O direito de presença é observado

quando se dá azo ao réu do seu comparecimento a todos os atos processuais e não

somente no interrogatório. O direito de audiência revela-se quando o imputado fornece

de viva voz a sua versão dos fatos por ocasião de seu interrogatório. O direito de

postular em causa própria confere ao acusado a possibilidade de interpor recursos (art.

577, CPP), oferecer defesa prévia158, impetrar habeas corpus e ajuizar revisão criminal

(art. 621 do CPP). O direito de escolha do defensor é de ser ressaltado em face da

importância do bom relacionamento entre o réu e seu advogado para o bom desempenho

da atividade defensiva, evitando-se, assim, a nomeação precipitada de defensor pelo

juiz.

A autodefesa tem por características a renunciabilidade e a inalienabilidade. É

renunciável, pois a parte não pode ser compelida a exercitar uma atividade refutando a

acusação. Em muitos casos, o réu pode confessar, produzir provas contra si, deixar de

fornecer valiosas informações ao seu advogado, em prejuízo de sua defesa. Saliente-se

que essa renunciabilidade há de ser considerada sob a óptica do imputado, não

significando discricionariedade judicial para a concessão das oportunidades para o

exercício do direito. Em todo processo criminal, deve ser possibilitado o exercício da

autodefesa.

É inalienável em razão de seu próprio conceito. O acusado não pode transferir a

outrem essa garantia. Trata-se de um bem pertencente ao seu patrimônio jurídico, do

qual ele não pode transferir o exercício. O direito ao conhecimento da acusação tem

caráter indisponível, não podendo o acusado abdicar desse direito.

6.3 Pressuposto

A autodefesa pode consistir em uma conduta ativa do réu, realizando uma

atividade de repelir a acusação. Pode representar ainda um comportamento que

158 Narra o artigo 395 do Código de Processo Penal: “O réu ou seu defensor poderá, logo após o interrogatório, ou no prazo de 3 (três) dias, oferecer alegações escritas e arrolar testemunhas”. Assim, de acordo com o dispositivo a defesa prévia pode ser ofertada pelo próprio réu, demonstrando o exercício da autodefesa. Nesse sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18.ª edição. São Paulo: Atlas, 2006, p. 489.

73

configure uma inação do imputado, mas, em ambos os casos, há que se ter o elemento

volitivo: o animus defendendi.

Rememorando: duas opções possui o demando diante de uma acusação. Ou

prefere quedar-se inerte ou se manifesta. Em ambos os casos, para que possa fazer a

melhor opção, é imprescindível ter o pleno conhecimento da acusação formulada.

Somente com esse conhecimento é que o imputado terá condições de exercer de forma

eficaz sua autodefesa.159

6.3.1 A acusação formulada

O direito ao conhecimento da acusação consubstancia autêntico pressuposto para o

exercício da autodefesa, seja no seu aspecto positivo ou no negativo. A atividade

defensiva somente pode ser realizada de forma efetiva quando a acusação formulada é

clara e precisa. Não há como se conceber uma resposta à agressão sem se saber ao certo

o teor dessa atividade incisiva.160 Daí a necessidade de que a denúncia narre de forma

individualizada e específica a conduta do acusado.

Nesse passo, o art. 41 do Código de Processo Penal estabelece como requisito da

peça vestibular acusatória a “narração do fato criminoso, com todas as suas

circunstâncias”. A exigência da narração do fato criminoso, com todas as suas

circunstâncias, tem por premissa o entendimento segundo o qual o réu se defende dos

fatos e não do dispositivo legal indicado pelo Ministério Público. A acusação recai

sobre fatos e a atividade defensiva também. Nesse campo, não mais pode ser admitida a

aplicação da Súmula 366 do Supremo Tribunal Federal, que, ao tratar dos requisitos da

citação por edital, prevê: “Não é nula a citação por edital que indica o dispositivo da lei

penal, embora não transcreva a denúncia ou queixa, ou não resuma os fatos em que se

baseia”.

159 Discorrendo sobre a importância do conhecimento pleno da acusação por parte do réu, anota David Teixeira de Azevedo: “somente se contradiz perfeitamente o de que se tem absoluta ciência, decorrente da operação intelectual de apreensão da realidade; somente se contradiz o fato que, depois de perfeitamente conhecido, encontra ordenada estruturação afetiva no eu”. (Op. cit. p. 289). 160 Como observa Nicola Carulli, “Não é possível defender-se de uma acusação se não se sabe de que coisa está sendo acusado”. (Tradução livre). No original: “non é possibile difendersi da un ´acusa, se non si concosce di che cosa se viene accusati”. (Op. cit. p. 222).

74

Dessa forma, se o acusado não se defende de artigos de lei, como admitir válida

uma citação por edital que apenas mencione dispositivos legais, sem a narração

completa do fato criminoso? Não se coaduna a súmula 366 do Supremo Tribunal

Federal com as exigências de um processo penal garantista, em especial, com o direito

do imputado ao conhecimento da acusação.161 Nesse passo, “a informação precisa sobre

a imputação é pressuposto essencial para as manifestações livres e conscientes do

argüido no decorrer da relação processual penal”.162

Denúncia que não atenda ao comando normativo estampado no artigo em foco é

inepta, impedindo o pleno e eficaz desenvolvimento da autodefesa. Desse modo, hão de

se repelidas acusações genéricas163, que não especificam a conduta do denunciado, ou

ainda a chamada denúncia alternativa.164

Outro ponto que merece destaque é a linguagem a ser utilizada pelo Ministério

Público, ao exprimir a denúncia. Deve-se evitar a utilização de expressões rebuscadas,

de linguagem eminentemente técnica, de compreensão difícil pelo leigo. Uma forma de

tornar a justiça mais acessível à população seria a mudança da linguagem utilizada pelos

operadores jurídicos, que, com seu juridiquês, dificultam a compreensão das suas

manifestações processuais.165

161 Nessa perspectiva, lembra Sylvia Helena de Figueiredo Steiner: “[...] se os fatos não vêm narrados no edital de citação, deles não pode se defender o réu. A coerência do sistema de garantias exige interpretação conforme os princípios que o informam”. (Op. cit., p. 124). 162 RISTORI, Adriana Dias Paes. Sobre o Silêncio de Argüido no Interrogatório no Processo Penal Português. Coimbra: Almedina, 2007, p. 130. 163 Decidiu o Supremo Tribunal Federal: “[...] A técnica da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional, ancorada especialmente no direito de defesa. Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito [...]”. (2.ª Turma. HC 84.409/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. j. 14.12.2004. DJ 19.08.2005, p. 57). 164 Inadmitindo a denúncia alternativa: “RECURSO ESPECIAL. PENAL. PROCESSO PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ART. 89 DA LEI 8.666/93. "Crimes previstos na Lei de licitações públicas. Concessão da Ordem pela Corte a quo para se trancar a ação penal em razão da alegada impossibilidade de se oferecer denúncia alternativa. Pedido de anulação do acórdão. Alegação de possibilidade de oferecimento de denúncia alternativa. Procedência. Compatibilidade lógica dos fatos imputados." Recurso conhecido e provido. (REsp 399.858/SP, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 25.02.2003, DJ 24.03.2003 p. 265)”. 165 Essa necessidade de utilização de uma linguagem mais simples, mais acessível, é imperiosa nos julgamentos realizados no Tribunal Popular do Júri. Ministério Público e defesa dirigem seus argumentos aos jurados, pessoas leigas, que decidirão a sorte do réu. Desse modo, usam as partes a linguagem popular, evitando a expressão de termos muitos técnicos.

75

6.3.2 A citação e a ciência dos atos processuais

Como já mencionado, o primeiro ponto a ser destacado com relação ao direito ao

conhecimento da acusação refere-se à peça inaugural do processo penal. Não é, porém,

suficiente a exposição clara e precisa da conduta do réu, pois a ele deve ser dada a

chance de ter ciência da imputação por meio do principal ato de comunicação

processual: a citação. O Supremo Tribunal Federal (no julgamento do HC 92.569/MS

(Rel. Min. Ricardo Lewandowski, em 11.03.2008166) entendeu que o vício da citação é

insanável, não havendo que se falar em preclusão, mesmo após o trânsito em julgado da

decisão condenatória. Para o Excelso Pretório, a falta de citação pessoal causa prejuízo

insanável ao paciente, porquanto impossibilita o exercício da autodefesa, bem como o

direito de escolher o defensor de sua confiança.

Por meio da citação, o réu tem conhecimento da denúncia formulada, sendo

convocado a apresentar reação à imputação. Antes de julgar o indivíduo, este deve ter a

oportunidade de saber as razões daquele julgamento. Precisamente em atenção a essa

necessidade de se ter conhecimento da acusação formulada é que a lei 9.271, de

17.04.1996, conferiu nova redação ao artigo 366 do Código de Processo Penal167, de

modo a impossibilitar o julgamento do réu que, citado, por edital, não compareceu ao

interrogatório nem constituiu advogado. Dessa forma, o juiz inviabilizado estará de

julgar o acusado, bem como de praticar atos processuais, salvo aqueles reputados

urgentes, bem como a decretação de prisão preventiva, quando estiverem presentes os

seguintes requisitos, a serem exigidos de forma cumulativa:

a) houver citação por edital.

b) o acusado não compareceu ao interrogatório; e

c) o réu não constituiu advogado.

Outro ponto relevante acerca do direito ao conhecimento da acusação está

relacionado à citação do réu preso. A lei 10.792, de 01.12.2003, imprimiu nova redação

ao artigo 360 do CPP, estatuindo: “Se o réu estiver preso, será pessoalmente citado”. A

166 Acórdão pendente de publicação. Noticiado no Informativo n.º 498. Disponível em http://www.stf.gov.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm. Acesso em 24.03.2008. 167 “Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.”.

76

norma busca evitar a ocorrência de situações rotineiras nos processos criminais, em que

a autoridade judiciária – limitada à interpretação literal da redação anterior do artigo

360 do CPP – em vez de determinar a citação do preso, requisitava ao diretor do

presídio ou ao delegado de polícia o comparecimento daquele a juízo. Assim, o acusado

era levado ao fórum, a fim de ser interrogado, sem sequer saber ao certo do que estava

sendo acusado. Não tinha qualquer chance de preparar autodefesa, formulando

argumentos por ocasião do interrogatório ou tendo a chance de constituir advogado de

sua confiança em tempo razoável.

Assim, deixa-se claro que a requisição do réu preso tem por finalidade sua

condução à presença do juiz e a citação objetiva fornecer ao réu o conhecimento acerca

da acusação formulada. São atos distintos e com finalidades diversas. A requisição

dirigida à autoridade carcerária não exime o dever do magistrado de determinar a

citação do preso, em tempo adequado para a edificação da tese defensiva.168

A ausência de citação do réu preso ao interrogatório em tempo adequado a

elaborar sua tese defensiva é causa de nulidade absoluta, pois impede o exercício pleno

da autodefesa, obstaculizando a preparação dos argumentos que refutem a acusação e

dificultando sobremaneira o contato prévio do réu com seu defensor. Não há que se

falar em demonstração do prejuízo. Como exigir da defesa a demonstração de que, se o

ato tivesse sido praticado de acordo com o modelo constitucional garantista, com

citação do réu preso e possibilidade de constituição de defensor de confiança, o

resultado seria outro? O prejuízo é evidente, manifesto, decorre da inobservância do

direito ao conhecimento da acusação, pressuposto para o exercício da autodefesa.

168 Nessa trilha, posiciona-se Sylvia Helena de Figueiredo Steiner: “a simples requisição do réu preso para comparecer em juízo e ser interrogado, levando-se em conta que o interrogatório é reconhecido também como ato de defesa, não equivale à citação prévia e detalhada, com a concessão de tempo e meios para preparação da defesa”. (Op. cit., p. 123). Em sentido contrário, entendendo que a requisição do réu preso supre a exigência de citação: CRIMINAL. HC. ROUBO QUALIFICADO. QUADRILHA. NULIDADE. FALTA DE INTIMAÇÃO PESSOAL PARA O INTERROGATÓRIO. RÉU PRESO. REQUISIÇÃO EFETIVADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZOS. EXCESSO DE PRAZO. INSTRUÇÃO PROCESSUAL QUE SE PROLONGA POR MAIS DE UM ANO. FEITO COMPLEXO. DEMORA ATRIBUÍVEL ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE AO ESTADO-JUIZ. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE QUE MILITA EM FAVOR DO PACIENTE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. I. A requisição do réu preso supre a falta de citação pessoal por mandado. Precedentes. II. Descabido o pleito de anulação do processo, pois o réu foi devidamente interrogado na data designada para o ato, em virtude de sua requisição, não podendo se falar em prejuízos à defesa. [...] (HC 44.004/PI, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 20.10.2005, DJ 21.11.2005 p. 266)

77

Em caso de acusado estrangeiro, impõe-se a nomeação de tradutor, a fim de

transcrever para o idioma de origem do réu a denúncia. Igual exigência de intérprete

ocorre em relação aos surdos-mudos, por necessitarem de uma forma especial de

comunicação. Acrescente-se que o intérprete deve acompanhar o imputado durante o

interrogatório judicial, bem como nas demais audiências que compõem a instrução

criminal, servindo de elo de comunicação entre o advogado e seu constituinte. A

compreensão do significado da acusação e do sentido das perguntas formuladas pela

autoridade no interrogatório é elemento preponderante para a efetividade do direito de

defesa.169

Outro ponto marcante no que se refere ao direito ao conhecimento da acusação

que merece reflexão está relacionado à citação do militar. O art. 358 do Código de

Processo Penal estabelece: “A citação do militar far-se-á por intermédio do chefe do

respectivo serviço”. É sabido que nas instituições militares, essenciais à segurança do

Estado e da sociedade, são fatores de extrema importância para o bom andamento das

suas atividades a hierarquia e a disciplina. Daí prevê o mencionado artigo que, no lugar

de se determinar a citação por mandado do militar, encaminha-se um oficio ao chefe da

unidade em que o acusado ocupa seu posto. Caberia, portanto, ao comandante da

unidade militar, transmitir-lhe o teor da determinação judicial e dispensá-lo do serviço.

Não se mostra compatível com o direito de defender-se por si próprio o art. 358 do

CPP. Com efeito, cada réu, pessoalmente, sem quaisquer intermediários, deve ter

ciência da acusação contra si formulada. O acusado militar, em homenagem à isonomia,

não escapa dessa exigência, devendo também ser citado pessoalmente. Muitas vezes, o

militar é avisado horas antes da audiência, sem sequer ter tempo de ler a denúncia e

preparar autodefesa, em razão de expedientes burocráticos inerentes às instituições

militares. Da mesma forma que existe no que toca ao servidor público, no entanto, para

que haja planejamento da unidade militar onde serve o acusado no sentido de procurar

um substituto para o militar que se ausentará para comparecer às audiências, deve haver

a comunicação ao chefe do serviço. Dessa forma, preserva-se o direito ao conhecimento

da acusação, indispensável para o posterior exercício da autodefesa, bem como não há

riscos aos princípios da hierarquia e da disciplina, marcantes no meio militar.

O direito ao conhecimento da acusação não se esgota com a citação do imputado,

mas deve ser respeitado durante toda a jornada processual. Afinal, o processo é uma 169 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 147.

78

realidade mutável, não se admitindo que mudanças transcorridas em seu curso possam

surpreender o réu.170 Assim, configura direito do réu ser intimado para todos os atos do

processo e não apenas ser citado para o interrogatório. Estando preso ou respondendo ao

processo em liberdade, a intimação do acusado para as audiências possibilitará o seu

comparecimento às audiências, viabilizando o exercício de seu direito de defesa pessoal.

Observe-se que a intimação feita ao advogado não supre a exigência de intimação do

réu, inclusive e principalmente, para cientificá-lo da sentença condenatória. Walter

Nunes da Silva Júnior ressalta que a necessidade de intimação do imputado para os atos

processuais, além de lhe assegurar uma participação mais efetiva no processo penal,

prestando auxílio ao seu advogado, permite-lhe fiscalizar a defesa técnica, verificando

se o seu jus libertatis está sendo preservado de modo eficaz.171

É de se destacar o papel que o juiz deve exercer para assegurar o direito ao

conhecimento claro e preciso da imputação, notadamente no interrogatório. O

magistrado deve atuar de forma bastante didática, lendo a denúncia e explicando de

forma simples e acessível os termos específicos da linguagem forense, sempre

indagando do interrogando sobre a compreensão do significado do mencionado ato

processual.

6.4 Autodefesa positiva

Diante de uma acusação penal, o réu pode oferecer resistência positiva, trazendo à

lume argumentos e informações a uma eficaz defesa judicial. A denominada autodefesa

positiva desdobra-se nos direitos de presença, audiência, de postular em causa própria e

de livre escolha do defensor.

6.4.1 Direito de presença

Engana-se quem pensa que a simples constituição de um defensor técnico é

suficiente para que a ampla defesa seja resguardada. A atuação do advogado dependerá

170 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Id. Ibid, p. 31. 171 Op. cit., p. 708.

79

do auxílio de seu defendido. Assim, a presença do réu nos atos processuais é de muita

importância para a eficiência de sua defesa. Por mais que o advogado colha informações

e busque documentos do acusado, muitas vezes, no desenrolar de uma audiência,

surgem questionamentos que somente o réu poderia fazer. Cabe, dessa forma, o máximo

de cautela do advogado ao requerer a dispensa do seu cliente às audiências do processo,

notadamente quando se trata de réu preso, vez que, nesse caso, o contato com o

imputado se torna mais difícil.

Com o direito de presença, assegura-se ao acusado a possibilidade de se

manifestar sobre o material probatório em formação, bem como lhe permite uma

imediação com aquele que irá valorar esses elementos de informação: o juiz. 172

Algumas questões práticas por vezes surgem e merecem reflexão, ligadas que estão ao

direito de presença do réu.

a) A requisição do réu preso às audiências.

É preciso deixar claro que o réu preso preserva todos os direitos não atingidos pela

privação da liberdade. Conserva o sujeito submetido à custódia do Estado o direito de

defender-se por si próprio. Desse modo, o preso deve ser levado ao fórum para

comparecer a todas às audiências do processo, e não somente ao interrogatório. É

preciso, pois, que o advogado do preso pense com muita cautela antes de requerer a

dispensa do encarcerado às audiências designadas com a finalidade de oitiva de

testemunhas. Sem a presença do réu, o advogado estará privado de importante aliado,

apto a lhe fornecer valiosas informações, a sugerir perguntas ou apontar contradições e

inverdades em depoimentos. O defensor não pode esquecer que o seu compromisso é

com a defesa dos interesses de seu cliente e não com a conveniência do funcionamento

do aparato judiciário. Assim, a não-requisição do réu preso para as audiências em que

forem ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa é causa de nulidade, por importar

agressão direta e frontal à autodefesa. Razões de ordem administrativa invocadas pelo

juiz, tais como a necessidade de realização de despesas e movimentação de aparato

humano, não podem se sobrepor às garantias tuteladas pela Constituição.173

172 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit, , p. 432. 173 “...O acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do País, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm - nem podem ter - precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que

80

Se o Estado-Juiz entendeu necessária a prisão do réu antes do trânsito em julgado

de sentença penal condenatória, não pode transferir o ônus dessa opção em detrimento

do preso. Que o Estado assuma a responsabilidade pela condução dos custodiados às

audiências. A presença do réu no momento da produção da prova testemunhal é de

grande relevância174, pois ele poderá auxiliar seu advogado na formulação de perguntas

às testemunhas, por intermédio do juiz. Inexistindo a requisição do réu preso a qualquer

audiência do processo, há nulidade absoluta deste, por agressão direta e frontal à

autodefesa do acusado.175

Não se ignora o fato de que, em alguns casos, fica excessivamente dispendioso ao

Estado a condução de réus presos para comparecimento às audiências destinadas a

colher depoimentos de testemunhas de acusação ou de defesa. Por vezes, o réu se

encontra preso na cidade de Campo Grande/MS e a audiência será realizada em

Fortaleza/CE. Nessa situação, o custo e o trabalho a serem despendidos são realmente

elevadíssimos, o que justificaria a adoção da videoconferência.

Assim, pode a videoconferência ser utilizada para que o réu preso acompanhe as

audiências da instrução criminal, exceto o interrogatório.176 Ressalte-se que

determinados cuidados deverão ser tomados, com o objetivo de preservar as garantias

do acusado. Assim, devem ser assegurados:

i) a presença de um advogado na sala de videoconferência do presídio e outro no

fórum;

ii) comunicação sigilosa entre o acusado e seus defensores.

determina a Constituição. Doutrina. Jurisprudência. - O direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do "due process of law" e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU (Artigo 14, n. 3, "d") e Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA (Artigo 8º, § 2º, "d" e "f"). - Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados. (STF. 2.ª Turma. Rel. Min. Celso de Mello. HC 86634/RJ. j. 18.12.2006, DJ 23.02.2007, p. 40). 174 Nesse sentido: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 82. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte, em decisão redigida pelo juiz associado Black, no julgamento do caso Allen v. Illinois, assentou que “um dos mais básicos direitos contidos na cláusula de confrontação é o do acusado estar presente na sala durante cada um dos momentos processuais de seu julgamento”. (In RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 147). 175 GIANELLA, Berenice Maria. Op, cit., p. 167. 176 O tema será tratado no tópico 7.7.

81

iii) perfeito funcionamento do aparelho de videoconferência, permitindo-se a

visualização e a audição simultâneas entre as pessoas que ficarem no fórum e aquelas

que permanecerem no presídio;

iv) disponibilização de cópias dos autos para fins de consulta do réu preso e dos

defensores, durante a realização do ato.

b) retirada do réu da sala de audiências.

Dispõe o art. 217 do Código de Processo Penal:

Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará retirá-lo, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Neste caso deverão constar do termo a ocorrência e os motivos que a determinaram.

Dentre as prerrogativas inerentes à autodefesa está o direito de estar presente aos

atos da instrução criminal. É fundamental para a efetividade da ampla defesa a harmonia

entre o réu e o defensor. Assim, a participação do réu nas audiências é de grande valia

para o advogado, permitindo-lhe consultar seu cliente na colheita de informações que

lhe poderão propiciar uma atuação eficiente. O advogado não pode ser mera peça

decorativa no processo. Desse modo, por ser tão importante a presença do réu na

audiência é que o legislador só permite a sua retirada em caráter excepcional, baseada

em fatos concretos e não em meras suposições. Assim, somente se possibilita a retirada

do réu da sala de audiência quando presentes os seguintes requisitos:

i) o réu toma uma atitude intimidativa, por meio de gestos ou palavras, tentando

influenciar o depoimento da testemunha; e

ii) a testemunha, em razão da conduta do réu, nos moldes ditos anteriormente, se

acha constrangida com a presença do réu na mesma sala onde ela está depondo.

Assim, ao iniciar o depoimento de uma testemunha, que se apresenta

normalmente, sem aparentar sentir medo, o juiz não pode dela indagar se prefere depor

sem a presença do réu. Assim agindo, o juiz está prejulgando, tachando o réu de pessoa

perigosa, de modo a influenciar o depoimento da própria testemunha. Decerto, com essa

atitude do magistrado, a testemunha concluirá que o réu oferece realmente perigo, senão

o juiz não teria feito a pergunta. Tal modo de agir do juiz ainda implica prejuízo ao seu

direito de estar presente a todos os atos do processo. Situações como essas ocorrem com

freqüência e não se ajustam a uma postura do juiz como guardião dos direitos

fundamentais.

82

c) O direito de presença no tribunal popular do júri.

O tribunal do júri, instituição inserida topograficamente na Constituição no rol dos

direitos e garantias fundamentais (art. 5.º, XXXVIII), apresenta várias peculiaridades

em relação aos demais órgão do Poder Judiciário. No que toca ao estudo que se faz,

importa apresentar as seguintes características: i) os jurados são pessoas leigas, que não

precisam explicar suas decisões, expor a fundamentação de seus votos; e ii) a defesa do

réu deve ser plena.

A doutrina discute se ampla defesa e defesa plena são sinônimos ou se a plenitude

de defesa tem alguma especificidade. Deve ser entendido que a plenitude de defesa é

algo mais forte do que a ampla defesa. No julgamento pelo tribunal popular do júri, a

atuação da defesa deve ser mais eficiente do que nos demais procedimentos,

especialmente em razão do acusado estar sendo julgado por pessoas leigas (não só do

ponto de vista jurídico, mas também fático, pois não há como se perquirir se os jurados

têm pleno conhecimento dos autos) e que não fundamentam os seus votos. A ausência

de fundamentação dos votos é a principal razão da exigência de uma defesa plena no

júri. A atuação do advogado do réu deve ser eficiente, com exposição bastante clara dos

fatos, com a utilização de uma linguagem simples, acessível, com percuciente análise da

prova dos autos. A plenitude da defesa no júri, no entanto, não diz respeito somente ao

desempenho do advogado. O contributo do próprio acusado não pode ser desprezado.

O legislador processual penal preocupou-se com autodefesa do réu no tribunal do

júri, particularmente em dois momentos: para a intimação da decisão de pronúncia177 e

para a presença do acusado no julgamento. Nos crimes inafiançáveis, o réu deverá ser

intimado pessoalmente da decisão de pronúncia (art. 414 do CPP), sob pena de operar-

se a chamada crise de instância (suspensão do processo até que o réu seja intimado

pessoalmente da pronúncia, prevista no art. 413 do CPP).

Também no que toca às infrações inafiançáveis, segundo o Código de Processo

Penal, exige-se a presença do réu na sessão de julgamento.178 Em caso de ausência do

177 Pronúncia é a decisão do juiz que encerra a primeira fase no procedimento do júri, que é bifásico. A primeira fase é conhecida como judicium accusationis, abrangendo do recebimento da denúncia até a pronúncia, se for o caso. A segunda fase (judicium causae) inicia-se com o oferecimento do libelo e vai até o julgamento do réu no plenário do júri. Assim, segundo o art. 408 do CPP, caso o juiz entenda provada a materialidade e vislumbre indícios suficientes de autoria, julgará admissível a acusação, submetendo o acusado a julgamento pelos jurados. 178 Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal: “PENAL. PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO. CRIME INAFIANCAVEL. AUSÊNCIA DO RÉU: IMPOSSIBILIDADE. CPP, ART. 451, PAR. 1.. I. - Tribunal do Júri: julgamento: crimes inafiancaveis: a

83

réu, seu julgamento deverá ser adiado, de modo que não se permite o julgamento à

revelia (art. 451,§ 1.º do CPP). A necessidade da presença do réu nos julgamentos

encetados pelo Tribunal do Júri visa a atender ao comando constitucional da plenitude

de defesa, que exige não somente a atuação efetiva do advogado, mas que também não

olvida da autodefesa do réu. A ausência do imputado ao julgamento seria explorada pelo

promotor de justiça, que tentaria convencer os jurados de que aquela ausência

importaria reconhecimento da culpabilidade ou mesmo desprezo pela figura do jurado.

Assim, não seria difícil convencer pessoas leigas com esses argumentos.

A fundamentação das decisões judiciais, princípio constitucional expresso (art. 93,

IX da CF), não é aplicável no júri – no que se refere ao voto dos jurados – como já

mencionado. Essa dispensa de motivação está a exigir o cumprimento fiel das demais

garantias processuais do acusado. Assim, o direito que o réu tem de estar presente

durante o julgamento no plenário do júri é indiscutível, a fim de evitar influência no

convencimento dos jurados pelo simples fato de sua ausência. Nessa perspectiva,

lembra Walter Nunes da Silva Júnior, o Conselho de Sentença, composto por pessoas

leigas, em face da ausência do acusado, “tem a inclinação de condenar, diante do adágio

praticado pelo comum do povo de que quem não deve não teme e que quem foge tem

culpa no cartório”.179 Fauzi Hassan Choukr advoga a tese de que tornar facultativa a

presença do acusado ao julgamento do júri seria um estímulo a sua ausência,

acarretando provável diminuição do exercício da autodefesa, que, ao lado da defesa

realizada pelo defensor, compõem as bases de um processo penal moldado sob as tintas

da contrariedade efetiva.180

O direito de presença no júri deve ser respeitado, seja nos julgamentos de

acusados por delitos inafiançáveis, seja em razão da prática de crimes afiançáveis. A

circunstância de o crime admitir fiança ou não não pode resultar em menor preocupação

com o direito de defesa do réu. É bom se dizer, no entanto, que o § 2.º do art. 451 do

Código de Processo Penal admite que o julgamento seja realizado à revelia do réu

quando se tratar de delito afiançável, ad litteram: “Se se tratar de crime afiançável, o

não comparecimento do réu ocorrer sem motivo legítimo, far-se-á o julgamento à sua

revelia”. A plenitude de defesa no júri há de ser garantida em todos os julgamentos

presenca do réu e indispensavel. C.P.P., art. 451 e seu par. 1.. II.”. (2.ª Turma. HC 71923/PE. Rel. Min. Carlos Velloso., j. 08.11.1994. DJ 24.02.1996, p. 3678). 179 Op. cit., p. 720. 180 Código de Processo Penal: Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 692.

84

daquele tribunal popular. Assim, não se mostra compatível com a autodefesa o

dispositivo do CPP (art. 451,§ 1.º) que possibilita a realização do julgamento do réu,

mesmo com a sua ausência.181

A situação do réu no tribunal do júri é bem distinta daquela existente nos demais

tipos de procedimento, “[...] é substancialmente diferente pela própria natureza da

estrutura valorativa e procedimental que ornamentam a participação popular na

administração da Justiça”.182 No procedimento ordinário, caso o réu, citado

pessoalmente, não compareça ao interrogatório, essa ausência há de ser interpretada

como exercício do direito ao silêncio. Assim, nesse caso, não há razão para que o juiz

determine a condução coercitiva do réu (art. 260 do CPP), pois seria absurdo exigir a

presença do réu tão-somente para permanecer em silêncio na frente do juiz. O

magistrado togado, na hipótese do não-comparecimento do acusado ao interrogatório,

não poderia valorar essa ausência, de forma que o acusado não seria prejudicado por seu

comportamento. O único prejuízo que poderá ser mencionado, quando o réu falta ao

interrogatório, é a perda da oportunidade de tentar influenciar o juiz. Situação diversa

ocorre no júri, pois os sete jurados poderão ser influenciados em virtude do não-

comparecimento do réu em plenário. As peculiaridades que envolve, o julgamento por

pessoas leigas exigem que o direito de presença no júri ganhe outra feição.

6.4.2 Direito de audiência

O direito de audiência é muitas vezes confundido com a própria autodefesa. É o

direito que o réu tem de apresentar, por si, sua narrativa sobre a acusação posta,

buscando influenciar aquele que irá julgá-lo. Em uma sistema processual acusatório,

não sendo o réu um mero objeto de investigação, sua participação no processo aufere

relevo especial.

É precisamente no interrogatório que o direito de audiência tem a sua maior

expressividade, pois nesse momento não há qualquer intermediário para transmitir os

argumentos do acusado ao juiz. Assim, o tema será tratado no próximo capítulo.

181 Nesse sentido: CHOUKR, Fauzi Hassan. Op. cit. p. 692. 182 CHOUKR, Fauzi Hassan. Id. Ibid. p. 692.

85

6.4.3 Direito de postular em causa própria

Certamente, o defensor do acusado, constituído ou nomeado, detém – pelo menos

em tese – as melhores condições de apresentar ao órgão jurisdicional os requerimentos

em favor dos interesses do réu. Essa maior capacidade técnica do patrono do imputado,

porém, não quer significar a completa ausência de articulação do seu constituinte. O

direito processual de postular em causa própria confere ao imputado a possibilidade de

intervir ativamente no processo, formulando requerimento de diligências, oferecendo

defesa prévia, interpondo recursos, impetrando habeas corpus, ajuizando revisão

criminal e elaborando requerimentos na fase de execução da pena.

Não se olvida o fato de que o acusado possui capacidade argumentativa, podendo,

assim, tomar posição sobre as provas colhidas nos autos.183 O uso da capacidade

argumentativa do réu servirá não somente para prática de determinados atos

processuais, mas também para elaborar a tese defensiva, em conjunto com seu

advogado.

No campo penal, há determinados recursos que exigem, já para a análise de seu

juízo de admissibilidade, a mostra de sua fundamentação, a exposição das razões. Assim

ocorre com os embargos infringentes, o recurso especial, o recurso extraordinário, os

embargos de divergência. Nesses casos, a fim de que se dê maior efetividade ao direito

de autodefesa do imputado, tratando-o como um autêntico sujeito processual, deve ser

permitida a interposição dessas espécies de recursos pelo próprio réu. Decerto,

permanece a obrigatoriedade do oferecimento de razões, mas, quando houver a

interposição pelo réu, sem assistência de advogado, cabe ao tribunal a quo determinar a

intimação de advogado dativo ou defensor público para a apresentação das razões

recursais.

183 José Lobo Moutinho denomina o direito de postular em causa própria de direito de intervenção promotiva no processo. Sobre a amplitude desse direito, discorre o professor lusitano: “Neste direito de intervenção promotiva, cabe, antes de mais, o direito a tomar posição sobre o objecto do processo, participando, assim, no debate em que consiste o processo, que já se referiu como um dos possíveis significados do direito à audiência. [...] Aqui cabe ainda o direito de intervir em incidentes processuais, designadamente na constituição de assistente, nas nulidades, nos impedimentos. [...] Aqui cabe, finalmente, o direito de oferecer provas e requerer diligências. [...] É seguro que as diligências requeridas não têm necessariamente de ser praticadas. Não obstante, a peculiar posição do arguido tem reflexos que se podem revelar de grande importância: os seus requerimentos não podem deixar de ser apenso aos autos”.(Arguido e Imputado no Processo Penal Português. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2000, p.48).

86

No que tange ao habeas corpus, ação constitucional que tem por finalidade tutelar

o direito de locomoção, a legitimidade para a impetração é bastante ampla. Além do

próprio acusado, podem impetrar o writ seu advogado, o Ministério Público bem como

qualquer pessoa, física ou jurídica, em favor do paciente. Também os juizes e tribunais

poderão, ex officio, conceder a medida apta a resguardar o direito de locomoção. Esse

alargamento para a impetração do habeas corpus encontra justificação na necessidade

de uma pronta e eficaz restauração do direito de liberdade agredido indevidamente, em

face da prática de ato eivado de ilegalidade ou abuso de poder.

A ampla legitimidade para a impetração de habeas corpus, na óptica de Walter

Nunes da Silva Júnior, representa o ideal de uma justiça democrática, sensível aos

reclamos de quem tem sua liberdade cerceada de forma ilegal. Para o autor, exigir a

atuação de um advogado para a impetração do remédio em análise tem o condão de

impedir “o instinto natural de proteção à liberdade”184, seja pelos obstáculos que se

apresentam para a pronta constituição de um profissional habilitado, seja pela carência

de recursos financeiros para tal contratação.185

A revisão criminal é uma ação autônoma de impugnação dirigida contra sentença

condenatória ou sentença absolutória imprópria186, acobertadas pelo manto da coisa

julgada. Segundo o art. 621 do CPP, cabe revisão criminal quando a sentença ou

acórdão transitados em julgado: a) for contrária ao texto expresso de lei ou à evidência

dos autos; b) quando se fundarem em depoimentos, exames ou documentos

comprovadamente falsos; c) quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de

inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autoriza diminuição

especial da pena. O próprio condenado poderá ajuizar a revisão criminal (art. 623 do

CPP), elaborando de próprio punho a petição e assinando-a, sendo dispensada a

subscrição por advogado. Observe-se que o fundamento do pedido revisional deve estar

previsto em uma das hipóteses do art. 621 do CPP, sendo, portanto, uma fundamentação

vinculada. Desse modo, a fim de garantir com maior eficiência o direito de liberdade do

autor da revisão criminal, ao receber um pedido revisional subscrito pelo próprio réu,

cabe ao tribunal competente para julgar o pedido nomear advogado dativo ou proceder à 184 Op. cit., p. 716. 185 Id. Ibid., p. 716. 186 A sentença absolutória imprópria é aquela em que o juiz, reconhecendo que o réu, ao tempo da realização da conduta era inimputável, por não possuir condições de entender o caráter ilícito do ato e nem de determinar-se de acordo com esse entendimento, demonstrando a materialidade e a autoria delitiva, não podendo condenar o acusado inimputável, impõe uma medida de segurança (tratamento ambulatorial ou internação).

87

indicação de defensor público para acompanhar a tramitação do feito, ou, se for o caso,

emendar a petição inicial, enquadrando a situação narrada em uma das hipóteses que

torna admissível o pleito revisional.

É de ser ressaltada a possibilidade que o condenado tem de formular pedidos na

execução penal, momento crucial do processo.187 Estando preso o condenado, torna-se

mais difícil a ele buscar o auxílio de advogado ou mesmo da Defensoria Pública. Na

condição de encarcerado, não são apenas as grades da cela que se fecham, mas também

é afastada qualquer possibilidade de trabalho. Sem dinheiro, o acompanhamento na

execução da pena para o sentenciado torna-se quase uma utopia. Os amigos, pouco a

pouco, desaparecem, a família distancia-se. A ausência de assistência jurídica nos

presídios é um dos principais problemas enfrentados pelo sistema carcerário,

produzindo nos presos grande revolta. É a denominada cadeia vencida. São pessoas que

já cumpriram pena ou que têm direito a progressão de regime ou livramento condicional

e que permanecem encarceradas, à míngua de assistência jurídica e de uma apreciação

de seus pleitos que se amontoam nas prateleiras da secretaria do juízo das execuções

criminais.

A ausência de assistência jurídica, porém, não é a única preocupação a ser

debatida e enfrentada. É preciso otimizar o fornecimento de certidões carcerárias,

exames criminológicos, certidões de antecedentes criminais, declaração de dias

trabalhados e relatórios de assistentes sociais. Depois de muita batalha para conseguir

esse calhamaço de documentos, o apenado ainda espera o trâmite do seu pedido na Vara

de execuções criminais, o que acarreta tempo considerável. Muito se fala na adoção de

novas tecnologias no campo processual – como do interrogatório virtual – mas a

otimização no fornecimento de certidões (criminais e carcerárias), um cadastro seguro

sobre a situação de cada preso, um célere fornecimento de documentos pelos presídios e

maior agilidade na apreciação de pedidos na Vara de execuções criminais acarretaria

uma execução da pena mais humana, evitando rebeliões e o cometimento de crimes no

interior das prisões. Seria um grande avanço para a melhoria da prestação jurisdicional

na fase da execução da pena, além de ocasionar significativa melhoria no sistema

prisional.

Diante desse quadro desolador, possui o condenado legitimidade para,

pessoalmente, requerer medidas na execução da pena, tais como progressão de regime, 187 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Op. cit., p. 713.

88

livramento condicional, autorização para trabalho externo e indulto. Após a formulação

do pedido e sua apresentação no juízo das execuções, deve o magistrado nomear

advogado dativo ou indicar defensor público para acompanhamento do processo. Assim,

o acesso à justiça estaria sendo assegurado bem como o direito à assistência jurídica.

Defendendo a amplitude do jus postulandi nessa fase processual, Walter Nunes da Silva

Júnior observa: “Só os condenados realmente abastados ou que, mesmo presos,

pertencem a organizações criminosas ou continuam na prática de crimes é que possuem

assistência de advocacia na fase da execução penal”.188 Destarte, restringir o

conhecimento dos pedidos feito na execução penal apenas aqueles que forem subscritos

por advogado configura lesão ao direito de cada condenado de postular em causa

própria. Não é a situação ideal a apresentação de pedidos pelo próprio condenado, mas o

reconhecimento de sua capacidade postulatória é o mínimo que se espera de uma justiça

penal acessível aos reclamos dos cidadãos mais humildes e que se encontram em

situação que dificulta sobemaneira o exercício dos direitos.

6.4.4 Direito de escolha do defensor

Para o bom e efetivo desempenho da atividade defensiva, torna-se preponderante a

harmonia entre o réu e seu defensor. Defesa técnica e autodefesa interagem189,

funcionando como o sistema de vazos comunicantes: não há como baixar o nível de

uma sem baixar o da outra. A defesa técnica será tanto mais efetiva quanto maior for a

colaboração do réu, municiando o advogado com informações e argumentos. Da mesma

forma, o advogado tem importante missão no resguardo dos interesses do acusado

quando do exercício de autodefesa, auxiliando-o na busca da melhor tese a ser esposada

por ocasião do interrogatório, ou ainda para permanecer em silêncio.

188 Id. Ibid., p. 714. 189 Para José Raul Gavião de Almeida, para que se tenha o efetivo exercício da ampla defesa, “A defesa técnica e a autodefesa devem se expressar conjugadamente”. (Interrogatório à Distância. Tese (Doutorado).Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2000, p. 120).

89

Autodefesa e defesa técnica caminham lado a lado, ambas objetivando a

realização de uma defesa efetiva. Esta efetividade ocorrerá sob uma relação de

comunicação, colaboração e coordenação contínua entre o acusado e seu defensor.190

Para que haja essa harmonia entre réu e advogado, impõe-se assegurar ao

imputado o direito de escolher o seu defensor, pois “a relação que se deve estabelecer

entre os dois é de recíproca confiança”.191 Vicente Gimeno Sendra192 salienta que o

direito a escolha do advogado de confiança representa o limite da disponibilidade do

indisponível direito à defesa técnica.

O STF já decidiu que a escolha do advogado pelo réu é ato personalíssimo. Assim,

o Excelso Pretório declarou a nulidade de julgamento de apelação realizado dois dias

após pedido de adiamento feito por advogado constituído, que renunciara ao mandato

outorgado. No caso, entendeu-se que, ante a renúncia do advogado constituído, deveria

ter tido o réu oportunidade de constituir novo defensor em prazo razoável, e não

realizado o julgamento sem que houvesse chance de constituição de novo patrono bem

como do estudo dos autos por parte deste.193

Em outro julgado, o STF entendeu que, quando houver renúncia do advogado

constituído, não pode o juiz, de plano, nomear advogado dativo ou indicar defensor

público. Cabe ao magistrado determinar a intimação do réu para a constituição de novo

defensor em prazo razoável. Somente após o transcurso in albis do prazo estipulado, é

que se torna lícita a nomeação de defensor para o acusado. 194 A decisão do Supremo

Tribunal Federal reconheceu a existência do direito de escolha do defensor como

aspecto ineliminável da autodefesa, tratando o acusado como personagem importante do

processo penal. Se é o acusado que sofre com a instauração de um processo penal e é

quem arcará com suas conseqüências, nada mais coerente do que deixar em suas mãos a

opção pelo profissional encarregado pela tutela de seus direitos.

190 BETOCCHI, Giuseppina. “Il Binomio Imputado-Difensore: Garanzie Concrete di Effettività della Difesa e Criteri de Composizione delle Situazioni di Conflitualità”. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Ano XXVI. Milano: Giuffrè Editore, 1983, p. 80. 191 FERNANDES, Antônio Scarance. Op. cit. p. 300. 192 Constitucion y Proceso. Madrid: Editorial Tecnos S/A, 1988, p. 97. 193 STF. 2.ª Turma. HC 83411-6/PR. j. 09.12.2003. DJ 11.06.2004. p. 16. 194 No voto do Ministro Celso de Mello, colhe-se: “o réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. essa liberdade de escolha traduz, no plano da "persecutio criminis" especifica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela constituição. cumpre ao magistrado processante, em não sendo possivel ao defensor constituido assumir ou prosseguir no patrocinio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro advogado. antes de realizada essa intimação - ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado - não e licito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do réu”. (STF. 1.ª Turma. HC 67755/SP. j. 26.06.1990, DJ 11.09.1992, p. 14714).

90

Assevera-se, pois, que defesa técnica e autodefesa são complementares. A atuação

do advogado é importante para que o acusado realize autodefesa de maneira eficiente ao

passo que o trabalho do acusado é fundamental para o bom desempenho do defensor.

Não se pode tratar a autodefesa e a defesa técnica como realidades absolutamente

estanques, dissociadas.

6.5 Autodefesa negativa

A defesa pessoal do réu pode ocorrer também de forma passiva, sem que isso vá

prejudicá-lo de qualquer modo. No processo penal, a inatividade do imputado não pode

ensejar qualquer presunção de veracidade dos fatos articulados na petição inicial

acusatória.

6.5.1 Privilégio contra a auto-incriminação

O princípio segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si é

consagrado na máxima nemo tenetur se detegere, nemo tenetur se ipsum accusare, que,

em sua literalidade, significa que ninguém está compelido a se descobrir.195 Sua origem

não é certa, contudo, o privilégio foi consagrado na jurisprudência estadunidense no

final do século XVII, tendo sido incorporado à Constituição por intermédio da Quinta

Emenda: “ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de

testemunha contra si mesmo”.

No direito anglo-americano, é expresso no privilege against self incrimination.

Seu surgimento está ligado à necessidade de contenção do arbítrio das autoridades

policiais contra suspeitos, notadamente no momento da prisão. Stephen A. Saltzburg e

Daniel J. Capra196 apontam os fundamentos do privilégio:

a) proteção do cidadão inocente. Eventuais depoimentos mal prestados em razão

do despreparo ou nervosismo de pessoas inocentes não poderiam prejudicá-las.

195 QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4. 196 Basic Criminal Procedure. 2.ª edition. Saint Paul: West Publishing CO, 1997, p. 331-332.

91

b) Evitar a opção entre três escolhas difíceis (The Cruel Trilemma). O Estado não

deve submeter o indivíduo entre escolher a auto-incriminação, cometer o crime de

perjúrio se não falasse a verdade ou receber sanções por descumprimento de ordem

judicial (contempt of court).

c) Pouca credibilidade de depoimentos forçados. Não havendo o privilégio,

haveria uma tendência na busca para a obtenção de confissões, estimulando a utilização

de métodos que viciassem a vontade do interrogando.

d) Corolário do sistema processual acusatório. Não sendo um mero objeto da

investigação – característica inerente ao sistema inquisitivo, o indiciado não pode ser

forçado a colaborar na colheita de provas contra si.

e) Necessidade de deter abusos da Polícia. O privilégio protege indivíduos de

práticas policiais arbitrárias, que seriam utilizadas na tentativa de colher declarações

verdadeiras dos suspeitos.

f) Equilíbrio na relação Estado-indivíduo. Evita-se que o indivíduo arque com o

ônus pertencente ao Estado de colher os elementos aptos a provar a culpabilidade do

réu.

g) Preservação da moralidade dos atos oficiais. O poder público não pode exigir

do indivíduo um comportamento moralmente decente se ele próprio utiliza-se de meios

condenáveis.

h) Proteção da privacidade do cidadão. O privilégio evita a invasão da intimidade

das pessoas.

i) Livre expressão do pensamento. Forçar o indivíduo a prestar declarações

quebraria a livre expressão do pensamento, que protege as pessoas que prefiram não

externar qualquer opinião ou crença.

O nemo tenetur se detegere, do ponto de vista histórico, encontra-se ligado ao

interrogatório do réu, surgindo como garantia em favor do acusado, que não podia ser

mais considerado apenas como um mero objeto de prova.197 A garantia em foco deita

raízes no Antigo Testamento, na Epístola de São Paulo aos Hebreus.198 O princípio se

197 SALTZBURG, Stephen A; CAPRA, Daniel J. Op. cit., p. 8. 198 Afirmou São Crisóstomo: “Não te digo que te exponhas em público ou que te acuses junto a outros,

porém quero que obedeças ao profeta”. (TEDESCO, Ignácio F. “La libertad de declaración del imputado: uma análisis histórico-comparado. In HENDLER, Edmund S. Las garantias penales e procesales. Buenos Aires: Editora Del Puerto, 2004, p. 30).

92

fortaleceu no Iluminismo, período marcado pelo reconhecimento de garantias penais e

processuais penais, repelindo-se a tortura e o dever do réu de dizer a verdade, sendo

reconhecido como ato atentatório à natureza do homem a admissão de fatos

incriminadores.199

Na Modernidade, o privilégio contra a auto-incriminação insere-se nas principais

garantias do processo penal acusatório, “resguardando a liberdade moral do acusado

para decidir, conscientemente, se coopera ou não com os órgãos de investigação e com a

autoridade judiciária”.200

Não há dúvidas de que o acusado pode fazer a opção por aceitar a realização de

provas que lhe possam prejudicar, consentindo participar da reconstituição simulada dos

fatos, fornecendo padrões gráficos para a feitura do exame grafotécnico, submetendo-se

ao teste do bafômetro ou mesmo admitindo a prática do delito em seu interrogatório.

Nesses casos, há de fato uma contribuição do acusado que pode ser utilizada contra ele,

podendo resultar, inclusive, na sua condenação. Deve ser observado é se esse contributo

do réu foi fruto de uma manifestação livre e consciente de vontade, sem que houvesse

qualquer forma de pressão ou armadilhas por parte das autoridades encarregadas da

persecução penal.

O princípio do nemo tenetur se detegere está relacionado à esfera de liberdade dos

cidadãos, que não podem ser constrangidos a atentar contra seus interesses, em nome da

busca pela verdade. Nesse passo, adverte Manuel da Costa Andrade, “Só como

expressão de sua liberdade pode alguém contribuir para a própria condenação”.201 O

valor liberdade, portanto, há de ser preservado e não pode ser afastado sob o pretexto de

facilitação da tarefa de investigação do Estado, na esteira do pensamento do professor

lusitano: “Uma liberdade que terá de preservar-se incondicionalmente e perante a qual

terá de recuar o interesse na descoberta da verdade”.202

Observa-se que tal princípio é um exemplo claro de que o processo penal é uma

garantia do indivíduo em face do Estado. Uma proteção do cidadão contra eventuais

excessos cometidos pelos órgãos estatais na persecução penal. Proteção essa 199 Adriana Dias Paes Ristori aponta: “A proteção absoluta contra a tortura e tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos, como direito fundamental que também tutela a dignidade do homem, guarda estreita relação como o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, pois evidencia a impossibilidade do emprego de qualquer desses meios para obter a colaboração do argüido na investigação criminal”. (Op. cit. p. 76). 200 QUEIJO, Maria Elizabeth, Op. cit. p. 27. 201 Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 87. 202 ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit. p. 87.

93

indispensável e que, ao lado de várias outras, objetivam diminuir a diferença brutal de

forças entre o indivíduo e o Estado, que, durante a persecução penal, monopoliza a

tarefa de realizar a investigação criminal por meio da polícia judiciária, promove a ação

penal com o Ministério Público e profere a decisão final sobre a inocência ou

culpabilidade do réu, por intermédio do juiz.

É preciso deixar claro que autodefesa, nemo tenetur se detegere e direito ao

silêncio são conceitos distintos. O privilégio contra a auto-incriminação é uma

manifestação da autodefesa – autodefesa negativa – do qual o direito ao silêncio é uma

expressão. Assim, o direito de não produzir provas contra si abrange o direito ao

silêncio, sendo ambos decorrências da autodefesa. A garantia do nemo tenetur se ipsum

accusare pode ser invocada em todas as fases da persecução penal, devendo ser

respeitada pelas autoridades policiais e judiciais.203

6.5.1.1 Destinatários

Faz-se necessário estabelecer os destinatários da garantia do nemo tenetur se

detegere, bem como o período em que esta deve ser observada. Podem invocar o

privilégio o suspeito, o indiciado, o acusado, a testemunha, bem como toda e qualquer

pessoa que venha a ser chamada a produzir uma prova com o condão de trazer

elementos que possam ser utilizados para a sua incriminação.

Em muitas ocasiões, a autoridade policial ou de Comissões Parlamentares de

Inquérito convocam suspeitos a prestar depoimento na condição de testemunha,

advertindo-as do compromisso de dizer a verdade e das penas cominadas ao crime de

falso testemunho. Essa prática indevida, bastante corriqueira, tem por finalidade a

obtenção de informações prejudiciais ao depoente, que não é esclarecido do direito de

ficar em silêncio. Assim, caso o suspeito ou indiciado preste declarações com a

advertência de dizer a verdade ou sem o esclarecimento de permanecer em silêncio, em

sede extrajudicial, as informações colhidas contra o depoente não podem ser usadas

contra ele a fim de subsidiar uma denúncia ou um pedido de medida cautelar. A justa 203 Nessa trilha, arremata Manuel da Costa Andrade: “[...] enquanto emanação normativa da dignidade humana e do livre desenvolvimento da personalidade, o princípio nemo tenetur não comporta descontinuidades, sequer graduações, em função das sucessivas fases do processo ou da intervenção das diferentes instâncias formais. Irrestritamente válido em relação às autoridades judiciárias, terá de sê-lo igualmente perante os órgãos da polícia criminal”. (Op. cit., p. 131).

94

causa para a ação penal não pode ser formada por elementos informativos obtidos em

vulneração à autodefesa.204 Decerto, em muitas ocasiões, a autoridade que está

presidindo o depoimento de uma testemunha só vem a saber este, diante das declarações

prestadas, está se incriminando, no curso do depoimento. Nesse caso, deve suspender o

ato e passar a ouvi-la com a cientificação do direito de não responder às perguntas que

possam vir a prejudicá-la.

No que concerne à testemunha, o privilégio só pode ser invocado em relação às

perguntas que levam à auto-incriminação. Quanto às outras perguntas, persiste o dever

da testemunha de dizer a verdade, podendo esta sofrer as sanções do falso testemunho.

A garantia pode ser levantada durante toda a persecução penal, seja na fase do

inquérito ou ainda no momento do processo penal, bem como se não foi formalizado

qualquer procedimento.

6.5.1.2 Alcance do nemo tenetur se detegere

Para dizer as espécies de meios probatórios que podem ser utilizados no processo

penal com observância do nemo tenetur se detegere, é preciso tecer algumas

considerações. Antes de mais nada, havendo a concordância do imputado, há

possibilidade de realização da prova, desde que não haja risco à saúde ou à integridade

física dele. Evidentemente, não se pode constranger o indivíduo, mesmo com o seu

consentimento, a submeter-se a alguma perícia ou exame que submeta a risco sua

integridade física e mental. Tal consentimento é irrelevante, uma vez que estão em jogo

bens indisponíveis.

Não havendo concordância do imputado, há que se perquirir a juridicidade da

colheita do meio de prova com maior cautela. Dividindo-se as provas que dependam ou

não da colaboração do imputado, cabe concluir que o Estado deve buscar a realização

de provas que dispensem a participação do investigado, em homenagem ao nemo

tenetur se detegere.

204 Vicente Gimeno Sendra aponta que uma das maiores violações que podem ocorrer ao direito de defesa consiste na tomada de declarações do indiciado na qualidade de testemunha. (Derecho Procesal Penal. Madrid: Colex, 2004, p. 449). Decerto, impõe-se ao indiciado o constrangimento de forçá-lo a prestar declarações que possam vir a incriminá-lo. Ora, imaginará o depoente que se não responder às perguntas sua situação ficará ainda mais agravada. Além de responder pelo crime inicialmente atribuído, poderá enfrentar uma nova acusação por falso testemunho.

95

Com o avanço tecnológico e a ampliação do serviço de inteligência das polícias,

há amplas possibilidades de obtenção de provas, sem que haja a necessidade de

contributo do réu. Assim, as gravações telefônicas determinadas com ordem judicial e a

expedição de mandados de busca e apreensão constituem exemplos claros de que é

possível obter informações sobre a materialidade e a autoria de um crime, sem forçar o

imputado a trazê-las a lume.205

Quando se assevera que o réu não pode ser constrangido a produzir provas contra

si, não se exclui a possibilidade de que o Estado colha provas que dependam da

participação do imputado, desde que essa participação seja passiva, meramente

contemplativa e que não sejam utilizados métodos probatórios invasivos. “Consideram-

se invasivas as intervenções corporais que pressupõem penetração no organismo

humano, por instrumentos ou substâncias, em cavidades naturais ou não”.206 Como

exemplo desses tipos de prova, encontram-se os exames de sangue, ginecológico,

identificação dentária, endoscopia e exame do reto. O exame de sangue é bastante usado

para verificação de embriaguez, bem como da presença de drogas no organismo.

Do seu turno, as provas não invasivas correspondem a vários exames periciais, tais

como “os exames de materiais fecais, exames de DNA realizados a partir de fios de

cabelo e pêlos; as identificações dactiloscópicas, de impressões dos pés, unhas e palmar

e também a radiografia, empregada em buscas pessoais”.207 Os exames de urina,

esperma e saliva podem ser realizados por métodos invasivos ou não invasivos. Assim,

pode ser realizado exame com base em esperma deixado em roupas da vítima em crime

de estupro, por exemplo. Nesse caso, não há que se falar em prova invasiva e, por

conseqüência, em ilicitude da prova.

Assim, admite-se a realização de provas que exijam apenas uma colaboração

meramente passiva do investigado, sem que isso implique a violação de qualquer direito

individual. Assim ocorre com relação ao reconhecimento208 e à busca pessoal. Ressalte-

se que, entretanto, mesmo admitindo-se a condução coercitiva do réu para participar do

205 Em casos narrados pela crônica forense, noticiam-se exames de DNA realizados na saliva do suspeito deixada em xícara de café “gentilmente” servido pela autoridade policial ou ainda na saliva encontrada em “ponta de cigarro” jogada pelo suspeito em cesta de lixo da delegacia de polícia. 206 QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit. p. 245. 207 Id. Ibid, p. 246. 208 Segundo mostra João Gualberto Garcez Ramos, no julgamento do caso United States v. Wade, em 1967, a Suprema Corte estadunidense entendeu não haver qualquer agressão ao privilégio contra a auto-incriminação forçada submeter uma pessoa investigada da prática de um crime ao reconhecimento. (Op. cit. p. 183).

96

reconhecimento, não se pode exigir que ele faça caretas, sorria, posicione-se de

determinada forma. Repise-se: a colaboração é meramente passiva.

Desse modo, a recusa do suspeito em colaborar na realização de provas não pode

resultar em nenhuma conseqüência, seja no plano processual, seja no plano material.

Assim, o suspeito que não participa da reconstituição do crime não pode ser conduzido

ao local onde será realizado o ato. Além de não ser forçado a participar da colheita da

prova, essa recusa não pode ser interpretada em prejuízo de sua defesa, nem muito

menos configurar crime de desobediência.209

6.5.2 Direito ao silêncio

É comum confundir-se o privilégio que veda a auto-incriminação com o direito ao

silêncio.210 O privilégio contra a auto-incriminação é uma garantia mais ampla do que o

direito ao silêncio, sendo tais garantias modalidades do exercício da autodefesa. Em

face da relevância do tema, no entanto, optou-se por um estudo à parte de tal

manifestação da autodefesa.

O direito ao silêncio está previsto na Constituição Federal, no art. 5.º, LXIII, ao

estatuir que: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer

calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Dentre nossas

constituições, foi a primeira a tratar de forma expressa desse direito.

O direito de permanecer calado consiste na possibilidade conferida ao suspeito,

indiciado, testemunha, acusado a até mesmo à vítima211 de não prestar qualquer

209 Maria Elizabeth Queijo ressalta que,”por incidência do nemo tenetur se detegere, não se admitem mediadas coercitivas contra o acusado para compeli-lo a cooperar na produção das provas; a recusa do réu não configura crime de desobediência; e não se permite extrair da sua recusa a veracidade da imputação, nem presunção de culpabilidade”. Op. cit. p. 268. 210 Nesse diapasão, o autor português Antônio Henrique Gaspar disserta: “O direito ao silêncio, ou direito de não contribuir para a auto-incriminação, garante que o arguido não possa ser constituído, contra a sua vontade, em fonte de prova contra si próprio, e que não possa ser compelido a testemunhar em seu desfavor, o suspeito ou arguído não pode ser coagido, forçado ou levado por meios enganosos a ser uma imediata fonte de prova contra si próprio: nemo tenetur se prodere tenetur”. (“Os Novos Desafios do Processo Penal no século XXI e os Direitos Fundamentais: um Difícil Equilíbrio”. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 15. n.º 02. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 264). 211 Nesse passo, Adriana Dias Paes Ristori arremata: “Deve ainda ser estendida a garantia à própria vítima, já que ela não pode ser constrangida a revelar qualquer detalhe que possa prejudicar, não sendo obrigada, portanto, a responder a perguntas que a incriminem. Merece, pois, tratamento igualitário ao destinado ao argüido”.(Sobre o Silêncio do Argüido no Interrogatório no Processo Penal Português. Coimbra: Almedina, 2007. p. 108).

97

declaração que os possa incriminar, sem que isso lhes acarrete qualquer prejuízo. Ainda

que ouvido na qualidade de testemunha, não se pode exigir o dever de dizer a verdade

sobre fatos que possam levar o indivíduo à edificação de elementos probatórios que

poderão ser utilizados contra si. Segundo Maria Elizabeth Queijo, “É o direito de calar,

reconhecimento da liberdade moral do acusado”.212

Trata-se de direito oponível em qualquer fase da persecução penal.213 Pode o

indiciado permanecer calado diante das perguntas formuladas pela autoridade policial

ou pelo juiz, sem que esse comportamento resulte em nenhuma conseqüência prejudicial

a ele. No momento da prisão, diante dos agentes policiais, o flagranteado pode invocar o

silêncio. Modernamente, segundo aponta Roberto Delmanto Júnior, foi com o célebre

julgamento do caso Miranda vs. Arizona que se criou a denominada Miranda´s rule,

garantindo-se ao preso o direito de ficar calado e de ter assegurada a presença de um

advogado.

O silêncio é uma forma de defesa do réu, a autodefesa negativa. Nessa trilha,

Adriana Dias Paes Ristori salienta que o direito ao silêncio “está inserido na defesa

pessoal, ao passo em que é garantida ao argüido a liberdade de autodeterminação, para

decidir se colabora ou não com a persecução criminal ao ser interrogado”.214 Com

relação ao conceito exposto, há de ser salientado que o direito ao silêncio não é

exercitável apenas no interrogatório. Em diversas oportunidades, despidas de

solenidades, agentes policiais buscam colher do indiciado informações prejudiciais a

ele: no momento em que é preso, no trajeto à delegacia, em conversas informais com o

indiciado. Nessas ocasiões o silêncio pode ser invocado.

Várias razões podem levar o réu a preferir permanecer calado, no lugar de

responder às indagações da autoridade judiciária ou policial. A atitude do réu de utilizar

o silêncio pode ser-lhe mais vantajosa. David Teixeira de Azevedo215 aponta algumas

dessas situações:

212 Id. Ibid.. p. 190. 213 “[...] Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policias ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito ‘de permanecer calado’. Esse direito – que se reveste de valor absoluto – é plenamente oponível ao Estado e aos seus agentes. Atua como poderoso fator de limitação das próprias atividades penais-persecutórias desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes e Tribunais)”.(STF. 1.ª Turma. HC 68929-9/SP. Rel. Min. Celso de Mello. j. 22.10.1991, DJ 28.08.1992). 214 Op. cit., p. 69. 215 Op. cit., p. 290.

98

a) Desconhecimento da acusação formulada.

Tratando-se de acusação que envolve fatos complexos, de compreensão difícil

para o leigo. Sem saber ao certo de que está sendo acusado, é preferível calar-se.

b) Situação emocional do réu.

Quando interrogado, principalmente quando da lavratura do auto de prisão em

flagrante, o imputado não se encontra equilibrado emocionalmente. Tal fato ocorre por

diversos motivos. O interrogando, ainda que não seja inimputável, pode sofrer de algum

transtorno mental ou mesmo estar abalado em suas emoções, diminuindo o seu

discernimento.

c) Insegurança pela ausência do defensor de confiança.

A lei 10.792/2003 veio dissipar quaisquer dúvidas sobre a obrigatoriedade da

presença de advogado no interrogatório judicial; no entanto, não é imprescindível a

presença do defensor no interrogatório realizado na polícia. Assim, prefere o indiciado

falar somente perante o magistrado, acompanhado de seu patrono, após ter recebido as

orientações deste. Em juízo, o acusado pode optar pelo silêncio quando seu advogado

constituído não comparece, sendo nomeado para o ato um profissional no qual o réu não

deposita sua confiança ou que julga não ter recebido orientação adequada.

d) Evitar sofrimento.

A prática de determinados crimes é apta a produzir no próprio acusado grande

sofrimento, preferindo o réu ficar em silêncio para não reconstruir em sua memória

aqueles fatos. O imputado pode estar profundamente arrependido, ele próprio considera

repugnante a sua conduta. A vítima do delito era pessoa querida do interrogando. Nesse

caso, o réu vê no interrogatório verdadeiro martírio, tendo que relembrar o ente

próximo, do ato praticado.

e) Proteção de outros envolvidos na prática delituosa.

Com medo de represálias, o acusado fica em silêncio para não narrar a

participação de outras pessoas no crime. Também o silêncio pode ser utilizado para não

falar do envolvimento de um ente querido. Não são raros casos em que o pai prefere

ficar anos preso, pagando por um crime que não cometeu, a ver seu filho ser submetido

a essa situação vergonhosa. Proliferam nesses casos os sentimentos de medo ou de

proteção.

99

Decerto, não é exigível do juiz ficar aguardando, ad aeternum, o atingimento do

perfeito equilíbrio emocional do réu para vir a interrogá-lo; no entanto, vedado está ao

magistrado constranger o interrogando a falar de algo sobre o qual este não tem pleno

conhecimento, ou de fatos que lhe inflijam sofrimento. Há que se ponderar o interesse

do Poder Judiciário em não admitir manobras procrastinatórias do acusado, com a

garantia da autodefesa negativa, resguardando-se a liberdade do imputado ao prestar

declarações.216

Há discussões sobre a extensão do direito ao silêncio, analisando-se se o direito de

permanecer calado se restringe ao mérito217 da acusação ou se envolve aspectos

relativos à identidade e qualificação do acusado.

Para Roberto Delmanto Júnior, o direito ao silêncio “há de ser interpretado de

forma mais ampla possível [...] abrangendo, inclusive, a negativa de identificar-se e

fornecer dados de sua qualificação e antecedentes, desde que a pessoa que assim

proceda esteja sendo efetivamente acusada do cometimento de um ilícito penal”. 218

Maria Elizabeth Queijo aduz que, no que se refere à identificação, “não incide o

nemo tenutur se detegere, como anteriormente observado, que tem lugar no

interrogatório de mérito”.219

Ronaldo Leite Pedrosa vê no direito ao silêncio uma modalidade do direito de

resistência.220

Sílvio César Arouck Gemaque entende que, quando o réu opta por permanecer em

silêncio no interrogatório, está renunciando à autodefesa.221 Não se concorda com essa

posição. O silêncio do acusado por ocasião de seu interrogatório revela o exercício da

autodefesa negativa. Em muitos casos, o silêncio do réu poderá ser mais vantajoso aos

seus interesses, já que o acusado está se pronunciando no início do processo, sem saber

216 David Teixeira de Azevedo revela que a posição do magistrado, na tentativa de forçar o réu a falar, atinge de uma só vez dois princípios constitucionais: o da presunção de inocência e o contraditório. Nas palavras do autor “... a sanção imposta ao silêncio como forma de coagir o réu a falar, visando à confissão, nega vigor ao princípio da presunção de inocência, atingindo fundamentalmente o direito ao contraditório”. (Op. cit., p. 290). 217 Segundo explica Eugênio Pacelli de Oliveira, mérito, na ação penal condenatória, está relacionado à existência de um fato (materialidade). Este fato ser atribuído ao acusado (autoria) e configurar-se o fato em uma ação típica, ilícita e culpável. (Curso de Processo Penal. 7.ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 86). 218 Op. cit. p. 136-137. 219 Op. cit. p. 239. 220 O Interrogatório Criminal como Instrumento de Acesso à Justiça Penal: Desafios e Perspectivas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 71. 221 O Interrogatório do Acusado. São Paulo: Editora Federal, 2006, p. 98.

100

de que forma será delineado o conjunto probatório. Assim, nesse caso, evitaria que o

juiz desacreditasse de seu depoimento ao realizar o cotejo com as ulteriores provas

coligidas aos autos. Nessa ordem de idéias, o deslocamento do interrogatório para o

final da instrução criminal fortaleceria o amplo exercício da autodefesa. Tal já ocorre no

âmbito dos juizados especiais criminais, em que o acusado é ouvido na audiência de

instrução e julgamento, após os depoimentos da vítima e das testemunhas de acusação e

de defesa.

Interessante é a opinião de Antônio Magalhães Gomes Filho sobre as normas que

induzem o réu a auto-incriminação. No sentir do autor, o art. 65, III, d do Código Penal,

ao considerar a confissão espontânea como circunstância que atenua a pena, obriga o

réu a auto-incriminação, violando, portanto, o princípio da presunção de inocência. 222 A

atenuante da confissão estimularia a admissão da prática do crime pelo réu, em

detrimento da ampla defesa. Por esse raciocínio, somente se pode falar em defesa

ampla, quando o acusado tiver larga liberdade para prestar declarações, sem que haja

qualquer preceito legal que direcione essa escolha em um determinado sentido.

Não se pode deixar de reconhecer que o direito ao silêncio pode representar um

prejuízo para a tarefa de reconstrução histórica dos fatos, um malefício na busca da tão

propalada verdade material. Tal restrição, porém, é constitucionalmente lícita, na

medida em que representa o necessário equilíbrio entre o respeito às liberdades públicas

e a verdade processualmente possível.223

6.5.2.1 A norma do art. 198 do Código de Processo Penal e as conseqüências do

exercício do direito ao silêncio

Caso o acusado opte pelo exercício do direito ao silêncio, não se pode lançar em

face dele nenhuma conseqüência prejudicial aos seus interesses. Seria ilógico considerar

o silêncio como um direito e admitir que o exercício de tal direito pudesse ser levado em

conta pelo órgão julgador quando externasse o seu convencimento na sentença. Daí é

preciso que se observe o disposto no art. 198 do Código de Processo Penal: “O silêncio

222 Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1977, p. 113. 223 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; MORAES, Maurício Zanoide de. “Direito ao Silêncio no Interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 6. São Paulo: RT, 1994, p. 141).

101

do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do

convencimento do juiz”.

O art. 198 do diploma processual penal afirma que o silêncio do réu não importará

confissão. Em relação a isso, não há qualquer incompatibilidade com os direitos e

garantias do imputado. A parte final do dispositivo, no entanto, não foi recepcionada

pela Carta Constitucional de 1988. Como já ressaltado, o silêncio constitui uma forma

de exercício da autodefesa, em sua modalidade negativa. Quando o indivíduo se

comporta consoante a norma, tal comportamento não pode ser sancionado, de qualquer

forma. Não poderá usar o magistrado o silêncio do réu como elemento para a formação

de seu convencimento, pois tal possibilidade importa considerar o silêncio de forma

prejudicial a quem o exerceu.224

Há, portanto, clara incompatibilidade entre o disposto no art. 5.º, LXIII,

estabelecendo que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de

permanecer calado”, com a norma inserta no art. 198 do Código de Processo Penal, pelo

qual o silêncio poderá “constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”.

Tratando-se de normas situadas hierarquicamente em planos distintos, há de prevalecer

aquela situada no patamar constitucional. Recorre-se ao princípio de hermenêutica: lex

superiori derogat lex inferiori.

Ressalte-se que o silêncio há de ser utilizado com muita cautela pelo acusado.

Deve ser uma decisão a ser tomada de forma conjunta pelo réu e pelo defensor, após

uma análise da repercussão desse ato. Assim sendo, o único prejuízo que o acusado

pode sofrer em decorrência do silêncio é o de perder a oportunidade de rechaçar a

acusação, respondendo às perguntas formuladas e indicando os meios de prova hábeis a

demonstrar as informações prestadas.225 Embora o silêncio seja reconhecidamente um

direito, não significa que se consubstancie no melhor caminho a ser trilhado pelo

interrogando. Em muitos casos, ninguém melhor que o próprio interrogando para

rebater os fatos contra si atribuídos, influenciando de forma mais espontânea o

convencimento do magistrado.

224 O entendimento segundo o qual o silêncio do réu não poderá ser utilizado como um dos elementos formadores do convencimento do juiz, quando da prolação de um decreto condenatório, não é unânime em sede doutrinária. João Cláudio Couceiro não vê qualquer incompatibilidade entre a garantia constitucional do direito ao silêncio e a norma do art. 198 do Código de Processo Penal. Para o autor, se o jurado, no tribunal do júri, pode utilizar o silêncio do réu na formação de seu convencimento, não há motivo plausível para que o juiz de direito, com maior preparo técnico, não o possa fazer. (A Garantia Constitucional do Direito ao Silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 182). 225 Cf. QUEIJO, Maria Elizabeth, op. cit., p. 221.

102

6.5.2.2 O silêncio no Tribunal Popular do Júri

Questão que se apresenta tormentosa está relacionada ao exercício do direito ao

silêncio no interrogatório realizado durante a sessão de julgamento do Tribunal do Júri.

O Tribunal do Júri, segundo disposto no art. 5.º, XXXVIII da Constituição Federal, tem

competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sendo assegurados os

princípios da plenitude da defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos.

As decisões proferidas pelo júri não são fundamentadas. Os jurados respondem de

forma objetiva a quesitos, votando sim ou não. Nesse modelo, não explicam os jurados

a razão de seus votos. Desse modo, caso o acusado permaneça em silêncio durante o

interrogatório na sessão de julgamento, não há como se impedir que os jurados, leigos

que são, interpretem o silêncio do réu em seu prejuízo. A maneira como os acusados

formaram o seu convencimento ficará restrita aos seus intelectos, não tendo como se

extrair conclusões sobre os motivos que levaram os juízes leigos a decidir de uma forma

ou de outra. A certeza que se tem é quanto ao resultado, ao veredicto; mas o que levou

aquele juiz a votar sim ou não ficará apenas guardado dentro de cada um.

Nessa ordem de idéias, cumpre ao defensor do réu esclarecê-lo das conseqüências

da utilização do silêncio no interrogatório realizado no Tribunal Popular do Júri. Não é

conveniente que o réu opte por não responder às perguntas formuladas pela autoridade

judicial. A propósito, Eugênio Pacelli de Oliveira levanta o seguinte questionamento:

“[...] quem se atreverá a exercer o direito ao silêncio correndo o risco, historicamente

comprovado, se ver utilizado contra si tal direito?”.226

Observa-se, pois, que a garantia do silêncio fica um pouco mitigada no júri, mas

cabe ao juiz-presidente esclarecer ao réu e aos jurados que o silêncio do interrogando

não pode ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Da mesma forma, não se permite

ao Ministério Público explorar o silêncio por ocasião dos debates orais. Se tal acontecer,

deverá ser advertido e, mais uma vez, dito aos jurados que o silêncio não pode ser usado

para demonstrar a culpa (lato sensu) do réu.

Assim, não se afasta a possibilidade de o silêncio do réu ser utilizado em prejuízo

de sua defesa no júri. No entanto, tal ocorre em face da observância de outro princípio

constitucional – o do sigilo das votações. Nessa suposta antinomia entre duas garantias

226 Op. cit., p. 337.

103

constitucionais, há de prevalecer aquela mais especial, qual seja, a do sigilo das

votações. É o custo que se deve arcar pela adoção do júri no País.

6.6 Limites: possibilidade de processo sem defensor?

Após a Segunda Guerra Mundial, em geral, os ordenamentos jurídicos das

civilizações ocidentais têm mostrado uma preocupação crescente com a preservação dos

direitos e garantias fundamentais. Decerto, os atentados terroristas de 11 de setembro de

2001 fizeram com que alguns países, notadamente os Estados Unidos, adotassem

medidas restritivas aos direitos individuais, em nome da segurança pública. Houve um

recrudescimento de normas penais e processuais penais, servindo como pretexto o

mencionado atentado terrorista, pondo em risco a incolumidade de garantias

conquistadas após séculos de lutas.227

A autodefesa inicialmente servia como única forma de defesa do réu, não havendo

a preocupação com sua efetividade. O réu defendia-se sozinho porque não havia

qualquer exigência para a atuação de um técnico encarregado da função defensiva.

Um fato ocorrido em 1976 na Itália reacendeu os debates sobre a possibilidade do

exercício exclusivo da autodefesa, surgindo, pois, a seguinte indagação: existe um

direito do réu de se defender por si só, sem a assistência de advogado? Passa-se à

narrativa de tal acontecimento. Em maio de 1976, na cidade de Turim, um dos líderes da

organização brigate rossa (brigada vermelha), em processo criminal contra sua pessoa,

destitui seu advogado particular e recusa o advogado nomeado pelo juiz, sustentando

que, doravante, iria fazer pessoalmente a defesa. Mencionado, réu ao refutar o defensor

de ofício, assacou críticas a este, como mais um integrante de um sistema de

distribuição de justiça podre, despido de qualquer legitimidade. Visava o réu a expor à

sociedade a crise do aparelho estatal, direcionado a distribuir justiça. Sustentando o

direito a autodefesa, em verdade, o acusado tinha por finalidade ridiculizar o sistema

judiciário. 228

227 CATENA, Victor Moreno; DOMÍNGUEZ, Valentin Cortés. Op. cit. p. 45. 228 Tal fato ganhou bastante repercussão na imprensa italiana, surgindo os mais diversos trabalhos jornalísticos, debates em redes de televisão, e motivou a produção de ensaios científicos na área jurídica. Dentre esses, destaca-se a coletânea organizada pelo Professor Vittorio Grevi intitulada Il Problema Dell´Autodifesa nel Processo Penale, publicado, inicialmente no ano de 1977 pela Editora Zanichelli.

104

Duas correntes se apresentam para responder à indagação sobre a juridicidade da

atuação do réu em sua defesa sem qualquer assistência de advogado. A primeira atribui

maior dimensão à autodefesa, sustentado a dispensabilidade da presença do advogado

no processo penal, quando o acusado possuir pleno discernimento. Assim, constituir ou

não um advogado é uma escolha a ser refletida e tomada pelo próprio acusado e que

reflete o exercício de sua liberdade. Qualquer intromissão do Estado nessa escolha

insultaria a autonomia do imputado em decidir que caminho percorrer na via processual.

Dentre os defensores dessa corrente, há aqueles mais moderados, somente admitindo o

caráter facultativo da defesa técnica nas infrações de menor gravidade. Outra parcela da

doutrina advoga a tese da essencialidade da defesa técnica, constituindo a autodefesa

mais uma ferramenta à disposição do réu para a obtenção de um resultado processual

que lhe seja mais benéfico. Passa-se, então, à análise dessas correntes doutrinárias.

6.6.1 Corrente conferindo maior amplitude à autodefesa

Um dos valores de maior relevância no ordenamento jurídico é a liberdade. De

que forma o Direito, no entanto, pode proteger a liberdade? Buscando respostas a essa

pergunta, surgem as mais distintas e paradoxais opiniões. Para uns, a verdadeira e

genuína defesa é aquela exercida pelo próprio acusado. Cada ser humano dotado de

pleno gozo de suas capacidades mentais é livre para escolher de que forma irá se

defender e até mesmo, se almeja apresentar alguma refutação à acusação. Hão de ser

respeitadas a autonomia229 de cada indivíduo, suas opções, suas escolhas, que nada mais

são do que manifestações de sua personalidade. Ante tal asserção, indaga-se: que razões

teria uma pessoa para recusar a assistência de um advogado e realizar a própria defesa?

Angelo Giarda230 aponta quatro principais razões pelas quais o imputado recusaria a

assistência de um defensor de ofício. Em seguida, passa-se à crítica de cada situação

exposta.

229 Essa visão privatista da autonomia é expressa por Giuseppe Grisi, para quem a autonomia é expressão da liberdade, representando a satisfação de um interesse particular. O fundamento da autonomia privada repousa na vontade, livre e consciente do agente, exprimindo o poder de auto-regulação de seus interesses. (L´Autonomia Privata: diritto di contratti e disciplina costituzionale dell ´economia. Milano: Giuffré Editore, 1999, p. 11). 230“La Difesa Tecnica Dell´Imputato”. GREVI, Vittorio. (org.). Il Problema Dell´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 75-76.

105

a) O réu não dispõe de recursos financeiros para contratar um advogado particular

e não adquiriu confiança no defensor atribuído pelo Estado. As evidentes deficiências

do serviço de assistência jurídica prestado pelo Estado não justificam o desprezo por

uma imposição constitucional de defesa efetiva. Cabe, em caso de inação ou de

deficiência da defesa prestada pelo Estado, a diligente fiscalização do juiz, declarando o

réu indefeso, não permitindo o desenvolvimento da atividade persecutória do Estado

sem a contraditoriedade defensiva. Nesse contexto, asseverou o min. César Peluso que

“a ordem jurídica não concede ao réu estratégia processual alternativa que implique

renúncia ao direito de defesa”.231 Assim, afasta-se a figura do juiz indiferente, alheio ao

que passa a sua volta, mesmo quando se verifica a agressão a valores

constitucionalmente tutelados. Oxalá todos os juízes e tribunais sigam o entendimento

sufragado pelo STF e rechacem a atuação omissa ou deficiente da defesa.

b) O acusado entende possuir suficiente conhecimento técnico-jurídico que

dispense a atuação de um advogado em seu favor. No caso de imputado advogado, em

tese, apresenta-se possível a autodefesa, embora não recomendável. Não sendo o réu

inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), embora entenda

possuir conhecimentos jurídicos suficientes para a realização de sua defesa, tal

pretensão não possui juridicidade, em face da indisponibilidade da defesa técnica. Em

ambos os casos, faltam ao réu o discernimento e a serenidade necessários ao bom

desenvolvimento da atividade de rebate à acusação. A acusação contra o réu formulada

afeta-lhe o estado emocional, impedindo-o de se defender de forma eficaz.232

c) Poderá também invocar-se a autodefesa exclusiva para fins de chicana

processual, postergando-se o desfecho do processo, ou tentando-se plantar alguma

nulidade pela ausência de defesa técnica. Nesse caso, o réu se vale de expedientes

procrastinatórios sem que recaiam sobre os seus ombros os deveres ético-profissionais

que permeiam a categoria dos advogados.

d) Alguns acusados, principalmente aqueles ligados a episódios que envolvam

disputas políticas, levantam a bandeira da autodefesa exclusiva como forma de

combater o Estado e suas instituições, tais como o Poder Judiciário, o Ministério

231 Voto proferido no julgamento do HC 92680/SP, em 11.03.2008. Acórdão pendente de publicação. Disponível em http://www.stf.gov.br/arquivo/informativo/documento/informativo.htm. Acesso em 24.03.2008. 232 Há um provérbio inglês que traduz com muita simplicidade e ironia a atuação do advogado em causa própria: “who is his own lawyer has a fool for client”. Tradução livre: quem é seu próprio advogado tem por cliente um tolo.

106

Público e a própria advocacia. Trata-se de um discurso político radical ao próprio

sistema de resolução dos conflitos. Recusa-se o advogado, ao mesmo tempo em que se

demonstra desprezo não somente a este profissional, mas se expressa uma insatisfação

com as instituições políticas que compõem o Estado. Decerto, uma revolução importa

na ruptura de determinado ordenamento jurídico, impondo-se sua reconstrução sobre

novas estruturas, sobre a base de uma nova ordem constitucional, que estabelecerá os

novos paradigmas para a atuação das instituições. Há que se reconhecer, no entanto, que

determinados valores permanecem, mesmo com a mudança do Texto Constitucional,

recebendo proteção à luz do novo modelo de Estado. Princípios como a igualdade, a

liberdade, o contraditório e ampla defesa não podem ser desprezados por nenhuma

constituição que se afigure representativa de um Estado Democrático de Direito.

Em ensaio que analisa o exercício da atividade defensiva no processo penal

estadunidense, Jacinta Paroni Rumi mostra que a autodefesa representa certamente uma

das notas mais características do processo dos EEUU na tradição da Common Law. A

evolução histórica do instituto está ligada ao surgimento do direito do acusado a um

defensor (right to counsel). 233

Assim, nos Estados Unidos, a autodefesa surge sob uma perspectiva sem qualquer

preocupação de conferir eficácia ao seu direito de defesa, mas sim de desobrigar o

Estado de prestar um serviço público que cuidasse dos interesses dos acusados que não

contassem com advogado. Em nome da liberdade de escolha, o Estado lavava as mãos e

fechava os olhos para um problema social sério: a discriminação racial e social. É

evidente que a maioria dos acusados que não contratavam advogado eram os negros e os

pobres. Assim, em nome de uma pretensa liberdade de autodefesa, negava-se defesa a

esses acusados, na sua maioria, componentes das camadas sociais mais sacrificadas. Sob

o fundamento de um discurso que se vale da liberdade, aniqüila-se o direito que todo

cidadão tem de receber um tratamento digno, com uma defesa eficiente. Falar de

liberdade de escolha entre contratar um advogado e realizar a própria defesa é um

grande paradoxo, pois, em verdade, apenas uma minoria pode, de fato, fazer essa opção.

No ano de 1800 apenas dois estados dos EEUU previam a assistência de advogado

àquelas pessoas que não dispunham de condições financeiras para custear os serviços

desse profissional, mesmo após a edição da 6.ª Emenda à Constituição dos Estados

233 “L´autodifesa nel processo anglo-americano”.GREVI, Vittorio (org.). Il Problema Dell´autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 99-100.

107

Unidos, que tratava do direito a ter um advogado.234 Ainda assim, nesses estados a

assistência só era prestada em processos de crimes sujeitos à pena de morte.235

No julgamento do célebre caso Powell vs. Alabama, em 1932, a Suprema Corte

deixou assentada a obrigatoriedade da assistência por advogado nos delitos mais graves,

anulando a condenação dos réus que não tiveram defesa técnica adequada durante todo

o processo. Dois advogados atuaram no caso: um que constantemente comparecia

embriagado e outro – da localidade – que há anos não desempenhava suas funções.

Rechaçou, portanto, a Corte Maior dos Estados Unidos a defesa meramente formal.236

Certamente, decisão proferida aplicava-se apenas a processos que tinham a

possibilidade de aplicação da pena capital, mas teve grande influência na evolução da

jurisprudência estadunidense sobre a efetividade da defesa, que, embora prevista na

Constituição, era muitas vezes desprezada quando de sua aplicação prática. Isso mostra

que “os direitos inseridos nas constituições escritas raramente são realidades imediatas,

mas sim evoluem ao longo do tempo à luz da interpretação e análise judicial”.237

Essa decisão no caso Powell v. Alabama teve outro aspecto histórico de

importância para a proteção das garantias fundamentais nos Estados Unidos. Nesse

julgado, pela primeira vez, a Suprema Corte entendeu que dispositivos previstos na

Carta de Direitos eram aplicáveis aos Estados-membros. Tradicionalmente, aquele

234 Eis o teor da mencionada Emenda Constitucional: “Em todas as persecuções criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do Estado-membro e do distrito onde o crime houver sido cometido, distrito este que será previamente estabelecido por lei, e de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ter compulsoriedade processual, a fim de obter testemunhas em seu favor e de ter a assistência de um advogado para a sua defesa”. 235 Op. cit. p. 103. 236 O julgamento proferido pela Suprema Corte no caso Powell vs. Alabama representou importante marco na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Segundo relata David Pitts, em 1931 nove jovens negros, com idades que variavam de 13 a 21 anos, viajavam em um trem quando passavam pela cidade de Scottsboro, no Alabama. Esses rapazes foram acusados de estuprar duas mulheres brancas (Ruby Bates e Victoria Price), que também estavam viajando. Dos nove acusados, oito foram rapidamente condenados à pena capital. Ruy Wright, então com apenas treze anos, foi poupado da sentença de morte. Sobre a importância da decisão da Suprema Corte, escreveu Pitts: “A história dos Meninos de Scottsboro é importante não apenas na história dos direitos civis, mas também na evolução da legislação constitucional, por ser o caso que levou uma interpretação mais abrangente da garantia da Décima-Quarta Emenda de “igual proteção com base na lei” e do “processo devido de direito”. O caso também expandiu o escopo da garantia da Sexta Emenda do direito de “ter assistência de defesa”. [...] A Sexta Emenda à Constituição Norte-Americana inclui diversos direitos destinados a assegurar que os réus criminais recebam julgamentos imparciais. Uma disposição importante é o direito a ser representado por um advogado. Mas, ao longo da maior parte da vida da República, o direito à defesa esteve limitado aos que podiam pagar advogado e também confinado aos crimes sob jurisdição federal. Isso mudou com os Meninos de Scottsboro, que foram acusados de violação da legislação estadual, e não federal, e que eram tão pobres que mal podiam sustentar-se, que dirá pagar um advogado para representá-los”. (PITTS, David. Os Meninos de Scottsboro e os Direitos Fundamentais. Disponível em http://www.usinfo.state.gov/journals/itdhr/0701/ijdplie070105.htm. Acesso em 19.07.2007. 237 PITTS, David, op. cit.

108

Tribunal vinha sustentando que as normas previstas na Carta de Direitos, compostas

pelas emendas à Constituição, somente eram de observância cogente pela União. Assim,

as diversas garantias previstas no Bill of Rights eram exigidas apenas nos processos que

tramitavam na Justiça Federal. O respeito à autonomia dos Estados-membros é de tal

ordem que se fala, naquele País, na doutrina da dupla soberania (dual sovereigny

doctrine).238

Por outra banda, em 1942 em Betts vs. Brady, em que o acusado se defendeu

sozinho, a Suprema Corte manteve a condenação imposta ao réu, sob a alegação de que

a inteligência e a maturidade do acusado não haviam comprometido a justiça da decisão,

e que a presença de um advogado não era indispensável para que se alcançasse tal

objetivo.239

Em 1963, no julgamento do processo Gideon v. Wainright, houve uma extensão

do direito à assistência por advogado. Em Powell v. Alabama, a Suprema Corte

assentou a necessidade de advogado somente nos processos que apuravam crimes

punidos com a pena capital. Em Gideon v. Wainright, entendeu-se que os Estados-

membros deveriam fornecer advogado aos acusados pobres nos crimes punidos com

penas privativas de liberdade superior a 01 (um) ano, os denominados felonies. Nova

ampliação do acompanhamento da defesa técnica no âmbito do processo penal dos

EEUU deu-se em Griffin v. Califórnia (1965), quando a Suprema Corte concluiu pela

obrigatoriedade da atuação da defesa técnica na fase recursal.240

Em decisão proferida no caso Faretta v. Califórnia, no ano de 1975, a Suprema

Corte reconheceu ter sede constitucional o direito de defender-se por si só (The right to

be your own lawyer ou the right to self-representation). Segundo aquele Tribunal a

interpretação mais acertada a ser dada à Sexta Emenda é a de conceder o direito do

acusado de fazer pessoalmente a defesa. Na esteira da decisão, tem-se que o defensor

deve constituir-se em uma ajuda para o acusado que o deseje, não uma imposição estatal

ao arrepio do direito de defender-se pessoalmente. Cada acusado, rico ou pobre, tem o

direito à assistência por advogado, mas isso não obriga o Estado a estabelecer um

defensor contra a vontade do imputado. Sem o consenso deste, perder-se-íam as

vantagens provenientes da defesa técnica. Essa imposição de um defensor técnico

representa violação ao direito fundamental de liberdade do imputado. Afinal, é o 238 RAMOS, João Gualberto Garcez. Op. cit. p. 167. 239 RUMI, Jacinta Paroni. Op. cit. p. 100. 240 RAMOS, João Gualberto Garcez. Op. cit. p. 169.

109

imputado e não o defensor ou o Estado quem irá suportar os efeitos pessoais de uma

eventual condenação. É o acusado, pois, que arcará com os fracassos da atividade

defensiva, tendo ele o direito a prejudicar-se.241

No caso Faretta v. Califórnia, a Suprema Corte apontou duas razões pelas quais

pode ser mais interessante ao réu a defesa sem advogado. Tais razões superariam as

deficiências decorrentes da não-atuação defesa técnica. A primeira é a de respeito ao

indivíduo, deferência a sua vontade. Respeitar a vontade do indivíduo é respeitar o

Direito. O segundo motivo apresentado pela Suprema Corte é o de que a defesa

exclusivamente pessoal pelo réu revela estratégia defensiva. O réu, sem advogado, na

disputa com a acusação, teria melhores chances de conquistar a simpatia dos jurados.

Estes, sensibilizados com a fragilidade da defesa, padeceriam da síndrome David x

Golias.242

Deve-se, pois, respeitar a vontade de cada cidadão dos EEUU. Essa concepção

configura uma projeção do princípio da soberania do povo que, segundo Aléxis de

Tocqueville, é expresso pela máxima de que “cada indivíduo é tido como esclarecido,

tão virtuoso, tão forte quanto qualquer outro de seus semelhantes”.243 Essa liberdade é

revelada com tal amplitude que só recebe limitações de ordem espiritual, afinal, cada

pessoa “é livre e só deve prestar conta de seus atos a Deus”.244 Respeita-se a vontade

individual como algo sagrado, verdadeiramente soberano, prevalecendo a máxima de

que o próprio indivíduo “é o melhor e único juiz de seu interesse particular e que a

sociedade só tem o direito de dirigir seus atos quando se sente lesada por um feito dele

ou quando precisa reclamar seu concurso”.245

Assim, a Suprema Corte atribuiu ao imputado a plena escolha entre a autodefesa

(self-representation) e a defesa técnica. Trata-se, pois, de visão extremamente

individualista, que não se coaduna com a feição da autodefesa como garantia (dimensão

objetiva) nem com o próprio sistema processual penal, não podendo este servir como

instrumento que reforce o sentimento de autodestruição.

Vittorio Denti sustenta que a garantia da defesa técnica não possui caráter

absoluto, podendo haver um processo justo sem a necessidade de intervenção de um

241 RUMI, Jacinta Paroni. Op. cit. p. 120-121. 242 SALTZBURG, Stephen A.; CAPRA, Daniel J. Op. cit., p. 453-454. 243 A Democracia na América. 2.ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 75. 244 TOCQUEVILLE, Aléxis de. Op. cit. p. 76. 245 Id. Ibid, p. 76.

110

advogado, a depender da gravidade do crime e do valor econômico da controvérsia.

Ressalta, inclusive, que nos Estados Unidos somente é exigida a assistência de um

advogado nos processos relativos a delitos punidos com pena privativa de liberdade. Na

Itália, a atuação do advogado é dispensável nos processos de menor relevância.246

Continua o autor italiano afirmando que a autodefesa constitui direito processual

do imputado, constitucionalmente garantido e cujo exercício não pode encontrar limites

em face da atribuição de poderes processuais a sujeitos diversos, ainda que se trate de

advogado. Assim, a autodefesa não consiste na liberdade de escolher entre o exercício

pessoal da defesa ou a defesa por meio de profissional possuidor de conhecimentos

técnicos. Esse direito de defesa não pode ser expropriado em favor de outros sujeitos.

A autodefesa representa um aspecto ineliminável do direito de defesa: afirmar o

contrário significa em última análise negar que a defesa constitui um direito

constitucionalmente garantido.247 Trata-se, dessa forma, de uma posição moderada,

admitindo em feitos de menor gravidade a possibilidade do exercício da função

defensiva exclusivamente pelo acusado, não tornando indispensável a figura do

defensor. A autodefesa não pode ser vista unicamente sob o aspecto processual, como

mecanismo de tentar influir no convencimento do juiz, mas também como atuação do

indivíduo na condição de protagonista social. Por fim, pontifica Vittorio Denti que “far

tacere l´autodifesa può anche comportare il rischio di soffocare uma manifestazione di

liberta”.248

Para Achille Melchionda, não se discute que a defesa é um valor com status

constitucional, surgindo para o Estado o dever de dispor dos poderes, instrumentos e

meios idôneos a dar a este direito o significado e conteúdo o mais concreto e eficaz

possível. Isso não justifica, porém, transformar o direito de defesa na obrigatoriedade da

presença da defesa técnica no processo penal. O serviço de assistência judiciária deve

ser posto à disposição do réu, mas este tem a liberdade de optar pelo exercício pessoal

de sua defesa.249 O autor ressalta que essa imposição de um defensor por parte do

246 “La difesa come diritto e come garanzia”. GREVI, Vittorio (org.). Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanicchelli Edditore, 1982, pp. 48-49. 247 DENTI, Vittorio. Op. cit. p. 50. 248 “Coarctar a autodefesa pode também comportar o risco de sufocar uma manifestação de liberdade”. (Tradução livre). Id. Ibid. p. 56. 249 “Il diritto dell´imputato all´alternativa”. GREVI, Vittorio. (org.). Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 87.

111

Estado nada mais representa senão um maléfico paternalismo e um suposto

protecionismo.250

Alejandro D. Carrió entende que cabe ao Estado, tão-somente, fornecer ao réu a

possibilidade de ser assistido por um advogado, não havendo que se falar na

obrigatoriedade de atuação de um advogado nos processos criminais. Para o autor

argentino, se o acusado tem pleno gozo de suas faculdades mentais, o Estado não pode

interferir em sua autonomia, cabendo ao réu a decisão de constituir um profissional para

realizar sua defesa ou simplesmente defender-se por si.251

Outro argumento utilizado pelos que rechaçam a obrigatoriedade da defesa técnica

contra a vontade do réu é que este tem o direito de optar por sua linha defensiva, de

levantar as teses que reputa mais pertinentes para a obtenção de um resultado mais

favorável aos seus interesses.252

Também se aduz que o réu tem o direito de recusar o defensor como decorrência

do seu direito à autodefesa, que se trata de um direito com o conteúdo mais negativo do

que positivo, enfocando aí a característica da renunciabilidade.253

6.6.2 Doutrina restritiva

O mesmo ordenamento jurídico que enseja ao acusado contestar sem o auxílio de

defensor a imputação impõe limitações a essa atividade. Há interesses superiores que

não ficam restritos à esfera subjetiva do acusado.

Para os que se filiam à corrente restritiva, até mesmo a liberdade do acusado

encontra limites. Assim, não tem ele livre opção entre exercer pessoalmente a defesa ou

confiá-la a um advogado. A obrigatoriedade da presença do defensor não é incompatível

com o respeito à autonomia do imputado no plano defensivo da persecução penal.254

250 Op. cit. p. 95. 251 Garantias Constitucionales en el processo penal. 5.ª edição. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, p. 579. 252 SINISCALCO, Marco. “Diritto all´autodifesa e liberta di scelte difensive dell´imputato”. GREVI, Vittorio. Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 141. 253 VASSALI, Giuliano. “Autodifesa e rifiuto dell ´assistenza difensiva”. GREVI, Vittorio (org). Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 148. 254 FIORE, Carlo. “Prospettive e limiti dell´autodifesa”. GREVI, Vittorio. (org.). Il Problema Dell ´Autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 60.

112

Jacinta Paroni Rumi adverte para a noção de que a autodefesa não pode ter caráter

absoluto. O sistema processual acusatório não vai nunca olvidar de sua missão de

distribuir justiça. O prejuízo que sofre o acusado que se defende pessoalmente não é

minorado em nome de uma suposta liberdade de escolha de seu destino no processo,

mesmo que esse destino represente uma condenação e o cárcere. Admitir o contrário é

pretender transferir para o plano processual os contrastes e mazelas presentes na

sociedade, regida pelo struggle for life.255

O direito de defesa não pode ser reduzido a um mero direito a assistência por

advogado. Tem um conteúdo pleno que assegura ao réu expor pessoalmente ao juiz a

representação da realidade dos fatos favoráveis àquele.256 Tal aspecto, no entanto, não

exclui a importância da figura do defensor. Para Gian Domenico Pisapia, a figura do

defensor é insuprimível, a menos que se retire do processo a sua natureza dialética, de

confronto entre partes contrárias, o que retiraria o seu caráter de contraditoriedade.

Ironizando, o autor menciona que aceita processo sem defensor, contanto que se exclua

também o órgão do Ministério Público.257

Gustavo Pansini vê na essencialidade do advogado uma forma de equilíbrio no

desenvolvimento do contraditório. Para o autor italiano, sendo o MP um órgão

primordialmente técnico, é necessário que o acusado receba o auxílio de uma pessoa

também preparada tecnicamente, para suprir as naturais deficiências do imputado. Essas

fragilidades são presumidas, seja pela ausência de conhecimentos jurídicos, seja pela

simples condição de acusado, que diminui sua capacidade de discernimento e valoração

dos fatos.258

A doutrina exposta repele o exacerbado liberalismo e sua repercussão no processo,

que considera a autonomia do réu um valor sagrado, que se sobrepõe inclusive à sua

liberdade. Os valores que envolvem um processo de natureza criminal e sua repercussão

na vida do acusado possuem relevância social, não atingindo apenas o próprio

imputado.

255 “L´autodifesa nel processo anglo-americano”. In GREVI, Vittorio (org.). Il Problema Dell´autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 123. 256 PISAPIA, Gian Domenico. “Processo Senza Difensori”. In GREVI, Vittorio (org.). Il Problema Dell´autodifesa nel Processo Penale. 6.ª edição. Bologna: Zanichelli Editore, 1982, p. 127. 257 Op. cit. p. 129. 258 La Contumácia nel Diritto Processuale Penale. Napole: Casa Editrice Dottore Eugenio Jovene, 1963, p. 45.

113

6.6.3 Posição do autor

Não há como se conceber o processo penal sem a presença de um defensor. Na

esfera cível, o jus postulandi constitui poderoso instrumento de acesso à justiça, como

demonstra o crescente número de demandas no âmbito dos juizados especiais cíveis,

seja na esfera estadual, distrital ou federal. No campo penal, porém, os valores postos

em jogo em um processo dessa natureza impedem que a autonomia do indivíduo

prepondere sobre sua liberdade e dignidade. A autonomia pessoal encontra limites259

postos por valores de magnitude. O ordenamento optou – corretamente – por uma

posição mais garantista. Mesmo para a validade das medidas desapenadoras previstas na

lei 9.099/95, tais como a composição civil dos danos, transação penal e suspensão

condicional do processo, o imputado há de ter o auxílio de um defensor.

Quando o constituinte quis proporcionar a todo e qualquer acusado a mais ampla

defesa, almejou a máxima eficiência da defesa técnica e da autodefesa, sem que uma

dessas modalidades exclua a outra. Nos ordenamentos democráticos, o direito de defesa

é reconhecido em sua plenitude, seja sob o aspecto da defesa pessoal, seja sob o ângulo

da defesa técnica. Querer reduzir a atuação de uma ou de outra garantia derivada da

ampla defesa constitui retrocesso inaceitável. Assim, admitir a autodefesa exclusiva

traduz solução individualista, ao arrepio da dimensão objetiva dos direitos e garantias

fundamentais. Ora, aceitar tal hipótese é pretender voltar ao passado, quando não havia

necessidade de advogado no processo e a autodefesa era a regra geral. O simples

exercício pelo próprio réu de sua defesa não traduz nenhuma garantia de liberdade se

essa atividade não recebe a orientação de um advogado. Propugnar pela autodefesa não

é simplesmente deixar ao réu a escolha de constituir ou não um advogado, mas permitir

que essas personagens processuais realizem suas atividades mediante um auxílio

mútuo260, com troca de informações e de idéias, sempre com a finalidade de robustecer

a defesa, para que se tenha uma relação processual desenvolvida com equilíbrio de

forças.

Não se sustenta admitir-se a atuação exclusiva do réu em sua defesa em virtude da

deficiência do serviço de assistência jurídica prestada pelo Estado. Nesse ponto, cabe a 259 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op.cit. p. 95. 260 Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, em passagem clássica, resume com precisão a relação que se estabelece entre o imputado e seu advogado: “Vivem, acusado e defensor, em verdadeira simbiose”. Curso de Direito Processual Penal. 15.ª edição. São Paulo: Saraiva, 1958, v. 1, p. 139.

114

importante missão do juiz de exercer efetivo controle sobre a eficiência da defesa, quer

seja ela proveniente de contratação do acusado, quer seja nomeada pelo próprio

magistrado. Afinal, não se concebe mais a figura do juiz absolutamente indiferente em

relação aos atos que envolvem os direitos processuais dos litigantes.261 Essa atitude

judicial não se amolda às relevantes funções atribuídas aos membros do Poder

Judiciário, aos quais cumpre conferir efetividade às garantias processuais do acusado.

A condição financeira do acusado não pode constituir fator a nortear a qualidade

da atuação defensiva. A desigualdade no campo econômico não pode ser potencializada

para o plano processual. Compactuar com a ineficiência do serviço de assistência

judiciária do Estado, admitindo o transcurso de um processo penal sem uma

contrariedade material à acusação, é negar os ideais de um Estado Democrático de

Direito, fundado na igualdade de oportunidades e no recebimento, por parte dos

cidadãos, de uma prestação jurisdicional que tenha sido precedida de uma defesa

efetiva. Se os serviços públicos não funcionam bem, se o serviço de assistência jurídica

prestado pelo Estado não se mostra satisfatório em atender às necessidades de

população, que se melhore essa atividade. O que não se admite é compactuar o Poder

Judiciário com uma defesa deficiente, porque prestada por um órgão do próprio Estado.

261 ARRUDA, Samuel Miranda. O Direito Fundamental á Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006, p. 44.

115

7 INTERROGATÓRIO E AUTODEFESA

A dúvida, o obscuro e o desconhecido constituem realidades sempre indesejáveis

para o espírito humano. Em virtude dessa inquietação natural, estão os homens sempre

em busca de desvendar mistérios, atingir a verdade. Essa constante perseguição do

homem pela verdade tem, no campo penal, impelido legisladores, autoridades policiais e

magistrados à pretensão de ouvi-la da boca do próprio indiciado. Percebe-se, na maioria

dos juízes, uma ânsia pela confissão, uma busca em escutar o reconhecimento da

culpabilidade pelo imputado. Talvez, em seu íntimo, ouvindo a confissão do réu, o

magistrado ficará mais convicto de prolatar uma sentença condenatória, ao passo que,

por mais que existam provas nos autos, quando o acusado nega com veemência a prática

do delito, o juiz ficará com uma desconfiança acerca de seu veredicto. Nessa ordem de

idéias, a confissão servirá como alívio para o juiz, afinal, se o próprio acusado

confessou, não poderá reclamar de uma sanção penal.

Exorcismos, juramentos, torturas físicas e também morais, violências químicas e

psicológicas de toda espécie constam da história do Direito Judiciário Penal, como

arriscadas tentativas para assegurar ao juiz o exame do que vai pela consciência de um

acusado, por meio de seu interrogatório. É a incansável tentativa de chegar à verdade

judicial.262

O interrogatório “é o ato processual constituído pelas declarações que, no juízo

penal, presta o indiciado, argüido pela autoridade judicial, para a sua defesa”.263 É o

momento em que o juiz ouve, da boca do próprio réu, a versão sobre o fato criminoso

narrado na denúncia, tendo a oportunidade de avaliar suas reações, seu estado de ânimo,

sem que haja qualquer intermediário nesse contato. Carlos Henrique Borlido Haddad

considera o interrogatório como ato que compõe o processo penal, dotado das

características da publicidade, oralidade e obrigatoriedade, comandado pela autoridade

policial ou pelo juiz, oportunidade “em que são formuladas perguntas ao indiciado ou ao

acusado e de quem são obtidas respostas acerca da imputação criminal, das provas para

o esclarecimento dos fatos e da vida pregressa dos interrogandos”.264

262 ROMEIRO, Jorge Alberto. Considerações sobre o Conceito do Interrogatório do Acusado. Rio de Janeiro: Oficinas Alba Gráfica, 1942, p. 9. 263 Op. cit. p. 45. 264 O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 123.

116

Em virtude do reconhecimento do direito ao silêncio, há que ser repelida a

utilização de qualquer medida de coação no sentido de compelir o interrogando a dar

declarações que importem o reconhecimento de sua culpa. É condenável a utilização de

coações de ordem física ou moral. Assim, fica vedada ao magistrado a adoção de

qualquer forma de pressão sobre o imputado, até mesmo pressões indiretas. Afirmações

do tipo, “É melhor que você confesse”, ou: “Você quer que eu acredite nessa estória, tá

me achando com cara de palhaço?”, são inadmissíveis para um magistrado, primeiro

fiscal e guardião da garantia constitucional da autodefesa.

Segundo aponta Ferrajoli265, no interrogatório, percebem-se as diferenças

marcantes entre os modelos inquisitivo e acusatório de processo penal. No sistema

inquisitivo, o interrogatório representa a primeira agressão da acusação contra o réu,

buscando-se, a qualquer custo, a confissão do acusado. De outra banda, no modelo

acusatório garantista, em que se faz sentir a presunção de inocência, o interrogatório é

meio de defesa. A busca pela verdade real não justifica qualquer tipo de agressão ou de

pressão exercida sobre o interrogando. No modelo garantista, dá-se importância à

natureza do meio empregado, somente alcançando-se o fim com o respeito e

observância dos meios utilizados. A célebre frase maquiavélica de que “os fins

justificam os meios” há de ser refeita sob uma óptica que seja garantística para, com

Ferrajoli, afirmar-se que “os meios legitimam os fins”.266

7.1 Breve escorço histórico

Cabe, em apertada síntese, tecer algumas considerações sobre o histórico do

interrogatório judicial.267 O interrogatório representa o momento do encontro entre a

265 Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 559-560. 266 Nessa ordem de idéias, Maria Elizabeth Queijo aponta que: “não deverá a busca pela verdade material ser utilizada como justificativa para a prática de arbitrariedades e violações de direitos, como verdade obtida a qualquer preço. A verdade, no processo, deverá ser apurada mediante o atendimento dos princípios, regras e garantias processuais, ou seja, dentro dos limites da legalidade e da ética”. (Op. cit., p. 38). 267 Para que se tenha melhor compreensão de determinado instituto jurídico, é recomendável situá-lo em um contexto histórico, encontrar suas raízes, verificar a sua evolução. Sobre a importância da História, discorreu Karl Jaspers: “No espelho que é a História, enxergamos para além da estreiteza do presente e discernimos padrões. Sem História, perde alento nosso espírito. Se quisermos ignorar nossa História, ela nos surpreenderá à nossa revelia. Os espectros do passado nos conduzem. [...] Se saíssemos da História, tombaríamos no nada. Fora de nossa existência na História, não dispomos de nenhum fio de Ariadne capaz de conduzir-nos à autenticidade. Sem História, vemo-nos privados de linguagem que nos permita indiretamente falar das origens de que brotamos e que nos sustentam. Não podemos passar para além da

117

autoridade judiciária e aquele em face do qual se imputa a prática de um fato criminoso.

Suas raízes se confundem com a própria história do processo penal.268

Para Sílvio César Arouck Gemaque, “o interrogatório surge como um dos

instrumentos mais importantes para a comprovação da tese defensiva ou como um

instrumento para desmascará-la”. 269 As declarações prestadas pelo réu, cara a cara com

o juiz, são decisivas para o desfecho do processo.

O povo hebreu foi quem primeiro vislumbrou no interrogatório do réu um

mecanismo de defesa, preservando-se a sua dignidade. Não se admitia a prisão

preventiva nem condenação do réu com base em único depoimento, reforçando o

brocardo testis unus, testis nullus. A confissão também não era tida como suficiente a

embasar um decreto condenatório, conferindo-se ao ato de interrogatório a sua mais

ampla publicidade.270

Segundo aponta Jorge Alberto Romeiro, “a confissão do acusado era entendida

como aberrante da natureza humana, ou decorrente de um estado de loucura

transitório”.271 Plenamente compreensível é esse entendimento, pois não há como deixar

de achar estranho alguém falar algo que poderá ser usado contra si próprio.

Na Grécia, conforme aponta Carlos Henrique Borlido Haddad, o ônus da prova era

invertido, cabendo à defesa apresentar as provas hábeis para a demonstração de

inocência do acusado, que também prestava juramento antes de ser julgado. Admitia-se

o uso da tortura contra os escravos, já que estes – por essa condição – não realizavam o

juramento.272

O processo penal romano divide-se em quatro fases: cognitio, anquisitio,

accusatio e inquisitio. Em Roma, nota-se a preocupação com a autodefesa do acusado

na sua vertente do direito de presença, uma vez que, na última fase do processo penal

romano, não se admitia o julgamento à revelia do acusado. Em Roma, o interrogatório

era considerado meio de prova e de defesa.273

História, mas, percorrendo-a, por assim dizer, vemo-la tornar-se transparente a uma luz vinda de outras regiões. É como se, ao longo do tempo, tivéssemos a experiência de um eterno presente no fenômeno do tempo”. (Introdução ao Pensamento Filosófico. 19.ª edição. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 33-34). 268 GEMAQUE, Sílvio César Arouck. Op. cit., p. 7. 269 Op. cit. p. 7. 270 Id, ibid, p. 9. 271 Op. cit. p. 20. 272 O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 60. 273 ROMEIRO, Jorge Alberto. Op. cit. p. 24.

118

Com a aniquilação do Império Romano, houve a descentralização do poder estatal,

fortalecendo-se a Igreja Católica e, conseqüentemente, percebendo-se maior penetração

do Direito Eclesiástico, aplicando-se nos interrogatórios as denominadas ordálias ou

juízos de Deus. A propósito, colaciona João Mendes de Almeida Júnior:

1.º ninguém pode ser condenado sem ser acusado pelo ofendido e ouvido, salvo o caso de delito flagrante e clamor geral; 2.º em falta de testemunhas do fato ou de outras provas contra o acusado, os membros da sua comunidade dão dele testemunho pró ou contra (conjuratores); se o testemunho lhe era contrário, as ordálias ou juízos de Deus eram empregados. As ordálias consistiam ou em ficar durante um certo tempo n´água, sem asfixiar-se, ou em mergulhar o braço em água fervente, ou em tocar as mãos em ferro quente, etc.274

No chamado período das trevas, a confissão era suficiente e bastante para a

condenação do acusado. Caso não houvesse a admissão da culpa pelo imputado, este

era submetido aos cruéis métodos probatórios das ordálias ou juízos divinos,

representando o modelo inquisitório de processo penal. Havia, na Idade Média, uma

supervalorização da confissão e uma preocupação constante dos juízes em obtê-la, o

que, infelizmente, ainda se observa entre os juízes de hoje, o que levava, inclusive, à

admissão da tortura.275

Com a promulgação da Magna Carta em 1215, o povo inglês276 deu exemplo ao

mundo de como a liberdade deveria ser exaltada, ressuscitando a chama da defesa por

ocasião do interrogatório, segundo a visão poética de Jorge Alberto Romeiro:

Um povo, entretanto, cujo destino parece ter sido traçado para o pálio da liberdade – maior bem da vida humana - , acastelado nas suas ilhas de granito, com os seus torrões de rochas em alcantil olhando a Macha, um fosso intransponível, arrostou incólume a borrasca de séculos que varreu a Europa, com o medievo direito canônico, influenciado pelo romano e o nefando absolutismo monárquico. Este grande povo, o inglês, que, em 1215

274 O processo criminal brasileiro. 4,ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, v. 1, p. 38-39. 275 “A tortura, que era amplamente utilizada, sendo aplicada inclusive às testemunhas, dividia-se em três graus, distribuindo-se em três partes do corpo, isto é, nas articulações das mãos, quando se atavam o ombro e as articulações, gravitando nelas todo o peso do corpo, de depois no peito, continuando a dor desde o princípio até o fim, resultando que o réu confessava mais facilmente com a corda do que com o fogo”. (GEMAQUE, Sílvio César Arouck, Op. cit. p. 19). 276 Em verdade, a Carta Magna do Rei João-sem-Terra, marco de extrema importância para o constitucionalismo, não foi o resultado da luta do povo inglês, mas uma imposição de barões locais, insatisfeitos com a alta tributação imposta pela realeza. Conforme aponta José Joaquim Gomes Canotilho, a Magna Charta Libertatum não espelhava uma manifestação dos direitos fundamentais, “mas da afirmação de direitos corporativos da aristocracia feudal em face do seu suserano”. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª edição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 382). Assim, esse corpo de direitos representou um mecanismo de convivência entre o reis e os barões, consistindo basicamente “no reconhecimento de certos direitos de supremacia ao rei em troca de certos direitos de liberdade estamentais consagrados nas cartas de franquias”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p., 382) Embora inicialmente destinada à proteção de uma determinada camada da população – a aristocracia feudal – a interpretação dos direitos contidos no diploma foi ampliado até verdadeiramente ser uma carta de direitos que tinha por beneficiários todos os cidadãos.

119

consagrou na sua Magna Carta o princípio da liberdade humana, [...] compreendeu, mais cedo que os demais,o ilogismo da tortura e de todos os pretensos meios de obter-se a verdade de um indivíduo, proclamando, no seu direito, o verdadeiro conceito do instituto do interrogatório, que é aquele por nós defendido, transplantando-o mais tarde para os Estados Unidos.277

Quando do descobrimento do Brasil, em 1500, o País era regido pelas ordenações

manuelinas. Com a instituição do sistema das capitanias hereditárias e a divisão do

Brasil em doze grandes áreas geográficas, cada uma dessas áreas foi confiada a

donatário, dotado de poder jurisdicional. Em 1549, com a centralização do poder em

torno do Governo Geral, inicia-se o nascimento do Poder Judiciário. Em 1808, D. João

VI vem ao Brasil e fortalece o sistema judiciário, consolidado por Dom Pedro I.278

Com a independência do Brasil, é editado em 1832 o Código de Processo

Criminal, dando maior ênfase ao tratamento dos direitos e garantias individuais.

Mencionado diploma legislativo tratou do interrogatório em quatro oportunidades: na

prisão em flagrante (art. 132), na fase de formação da culpa (art. 142); para “ratificação

perante o primeiro Conselho de Jurados ou Júri de acusação” (art. 245) e o último

perante o Júri de Sentença (art. 259).

Proclamada a República, os estados passaram a ter competência legislativa em

matéria processual, com obediência aos parâmetros estabelecidos na Constituição. Por

fim, em 03 de outubro de 1941, é publicado o Decreto-Lei n.º 3.689, o Código de

Processo Penal, que resultou de projeto confeccionado por uma comissão formada pelos

juristas Cândido Mendes de Almeida, Vieira Braga, Nelson Hungria, Narcélio de

Queirós, Roberto Lira e pelo Desembargador Florêncio de Abreu. 279

No atual Código, o interrogatório foi inserido no título VIII, destinado às provas.

Concebia-se o ato para a oitiva do réu como personalíssimo do juiz, não se admitindo a

intervenção do Ministério Público e da defesa, a presença do advogado era facultativa, o

silêncio do réu poderia ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Nesses mais de

sessenta anos, o Código foi objeto de várias modificações, em busca de um maior

alinhamento com os novos ares libertários da Constituição Federal de 1988.

277 ROMEIRO, Jorge Alberto. Op, cit. p. 32-33. 278 GEMAQUE, Sílvio César Arouck. Op. cit. p. 25. 279 Id. ibid. p. 25-26.

120

7.2 A natureza do interrogatório

Discute-se, na doutrina, se o interrogatório é meio de defesa ou meio de prova.

O interrogatório é um ato processual destinado a possibilitar o exercício da

autodefesa do acusado, momento em que este poderá fornecer ao juiz da causa a sua

versão acerca dos fatos articulados na denúncia. “É o momento – tal como a contestação

no cível – onde o acusado resiste à pretensão deduzida na inicial da acusação”.280 Não

visa à obtenção da verdade material, mediante a colheita de informações que sirvam de

substrato para um eventual decreto condenatório. O Estado deve servir-se de meios para

lastrear a persecução penal sem a necessidade de tentar extrair do imputado tais

elementos probatórios.

Decerto, o conteúdo do depoimento do réu poderá ser utilizado pelo juiz na

sentença, tanto para a confecção de um decreto condenatório, quanto para a feitura de

uma sentença absolutória. Isso, no entanto, não faz do interrogatório meio de prova,

mas, sim, fonte de prova.

O critério para se definir se o interrogatório é meio de defesa ou meio de prova é o

teleológico. Se a finalidade do ato fosse a de buscar a tão almejada verdade material,

tratar-se-ía de meio de prova. Como já dito, no entanto, o objetivo do interrogatório é o

de viabilizar a autodefesa, tratando-a como garantia realizável empiricamente e não

como mera entidade retórica despida de efetividade. Assim, tem-se que o interrogatório

é meio de defesa.

Jorge Alberto Romeiro anota ser impossível tentar conciliar a caracterização do

ato de interrogatório como meio de defesa e, ao mesmo tempo, como meio de prova,

afirmando que “o conceito de meio de defesa para o instituto do interrogatório é o único

condizente com a ordem natural das coisas e a natureza humana do acusado, ao qual

repugna incriminar-se a si próprio”.281 Para o autor, o acusado é a pessoa menos

indicada a expressar a verdade, uma vez que “inocente ou culpado, consciente ou

inconscientemente deturpa sempre a verdade o indiciado”.282 Se inocente, o abalo

sofrido com uma acusação injusta afeta suas declarações. Sendo culpado, como inexiste

compromisso com a verdade, suas palavras não devem merecer credibilidade. 280 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Op, cit. p. 44. 281 Op. cit. p. 48-49. 282 Op. cit. p. 54.

121

Assentando-se que o interrogatório configura meio de defesa, tem-se como

conseqüência o que está delineado na seqüência:

a) Obrigação do juiz de cientificá-lo da acusação (ver item 6.3).

Cabe ao magistrado, antes de iniciar ao interrogatório, ler a denúncia para o réu e

explicar, com uma linguagem simples e acessível, a acusação posta contra o

interrogando. Como já mencionado, o conhecimento prévio da acusação é pressuposto

para o exercício da autodefesa. A autoridade judiciária, na elaboração das perguntas,

deve usar uma linguagem simples, acessível, passível de pronta assimilação pelo

interrogando, de modo a permitir uma declaração despida de qualquer vício.283

b) Proibição de qualquer pressão ou coação, física ou moral, tal como o

hipnotismo, aplicação de soros da verdade ou do detector de mentiras (lie detector).

É preciso que se deixe o interrogando livre de qualquer pressão no momento em

que for prestar suas declarações perante o magistrado. Impõe-se, pois, que se deixe de

lado essa busca incessante pela confissão por parte dos juízes. Naturalmente, o

interrogatório já é algo que provoca mudanças no estado psicológico do réu, deixando-o

nervoso, tenso. Essa agitação natural não pode ser agravada diante da utilização de

métodos aviltantes pelo juiz.

c) Figurar o interrogatório como ato final da instrução.

Com a transferência do interrogatório como ato final da instrução o acusado terá

condições de exercer com maior amplitude a autodefesa, uma vez que, diante do

conhecimento do teor dos depoimentos das testemunhas e das provas dos autos, terá

condições de contraditá-las no interrogatório. Já saberá, portanto, o réu, de todo o

conjunto probatório delineado nos autos.284

d) A assistência obrigatória de advogado no interrogatório.285

A presença do advogado no interrogatório, no entender da jurisprudência

majoritária, somente veio a se tornar obrigatório, com a vigência da lei 10792/2003. A

necessidade de defesa técnica, porém, no momento do interrogatório já era exigível bem

283 RISTORI, Adriana Dias Paes. Op. cit., p. 144. 284 Reconhecendo ser mais benéfico ao réu a colocação do interrogatório como ato final da instrução, Carlos Henrique Borlido Haddad discorreu: “não há dúvidas de que a colocação do interrogatório como ato final do procedimento é mais benéfico ao acusado, pelo antecipado conhecimento das provas até então colhidas”. In “O novo interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005, p. 241. 285 Id. Ibid, p. 116.

122

antes, como decorrência lógica da aplicação do princípio da ampla defesa, mas a cultura

excessivamente legalista dos juízes286 e tribunais levou ao entendimento de que, se a lei

não exigia a presença de advogado, tal presença não era necessária. Agora, lex habemus.

Entendia-se que a presença do advogado atrapalharia a busca pela verdade

material287, já que o acusado falaria com maior facilidade se não contasse com defensor,

já que este poderia orientar-lhe a permanecer em silêncio ou de adotar determinada tese

defensiva, que rechaçasse a tão almejada confissão.

7.3 Obrigatoriedade

Indaga-se se a realização do interrogatório é ato indispensável do processo ou se

sua realização ficará na dependência do juiz. O art. 185 do Código de Processo Penal

estabelece: “O acusado que comparecer perante à autoridade judiciária, no curso do

processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído

ou nomeado”.

Interessante discussão travada no Supremo Tribunal Federal trouxe à tona a

questão da essencialidade do interrogatório em todos os procedimentos criminais. Será o

interrogatório componente indispensável do devido processo legal? Há determinados

procedimentos que podem ser realizados, culminando com a perda da liberdade do

acusado sem que lhe seja dada a possibilidade de ser ouvido diretamente pela autoridade

judiciária? O art. 185 do CPP deve ser aplicado aos procedimentos que não prevêem o

interrogatório como ato indispensável?

O Excelso Pretório debruçou-se sobre a análise dessas questões ao apreciar a

compatibilidade do art. 359 do Código Eleitoral com a ordem constitucional vigente,

antes da modificação da lei 10.732, de 05.09.2003.288 Em sede de recurso

extraordinário, pugnava-se pela anulação de um processo-crime eleitoral, em que o

286 Walter Nunes da Silva Júnior observa que o positivismo jurídico foi superado, assim como os regimes autoritários, apontando que “o compromisso do operador jurídico, no ambiente democrático, não é com a lei, conformadora e legalizadora do Estado, mas com a justiça, devendo servir-se do Direito como instrumento de vida, via expedita para a plena realização dos valores mais caros e indispensáveis ao ser humano”. Op. cit., p. 235. 287 QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit. p. 43. 288 Esta lei deu nova redação ao artigo 359 do Código Eleitoral, que passou a ter a seguinte disposição: “Recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para o depoimento pessoal do acusado, ordenando a citação deste a notificação do Ministério Público”.

123

interrogatório não fora designado, já que o art. 359 do diploma eleitoral não estabelecia

um momento processual próprio para a oitiva do réu, ad litteram: “Recebida a denúncia

e citado o infrator, terá este o prazo de 10 (dez) dias para contestá-la, podendo juntar

documentos que ilidam a acusação e arrolar as testemunhas que tiver”.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o interrogatório não era obrigatório por

falta de previsão expressa no Código Eleitoral. Eis a ementa da decisão prolatada:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. COMPETÊNCIA DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL PARA A EMISSÃO DE JUÍZO DELIBATÓRIO DE SUA PLAUSIBILIDADE.

Interrogatório. Ato não previsto no processo eleitoral (art. 359 do CE), além de, caso concreto, intempestivamente requerido, operando-se a preclusão de eventual nulidade relativa, decorrente da alegada omissão.

Preclusão, igualmente, da assertiva da falta de vista à defesa sobre documentos juntados aos autos.289

O interrogatório é ato indispensável no processo penal brasileiro, vez que

possibilita o exercício da autodefesa por parte do acusado. Em qualquer procedimento

que acarrete o reconhecimento da culpabilidade do réu com a aplicação de uma sanção

penal, deve ser fornecida ao imputado a chance de levantar argumentos em sua defesa.

O processo penal eleitoral não foge a esse desígnio. O entendimento esposado pelo

Supremo Tribunal Federal tripudia sobre a proteção do núcleo essencial da ampla

defesa. Explica-se: ao entender que o interrogatório é dispensável, o Excelso Pretório

retirou qualquer possibilidade de o réu apresentar, pessoalmente, a versão dos fatos.

Com efeito, o interrogatório é o único ato do processo penal em que o réu expõe

diretamente ao juiz a sua narração dos acontecimentos. Interessante é observar o

fundamento utilizado pelo Ministro Moreira Alves para defender a prescindibilidade do

interrogatório: “Se o interrogatório é absolutamente necessário, a Lei de Imprensa

também seria inconstitucional”.290

Ora, em vez de interpretar o art. 359 do Código Eleitoral à luz da Constituição, o

Min. Moreira Alves usa como argumento o fato de a Lei de Imprensa não haver previsto

o interrogatório no procedimento para o julgamento dos crimes nela tratados. Caberia ao

STF dizer se a ausência do interrogatório prejudicaria, ou mesmo impossibilitaria, o

exercício do direito de defesa. Se a Lei de Imprensa também é incompatível com a

Constituição – paciência – que se declare a sua revogação. Não é um erro que vai

justificar o outro. Não se pode moldar as garantias constitucionais sob as tintas da lei

289 STF. 1.ª Turma. RE 242326/SP. Rel. Min. Octavio Galotti. J. 10.10.2000. DJ 04.05.2001, p. 37. 290 STF. 1.ª Turma. RE 242326/SP. Rel. Min. Octavio Galotti. J. 10.10.2000. DJ 04.05.2001, p. 37.

124

ordinária. É esta que deve concretizar os preceitos constitucionais de modo a conferir-

lhes efetividade.

Afasta-se, portanto, a idéia de que a Constituição é que se deve conformar aos

parâmetros de atuação contidos na lei. O legislador processual tem a cara missão de

concretizar o princípio da ampla defesa, cuidando da preservação de seu núcleo

essencial.291

Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal admitiu que “a garantia

constitucional da ampla defesa tem, por força direta da Constituição, um conteúdo

mínimo, que independe da interpretação da lei ordinária que a discipline”.292

Retornando à análise do interrogatório e sua inserção no Código de Processo

Penal, usa o CPP o verbo será, no tempo futuro, indicando, prima facie, tratar-se o

interrogatório de ato indispensável ao processo. O interrogatório enquadra-se como o

palco maior para o exercício da atividade defensiva; no entanto, este exercício da defesa

pelo próprio réu, ao contrário da defesa técnica, é facultativo. Não se pode constranger o

réu nem a fornecer elementos auto-incriminatórios, mas também não há como lhe exigir

um comportamento processual de ataque à acusação. Disso não se duvida. Agora,

mesmo sendo o exercício da defesa pessoal facultativo, o que é indispensável é o ensejo

para a sua manifestação, mesmo que haja declaração prévia do réu no sentido de não

prestar depoimento. Há, pois, na autodefesa, elementos indisponíveis. Ainda assim, o

juiz deve convocá-lo ao interrogatório. Nesse ponto, percebe-se o caráter da autodefesa

como garantia.

Revele-se que a obrigatoriedade do interrogatório não se delimita a única

oportunidade. Mesmo já tendo sido interrogado, caso deseje o acusado se retratar da

confissão293 ou de rebater provas carreadas aos autos após o seu primeiro interrogatório,

poderá peticionar pela designação de nova audiência para formular novas declarações

perante o juiz. O artigo 196 do Código de Processo Penal estabelece que o

291 Consoante ensina a professora Ana Maria D´Ávila Lopes: “[...]o legislador – em matéria de direitos fundamentais – tem duas obrigações: o dever de concretizar o conteúdo normativo desses direitos permitindo a sua real aplicação e o dever de respeitar o seu conteúdo essencial”.(In “A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais”. Revista de Informação Legislativa n.º 41. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2004, p. 8). 292 STF. RE 255.397. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 07.05.2004. 293 Carlos Henrique Borlido Haddad entende que, se a defesa requerer a designação de novo interrogatório com a finalidade de permitir a retratação da confissão, a repetição do mencionado ato processual torna-se direito subjetivo do acusado. (O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 103).

125

interrogatório poderá ser realizado a qualquer tempo, a critério do juiz, ou a pedido de

qualquer das partes. Em grau de recurso, também existe a possibilidade de realização de

um novo interrogatório, consoante disposição prevista no art. 616 do CPP. Muitas

vezes, um interrogatório lacônico prejudica a percepção do julgador, de modo que se

torna providência salutar a designação de uma nova audiência para dissipar as

obscuridades e omissões. Embora exista previsão legal expressa fornecendo ao julgador

– que não presidiu ao interrogatório – a chance de ter contato pessoal com o indivíduo

que será julgado, mencionada previsão legal é de rara utilização. Juízes e tribunais

optam em julgar os processos sem ao menos ouvir, da boca do próprio acusado,

declarações sobre a imputação formulada.

Em se tratando de pedido da defesa, quando esta demonstrar a importância de um

novo interrogatório – seja para que o réu se retrate da confissão ou mesmo para revidar

diante de provas carreadas aos autos posteriormente – é dever e não mera

discricionariedade do juiz marcar nova audiência para dar ensejo ao exercício da

autodefesa. A faculdade para realização de novo interrogatório existe quando o juiz atua

de ofício e não quando houver pedido da defesa, a menos que o requerimento defensivo

não aponte nenhuma razão plausível para a designação de novo interrogatório. Sem

dúvidas, a possibilidade de nova inquirição não vincula o magistrado ao teor das

recentes declarações. Vale dizer: deixa-se ao juiz ampla liberdade para valorá-las, em

conjunto com as demais provas do processo. Com a realização de um novo

interrogatório, amplia-se o campo de valoração probatória do juiz, tendo este maiores

condições de chegar a um julgamento imparcial. Poderá o juiz concluir quais das

versões apresentadas mostram-se mais harmônicas em relação às demais provas

acostadas.

Há quem defenda a posição de que o interrogatório deveria ser transformado em

ato facultativo, a ser realizado somente quando houver requerimento da defesa.

Constituindo-se meio de defesa, não poderia ser ato obrigatório do processo.294

Rechaça-se a opção pelo caráter facultativo do interrogatório, pois a sua obrigatoriedade

não causa qualquer prejuízo ao acusado, pelo contrário, deixa-se assentado, de forma

inarredável a opção pelo exercício do direito de audiência.

294 PEDROSA, Ronaldo Leite. Op. cit., p. 157.

126

7.4 O interrogatório no modelo garantista e as inovações decorrentes da lei

10.792/2003

A alteração introduzida no sistema de interrogatório, pela lei n.º 10.792/2003, veio

reforçar a idéia de que o interrogatório é meio de defesa.295 De forma expressa, a lei

veio a garantir o direito ao silêncio, expurgando a famigerada advertência de que o

silêncio do imputado poderia ser interpretado em prejuízo de sua defesa. Ressaltou e

estimulou o exercício da autodefesa, deixou clara a exigência de defensor e possibilitou

às partes a formulação de reperguntas ao imputado.

O interrogatório é a oportunidade maior para o acusado influenciar o juiz de que

os argumentos expostos em sua autodefesa merecem acolhimento. Sendo assim, cumpre

que se identifiquem os pontos a serem respeitados no interrogatório para que o direito

de defesa pessoal do imputado seja preservado em sua inteireza, à luz do garantismo

penal.

7.4.1 Direito ao silêncio e sua utilização pelo juiz

Conceber o interrogatório como meio de defesa implica conceder ao réu a

possibilidade de não responder às perguntas formuladas sem que sofra qualquer prejuízo

diante dessa inação. Assim está redigido o art. 186 do Código de Processo Penal:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Consagrado está, no direito positivo, com assento constitucional e também legal, o

direito que o réu tem de permanecer em silêncio por ocasião do seu interrogatório. Cabe

ao juiz, antes de iniciar as perguntas, esclarecer o interrogando de que este poderá

permanecer calado e que o silêncio não será utilizado para o prejudicar. Não pode o

magistrado “assumir uma postura intimidativa, às vezes com comentários de possíveis 295 Para uma análise detalhada da lei 10.792/2003: Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. “O interrogatório como meio de defesa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 53. São Paulo: RT, 2005, pp. 185-200. HADDAD, Carlos Henrique Borlido. “O novo interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005, p. 231-292.

127

conseqüências desfavoráveis ao argüido, a influí-lo negativamente quanto à sua

escolha”.296 É preciso deixar o interrogando à vontade para prestar declarações que

sejam fruto de uma escolha consciente.

No momento do interrogatório, fica vedado ao magistrado apresentar ao réu

possíveis vantagens da confissão ou de uma delação premiada. A escolha sobre o

melhor caminho a ser trilhado pelo acusado há de ser feita por este e por seu defensor,

sendo indevida qualquer intromissão do juiz nessa escolha, na tentativa desenfreada pela

confissão. O direito de entrevista pessoal do réu com o defensor serve exatamente para a

orientação do réu. Embora sendo benefícios reconhecidos por lei, não cabe ao juiz tentar

seduzir o acusado com os encantos oferecidos pela confissão ou pela delação premiada

por ocasião do interrogatório. É mais cômodo e seguro ao julgador prolatar uma

sentença condenatória quando o acusado confessa a prática do delito. Torna-se mais

eficaz o combate ao crime organizado quando é feita a delação premiada – disso não se

tem dúvida. Agora, oferecer essas vantagens legais no momento em que o réu vem

exercitar seu direito de audiência é uma tentativa de induzir suas declarações.

Consoante explica Adriana Dias Paes Ristori, no momento em que o juiz se

imiscui nessa função de orientar o réu sobre o teor de seu depoimento, “há o risco de

que suas explicações adquiram caráter insinuante e coativo, maculando a liberdade de

autodeterminação do argüido e, conseqüentemente, o risco de produção de prova

proibida”.297 Reforça a escritora a importância do esclarecimento do direito ao silêncio,

“a fim de assegurar ao argüido a opção entre cooperar ou não com a investigação em

curso”.298

Carlos Henrique Borlido Haddad sustenta que, quando o réu silencia diante de

algumas perguntas e responde a outras, há a possibilidade de o juiz considerar tais

circunstâncias na formação de seu convencimento. Para o mencionado autor, o que não

pode ser considerado para prejudicar o réu é o silêncio, isoladamente concebido. À luz

de outros elementos probatórios contidos nos autos, porém, o silêncio do réu poderia ser

utilizado pelo juiz na sentença, como razão de decidir.299 Não há como aceitar tal

entendimento, que desconfigura o direito ao silêncio. O réu pode silenciar diante de

296 RISTORI, Adriana Dias Paes. Op. cit., p. 145. 297 Op. cit., p. 140. 298 Id. Ibid., p. 173. 299 “O novo interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005, p. 272.

128

todas as perguntas ou de apenas algumas delas. O exercício do direito ao silêncio, total

ou parcial, não pode prejudicar o acusado, portanto, não pode ser utilizado pelo

magistrado ao expressar sua convicção fundamentada, embora influa na sua íntima

certeza.300

O silêncio do imputado não pode resultar em qualquer forma de valoração, como

ressalta Manuel da Costa Andrade, acolhendo a tese que “coloca as declarações do

argüido a coberto de invencível proibição de valoração, [...] e proíbe que o silêncio do

argüido possa de qualquer forma ser valorado contra ele”301. É uma conduta neutra302 do

réu. Classifica o jurista lusitano, com apoio na doutrina alemã, o silêncio como um nada

jurídico.303

Sendo reconhecido ao imputado o direito de não responder às perguntas

formuladas pela autoridade policial ou pelo juiz durante o interrogatório, é de ser

garantido também o direito de comparecimento ao interrogatório. Desse modo, tendo o

acusado o direito de comparecer aos atos processuais, não pode ser constrangido a estar

presente perante à autoridade que vier a presidir o interrogatório. Não faz sentido

conduzir coercitivamente o réu à presença do magistrado ou do delegado somente para

que o acusado fique calado. A ausência do réu ao ato deve ser interpretado como opção

pelo silêncio. Nesse sentido, com veemência, Eugênio Pacelli de Oliveira assinala que o

direito ao silêncio não pode ser reduzido ao mero “direito de emudecer diante do

juiz”.304

Não se admite, dessa forma, a condução do indiciado ou do acusado para fins de

interrogatório, exceto, em duas situações. No primeiro caso, quando houver dúvidas

sobre a correta qualificação do réu, este poderá ser conduzido e estará obrigado a dizer a

verdade em relação a dados acerca de sua identificação. Assim, permite-se a condução

coercitiva do réu ao interrogatório com a finalidade de realização do chamado

interrogatório de qualificação, pois o fornecimento, pelo próprio réu, de informações a

300 O processo judicial deve ser desenvolvido com estrita observância aos princípios constitucionais protetores da incolumidade jurídica do acusado. Assim, mesmo que ache que o réu é culpado, em seu íntimo o juiz pode estar até convencido de que o acusado foi o autor do delito, porém não poderá expressar esse convencimento, que ficará restrito ao seu intelecto. O juiz decide e expressa sua convicção com apoio na prova dos autos. 301 Op. cit., p. 128. 302 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 54. 303 Id. Ibid., p. 129. 304 Op, cit., p. 348.

129

respeito de seu nome, endereço, estado civil e filiação não denota o exercício de

qualquer atividade defensiva.

A segunda situação na qual há permissão para a condução coercitiva é por ocasião

do interrogatório na sessão de julgamento do júri. Como já mencionado (tópico 6.5.2.2),

é bastante tormentosa a utilização do silêncio no tribunal popular do júri, uma vez que

os jurados poderão interpretar a ausência de respostas do réu em prejuízo de sua defesa.

Nesse caso, a condução coercitiva não objetiva atrapalhar nem diminuir o exercício do

direito ao silêncio, pelo contrário, busca evitar que os jurados não utilizem o silêncio do

acusado para prejudicá-lo. Embora possível a condução coercitiva – no caso do júri –

essa situação deve ser evitada pela defesa, cabendo ao advogado esclarecer o acusado

das conseqüências do seu não-comparecimento à sessão de julgamento.

7.4.1.1 Direito de mentir

A opção feita pelo réu de não responder às perguntas formuladas pelo juiz,

permanecendo em silêncio, não pode ser utilizada contra o imputado. Agora, se o réu

mente no interrogatório, essa mentira pode ser utilizada pelo juiz como elemento para a

formação de seu convencimento? Há um direito de mentir por parte do acusado?

Na doutrina, o tema não recebe consenso. Guilherme de Souza Nucci anota que o

réu tem o direito de mentir, exceto no interrogatório sobre sua qualificação, amparado

pelo princípio da ampla defesa.305 Adriana Dias Paes Ristori advoga a tese de que a

liberdade que envolve as declarações do imputado não faz surgir um direito à

mentira.306 Maria Elizabeth Queijo sustenta inexistir um direito à mentira, mas ressalta

que essa mentira não poderá ser valorada pelo juiz.307 Jorge de Figueiredo Dias também

não reconhece a existência de um direito de mentir, mas acrescenta que a mentira do réu

não pode ser valorada contra o mesmo.308

O direito ao silêncio não gera um autêntico direito de mentir. Se fosse um direito,

o acusado teria meios de exigir que suas declarações fossem aceitas pelo magistrado.

Indubitável é que o acusado não pratica qualquer crime quando falseia a verdade em

305 Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 401. 306 Op. cit., p. 156. 307 Op. cit., p. 235. 308 Op. cit., p. 451.

130

juízo, a menos que o faça para assumir indevidamente a prática de um crime ou que

venha a atribuir levianamente o cometimento do delito a uma pessoa que sabe ser

inocente. Nesse último caso, tem-se defesa criminosa e não defesa tutelada pelo

ordenamento jurídico, (Ver item 7.5) A mentira do réu, no entanto, não chega a

configurar direito, “interesse juridicamente protegido”;309 nem toda conduta

juridicamente tolerada galga o status de direito.310

Não sendo a mentira um direito, permite-se ao juiz comparar as declarações

falaciosas do réu com as demais provas do processo, a fim de desqualificar seu

depoimento como fonte de prova. Pode o réu ser prejudicado em razão de seu

depoimento inverídico, pois este terá a credibilidade afetada. Dentro do seu livre

convencimento motivado, não há como vedar ao magistrado de realizar a valoração da

mentira. Se assim não fosse, só poderia se valer o julgador do depoimento do réu para

beneficiá-lo, nunca para prejudicá-lo. Isso não pode, contudo, acarretar qualquer

inversão do ônus da prova. A mentira, isoladamente considerada, não serve para

justificar o recebimento de uma denúncia, a pronúncia do acusado no júri, muito menos

a prolação de um decreto condenatório. Muitas vezes, ao prolatar um decreto

condenatório, o juiz, em vez de indicar as provas da materialidade e autoria do delito,

limita-se a apontar contradições no depoimento do réu, como se tais paradoxos, por si,

fossem suficientes para motivar uma condenação. Quando o réu deturpa a verdade, não

se dispensa o Ministério Público de demonstrar as provas da materialidade e autoria do

delito. Não é a mera fragilidade das teses expostas pela autodefesa que acarreta a

procedência da acusação.

7.4.1.2 O registro das perguntas não respondidas e dos motivos levantados pelo réu para

permanecer calado

Fincado o entendimento de que o silêncio do acusado não pode ser valorado pelo

juiz, cumpre analisar a possibilidade de consignação das perguntas, durante a

formulação das quais optou por permanecer calado, e as razões invocadas por ele.

309 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 59. 310 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 275.

131

A antiga redação do artigo 191 do Código de Processo Penal estabelecia

expressamente a possibilidade dada ao juiz de registrar no termo de audiência as

perguntas dirigidas ao réu e por ele não respondidas, bem como dos motivos suscitados

por este para se calar. Tal dispositivo foi retirado do CPP, mas não há vedação expressa

à adoção dessa conduta pelo magistrado. A questão levantada deve ser respondida

mediante uma análise da amplitude do direito ao silêncio, da repercussão do

reconhecimento dessa modalidade de autodefesa negativa no processo penal brasileiro.

A consignação das indagações feitas pelo magistrado no interrogatório e

silenciadas pelo acusado, bem como das razões mencionadas para tal negação fere a

autodefesa do réu, em sua modalidade negativa. Com efeito, não podendo o silêncio do

imputado ser valorado, a redução a termo dessas informações é idônea a influenciar o

órgão julgador.311 Caso o imputado faça a opção pelo silêncio, não pode o juiz solicitar

do interrogando esclarecimentos sobre a adoção desse comportamento processual

legítimo. Essa insistência do magistrado será entendida pelo réu como reprimenda,

podendo o interrogando ser induzido a prestar declarações que não foram fruto de uma

manifestação de vontade livre, consciente, desgarrada de pressões de toda sorte.

Nessa ordem de idéias, assevera Maria Elizabeth Queijo que, a fim de

impossibilitar a extração de qualquer conseqüência gravosa ao interrogando, “tutelando

amplamente o nemo tenetur se detegere, não deve haver consignação das perguntas não

respondidas”.312

No mesmo sentido, Adriana Dias Paes Ristori conclui que as perguntas em face

das quais o acusado silenciou não podem ser consignadas, pois “podem dar azo à

valoração do silêncio, com conjecturas e deduções, o que não é permitido”313, não

admitindo também a autora indagações sobre as razões desse silêncio: “ [...] impossível

assacar do argüido as razões pelas quais deixou de responder às perguntas

formuladas”.314

311 Esclarece Walter Nunes da Silva Júnior, ao expor a razão de ser do registro das perguntas: “O dever de documentação era para que o juiz pudesse, ao exarar a sentença, fazer referência ao fato de o acusado ter silenciado. Na falta de documentação desse acontecimento ocorrido oralmente em audiência, o juiz não poderia, à evidência, fundamentar a sua decisão com base nesses elementos, até porque não se saberia, ao certo, quais teriam sido as perguntas, com os seus respectivos conteúdos, que não tinham sido respondidas pelo acusado”. (Op. cit., p. 751). 312 Op. cit., p. 216. 313 Op. cit., p. 153. 314 Id. Ibid., p. 153.

132

Carlos Henrique Borlido Haddad também rechaça a possibilidade de consignação

das perguntas não respondidas, salientando que, se o réu prefere permanecer em

silêncio, tal opção deve ser respeitada pelo julgador. Na óptica do autor, caso o juiz

continue a formular repetidamente as perguntas e registrando-as no termo, estará

exercendo uma forma de coação contra o interrogando, para que este fale.315

Em posição contrária, João Cláudio Couceiro admite tanto a consignação das

perguntas não respondidas quanto a valoração desse comportamento pelo magistrado.316

Ainda que o magistrado não deixe expressas tais circunstâncias, não há como se

deixar de reconhecer que o registro nos autos de tais informações influencia o juiz. Caso

o acusado faça opte por não responder às perguntas, não há que se fazer qualquer

registro. De igual modo, quando apontar as razões pelas quais silencia diante de uma

indagação, tais escusas não podem ser consignadas. Aquilo que não pode ser valorado

não pode ser incluído nos autos. 317

7.4.2 Estímulo ao exercício da autodefesa

Restando assentado o fato de que o interrogatório é uma das mais marcantes

manifestações da autodefesa, o legislador de 2003 não se contentou com ressaltar essa

característica, fazendo com que o juiz provoque o réu para que este exercite por si a

defesa, rechaçando a acusação formulada. A redação do inciso VIII do art. 187 do CPP

é categórica: “se tem algo mais a alegar em sua defesa”.

O juiz deve se portar no interrogatório de maneira serena, convocando o réu a

participar de forma efetiva do processo, fazendo crer no imputado que suas palavras

serão avaliadas pelo magistrado. Aqui, é importante mostrar que deve ser tomada a

participação318 do réu no interrogatório em um sentido mais elástico, não somente como

315 O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 155. 316 Op, cit., p. 216. 317 Em sentido contrário, validando a consignação das perguntas não respondidas pelo réu: “ [...] O fato de o magistrado registrar as perguntas, no interrogatório da paciente, seguidas da indicação de que houve silêncio, não acarreta nulidade. O proceder do magistrado foi de fidelidade ao quanto ocorrido, por ocasião do interrogatório”. (STJ. 5.ª Turma. HC 21.278/RJ. Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. j. 05.11.2002. DJ 25.11.2002). 318 Essa idéia de participação tem no campo da política uma dimensão que pode ser tomada de empréstimo pelo processo penal e que serve de baliza para a atuação judicial. Nessa perspectiva, escreveu Fávila Ribeiro: “[...] a idéia de participação deve adquirir uma compreensão mais ampla, como o direito de se fazer ouvir e com uma possibilidade real de acolhimento da opinião exposta. Se assim não for

133

um momento para que ele responda às indagações, mas também como uma

possibilidade concreta de tentar convencer o juiz dos argumentos expostos, sabendo que

poderá influenciar na prolação da sentença.

Frise-se que nem toda declaração do réu encetada no interrogatório constitui

autodefesa. Ao confessar a prática do crime, não se tem nenhuma atividade defensiva

por parte do interrogando, no entanto, essa opção do réu será válida, se essa declaração

for livre (com respeito ao direito de responder às perguntas ou de ficar calado),

consciente (no gozo de suas faculdades mentais e com plena noção do que está fazendo)

e voluntária (resultado de uma vontade do réu, sem qualquer forma de pressão externa

que o levasse a confessar).319

Estimulando o exercício da autodefesa, o magistrado tornará a relação processual

penal mais democrática, com a participação efetiva do principal interessado no resultado

do processo.

7.4.3 Indispensabilidade da presença do defensor

Já não mais se admite a afirmação de que o interrogatório é ato personalíssimo do

juiz. O art. 133 da Constituição Federal insere o advogado como figura essencial à

administração da justiça. Nesse importante momento processual, talvez a única

oportunidade em que o acusado se dirige pessoalmente à presença do juiz para expor a

sua versão dos fatos, torna-se essencial a presença do advogado. Assim, o texto do art.

185 do CPP: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do

processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído

ou nomeado.”.

A indispensabilidade da presença do advogado no interrogatório ainda é sentida

quando o ato ocorrer no estabelecimento prisional em que estiver recolhido o réu, pois a

lei 10.792/2003 possibilitou a realização do interrogatório no presídio. Assim, evita-se o

entendido, tratar-se-á de um compromisso falacioso e de uma ignóbil fraude nos enunciados políticos”. (Pressupostos Constitucionais do Direito Eleitoral: no caminho da sociedade participativa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1990, p. 13). Giuseppe Sabatini entende que a participação do acusado no processo penal é uma expressão da dignidade da pessoa humana. (Op. cit., p. 74). 319 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 115.

134

risco de fuga do preso durante a sua condução ao fórum e economiza-se com despesas

decorrentes desse deslocamento. Tal regra é estabelecida no § 1.º do mesmo artigo:

§ 1.º O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.

A função do advogado no interrogatório do imputado não pode ser reduzida a de

um “convidado de pedra”320, mero espectador, mostrando-se alheio ao desenrolar do ato

e sem qualquer compromisso em evitar abusos por parte do juiz.

Carlos Henrique Borlido Haddad reconhece que, estando o advogado presente ao

interrogatório, há maior possibilidade do réu conseguir influenciar o magistrado, para

que este considere as declarações prestadas pelo acusado quando for prolatar a sentença.

Ressalte-se que a atuação do advogado não pode ser meramente passiva, de expectador

inerte, indiferente. Repele-se, portanto, a atuação meramente formal, exigindo-se

participação efetiva.321 Não basta, pois, a mera presença do defensor no interrogatório,

sendo preciso que este realize sua atividade com plena autonomia, sem preocupação em

agradar os juízes, em bajulá-los, como se houvesse subordinação do advogado em

relação aos magistrados.322 O vínculo do advogado criminalista é com o resguardo dos

interesses de seu constituinte, valores perante os quais o defensor poderá curvar.

A atuação do defensor, quando da realização do interrogatório, ampliará de modo

considerável a efetividade da autodefesa, na medida em que o réu poderá escolher com

maior conhecimento qual posição adotará, a fim de influenciar o magistrado

sentenciante. A presença do defensor exerce também papel intimidador, no sentido de

evitar práticas arbitrárias por parte das autoridades interrogantes, atuando o advogado

como fiscal da autoridade judiciária.323

320 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Id. ibid., p. 136. 321 “O novo interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005, p. 243. 322 Nesse passo, importante é a advertência dada por Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Caravalho: “É assustador quando se encontra, no Foro, e com alguma freqüência, advogado subserviente, omisso frente aos abusos do Poder. Neste momento a defesa se transforma em farsa, algo meramente formal, cujo resultado se sabe: danos insuperáveis ao acusado”.(Op. cit., p. 73). 323 “Quem o juiz pensa que é para não ser fiscalizado? Quem ele pensa que é para ter liberdade para atuar às escondidas num Estado Democrático de Direito, em pleno século XXI?”. (CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 64). Na mesma obra, os autores narram o caso de um réu que foi interrogado uma vez sem a presença de defensor. Nessa oportunidade, o interrogando negou a prática do delito. Anulado o processo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os atos processuais, incluindo o interrogatório, foram renovados. No segundo interrogatório, então com a presença de advogado, o réu confessa a prática do crime. O juiz, então, demonstra surpresa com a confissão e indaga:

135

É de ser garantida a presença do defensor não apenas no interrogatório judicial,

mas também ao realizado durante o inquérito policial, inclusive por ocasião da lavratura

do auto de prisão em flagrante. A efetividade da defesa técnica e da autodefesa depende

também de seu exercício na fase extrajudicial da persecução penal, pois as declarações

do réu prestadas no inquérito, ainda que possa haver retratação em juízo, muitas vezes

são utilizadas pelo Ministério Público ao ofertar a denúncia, bem como pelo juiz ao

sentenciar, sem olvidar da influência que esses depoimentos poderão ter no Tribunal do

Júri. Com efeito, ainda que esteja assentado na doutrina e jurisprudência o entendimento

de que os elementos de informação colhidos no inquérito não podem – por si – justificar

um decreto condenatório, não há como perquirir a intensidade de influência da prova

colhida no inquérito nos jurados, mais apegados aos fatos do que ao direito.

O interrogatório, ainda quando realizado durante o curso do inquérito policial, é

meio de defesa, devendo servir de palco para a tomada de declarações conscientes,

frutos da liberdade de escolha do interrogando. Na fase do inquérito, sem a presença do

advogado e sem a publicidade que norteia os atos judiciais da persecutio criminis, torna-

se mais comum a prática de abusos contra o indiciado.324

A garantia de defesa técnica ao preso não pode ser resumida à remessa de cópia do

auto de flagrante à Defensoria Pública. “Há de ser garantida a concreta assistência, a

começar pela presença do defensor ao ato de inquirição”.325 A lei 11.449/2007 estipulou

a obrigatoriedade da remessa de cópia do auto de prisão em flagrante para a Defensoria

Pública no prazo de 24 (vinte e quatro) horas contados da prisão, quando o preso não

informar que possui advogado por ocasião de seu interrogatório realizado durante a

lavratura do auto de prisão em flagrante. A modificação legislativa, ainda que não

corresponda à esperada efetividade da assistência jurídica no inquérito policial,

representou importante avanço nesse sentido. Espera-se, agora, que haja atuação eficaz

da defesa técnica nessa fase inicial da persecução penal, notadamente para evitar a

permanência desnecessária do acusado no cárcere.

“Juiz:....o senhor negou os fatos da outra vez, está lembrado? Réu: É que o senhor estava muito alterado comigo”. (Diálogo coletado pelo sistema de estenotipia). (Op, cit., p. 66). 324 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. “O novo interrogatório”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005. p. 247. 325 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, op. cit. p. 247.

136

7.4.4 Direito de entrevista com o defensor

Além da necessidade da presença de advogado, constitui-se direito do

interrogando entrevistar-se pessoalmente com seu defensor. Eis o teor do § 2.º do art.

185 do CPP: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de

entrevista reservada do acusado com seu defensor”;

Evidentemente que, sendo o advogado constituído pelo réu, essa oportunidade já

deve ter sido exercida, pois há uma proximidade maior entre eles. Em muitos casos,

contudo, o réu comparece a juízo sozinho, oportunidade em que será nomeado um

advogado para o exercício do munus defensivo. Assim, somente na sala de audiências é

que se tem o primeiro contato do réu com o advogado, razão pela qual se mostra

providência salutar esse conversa prévia e reservada do imputado com o profissional da

advocacia. Ambos, em harmonia, discutirão sobre a melhor tese a ser exposta pelo réu

no interrogatório. Mais uma vez, resta evidenciada a importância de uma comunicação

eficaz entre as personagens que titularizam a autodefesa e a defesa técnica. Nas palavras

de Rui Barbosa: “Não há processo sem defesa. Não há defesa sem comunicação do

acusado com os seus defensores”.326

Na maioria dos casos em que o réu comparece ao interrogatório sem advogado, tal

ocorre em virtude das precárias condições financeiras daquele. Assim, sequer sabe o

acusado que tem o direito de conversar com um advogado antes de prestar declarações.

Deve o juiz esclarecer ao réu da existência desse direito. Infelizmente, preocupados com

a demora decorrente dessa entrevista, muitos juízes realizam esses interrogatórios sem

que tenha havido o contato prévio do acusado com o defensor, contando com a

conivência deste. Formalmente, consta no termo de audiência que foi garantido o

direito, mas tal providência não passou de um enfeite. Percebe-se que, por mais que a

legislação tenha avançado no sentido de conferir maior proteção ao réu, no plano

empírico, esse avanço só ocorrerá se houver a compreensão dos operadores jurídicos,

notadamente da defesa técnica.

Importa ressaltar que, quando o processo tratar de fatos muito complexos, que

demandem tempo demasiadamente longo para a análise da denúncia e para a correta

orientação do interrogando, impõe-se o adiamento do ato, sob pena da finalidade

326 “A Ditadura de 1893”. Obras Completas. Vol. XX, tomo III, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945, p. 252.

137

buscada pela norma restar totalmente desfigurada. O objetivo da norma é possibilitar

que o acusado receba uma orientação do seu advogado sobre a melhor maneira de

exercer a autodefesa, pois esta “somente será assegurada e exercitada à medida que

atuar conjuntamente com a defesa técnica”.327 Concede-se vista dos autos à defesa e

marca-se o interrogatório em data futura, a fim de que acusado e defensor tenham tempo

para a elaboração da tese defensiva, evitando que se forneçam declarações açodadas e

prejudiciais aos interesses defensivos.328 Ora, se o Ministério Público pode ofertar sua

denúncia com cautela, dispondo do prazo de cinco dias para realizar o ato, deve-se

também conferir à defesa prazo razoável para a elaboração da tese defensiva no

interrogatório, a teor do disposto no art. 5.º, LXXVIII da CF/88.329

7.4.5 Possibilidade de formulação de reperguntas pelas partes

Outra importante modificação introduzida pela lei 10.792/2003 consistiu em dar

azo ao Ministério Público e à defesa de formular perguntas ao réu, por intermédio do

juiz. Tradicionalmente a doutrina denominava o interrogatório como ato personalíssimo

do juiz. Tal concepção inquisitiva não mais subsiste. A lei só veio a reforçar o

entendimento segundo o qual o interrogatório é meio de defesa.

Tal inovação, no sentir de Ronaldo Leite Pedrosa330, importou em violação ao

princípio da ampla defesa. Para o autor, por ser o interrogatório meio de defesa, torna-se

descabida qualquer intervenção da acusação nesse ato processual, pois seu objetivo é de

tentar levar o réu à confissão, ou pelo, menos, fazer surgir contradições em seu

depoimento. Assim, a intervenção do Ministério Público no ato poderia prejudicar a

defesa do réu. Aduz o doutrinador haver, no caso, uma tensão aparente entre os

princípios do contraditório (conferindo o direito ao Ministério Público de formular

327 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 236. 328 Enfocando a importância da defesa técnica no inquérito, Carlos Henrique Borlido Haddad assevera: “Às vezes, por mais que o defensor tente afastar a responsabilidade assumida pelo acusado no interrogatório, baldam-se os esforços. A prova já se tornou maciça e contundente, não mais infirmável por qualquer outra”. “O novo interrogatório”. In Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 55. São Paulo: RT, 2005, p. 250. 329 O professor Samuel Miranda Arruda defende a aplicação do mencionado preceito constitucional à fase do inquérito policial, pois a partir do indiciamento, já se lança em face do indivíduo a que se atribui a prática do delito uma série de medidas que vêm a perturbar o seu patrimônio moral. (O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006, p. 353). 330 Op. cit. p. 152.

138

perguntas), de um lado, e de outro lado os princípios da ampla defesa e da

inviolabilidade de consciência (tolhido pela invasão inadequada de uma pergunta

arranhando a intimidade do interrogando). No entender do autor, hão de prevalecer os

dois últimos princípios mencionados (ampla defesa e inviolabilidade de consciência),

afastando-se qualquer intromissão do órgão ministerial no interrogatório.

Em sentido contrário, entendendo que a inovação configura um avanço, situam-se

Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho, para quem a possibilidade de

(re)perguntas pelas partes descentraliza da figura do juiz o ato de interrogatório,

“tornando possível um processo efetivo de partes”.331

Após essas ponderações, conclui-se que a lei 10.792/2003 não veio trazer qualquer

prejuízo à ampla defesa, pelo contrário, seu objetivo foi de fortalecer essa valiosa

garantia constitucional. A oportunidade que se dá à acusação de formular indagações é

decorrência natural do contraditório. As perguntas formuladas pelo juiz também podem

resultar em uma confissão do réu e, nem por isso, se sustenta violação a qualquer

garantia constitucional.

A inovação decorrente da lei 10.792/2003, ao possibilitar a formulação de

perguntas pelo órgão acusatório e pelo defensor do réu, veio a tornar mais rico e

proveitoso o interrogatório, antes concebido como um ato personalíssimo do juiz, sem

que o Ministério Público e o advogado do réu pudessem buscar esclarecimentos.

O que não se admite é a tentativa incessante do juiz de obter, a qualquer custo, a

confissão do réu, utilizando-se o magistrado de perguntas sugestivas332, ironias,

ameaças, coações333, pressões334 e de métodos enganosos.335 Não é esse o papel de um

331 Op. cit. p. 77. 332 Perguntas sugestivas, como explica José Alberto Revilla González são aquelas que insinuam sobre a resposta a ser dada, esperando o juiz do réu uma mera confirmação de algo já expressado pelo interrogando. (Op, cit., p. 96). 333 “A coação constitui um ataque contra a liberdade, baseado na imposição de vontade de quem interroga sobre o sujeito interrogado, impedindo-o de realizar um ato lícito e obrigando-o a realizar uma atividade não desejada na realidade. Por sua vez, a ameaça implica no anúncio de um mal que não encontra amparo pelo direito, suscetível de produzir intimidação na pessoa que está sendo interrogada”. (Tradução livre. GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 102). 334 Observa a Professora Ada Pellegrini Grinover: “Se o acusado pode calar-se, se não é mais possível forçá-lo a falar, nem mesmo por intermédio de pressões indiretas, é evidente que o interrogatório não pode ser consoderado “meio de prova”, não é mais pré-ordenado à colheita de prova, não visa ad veritatum quaerandam”. In “O interrogatório como meio de defesa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 53. São Paulo: RT, 2005, p. 186. 335 No dizer de Maria Elizabeth Queijo, “não são admitidas quaisquer formas de exortação para que o acusado colabore no interrogatório, persuasões, emprego de promessas ou mesmo de ameaças. [...] é vedado também o emprego de meios enganosos para interrogá-lo, como, v.g, quando se afirma existirem

139

juiz, figura imparcial do processo e que não pode externar seu convencimento

prematuramente, antes de prolatar a sentença. Ao desacreditar do depoimento do réu, o

magistrado está prejulgando. Nesse diapasão, oportuno é transcrever as lições de Hélio

Tornaghi:

O juiz não é um inquisidor preocupado em sondar as profundezas d ´alma do interrogado. Também não é um psicanalista que remexe nos escaninhos do inconsciente. Ele deve se portar, no interrogatório, como o bom professor no exame do aluno: as perguntas hão de ser claras, em seu conteúdo; precisas, em seu contornos; unívocas, isto é, sem ambigüidade. Não deve agir como vilão, armando ciladas para o réu; nem como Javert, perseguindo-o, encurralando-o.336

Não é mais a confissão a rainha das provas, a probatio probantissima. São várias

as razões que podem levar uma pessoa a confessar, muitas delas que não deságuam na

verdade. 337 É preciso, pois que se mude o foco da atividade probatória em torno da

confissão. Cesare Beccaria considera a confissão do réu como algo inútil. Se não há

provas contra o depoente, ele é inocente, sendo totalmente reprovável a tortura de quem

não cometeu o delito. Em relação ao culpado, de igual sorte, não há como se retirar o

caráter de inutilidade da confissão, pois tal atitude importa subversão da ordem das

coisas. Aquele criminoso forte, se resistir às torturas e pressões psicológicas, será

beneficiado, ao passo que o inocente frágil, que não resistisse às investidas físicas e

psicológicas do interrogante, será condenado.338 Em resumo, com a confissão, “o

inocente, portanto, só tem a perder e o culpado só a ganhar”.339

A confissão, em verdade, constitui estímulo para a deturpação da verdade. O juiz,

em vez de avaliar detidamente os fatos para chegar ao agente ativo do ilícito, percorre

caminho inverso: “busca no prisioneiro o delito, prepara-lhe armadilhas, considerando-

determinadas provas contra o acusado, que na realidade não existem. Ou quando afirma que um co-réu já confessou, quando isso não ocorreu”. Op. cit. pp. 223-224. 336 Curso de Processo Penal. 9.ª edição. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 365-366. 337 Para uma análise mais aprofundada sobre a confissão, conferir: NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2.ª edição. São Paulo: RT, 1999, p. 95-114. O autor aponta 21 (vinte e um) motivos que podem levar um indivíduo a admitir a autoria de determinado crime. Em vários casos, a confissão, no lugar de contribuir para a busca da verdade, leva a erros judiciários. 338 Nas palavras do autor: “...é inútil a confissão do réu. Se for incerto, não deveria atormentar o inocente, pois é inocente, segundo a lei, o homem cujos delitos não são provados. E acrescento mais: é querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado, que a dor se torne o caminho da verdade, como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz. Este é o meio seguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os fracos inocentes”. (BECCARIA, Cesare. Op. cit. 50). 339 BECCARIA, Cesare. Id. ibid. p. 54.

140

se perdedor se não conseguir apanhá-lo, e crê estar falhando naquela infalibilidade que o

homem se arroga em todas as coisas”.340

Esclareça-se que, quando houver mais de um acusado, há que ser garantida a

presença de advogado para cada réu. Não é somente o advogado do réu que está sendo

interrogado que pode formular perguntas. Em caso de réus com teses colidentes, a

atividade defensiva deve ser realizada por diferentes defensores, sob pena de nulidade.

7.4.6 Inobservância das garantias processuais do acusado

Conceber o interrogatório como relevante ferramenta para o exercício de

autodefesa importa a realização do ato com respeito às garantias do interrogando, já

mencionadas. Repise-se, são garantias do réu durante o interrogatório: o silêncio, a

presença do defensor, a oportunidade de entrevista prévia e reservada com o advogado,

a possibilidade de formular perguntas e o direito de ser ouvido pessoalmente por um

juiz. Ao ser chamado à presença do juiz, o acusado preserva seus direitos, exercitáveis

por ocasião de seu depoimento.

Esse conjunto de garantias postas à disposição do imputado no momento do

interrogatório deve ser considerado sob a perspectiva da eficácia da atividade defensiva,

globalmente analisada. Sendo a autodefesa um preceito constitucional de natureza

processual, como tal possui o caráter de norma de garantia, oferecendo proteção às

partes e resguardando o próprio processo.341

Qualquer infringência a esses direitos importa nulidade absoluta, sendo o prejuízo

à defesa manifesto. A visão da autodefesa sob uma óptica garantista não dá margem a

construções hermenêuticas que concluam pela existência de meras irregularidades ou

nulidades desprovidas de sanção, quando ocorrer uma agressão direta ao direito do

acusado de defender-se por si.342 Não há, portanto, que se exigir do imputado a prova do

340 Id. Ibid, p. 57. 341 GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. As Nulidades no Processo Penal. 10.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 25. 342 “A atipicidade constitucional, no quadro das garantias, importa sempre uma violação a preceitos maiores, relativos à observância dos direitos fundamentais e das normas de ordem pública”. (GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Op. cit., p. 26).

141

prejuízo, porquanto esse é imanente à falha. Para Ada Pellegrini Grinover, “o prejuízo

não precisa ser comprovado, pois é evidente”.343

Ainda que o réu não tenha confessado e o interrogatório tenha ocorrido sem a

presença do defensor344, não se pode concluir que não houve prejuízo. Ora, se tivesse o

réu tido a oportunidade de conversar com seu defensor, poderia ter adotado outra

estratégia defensiva mais benéfica aos seus interesses. A simples inexistência de

confissão não quer traduzir a melhor opção a ser tomada pelo acusado. A não-

contribuição da defesa técnica no interrogatório – seja pela ausência do advogado, seja

pela inexistência de entrevista do réu com seu defensor – importa vulneração da

autodefesa.

7.5 Interrogatório na legislação extravagante

Vistos a moldura do interrogatório e seu disciplinamento no Código de Processo

Penal, cumpre analisar o momento processual destinado ao exercício do direito de

audiência em dois importantes diplomas legislativos no âmbito penal: a lei dos juizados

especiais criminais (9.099/95) e a lei de drogas (11.343/2006).

7.5.1 Interrogatório na lei dos juizados especiais criminais

Os juizados especiais criminais foram implantados atendendo ao comando contido

no art. 98, I, da Constituição Federal, que previu a possibilidade de acordo entre

acusação e defesa, objetivando estabelecer uma solução consensual ao litígio penal.

Rompeu-se o dogma da intocabilidade do princípio da obrigatoriedade da ação penal, a

permitir a disposição da denúncia pelo órgão acusatório, por motivos de política

criminal.

343 In “O interrogatório como meio de defesa”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.° 53. São Paulo: RT, 2005, p. 198. 344 Com veemência, anotam Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho: “[...] ante grosseira, vulgar e indesculpável. Agressão ao sistema, o interrogatório procedido sem a presença do advogado – não apenas formal, mas aquela que orienta o acusado – é nulo de forma absoluta [...]”. (Op. cit., p. 45).

142

No que toca à parte procedimental, a lei estabeleceu o denominado procedimento

sumaríssimo. Há uma fase pré-processual, que se inicia com a lavratura do termo

circunstanciado de ocorrência e alcança o oferecimento da denúncia pelo Ministério

Público, a ser encetada oralmente na audiência preliminar. Não há, pois, para a

investigação das infrações penais de menor potencial ofensivo (delitos cuja pena

máxima cominada não ultrapassa dois anos), a instauração de inquérito policial nem a

lavratura de auto de prisão em flagrante (caso o autor do fato assuma o compromisso de

comparecer ao juizado, para ser cientificado da audiência preliminar).

Nessa fase extrajudicial da persecução penal, o autor do fato é convocado a prestar

breves esclarecimentos quando da lavratura do termo circunstanciado de ocorrência.

Essas declarações do imputado são – geralmente – prestadas perante agentes policiais e

não perante a autoridade de polícia – o que descaracteriza o ato como interrogatório

(presidido pela autoridade policial ou judicial). Embora o TCO seja despido de maiores

rigores formais, é bom frisar que será com base nessa peça informativa que o Ministério

Público formulará a denúncia. Assim, o depoimento do autor do fato nesse momento

deve estar acobertado pelas garantias inerentes ao interrogatório. Ainda que não se exija

a presença do advogado do autor no fato durante a tomada de suas declarações,

acolhendo-se o entendimento majoritário de que não se aplicam as garantias do

contraditório e da ampla defesa no inquérito policial e nos meios de investigatórios em

geral, antes de ser ouvido no TCO, deve o imputado ser esclarecido de que não estará

obrigado a responder às perguntas formuladas. Na prática, observa-se que tal

esclarecimento não é feito, o que inviabiliza a utilização dessas declarações do

imputado como elementos aptos à formação da opinio delicti. O direito ao silêncio –

modalidade da autodefesa negativa – possui estatura constitucional e há de ser

respeitado em todos os momentos da persecução penal, inclusive durante a lavratura do

TCO.

Na audiência preliminar, tenta-se, inicialmente, a solução consensual do conflito,

por meio dos institutos da composição civil e da transação penal. Frustrados esses

acordos, o Ministério Público, caso tenha formado a opinio delicti, oferta a denúncia,

oralmente. Na própria audiência preliminar ocorre a citação do denunciado, caso este

esteja presente.

A audiência de instrução e julgamento abrange uma série de atos: resposta à

acusação, fornecendo a chance de manifestação da defesa antes do recebimento da

143

denúncia; recebimento da denúncia pelo juiz, em decisão fundamentada; colheita dos

depoimentos (vítima, testemunhas de acusação, testemunhas de defesa e interrogatório),

debates orais e sentença.

Observa-se, pois, que o interrogatório é colocado como ato derradeiro da colheita

da prova oral. No momento em que prestará suas declarações ao juiz, o acusado, além

de rebater a acusação posta na denúncia, poderá manifestar-se sobre os depoimentos das

vítimas e testemunhas. A inserção do interrogatório após a tomada dos outros

depoimentos confere maior amplitude ao direito de audiência do imputado, já que

haverá chance de refutação contra o teor dos depoimentos prestados. O direito de

entrevista pessoal do imputado com seu defensor há de ser garantido após a oitiva das

testemunhas de defesa, pois, desse modo, advogado e réu poderão elaborar

conjugadamente os argumentos a serem manifestados no interrogatório. Nesse ponto, há

uma peculiaridade em relação ao procedimento ordinário.

Nos juizados criminais, se for ensejado o direito de entrevista do denunciado com o

defensor apenas antes da audiência de instrução e julgamento, haverá duplo prejuízo:

primeiro porque o juiz, antes de colher a manifestação defensiva em sede de defesa

preliminar, já estará admitindo que receberá a denúncia, antecipando indevidamente o

seu convencimento acerca da presença da justa causa para a ação penal; em segundo

lugar, pois réu e defensor não terão como debater sobre os depoimentos colhidos na

audiência. Desse modo, para não prejudicar a autodefesa do acusado, tão logo termine

de colher os depoimentos das testemunhas de defesa, o juiz deve dar ensejo à entrevista

do imputado com seu advogado. Apesar de implicar o prolongamento da audiência, não

há como se invocar o princípio da celeridade para eliminar esse momento de contato

entre as personagens que titularirizam a defesa técnica e a autodefesa.

7.5.2 Interrogatório na lei de drogas

A lei 11.343, de 23 de agosto de 2006345, a nova lei de drogas, foi editada com a

finalidade precípua de estabelecer medidas de prevenção ao uso de substâncias

entorpecentes, conferir um tratamento ressocializador ao usuário - eliminando a pena de

prisão - bem como estabelecer maior rigor aos delitos relacionados ao tráfico de drogas.

345 Publicada no DOU de 24 de agosto de 2006.

144

Ao contrário do já sustentado em sede doutrinária, não se chegou a operar a

descriminalização da conduta do usuário.346 No campo penal, houve a criação de outros

tipos, em atenção ao princípio constitucional da individualização da pena (projeção

legislativa). Na esfera processual, previu-se o exercício de um contraditório prévio ao

ato de recebimento da denúncia, bem como houve concentração dos atos processuais em

uma só audiência, seguindo o modelo encampado pelos juizados especiais criminais.

O procedimento para os delitos previstos no art. 28 da lei (usuário) e no art. 37 da

lei (prescrição culposa de drogas) é o sumaríssimo, previsto na lei 9.099/95, não se

impondo prisão em flagrante. O usuário não é punido com pena privativa de liberdade.

Assim, aplica-se ao interrogatório do imputado a mesma disciplina já tratada no tópico

anterior.

No que se refere aos crimes previstos nos arts. 33 a 39 da lei (exceto o crime

descrito no art. 37), aplica-se o rito especial previsto na lei 11.343/2006. Após a

conclusão do inquérito policial e o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, o

juiz determina a notificação do denunciado para o oferecimento de defesa prévia. Essa

manifestação defensiva do imputado é mais ampla do que a defesa prévia do

procedimento ordinário, podendo ele pugnar pelo não-recebimento ou rejeição da

denúncia, oferecer exceções, requerer provas e arrolar testemunhas (no máximo de

cinco). Após colher a defesa prévia, o juiz, recebendo a denúncia, determina a citação

do acusado e designa data para a realização da audiência de instrução e julgamento.

Nessa audiência, é realizado o interrogatório do réu, são ouvidas as testemunhas de

acusação e de defesa, realizados os debates orais e prolatada a sentença oral.

No que respeita à topografia do interrogatório – ao contrário do que ocorre nos

juizados especiais criminais – , o ato é realizado antes da colheita dos depoimentos das

testemunhas. Poderia o legislador ter inserido o interrogatório para o final da instrução,

de modo a ampliar e tornar mais efetiva a autodefesa e seguindo uma linha

procedimental mais garantista. Na revogada lei 10.409/2002, previa-se a realização de

dois interrogatórios: um antes do recebimento da denúncia e o segundo logo após a

decisão de admissibilidade da acusação, dando início à instrução criminal.

Segundo a disciplina da lei 11.343/2006, além do interrogatório que abre a

instrução, também se faculta outro momento para a tomada das declarações do

346 Nesse sentido: ARRUDA, Samuel Miranda. Drogas: aspectos penais e processuais penais (lei 11.343/2006). São Paulo: Editora Método, 2007, p. 18.

145

denunciado. Com efeito, estabelece o § 5.º do art. 55 da lei em foco: “Se entender

imprescindível, o juiz, no prazo máximo de 10 (dez) dias, determinará a apresentação do

preso, realização de diligências, exames e perícias”. Essa condução do preso à presença

do juiz traz ao magistrado grandes chances de remover dúvidas trazidas com a

apresentação da defesa prévia, fazendo com que o magistrado decida com maior

segurança sobre a presença da prova da materialidade e dos indícios de autoria. É

chegada a hora de se entender o recebimento da denúncia como uma decisão importante

a ser dada no processo e não como mero despacho de rotina, genérico e sem qualquer

análise do caso concreto. Em verdade, essa apresentação do preso existe para que este

preste esclarecimentos ao juiz, configurando-se autêntico interrogatório, estando a

validade desse ato sujeita ao cumprimento das mesmas garantias que norteiam o

interrogatório judicial. Com efeito, já havendo manifestação do advogado do imputado,

não se permite ao magistrado ouvir o denunciado sem a presença da defesa técnica.

Não há que se falar em declarações informais a serem tomadas pelo juiz.

7.6 Reflexos penais

A repercussão da autodefesa no plano processual é uma questão que enseja

discussões sobre o seu alcance, sua amplitude, mas não acerca da sua existência. Na

órbita processual, discutiram-se a sua relevância e os contornos. Agora, cabe breve

abordagem sobre os reflexos penais da atitude processual do réu em defender-se por si

próprio.

O acusado tem ampla liberdade ao prestar declarações quando convocado pelo

juiz. Pode rechaçar a acusação, levantando argumentos contrários à tese do Ministério

Público ou simplesmente calar-se. Em ambos os casos, exerce a autodefesa, no entanto,

essa vasta liberdade de prestar depoimento não significa liberdade irrestrita. O próprio

conceito kantiano de liberdade mostra a total impossibilidade de permissão de condutas

que possam prejudicar a liberdade alheia. Cabe aferir a subsunção de determinados

comportamentos do réu a alguns tipos penais.

a) Crime de falsa identidade.

Narra o art. 307 do Código Penal: “Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa

identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a

146

outrem”. Trata-se de crime formal, não se exigindo que o agente obtenha efetivamente a

vantagem, havendo a consumação com a realização da conduta de atribuir-se ou atribuir

a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para

causar dano a outrem. No que concerne ao presente estudo, cabe avaliar se a conduta do

sujeito que, ao ser indagado por autoridade pública, sobre sua identificação, informa

dados falsos ou atribui a outrem qualificação inverídica, estaria acobertada pela

autodefesa.

A autodefesa possibilita ao acusado recusar-se a falar sobre fatos que o possam

prejudicar, apresentando informações passíveis de serem utilizadas como um dos

fundamentos em um decreto condenatório. É preciso, no entanto, que se estabeleçam os

contornos desse direito. O acusado que informa ser alguém que não é, atribuindo-se

falsa identidade, não está albergado pela autodefesa. De igual sorte, não exerce o direito

de defesa o imputado que atribui a terceiro uma identidade falsa. Existe o dever de o

acusado identificar-se corretamente. Tal dever existe em função da possibilidade da

existência de prejuízos a pessoas que não tenham vínculo com o crime em apuração. A

noção de direito por parte de um titular não pode ser concebida olvidando da esfera de

liberdade de outras pessoas, também merecedoras de proteção jurídica. Discordando

dessa posição e filiando-se a corrente mais liberal, Walter Nunes da Silva Júnior

sustenta que o acusado não pode receber qualquer sanção se falsear sobre sua identidade

no interrogatório, estando o mesmo acobertado pela autodefesa; assim, não há que se

falar da prática do delito previsto no art. 307 do Código Penal.347

Maria Elizabeth Queijo sustenta que não se permite ao acusado deturpar a verdade

em relação a dados que o identifiquem, sob pena de realizar conduta criminosa.348 Em

arremate, escreve a autora que “não tem o acusado o direito de silenciar, bem como não

há o dever de dizer a verdade com referência à qualificação”.349 A correta qualificação

do acusado é elemento importantíssimo para uma idônea apuração dos fatos, evitando

que terceiros sem qualquer relação com o delito possam sofrer conseqüências

desagradáveis em razão de informações falsas incidentes sobre a qualificação do réu.

Adriana Dias Paes Ristori ressalta a importância da correta identificação quando se está

diante da autoridade interrogante, identificação esta que deve ser entendida de “[...]

347 Op, cit., p. 732. 348 Op. cit., p. 201. 349 Id. Ibid. p. 202.

147

forma estrita: nome, filiação, data e lugar de nascimento, residência[...]”.350 Com esses

dados em mãos, as autoridades com atribuições investigatórias e o próprio Poder

Judiciário têm condições de realizar seu trabalho sem correr o risco de dirigir a

imputação criminosa a terceiros inocentes. As declarações do interrogando são livres,

porém, limitadas, “incorre em crime se acusar falsamente outra pessoa, ou atribuir-se

falsamente a prática de um delito”.351

Em posição diversa, discordando de Queijo e Ristori, João Cláudio Couceiro

afirma que o silêncio só pode ser invocado no interrogatório de mérito, no que toca às

perguntas relacionadas ao fato delituoso, e “não sobre aquelas pertinentes aos

antecedentes ou à identidade da pessoa que está sendo ouvida”.352 Dessa forma, para

Couceiro, o réu tem o dever de prestar informações sobre seu passado criminoso,

revelando a existência de processos e inquéritos anteriores. O autor tem um

entendimento mais restrito do direito ao silêncio.

Agora é importante deixar claro que o termo qualificação deve ser entendido em

sentido estrito, envolvendo apenas dados referentes ao nome, filiação, data e local de

nascimento, número de identidade, CPF e endereço residencial. “Exigir maiores dados

do argüido seria impingir-lhe o dever de colaborar com a justiça”.353 Há necessidade,

portanto, de que o réu forneça apenas informações indispensáveis à sua qualificação, de

modo a evitar injustiças, dirigindo-se a ação penal contra um inocente. Afinal, não é

incomum homônimos serem presos por fatos em relação aos quais não tiveram qualquer

participação, exatamente por insuficiência de dados acerca do verdadeiro autor.354

Rogério Greco sustenta que o acusado tem o direito de permanecer em silêncio,

deixando de revelar situações fundamentais à elucidação dos fatos pelos agentes

públicos encarregados da persecução penal. Não está albergado, porém, pela autodefesa

o agente que informa dados inverídicos sobre sua identificação. “É um direito do Estado

saber em face de quem propõe a ação penal e uma obrigação do indiciado/acusado

350 Op. cit., p. 149. 351 RISTORI, Adriana Dias Paes. Op. cit., p. 149. 352 Op, cit., p. 210. 353 RISTORI, Adriana Dias Paes. Op. cit. p. 149. 354 Por vezes, a imprensa noticia situações em que o sujeito é preso ao tentar tirar a segunda via do documento de identidade. Os institutos de identificação - responsáveis pela expedição do documento - checam a existência de mandados de prisão contra aquela pessoa. Em caso positivo, o indivíduo é preso, indevidamente. O cidadão teve seus documentos clonados, que foram utilizados por outra pessoa para a prática de novos delitos ou para acobertar crimes já praticados. É uma clara demonstração de que o sujeito que se atribui ser alguém que não é prejudica um inocente.

148

revelar sua identidade”.355 Na opinião de Alberto Silva Franco et al. não configura o

crime do art. 307 do CP quando o agente se identifica como sendo alguém inexistente.

Nesse caso, como não há risco de prejuízo a terceiro inocente, a conduta estaria

albergada pela autodefesa.356

No âmbito dos tribunais superiores, a matéria tem recebido tratamento diverso. O

Supremo Tribunal Federal vem entendendo que constitui o crime previsto no art. 307 do

Código Penal a conduta do agente que, para esconder passado recheado de crimes,

fornece ao policial identidade falsa.357 O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez,

acolhe a tese de que, ao atribuir falsa identidade no momento de uma abordagem

policial, para evitar uma prisão ou para esconder maus antecedentes, não configura

crime, pois mencionada conduta está albergada pela autodefesa, especificamente pelo

direito ao silêncio (art. 5.º, LXIII, CF).358

Em suma, pratica, em tese, a infração prevista no art. 307 do Código Penal o

acusado que não fornece às autoridades encarregadas da persecução penal sua correta

qualificação, podendo, no entanto, o imputado omitir informações sobre a existência de

processos e condenações anteriores.359

b) Crime de desobediência.

Tipificado no art. 330 do CPB, com a seguinte redação: “Desobedecer a ordem

legal de funcionário público”. 355 Curso de Direito Penal. 2.ª edição. Niterói: Impetus, 2007, vol. IV, p. 331. 356 Código Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 1422. 357 Em decisão monocrática da lavra do Min. Eros Grau, foi negado seguimento a recurso extraordinário em que se discutia a prática do crime previsto no art. 307 do Código Penal pelo agente que, em blitze policial, fornece identidade falsa, com o objetivo de evitar sua prisão, em face da existência de mandados de prisão expedidos contra ele. Alegava o recorrente violação ao art. 5.º, LXIII da Constituição Federal, pois ao exercer o direito ao silêncio, não poderia o agente ter imputado contra si um crime. O Ministro Eros Grau, reportando-se a precedentes daquela Corte, entendeu inexistir na conduta do sujeito qualquer atividade defensiva. (RE 470944/DF. Rel. Min. Eros Grau. DJ 27.03.2006, p. 71). Na mesma linha da decisão: “Tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus antecedentes. [...]”. (STF. HC 72.377. Rel. Min. Carlos Velloso. j. 23.05.1995. DJ 30.06.1995). 358 Nesse sentido: “Esta Corte firmou entendimento de que a conduta praticada pelo Réu, de se atribuir falsa identidade perante autoridade policial, não configura o crime descrito no art. 307 do Código Penal, tratando-se de hipótese de autodefesa consagrada no art. 5º, inciso LXIII, da Carta Magna. [...]”(REsp 689.011/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22.03.2005, DJ 02.05.2005 p. 401). “É atípica a conduta do acusado que, ao ser preso em flagrante, declara, perante a autoridade policial, e após, ao Ministério Público, nome e idade falsos, haja vista a natureza de autodefesa da conduta, garantida constitucionalmente, consubstanciada no direito ao silêncio. [...]”.(HC 35.309/RJ, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 06.10.2005, DJ 21.11.2005 p. 304) 359 Afirma Carlos Henrique Borlido Haddad: “O criminoso habitual e o reincidente não são obrigados a declarar as mazelas de seu passado”. (O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 279).

149

Cogita-se em se o réu, quando se recusa a responder às perguntas formuladas pelo

juiz ou pela autoridade policial no interrogatório, comete o delito. Discute-se também da

relevância penal da conduta do acusado que não participa da reconstituição do delito, ou

que não fornece material gráfico para a realização de exame grafotécnico.360 Está o

indivíduo compelido a fornecer material para a realização de exame de DNA, com a

finalidade de comparação dos caracteres da pessoa com impressões, manchas de sangue

ou pedaços de pele encontrados na cena do crime? Em todas as situações narradas, o

réu está exercitando autodefesa. No primeiro caso, o silêncio não pode ser interpretado

em prejuízo do réu, o que dirá configurar crime. Nas outras hipóteses, aplica-se o

privilégio contra a auto-incriminação, afastando-se, pois, qualquer ilicitude em seu

comportamento.

Para que haja a configuração do delito, é necessário que o indivíduo que receba a

ordem legal do funcionário público tenha o dever de acatá-la. Saliente-se que não se

trata de um mero dever moral, mas de dever jurídico. Assim, não tendo o destinatário da

ordem o dever imposto por lei ao cumprimento da ordem, não há que se falar na figura

típica da desobediência.361 É precisamente o caso do acusado que permanece em

silêncio diante das perguntas formuladas pelo juiz no interrogatório ou que se recusa a

fornecer material para a realização de exames que possam vir a incriminá-lo.

De igual sorte e também denotando o exercício de autodefesa, não pratica o crime

de desobediência o indiciado que, convocado a prestar depoimento perante a autoridade

policial ou judiciária, não comparece. Aqui, não há que se falar em condução coercitiva

nem em desobediência.362 É opção do sujeito comparecer ou não ao interrogatório. A

sua ausência deve ser interpretada como uma escolha legítima do acusado, albergada

que está pelo direito de defender-se por si.

c) Crime de denunciação caluniosa

Ilícito tipificado no artigo 339 do Código Penal, ad litteram:

360 Nessa linha: “Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o disposto no inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado a fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a auto-incriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa.[...].”. (STF. 1.ª Turma. HC 77135/SP. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ 06.11.1998, p. 3). 361 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Código Penal Anotado. São Paulo: Perfil, 2005, p. 1224. 362 GRECO, Rogério. Op. cit., p. 493.

150

Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.

José Alberto Revilla González assinala que uma coisa é mentir com a intenção de

escusar-se da acusação. Nesse caso não se fala de defesa criminosa. Outra situação, bem

distinta, é a declaração do imputado, também leviana, mas que atribui a prática do crime

a outra pessoa. O direito de defesa não é um direito absoluto, tendo seus contornos

definidos em virtude da proteção de terceiros inocentes e no interesse da sociedade na

punição do verdadeiro culpado.363

O reconhecimento da garantia constitucional da autodefesa representa o modelo

de um processo penal acusatório, que concebe o acusado como portador de uma série de

direitos e não mero objeto da investigação. Tal concepção garantista não possibilita ao

acusado se comportar de modo a prejudicar outras pessoas. Para se defender, não

precisa e não pode o acusado atribuir a prática do delito a um inocente. Sabendo que a

pessoa a quem aponta a prática do crime é inocente, pratica o agente a conduta típica

prevista no art. 339 do Código Penal.364

d) Delito de Auto-acusação falsa

Previsto no art. 341 do Código Penal, que estabelece: “Acusar-se, perante a

autoridade, de crime inexistente ou praticado por outrem”. Ocorre a consumação do

crime quando a autoridade tem conhecimento da auto-acusação.

Quando o acusado assume a prática de um crime sobre o qual tem a plena

convicção de que não cometeu, não realiza nenhuma atividade defensiva, pelo contrário,

por qualquer razão, fornece declarações de modo a prejudicá-lo, beneficiando outrem.

Não exerce a autodefesa, pois não está repelindo a acusação, senão reconhecendo-a.

363 GONZÁLEZ, José Alberto Revilla. Op. cit., p. 60. 364 Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal: “O crime do artigo 339 do Código Penal pressupõe a ciência, pelo agente, da inocência do acusado.[...]”. (Inq 1547/SP. Rel. Min. Carlos Velloso. j. 21.10.2004. DJ 19.08.2005, p. 5). Em igual sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “[...] Para a configuração do crime de denunciação caluniosa (CP, art.339) é essencial a presença do elemento subjetivo consubstanciado na circunstância de ter o agente a certeza da inocência da vítima. [...]”. (RHC 9.765/RJ, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 24.05.2001, DJ 11.06.2001 p. 259) Acolhendo o entendimento de que não há crime de denunciação caluniosa quando o réu acusa falsamente um terceiro: “Inexiste o crime de denunciação caluniosa quando a falsa acusação é feita por um réu, em sua defesa, no curso do interrogatório do processo-crime ou do inquérito policial”. (TJSP. AC. Rel. Des. Xavier Honrich. RT 504/337).

151

Portanto, “se o fato não extrapolar ou extravasar da órbita processual, para atingir

outros direitos, não haverá a prática do crime”. 365 Quando o acusado, sendo o real autor

do crime, apresenta narrativa fantasiosa, inverídica, sem atribuir falsamente a prática do

crime a ninguém, realiza apenas sua defesa, não cometendo nenhum ilícito penal, pois

inexiste o dever de dizer a verdade. Aqui incide a figura do crime impossível, por

absoluta a impropriedade do meio empregado. Portanto, o acusado que assume a prática

de crime atribuído a outrem só comete o delito de auto-acusação falsa quando sua

conduta atrapalhar e confundir a apuração sobre a autoria delitiva. Depoimentos

inconsistentes, totalmente dissociados da realidade, não são merecedores da menor

atenção pelas autoridades, amoldando-se ao crime impossível.

É diversa a situação quando a conduta do réu, em seu interrogatório, acarretar

lesão “a outros bens jurídicos, penalmente tutelados, se produz, sem dúvida que o fato é

ilícito e culpável”.366 Ao prestar declarações e atribuir a prática do fato a outro acusado,

o réu não pode lançar adjetivos pejorativos ao co-réu, podendo, em tese, praticar o

delito de injúria. Assim sendo, para que não venha a ter seu comportamento penalmente

censurado em sua defesa, deve o acusado ter em mente a impossibilidade de atingir

outras pessoas com sua atuação no processo, sob pena de extravasar o exercício do

direito de defesa, transfigurando a autodefesa, vindo a realizar uma defesa ilícita.

7.7 O interrogatório por videoconferência

O interrogatório por videoconferência, também chamado de interrogatório virtual,

à distância, ou on-line, é apenas uma das várias inovações da era digital no campo

processual. Insere-se nas modalidades de sistemas de videoconferência. Juan Carlos

Ortiz Pradillo assim define a videoconferência:

[...]Um sistema de comunicação a distância capaz de transmitir, em tempo real, simultaneamente, a voz, a imagem, o som e dados entre pessoas situadas nos lugares os mais diversos, através de linha telefônica, fibra ótica ou via satélite. Em cada ponto de conexão se utiliza um equipamento composto por um televisor ou monitor de alta resolução capaz de reproduzir a imagem e o som, e um equipamento de transmissão, de modo que se estabelece entre os distintos grupos de participantes uma comunicação

365 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. Op. cit., p. 120. 366 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BASTOS, Cleunice A. Valentim. Id., idib., p. 120.

152

bidirecional plena em tempo real de um ato que assiste pessoas em lugares diferentes, como se o ato fosse realizado em uma só sala.367

Em estudo sobre o tema, Vladimir Aras368 aponta várias intervenções processuais

passíveis de realizar por videoconferência:

a) o interrogatório virtual, na fase extrajudicial ou judicial da persecução penal;

b) o teledepoimento, para oitiva da vítima, testemunhas e peritos, tornando

despicienda a expedição de cartas precatórias ou cartas de ordem;

c) o telereconhecimento, para que seja realizado o reconhecimento de suspeitos e

acusados, sem o contato presencial entre os participantes;

d) sustentação oral em tempo real por teleconferência, por membros do Ministério

Público, advogados e defensores públicos, economizando-se com deslocamento desses

profissionais;

e) acompanhamento dos atos processuais pelas partes e respectivos patronos

judiciais à distância;

f) Sessões de julgamento por membros de tribunal, turmas recursais ou turmas de

uniformização de jurisprudência, mediante reunião virtual dos magistrados (arts. 8.º,§

2.º e 14,§ 3.º da Lei n.º 10.259/2001 que implantou os juizados especiais no âmbito da

Justiça Federal); e

g) dispensa de comparecimento do réu a juízo para fins de aceite da suspensão

condicional do processo, suspensão condicional da pena, condições a serem cumpridas

para a liberdade provisória, com ou sem fiança, condições de cumprimento do regime

de pena, realizando-se os esclarecimentos necessários e advertindo-se o acusado das

conseqüências do descumprimento do pactuado por meio do sistema da teleaudiência.

Vê-se, pois, que o interrogatório por videoconferência alia-se a outras ferramentas

tecnológicas que buscam dar feição mais moderna ao processo. Sua aplicação é

destinada precipuamente para a colheita dos depoimentos de réus presos.

Cabe agora, em síntese, informar como ocorre a videoconferência, nos moldes em

que é realizada no fórum criminal da cidade de São Paulo. Inicialmente, são instalados

aparelhos de telefone, câmeras e televisores na sala de audiência do fórum e no

367 “El uso de la videoconferência em el proceso penal español”. In Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 67. São Paulo: RT, 2007, p. 175-176. 368 “Videoconferência no Processo Penal”. In Boletim Científico: Escola do Ministério Público da União. n.º 15, p. 173-195..abr-jun-2005.

153

estabelecimento prisional, em lugar próprio para a realização do ato, separada das alas

onde são situadas as celas. No presídio, o acusado fica acompanhado por um advogado

e por serventuários da Justiça, “os quais, em tese, garantirão a integridade do ato”.369 No

fórum, ficam o magistrado, o membro do Ministério Público e outro advogado, além de

outros serventuários. Assim, são dois advogados a participar do interrogatório: um no

presídio e outro na sala de audiências do fórum. O acusado poderá comunicar-se com o

advogado que permanecer no fórum por contato telefônico, resguardado o sigilo da

conversa.

Pelo sistema, há captação de som e imagem, de modo a permitir a visualização e

audição entre os participantes do ato, simultaneamente.

7.7.1 Surgimento e vantagens apontadas

A videoconferência representa a tentativa de introduzir os avanços tecnológicos

alcançados na área da informática no processo penal. Na opinião dos entusiastas dessa

idéia, “a tecnologia moderna ainda não sedimentou, com a velocidade que a caracteriza,

suas raízes simplificadoras e úteis no processo criminal”.370

Assim, argumentam os adeptos do interrogatório a distância, sempre que há uma

tentativa de se utilizar uma nova tecnologia no processo judicial, e em particular no

processo criminal, não são poucas as vozes que se levantam contra a inovação. Tal

ocorreu nos idos da década de 1920, quando passou a ser utilizada a máquina de

escrever, ganhando forte resistência de uma parte dos juristas.371 Entendia-se que,

somente quando a sentença era prolatada de próprio punho pelo juiz, seria possível

aferir a autenticidade de sua autoria.

Dificuldades de adaptação às novidades que se apresentam não revelam nada de

excepcional, ao contrário, é natural que os seres humanos se achem acomodados com

uma determinada maneira de agir, de trabalhar e, chegada uma nova tecnologia,

369 BARROS, Marco Antônio de; ROMÃO, César Eduardo Lavoura. “Internet e Videoconferência no Processo Penal”. In Revista CEJ (Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal) n.º 32. Brasília jan/mar. 2006, p. 120. Observe-se que nem mesmo os entusiastas do interrogatório por videoconferência chegam a afirmar que a presença dos serventuários da Justiça na sala do presídio é capaz de ensejar a lisura do ato processual. 370 BARROS, Marco Antônio de; ROMÃO, César Eduardo Lavoura. Op. cit. p. 117. 371 Id. ibid., p. 118.

154

mostrem-se refratários às mudanças. O novo, o desconhecido, sempre causa medo,

desconfiança.

Segundo aponta Ronaldo Batista Pinto372, o primeiro interrogatório por

videoconferência realizado no Brasil data de 27.08.1996, presidido pelo magistrado

Edison Aparecido Brandão. O tema voltou a ser rediscutido de forma mais efetiva pela

doutrina com a edição de leis no âmbito do Estado de São Paulo (Lei 11.819/2005) e no

Estado do Rio de Janeiro (Lei n.º 4.554/2005).

Os defensores do interrogatório on-line apontam como principais vantagens do

ato:

a) Economia de Gastos

A condução de réus presos para as audiências nos fóruns enseja muitas despesas

para o Estado. São gastos com combustível, manutenção de viaturas da polícia,

necessidade de contratação de policiais para realização de uma atividade atípica,

inflando a folha de pessoal.

A economia também traria benefícios ao próprio acusado, que evitaria despesas

com passagens aéreas e diárias para seu advogado, que não precisaria se deslocar para

acompanhar o interrogatório em outra cidade.

b) Celeridade

A realização do interrogatório on-line traz maior agilidade para o processo. São

inúmeros os casos de adiamento de audiências de interrogatório em virtude da não-

apresentação de réus presos. Invocam-se problemas no trânsito, falta de viaturas,

insuficiência de policiais, perda e esquecimento dos ofícios de requisição emanados das

autoridades judiciárias. Como o Estado vem demonstrando ineficiência no cumprimento

de seus deveres, é melhor que se retire esse ônus das autoridades estatais.

Nessa perspectiva, evitar-se-ía a expedição de cartas de ordem e cartas precatórias,

que demandam mais tempo para o seu cumprimento de que quando realizado o ato

perante o juiz que preside o feito.

c) Segurança

372 “Interrogatório On-Line ou Virtual – Constitucionalidade do Ato e Vantagens de sua Aplicação”. In. Revista IOB: Direito Penal e Processual Penal. N.º 39. Ago-Set. 2006.

155

Durante o transporte dos presos até o fórum e também no retorno daqueles ao

presídio, há o risco da intervenção de membros de facções criminosas em busca de

resgatar os conduzidos. Por vezes nesses resgates (alguns realizados com êxito, outros

apenas tentados), ocorre troca de tiros entre policiais e integrantes das facções. Com

esses ataques, surge o risco à incolumidade dos presos e da população em geral. Isso

seria evitado com a adoção do interrogatório virtual.

d) Otimização do trabalho das pessoas envolvidas no transporte dos presos

Policiais civis, militares e federais, bem como agentes penitenciários poderiam se

dedicar ao desempenho de suas funções precípuas, conferindo segurança pública à

população em geral e ao estabelecimento prisional, além do trabalho de investigação a

ser realizado pelos integrantes da polícia judiciária.

Não se duvida de que são muitos os gastos realizados com a necessidade de

transporte de presos às audiências judiciais. É evidente que tais valores despendidos

poderiam ser utilizados em favor de outros setores carentes de recursos, tais como a

saúde e a educação. De igual sorte, é incontestável que a videoconferência, caso

implantada com elevada tecnologia e contando com profissionais qualificados para a

correta manutenção do sistema373, trará mais rapidez no andamento dos feitos, evitando

o constante adiamento de interrogatórios por problemas no transporte dos presos.

Vê-se, assim, o quanto é dispendiosa, em todos os sentidos, a realização de um

interrogatório de um réu preso. Tais fatores deveriam ser levados em conta no momento

em que o juiz manda alguém para o cárcere, fazendo com que o magistrado reflita com

maior cuidado sobre a real necessidade da prisão.

373 Espera-se é que a sala de videoconferência dos presídios seja bem equipada e que conte com profissionais qualificados para prestar assistência técnica necessária, ao contrário do que ocorre em relação a vários serviços que são prestados (quando são) no interior dos presídios, tais como assistência médico-odontológica, assistência jurídica, possibilidade de trabalho, acompanhamento por assistente social, adequada alimentação, direito a recebimento de visitas íntimas com dignidade e condições de higiene nas celas. Caso contrário, fatalmente os adiamentos dos interrogatórios serão ainda maiores em função de defeito nos equipamentos, falta de manutenção, inexistência de advogado para acompanhar o preso durante a realização do ato. Inevitável, portanto, a indagação: Será a sala de videoconferência uma ilha de eficiência em um oceano de fragilidades? Nessa perspectiva, Aury Lopes Júnior arremata: “É até previsível, diante do inequívoco sucateamento dos órgãos públicos, imaginar os computadores que serão utilizados ... sem falar que, daqui a alguns anos, continuarão os mesmos equipamentos, pois somente se vivêssemos num mundo ôntrico, iríamos acreditar que o Estado faria atualizações e substituições com a periodicidade necessária. [...] Teríamos que ter uma equipe de técnicos de plantão, prontos para resolver quaisquer dos inúmeros problemas que costumam ocorrer nessas operações. E, é claro, eles teriam condições de atender a todas as casas prisionais [...]”. (“O Interrogatório On-Line no Processo Penal: Entre a Assepsia Judiciária e o Sexo Virtual”. Revista de Estudos Criminais n.º 19. Porto Alegre: Nota Dez Editora, 2005, p. 84-85).

156

Do ponto de vista estritamente de administração judiciária e penitenciária, o

interrogatório on-line configura em medida aparentemente salutar. A pretensa eficiência

apontada pela utilização do interrogatório on-line não pode ser considerada unicamente

sob o prisma gerencial do Poder Público, como adoção de uma política de redução de

custos. Há que ser examinado o papel dos sujeitos processuais, o resguardo de seus

interesses, pois “a função específica do Poder Judiciário é solucionar conflitos,

tutelando a liberdade jurídica, e não socorrer o Poder Executivo, em suas falhas e

omissões”.374 Portanto, cumpre investigar a juridicidade do interrogatório a distância, à

luz da efetividade da autodefesa e do garantismo penal.

7.7.2 A videoconferência no meio empresarial

Antes de se adotar a videoconferência no processo penal, tal método de

comunicação já vinha sendo utilizado no meio empresarial, especialmente para a

realização de reuniões, evitando, dessa forma, o deslocamento entre as pessoas e as

inconveniências decorrentes das ausências dos executivos e empregados em seus

respectivos postos de trabalho.

O que se imaginou, porém, se transformar em verdadeira coqueluche, a

videoconferência decepciona, advindo várias dificuldades para a sua adoção no mundo

dos negócios. Em um mundo onde a lucratividade é o grande referencial, não houve

grande adesão ao inovador mecanismo de comunicação.

Em matéria da Revista Você S/A375, são apontadas várias razões pelas quais a

videoconferência não obteve o sucesso que se esperava; como seguem:

a) Alto custo para sua implantação. O equipamento de vídeo custa em média U$

30.000 (trinta mil dólares), sem contar com as despesas com sua manutenção, a exigir

mão-de-obra especializada e ainda com mercado de trabalho restrito, o que torna

também elevados os gastos com pessoal.

b) A despesa com a conexão. Cada minuto de conexão pelo sistema da conferência

em tempo real custa cerca de 5(cinco) reais. 374 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. “Interrogatório à distância”. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.º 93. São Paulo: IBCCRIM, 2000, p. 2. 375 “Reunião à distancia. Blablablá... A reunião por telefone desbanca a videoconferência nas empresas. Você S. A. : para o executivo do novo milenio . Ano 2005 , v. 8 , n. 87 , mes SET , p. 46.

157

c) Baixa qualidade das imagens, com dificuldade para obtenção da nitidez, além

da diferença de tempo entre o vídeo e o áudio.

d) Freqüentes interrupções na comunicação, acarretando grandes atrasos e até

mesmo o abortamento de reuniões por videoconferência, adotando-se a conferência por

telefone.

As maravilhas apontadas pelos entusiastas da videoconferência devem ser vistas

com cautela, pois o sistema, ainda que do ponto de vista da administração judiciária,

parece não ser tão espetacular quanto parece. Os custos também são elevados. A

qualidade de imagem é baixa. O sistema apresenta interrupções de comunicação, o que

também acarretará o atraso e o adiamento de audiências.

Mesmo em grandes corporações, que dispõem de recursos para adotar a

videoconferência, não se cogita em acabar com as reuniões presenciais. A gerente de

mercado Cleire Costa afirma que “nada substitui o olho no olho”.376

7.7.3 O interrogatório on-line no direito comparado

Diversos países, em maior ou menor extensão, adotam o interrogatório por

videoconferência.

O Convênio da União Européia de assistência judiciária em matéria penal, de

29.05.2000, permite o interrogatório on-line do réu, desde que haja a aceitação deste,

bem como sejam respeitados os direitos dos acusados.

Juan Carlos Ortiz Pradillo377 aponta os requisitos para a realização da

videoconferência segundo o Convênio da União Européia.

a) Legalidade. O uso da videoconferência deve respeitar os princípios

fundamentais do direito interno de cada Estado signatário.

b) Expecionalidade. Admite-se o uso da videoconferência em situações

especialíssimas. Suas hipóteses de utilização devem ser interpretadas restritivamente.

376 Revista Você S/A., p. 47. 377 Op. cit. p. 202-206.

158

c) Proporcionalidade. A utilização da videoconferência será admissível quando

resultar necessária por não existirem outras medidas aptas a alcançar os mesmos

resultados com uma eficácia similar, mostrando-se como alternativa menos gravosa.

d) Motivação Especial. O juiz deve apresentar fundamentação suficiente ao

determinar a realização do interrogatório pelo método da videoconferência, explicando

as cautelas a serem tomadas com o intuito de preservar as garantias do acusado. Assim,

ciente das razões apontadas pelo magistrado, surge a possibilidade de impugnar essa

decisão para uma instância superior.

a) Espanha

No ordenamento processual espanhol a videoconferência foi introduzida com a

edição da Ley Orgânica 13/2003, que incluiu na Ley de Enjuiciamento Criminal o art.

731 bis:

El Tribunal, de oficio o a instancia de parte, por razones de utilidad, seguridad o de orden público, así como en aquellos supuestos en que la comparecencia de quien haya de intervenir en cualquier tipo de procedimiento penal como imputado, testigo, perito, o en otra condición resulte gravosa o perjudicial, y, especialmente, cuando se trate de un menor, podrá acordar que su actuación se realice a través de videoconferencia u otro sistema similar que permita la comunicación bidireccional y simultánea de la imagen y el sonido, de acuerdo con lo dispuesto en el apartado 3 del artículo 229 de la Ley Orgánica del Poder Judicial.

De acordo com o artigo mencionado, podem ser ouvidos pelo método da

videoconferência não somente o acusado, mas também as testemunhas, peritos e

vítimas. Os motivos hábeis a ensejar a adoção desse método são de segurança das

pessoas envolvidas no ato, utilidade e ordem pública. Vicente Gimeno Sendra sustenta

que, embora a norma invoque razões de utilidade, segurança e ordem pública, somente

esta última é que poderia justificar a adoção de tal método, tal como ocorreu no motim

da prisão de Fontcalent, em 2002. Para o autor, em respeito aos direitos dos acusados, o

interrogatório on-line nunca deveria ser realizado, sendo um direito fundamental que

assiste ao réu presenciar diretamente os atos processuais e exercitar autodefesa,

essencialmente apresentando suas escusas em relação à acusação no interrogatório.378

378 Derecho Procesal Penal. Madrid: Colex, 2004, p. 658.

159

Na Espanha, o Tribunal Supremo admitiu o uso do interrogatório on-line em

situações excepcionais. São duas as situações em que se permite a adoção desse

mecanismo de oitiva do imputado. No primeiro caso, em se tratando de cooperação

internacional entre países e desde que haja a inviabilidade do transporte das pessoas a

serem interrogadas de um país para outro. O segundo caso acontece quando a realização

do interrogatório presencial é frustrada em razão de atitudes perturbadoras por parte do

réu.379

Ressalte-se que, antes da edição da Lei Orgânica 13/2003, o Tribunal Supremo da

Espanha anulou o primeiro interrogatório por videoconferência realizado naquele país,

na prisão de Foncalent, situada na cidade de Alicante. Por meio da sentença n.º

678/2005, a Suprema Corte espanhola ressaltou a importância da presença física do

acusado, como também a necessidade de comunicação direta entre o preso e seu

defensor. A videoconferência importaria em prejuízo às funções de assessoramento e

assistência do advogado.380

Dando ênfase ao caráter de excepcionalidade, pela qual se deve revestir a oitiva de

depoentes pelo modo virtual, Júlio Perez Gil ressalta que a videoconferência suscita os

mais diversos problemas jurídicos, devendo sua utilização ser reservada a hipóteses

excepcionais, tais como a oitiva de pessoas situadas em locais distantes ou para o

depoimento de menores, a fim de evitar traumas a estes com o contato direto com os

acusados. Se a videoconferência não for utilizada em situações realmente

indispensáveis, o princípio da imediação não passará de mera retórica.381

Em sede doutrinária, Victor Moreno Catena e Valentin Cortés Dominguez

mostram-se reticentes quanto à aplicação da videoconferência. Apontam os autores que

esse método de colheita de depoimentos apresenta problemas de ordem conceitual e de

validade. Sob a perspectiva conceitual, a videoconferência retira a natureza oral do

depoimento. Na óptica da validade, tal sistema prejudica a percepção direta, pelo juiz,

da veracidade do depoimento, analisando a atitude e o modo de agir do declarante, sua

segurança ou vacilações nas respostas.382

379 PRADILLO, Juan Carlos Ortiz, op. cit., p. 197-198. 380 PASTOR, Carmem Paloma González. “Sobre la no validez del sistema de videoconferencia em el denominado juicio del motín de Fontcalent”. La Ley Penal n.º 23. Madrid, 2006, p. 104. 381 “Normas procesales y sociedad de la información: entre el tecno-optimismo y los tecno-prejuicios”. Derecho y conocimiento n.º 3. Huelva: Universidad de Huelva, 2005, p. 56. 382 Op. cit. 406.

160

b) Itália

O artigo 146 do Código de Processo Penal italiano prevê a possibilidade de

utilização do interrogatório por videoconferência (collegamenti audiovisivi, a distanza),

estabelecendo dois pressupostos. O primeiro é de ordem objetiva, representado pelo tipo

de crime que está sendo discutido. O pressuposto subjetivo consiste no risco em relação

à segurança de qualquer das personagens do processo em virtude da realização do

interrogatório no modelo tradicional.383

Donatella Curtori Nappi sublinha que, no ordenamento italiano, a

videoconferência tem aplicação bastante modesta. Primeiro porque tal método é

meramente facultativo, ficando a critério do juiz avaliar a utilização do sistema

audiovisual de colheita de depoimentos, em razão da presença de um concreto risco à

incolumidade física do réu e das testemunhas. Segundo, pela necessidade de ter o juiz, a

sua disposição, o aparelhamento técnico indispensável à realização do ato em níveis de

qualidade razoáveis.384

Na Itália, para que se tenha a validade do interrogatório por videoconferência, faz-

se necessária a presença de um advogado na sala de audiências ao lado do juiz e outro

no presídio, acompanhando o réu. Além disso, garante-se o contato do preso com seu

advogado por meio de comunicação que garanta o sigilo da conversa. 385

c) Estados Unidos

Nos Estados Unidos a videoconferência é utilizada desde 1983, com a finalidade

de se proceder à oitiva de menores vítimas de abuso sexual. Tal método surgiu para

evitar maiores traumas às vítimas em decorrência de um encontro ao vivo com os

acusados da prática do delito.386

383 NAPPI, Donatela Curtori. “L´uso dei collegamenti audiovisivi nel processo penale: tra ncecessita di efficienza del processo e rispetti dei principi garantistici”. Revista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffré Editore, 1999, p. 495. 384 Op. cit. p. 491. 385 Nesse sentido estabelecem o art. 2.º da lei italiana, de 07.01.1998 e o art. 205 do Código de Processo Penal Italiano. (Cf. PRADILLO, Juan Carlos. Op. cit., p. 201). 386 NAPPI, Donatella Curtori. Op. cit. p. 529.

161

Aponta Donatella Curtori Nappi que a jurisprudência estadunidense não é

uníssona na aceitação da videoconferência. Em 1988, no julgamento do caso Coy v.

Iowa, a Suprema Corte anulou sentença condenatória por abuso sexual de menores, em

que a vítima foi ouvida pelo sistema telemático. Entendeu aquele tribunal que a oitiva

da vítima por esse método viola o direito constitucional de confrontar pessoalmente

quem o acusa (right to confrontation), havendo a necessidade do contato face à face do

acusado com a testemunha ou vítima. Desse modo, reduz-se o risco de depoimentos

fantasiosos e percebem-se com maior acuidade as reações da testemunha diante da

presença do réu.387

7.7.4 A videoconferência e sua admissibilidade no ordenamento jurídico pátrio

A admissão ou não do interrogatório por videoconferência no processo penal não

pode ser analisada exclusivamente sob a óptica da conveniência administrativa e da

economia dos cofres públicos. Há de ser feita uma leitura principiológica sobre a sua

juridicidade.

É inevitável afirmar que os avanços obtidos no campo tecnológico devem

repercutir e melhorar a administração da justiça. Negar tal premissa é andar na

contramão da história. O profissional do Direito deve estar atento a essas inovações, sob

pena de ser excluído do mercado. Agora, é dever do intérprete e aplicador das normas

jurídicas aferir a compatibilidade da adoção de novos atos processuais com as garantias

constitucionais do processo.

7.7.4.1 Devido Processo Legal

Como mencionado no capítulo 5, a autodefesa encontra no princípio do devido

processo legal uma sólida fundamentação. O direito de punir do Estado não pode ser

exercido de maneira automática. Antes de aplicar a punição devida em razão da prática

de um delito, o indivíduo será submetido a uma série de atos previamente estabelecidos

em lei.

387 Op. cit, p. 531-532.

162

Da garantia do devido processo legal decorre o direito ao procedimento integral e

o direito ao procedimento tipificado.388 Pelo direito ao procedimento integral, fica

vedado ao magistrado exterminar fases do procedimento. Todas as etapas devem ser

seguidas. Por intermédio do direito ao procedimento tipificado, os atos do processo

devem ser encetados em conformidade com o modelo legal. Nesse passo, em célebre

passagem, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo afirma que “os atos processuais,

integrantes do procedimento, portanto, têm a forma que a lei lhes dá”.389 Não pode o

magistrado inovar, por mais que esteja cheio de boas intenções, criando métodos para a

prática de atos processuais ao arrepio da lei.

É inafastável a existência de lei (federal) para que se pense na adoção do

interrogatório a distância. A moldura dos atos processuais é estabelecida em lei,

evitando-se que cada juiz determine a prática de um ato ao seu talante. Assim, estando a

atividade do juiz, na qualidade de presidente do interrogatório, norteada pela lei,

diminui-se a possibilidade do exercício de um poder arbitrário. Amilton Bueno de

Carvalho e Salo de Carvalho observam que a lei, “eticamente considerada, é limite a

todo poder desmesurado”.390

As decorrências da adoção do devido processo legal não encerram sua

importância em razões de ordem formal. Trata-se de modo de controle do exercício da

função jurisdicional do Estado, impondo ao juiz uma “atuação material, firme e sóbria,

na proteção objetiva dos direitos do cidadão”.391

Não há lei federal regulando a videoconferência. Leis estaduais não podem tratar

de matéria processual, a teor do art. 22, I, da Constituição Federal. E não há que se falar

tratar-se de mero procedimento.392 O interrogatório é um ato marcado pelo

contraditório, elemento distintivo das noções de processo e procedimento. A inovação

decorrente da lei 10.792/2003, ao ensejar acusação e defesa formularem perguntas ao

réu assentou a marca da contraditoriedade no momento da oitiva do réu. Disciplinar

388 FERNANDES, Antônio Scarance. Op.cit. p. 124. 389 Op. cit., p. 1. 390 Op. cit. p. 71. 391 CARVALHO, Amilton Bueno de, CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 71 392 A propósito, explica Antônio Scarance Fernandes: “A norma sobre videoconferência não é, ademais, simples norma a respeito dos locais em que os atos de interrogatório e de instrução processual serão efetivados. Ela envolve, necessariamente, direitos dos acusados, como o seu direito a ser ouvido diretamente pelo juiz, o seu direito à presença do defensor ao ato do interrogatório, o seu direito a exercer em contato pessoal com o juiz a sua autodefesa”. (“A Inconstitucionalidade da Lei Estadual sobre Videoconferência”. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.ª 147. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 7).

163

sobre o mecanismo em que o interrogatório é realizado configura-se competência

privativa da União.

7.7.4.1.1 O Projeto de Lei n.º 139/2006

Além das leis (inconstitucionais) editadas pelos Estados do Rio de Janeiro e São

Paulo, tentando implantar a videoconferência, tramita no Congresso Nacional o Projeto

de Lei n.º 139/2006, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), com a

finalidade de afastar o óbice formal de inexistência de lei regulando a realização de

interrogatório pelo meio virtual. Mencionado projeto foi aprovado no âmbito do Senado

Federal e encaminhado em 13.03.2007 à Câmara dos Deputados para apreciação. Após

algumas alterações no texto, o projeto foi aprovado na Câmara Alta, mas foi vetado pelo

presidente da República. Eis o tratamento que o projeto dá ao interrogatório:

Art. 185 [...] § 1º Os interrogatórios e as audiências judiciais serão realizadas por meio de videoconferência, ou outro recurso tecnológico de presença virtual em tempo real, assegurados canais telefônicos reservados para a comunicação entre o defensor que permanecer no presídio e os advogados presentes nas salas de audiência dos Fóruns, e entre estes e o preso; nos presídios, as salas reservadas para esses atos serão fiscalizadas por oficial de justiça, funcionários do Ministério Público e advogado designado pela Ordem dos Advogados do Brasil. § 2º Não havendo condições de realização do interrogatório ou audiência nos moldes do § 1º deste artigo, estes serão realizados no estabelecimento prisional em que se encontrar o preso, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. § 3º Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor. § 4º Será requisitada a apresentação do réu em juízo nas hipóteses em que não for possível a realização do interrogatório nas formas previstas nos §§ 1º e 2º deste artigo.” (NR)

O projeto foi bastante ousado na adoção da videoconferência no processo penal.

Estabelece como regra o interrogatório virtual, relegando à última hipótese a realização

clássica da audiência para conferir ensejo ao exercício do direito de audiência do réu

preso. Somente seria encetado o interrogatório pelo método tradicional (presencial) em

caso de frustrados o mecanismo on-line e o interrogatório no próprio presídio.

O legislador deve pensar no impacto que a realização de vários interrogatórios

pelo sistema de videoconferência pode causar. Deve-se ter em mira a realidade do

164

sistema prisional do País. Os Estados-membros não suportarão a instalação de

equipamentos de alta tecnologia em diversos presídios e delegacias, aliada à

indispensável mão-de-obra qualificada e cara. Não se ignore a necessidade da presença

de um defensor, ao lado do preso, na penitenciária ou delegacia e outro no fórum. No

mínimo393, dois defensores para a realização do interrogatório. É cediço o fato de que a

Defensoria Pública é tratada como instituição de terceira categoria pelo Poder Público,

padecendo de insuficiência de defensores. Haverá aumento repentino do quadro de

pessoal do órgão responsável pela prestação do serviço de assistência jurídica aos

carentes? O que seria uma diminuição de custos poderá trazer efeito maléfico para os

cofres públicos.

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, apesar de admitir a videoconferência no

processo penal, entende que esse método deve ser utilizado em situações excepcionais,

tal qual sói acontecer no Direito comparado. Para o professor da Universidade de São

Paulo, o projeto merece aperfeiçoamento, com

(1) inversão da ordem de prioridade nas formas de interrogatório; (2) previsão de um rol estrito de crimes graves a admitir a oitiva por videoconferência; (3) necessidade de decisão fundamentada a indicar o motivo pelo qual é impossível ou inadequada a presença do acusado, da testemunha ou do perito em juízo. Com essas correções, ficará superado o óbice de legalidade, de forma a compatibilizar a disciplina legal com os princípios constitucionais do processo penal.394

Evidentemente que, caso convertido em lei, superado está o vício consistente na

ausência de lei federal que preveja o interrogatório virtual; mas, ainda, assim, a adoção

do interrogatório por videoconferência não passa pelo teste da constitucionalidade, sob

uma perspectiva material. Vários outros princípios constitucionais são abalados,

consoante a seguir estudado.

7.7.4.1.2 O Projeto de Lei n.º 679/2007

Após a decisão da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, anulando

interrogatório encetado pelo sistema de videoconferência, o senador Aloízio Mercadante

(PT/SP) elaborou novo projeto de lei, buscando aproximar a realização da

videoconferência do entendimento esposado pelo Excelso Pretório. Com esse projeto, a 393 Diz-se que são necessários no mínimo dois defensores, pois quando for realizado o interrogatório de vários acusados com teses colidentes, há que se ter advogados distintos. 394 Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, tomo I., p. 225

165

videoconferência passa a ter caráter excepcional, devendo ser realizada após decisão

motivada do juiz com a presença de determinados requisitos. Com o texto do projeto, a

disciplina legal do interrogatório seria modificado no seguinte:

Art.185. § 1º. O interrogatório do acusado preso será realizado no estabelecimento prisional em que estiver recolhido, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. § 2º. O juiz, de ofício ou a pedido do Ministério Público ou da defesa, poderá determinar a realização de interrogatório por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, em tempo real, sempre que haja motivo devidamente fundamentado acerca de segurança pública, manutenção de ordem pública ou garantia da aplicação da lei penal e instrução criminal, e desde que sejam assegurados canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que permanecer no presídio e os advogados presentes nas salas de audiência dos fóruns, e entre estes e o preso. § 3º. Em qualquer caso, antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor. § 4º. A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização dos atos processuais à distância será fiscalizada por membros do Ministério Público, da Magistratura, serventuários da justiça e pela Ordem dos Advogados do Brasil. § 5º. Será requisitada a apresentação em juízo do acusado preso, nas hipóteses em que o interrogatório não se realizar na forma prevista nos §§ 1º e 2º deste artigo.

O projeto em análise expressa a seguinte ordem de prioridade para a celebração do

interrogatório, em relação ao local: (i) no próprio estabelecimento prisional, com a

presença do juiz, Ministério Público, advogados e serventuários; (ii) por

videoconferência, permanecendo o juiz, Ministério Público e advogado na sala de

audiências do fórum e o preso acompanhado de outro defensor na penitenciária; e (iii)

interrogatório tradicional, com a requisição do réu preso à sala de audiências. Houve,

sem dúvida, avanço em relação ao PL n.º 139/2006, pois restringiu a utilização da

videoconferência à prolação de decisão judicial que demonstre a presença de motivos

hábeis a proteger a segurança pública, ordem pública, conveniência da instrução

criminal e garantia de aplicação da lei penal. Ainda assim, a inconstitucionalidade

permanece em razão de agressão a outros princípios constitucionais.

As discussões travadas no Congresso Nacional buscam alcançar melhorias para a

redução do grave problema da segurança pública.395 Não se discute que a violência é um

mal que aflige toda a população brasileira, mas é preciso também entender-se que o 395 Os projetos de lei mencionados não são os únicos a tratar do interrogatório por videoconferência no Congresso Nacional. Há, inclusive, um projeto de emenda constitucional (PEC 510/2006, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ); no entanto, foram mencionados estes devido à força política de seus autores e o conseqüente apoio que receberam nas casas legislativas, o que leva à conclusão de que serão apreciados com maior rapidez.

166

problema não será debelado à custa de violação de direitos dos acusados. É preciso,

dessa forma, que o Poder Judiciário permaneça vigilante em relação a alterações

legislativas que aviltam os direitos fundamentais. Como ressaltou o ministro Cezar

Peluso, em célebre voto, “quando a política criminal é promovida à custa de redução das

garantias individuais, se condena ao fracasso mais retumbante”.396

Há medidas muito mais simples e econômicas que poderiam ser adotadas para

diminuir a crise do sistema carcerário, como por exemplo, o reforço da assistência

jurídica aos presos e a agilidade na apreciação dos benefícios deles na execução penal.

Isso diminuiria a revolta dos presidiários, fator que ocasiona a prática de delitos nos

presídios ou a partir destes. Aos olhos da população, em geral, soa bem mais agradável

e eficaz a criação de leis mais rigorosas com os criminosos do que a implantação de

medidas que visam a melhorar o sistema prisional. Talvez o cidadão não tenha a noção

de que aquele preso tratado de forma desumana na penitenciária saia do cárcere ainda

mais perigoso.

7.7.4.2 Dignidade da pessoa humana

O avanço da tecnologia não pode dar suporte ao aniquilamento das relações

humanas. As inovações empreendidas na área da informática cada vez mais fascinam a

humanidade, ultrapassando limites até então intransponíveis. A ciência moderna, porém,

deve servir ao homem e não amesquinhá-lo, não pode tratá-lo como um mero

instrumento para a consecução de metas administrativas. Continua atual a advertência

de Aldous Huxley, dita em 1932, em que o escritor britânico reconhece a importância da

ciência para o progresso da humanidade, afirmando que “a ciência é um perigo público.

Ela é tão perigosa hoje quanto foi benfazeja no passado. Deu-nos o equilíbrio mais

estável que a história registra”.397 Prossegue o autor, contudo, alertando sobre a

observância dos limites do progresso científico, pois imaginava-se que ele poderia

continuar de forma contínua e ilimitada, “sem consideração a qualquer coisa. O saber

era o mais alto bem; a verdade, o valor supremo: tudo o mais era secundário e

396 STF. 2.ª Turma. HC 88.914-0/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 14.08.2007. DJ 05.102.2007. 397 Admirável Mundo Novo. 2.ª edição. São Paulo: Globo, 2003, p. 276.

167

subordinado”.398 Proféticas são as palavras do autor, pois alguns anos depois o mundo

assistiu aos “avanços” provocados pela bomba atômica.

Ressalte-se que, em muitos casos, a tecnologia não vem logrando dar ao homem

aquilo que ele almeja e necessita: um mundo mais seguro e estável do que o próprio

homem.399

As rápidas e constantes mudanças tecnológicas e sua aplicação no campo

processual são bastante sedutoras: diminuição do tempo para a prática dos atos

processuais, redução das despesas operacionais, sem prejuízo da qualidade da

transmissão de dados, som e imagem. Tais maravilhas, entretanto, não podem levar à

desconfiguração de um processo moldado com tintas democráticas, protetor de bens

indisponíveis, que exprimem em nível razoável de civilidade “de que não queremos

afastar-nos, mas também porque estão consagrados em normas supra-ordenadas às

opções do legislador ordinário, isto é, nas constituições dos povos”.400

Não se está aqui a sustentar posição contrária à utilização das inovações

tecnológicas, buscando melhor prestação jurisdicional, objetivando um processo mais

célere. A demora na entrega na prestação jurisdicional é preocupação recorrente por

parte dos estudiosos e operadores jurídicos, buscando-se soluções para debelar uma das

principais mazelas que afligem o Poder Judiciário; no entanto, é preciso entender que

não se melhora prestação jurisdicional com agressão a garantias processuais

fundamentais.

Essa compatibilização entre a utilização das modernas tecnologias com os valores

democráticos da Constituição não quer traduzir cegamente uma opção que repila toda e

qualquer modernização na prestação jurisdicional. A propósito, oportuno é trazer a

advertência de Anabela Miranda Rodrigues: “O processo está inexoravelmente obrigado

a modernizar-se, sob pena de, na sua imobilidade, se tornar obsoleto”401

Na esfera cível, pode-se mencionar a virtualização dos processos, a penhora on

line, a facilitação da pesquisa jurisprudencial pela internet, enfim, uma série de medidas 398 HUXLEY, Aldous. Op. cit. p. 276. 399 “Em seu continuo processo de operação, este mundo de máquinas começa a perder até mesmo aquele caráter humano independente que os instrumentos e utensílios e as primeiras máquinas da era moderna possuíam em tão alto grau”. (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 165-166). 400 RODRIGUES, Anabela Miranda. “A defesa do argüido: uma garantia constitucional em perigo no “admirável mundo novo”. Revista Portuguesa de Ciências Criminais n.º 12. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 561. 401 Op. cit. p. 561.

168

que dinamizam a prestação jurisdicional do Estado. Dentre as inovações digitais no

campo processual, destaca-se o interrogatório por videoconferência.

A realização do interrogatório por videoconferência implica o desprezo pelo ser

humano, ignorando seus sentimentos, tratando-o como um empecilho para a rápida

condução do processo. A condição de réu já afeta o indivíduo pela carga de lesividade

que representa o processo penal. A situação de réu preso é ainda mais grave, pois além

da afetação de seu status dignitatis, o réu tem cerceada a sua liberdade, permanece em

um depósito de bichos, e, nessa condição, sequer tem contato com o juiz. Defende Erich

Fromm a idéia de que “o elemento humano precisa ser tomado em consideração como

fator básico no sistema cuja eficiência se tenta examinar”.402 Walter Nunes da Silva

Júnior ressalta que, sendo a dignidade da pessoa humana um princípio relevante no

Estado Constitucional brasileiro, mencionado preceito “serve para afastar qualquer

discurso jurídico tendente a justificar um tratamento desfavorecido dos valores

imanentes a esse enunciado a quem pratica o crime”.403

A adoção do interrogatório por videoconferência viola o princípio constitucional

da dignidade da pessoa humana. Se implica na agressão de um princípio constitucional,

é preciso analisar as conseqüências daí decorrentes. Não se olvide o fato de que

mencionado princípio tem força normativa e seu descumprimento acarreta

conseqüências jurídicas.404 Nesse diapasão, é oportuna a advertência de José Carlos

Vieira de Andrade, para quem o “princípio da dignidade humana não é mera abstração,

não vale como pura idealidade”.405 Na mesma ordem de idéias, Fábio Konder

Comparato anota: “A dignidade da pessoa humana não pode ser reduzida à condição de

puro conceito”.406 Ora, se a dignidade da pessoa humana não é simples abstração, não

pode ser ignorada no momento em que é reclamada a sua aplicação. Colocar-se frente a

frente do réu é o mínimo que o juiz pode fazer para tratá-lo com dignidade. Representa

402 A Revolução da Esperança: por uma tecnologia humanizada. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. 403 Op. cit., p. 385. 404 Nesse passo anota Ingo Wolfgang Sarlet que a inserção da dignidade da pessoa humana como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil não contempla apenas uma declaração de conteúdo moral eético, mas constitui-se em “norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia [...]”. (Op, cit., p. 70). 405 Op. cit. p. 49. 406 A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 226.

169

o interrogatório on-line “um enorme sucesso tecnológico, mas um flagrante desastre

humanitário”.407

7.7.4.3 Ampla Defesa

O contato físico do acusado diante do juiz representa não somente a possibilidade

de percepção mais aguda das sensações do interrogando por parte do magistrado, mas

confere ao acusado a chance de tentar mostrar pessoalmente ao juiz a sua versão dos

fatos, sem que haja entre esses protagonistas da novela processual qualquer parafernália

eletrônica que transmita essas sensações ou que traduza sentimentos. Já bastam os

sentidos do ser humano como receptores de manifestação da vontade de cada pessoa.

Ressalte-se que, dentre os consectários da adoção, no sistema processual

brasileiro, do princípio da ampla defesa, está em reconhecer no réu um agente

importante na atividade probatória. Não constitui o imputado em objeto passivo da

atividade de produção de provas. Nessa perspectiva, é de grande relevância a presença

física do acusado, sendo este, no interrogatório, sujeito ativo da atividade probatória.408

Nessa ordem de idéias, colhe-se do voto do Ministro Cezar Peluso: “Mais do que modo

de ver e ouvir, o interrogatório é evento afetivo, no sentido radical da expressão”.409

Ressalte-se que a presença física no imputado facilitará também o contato com seu

advogado de confiança, não se restringindo a um frio contato telefônico.

Assim, a realização de uma audiência no presídio, sem a presença do juiz se torna

demasiadamente tormentosa para o réu. O ambiente prisional410 não é o mais adequado

para a realização da audiência com a finalidade de se proceder à oitiva do réu,

especialmente quando o juiz não participa presencialmente desse ato. O interrogatório,

para permitir a plena realização da autodefesa, deve ser realizado sem pressões de

qualquer ordem, em um ambiente adequado, que preserve a liberdade e a serenidade do

interrogando.411 Sendo de conhecimento geral o deplorável estado dos presídios

407 D´URSO, Luiz Flávio Borges. “O Interrogatório por Teleconferência: Uma Desagradável Justiça Virtual”. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos n.º 36. Bauru: ITE, 2002, p. 428. 408 PRADILLO, Juan Carlos Ortiz. “El uso de la videoconferência em el proceso penal español”. Revista Brasileira de Ciências Criminais n.º 67. São Paulo: RT, 2007, p. 2000. 409 STF. 2.ª Turma. HC 88.914-0/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 14.08.2007. DJ 05.102.2007. 410 Afirma Walter Nunes da Silva Júnior que “não há nada mais agressivo à dignidade humana do que à prisão, especialmente em razão das condições carcerárias em nosso País”. (Op. cit., p. 875). 411 CATENA, Victor Moreno; DOMÍNGUEZ, Valentin Cortés. Op. cit. p. 219.

170

brasileiros, submeter o acusado preso a realizar autodefesa no ambiente prisional é

enfraquecer essa valiosa garantia, de vez que, conforme atesta Walter Nunes da Silva

Júnior, a prisão não apresenta a ambiência necessária para o “pleno desenvolvimento da

personalidade humana”.412

A não-presença do réu, no mesmo ambiente físico e temporal onde se realiza a

audiência comporta uma lesão do direito à autodefesa, pois não se apresenta o acusado

preso em condições de igualdade em relação ao órgão acusatório e nem em relação ao

acusado solto.413 Trata-se, de fato, de uma situação paradoxal. Apesar de considerado

inocente, é interrogado no ambiente prisional. Sequer no momento de defender-se de

viva voz perante o juiz, há uma aproximação entre o acusado e o julgador.414

Guilherme de Souza Nucci, embora reconhecendo as dificuldades concernentes ao

transporte diário de presos das penitenciárias aos fóruns, não consegue compatibilizar

esse método para colheita de depoimentos com o resguardo da esfera jurídica dos

acusados: “[...] não vemos como aceitar o chamado interrogatório on line (ou

interrogatório por videoconferência), sinônimo de tecnologia, mas significativo atraso

no direito de defesa dos réus”.415

As razões apontadas para a adoção do interrogatório on-line são de caráter

administrativo, de conveniência para a gestão judiciária e penitenciária. O interrogatório

à distância inibe o depoimento do réu, diminui a sua capacidade de expressar

sentimentos, dificulta sobremaneira a sua defesa. Na visão de Carlotta Conti, no

interrogatório à distância não tem o imputado a liberdade de prestar declarações com a

mesma espontaneidade que teria se tivesse na sala de audiências, perante o juiz.416

Argumenta-se que o réu pode constituir advogado de sua confiança para

permanecer no presídio, ao seu lado, entrevistando-se reservadamente com este antes de

412 Id. Ibid., p. 394. 413 Apontou o Min.Cezar Peluso: “se o acusado, que responde ao processo em liberdade, comparece perante o juiz para ser interrogado, a fortiori deve comparecer o réu que se ache preso sob a guarda e responsabilidade do Estado e, como tal, despido da liberdade de locomoção”. (STF. 2.ª Turma. HC 88.914-0/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 14.08.2007. DJ 05.102.2007). 414 “Quanto mais rica a relação in vivo, tanto mais eficaz o experimento. A percepção nascida da presença física não se compara à visual, dada a maior possibilidade de participação e o fato de aquela ser, ao menos potencialmente, muito mais ampla”. (STF. 2.ª Turma. HC 88.914-0/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 14.08.2007. DJ 05.102.2007). 415 Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 394. 416 “Rimedi processuali contro la partecipazione a distanza disposta illegitimamente”. L´Indice Penale n.ª 3, ano III. Padova: 2000, p. 1280. Nesse sentido, sublinhou o Min. Cezar Peluso que “o interrogatório precisa ser espontâneo, garantido contra toda forma de coação ou tortura, física ou psicológica”. (STF. 2.ª Turma. HC 88.914-0/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 14.08.2007. DJ 05.102.2007).

171

ser ouvido pelo juiz e outro patrono, para comparecer ao fórum, fazendo-se presente

perante o juiz e o órgão do Ministério Público, tendo, portanto, uma visão completa da

dinâmica processual. Tal hipótese será de difícil realização prática, Ora, se a maioria

dos acusados sequer tem condições de contratar um advogado, o que dirá dois. O

interrogatório virtual representa, pois, uma excessiva onerosidade para a defesa, ao

exigir da presença de dois defensores em diferentes locais. Tal situação é agravada

quando o réu se encontra preso em cidade distante daquela onde está sendo

processado.417

Portanto, nem mesmo os mais modernos equipamentos de videoconferência

podem ser mais eficientes para a defesa do réu do que o contato presencial do imputado

com a autoridade judiciária, possibilitando ao imputado agir com maior espontaneidade,

com maior firmeza nas palavras, com maior segurança no olhar. Triplamente

prejudicado fica o acusado preso que se sujeita ao interrogatório virtual. Em primeiro

lugar, pela própria condição de réu, algo que abala emocionalmente o indivíduo.

Segundo, por estar preso, situação que agrava esse estado psíquico e também físico. E,

em terceiro lugar, por não ter a proximidade física com o julgador, falando diante de um

grande televisor.

Talvez fosse muita pretensão do presente estudo concluir se a videoconferência

prejudica o direito de cada réu de exercer pessoalmente a sua defesa, sem ouvir do

imputado preso o seu pensamento acerca do novel interrogatório. Para dissipar um

pouco essa angústia, foram realizadas entrevistas informais com alguns presos em

penitenciárias situadas na região metropolitana de Fortaleza. Longe de estabelecer um

panorama estatístico acerca da visão dos presos sobre o instituto, a preocupação foi mais

de ouvir o principal interessado com a inovação.

No IPPS (Instituto Penal Professor Paulo Sarasate), onde são encarcerados os

presos definitivos, a maioria dos entrevistados respondeu ser indiferente o meio para

realização do interrogatório, se no fórum ou no presídio, por videoconferência. Uns

poucos disseram ser melhor o interrogatório por videoconferência, pois assim não

“apanhariam” dos policiais ou dos agentes prisionais durante a condução. Um deles

disse, gostando da novidade: “É, às vezes eles (agentes) apertam demais as algemas”.

Outro detento declinou sua preferência pela encetação do interrogatório no próprio

417 NAPPI, Donatella Curtori. Op. cit. p. 520.

172

presídio, com a presença do juiz. Disse o condenado: “Se eles viessem pra cá, saberiam

melhor a situação da gente. Tem muito preso aqui com cadeia vencida”.

No outro local visitado, o Presídio Feminino Desembargadora Auri Moura Costa,

as detentas, com maior grau de instrução – em sua maioria – disseram que preferiam ser

interrogadas na presença do juiz, pelo método tradicional, sendo importante o “olho no

olho’. Algumas – estas mais humildes - mostravam-se indiferentes: “tanto faz” era a

resposta mais ouvida.

Percebe-se, dessa forma, que não se pode ter como parâmetro exclusivo para a

harmonização do interrogatório on-line a opinião dos presos. Estes, em verdade, em sua

maioria, não têm noção precisa de seus direitos, o que denota a relevância do advogado

na proteção de seus interesses.

A videoconferência prejudica a defesa técnica.418 O advogado de confiança do réu

terá que optar por ficar no fórum, ao lado do juiz, ou permanecer no presídio, do lado do

réu. No primeiro caso, há sensível diminuição da comunicação entre réu e defensor. O

uso de um aparelho de telefone não supre a necessidade do contato presencial.419 A tão

importante interação autodefesa e defesa técnica é afetada, tolhendo o advogado de

importantes informações que poderiam servir de base às suas perguntas. No segundo

caso, permanecendo no presídio, o advogado de confiança do réu não terá acesso aos

autos para dirimir eventuais dúvidas, ou para prestar retificação quanto à errônea

interpretação de provas dos autos pelo magistrado ou pelo Ministério Público e ainda de

fiscalizar com eficiência a atuação dessas autoridades no interrogatório, restando atento

diante de algum abuso que porventura venha a ser praticado. Para bem desempenhar o

seu papel, o advogado criminalista sabe que precisa conquistar e manter a confiança de

seu cliente, em diversas oportunidades. Alcançar esse apoio através do contato por

telefone não passa de uma ilusão.

Há um prejuízo à defesa técnica e a autodefesa, as duas garantias que compõem a

ampla defesa.

418 Para Aury Lopes Júnior, “o sistema on-line foi pensado para que a defesa seja meramente simbólica, assumindo o advogado uma postura burocrática, como convidado de pedra. Elementar que matamos a defesa técnica e autodefesa”. (Op. cit., p. 84). 419 Nessa linha, Antônio Magalhães Gomes Filho aponta: “Por mais sofisticado que sejam os meios eletrônicos, somente a presença efetiva na audiência pode assegurar a comunicação entre os sujeitos processuais”. (“Garantismo à Paulista: A Propósito da Videoconferência”. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n.º 147. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 6).

173

7.7.4.4 Princípio da publicidade

O exercício da função jurisdicional, bem como toda e qualquer função pública,

representa um interesse que não se circunscreve aos agentes processuais. O agente

público deve prestar conta de seus atos perante a população, de modo a permitir que esta

possa fiscalizar a conduta dos magistrados, promotores de justiça e defensores

públicos.420 Quanto mais próximo estiver o Poder Judiciário da população, mais este

poder reforçará a sua legitimidade – não por querer atender aos anseios populares em

detrimento da violação das garantias processuais dos acusados – mas por viabilizar o

conhecimento de suas atividades por parte de qualquer interessado.

A transparência dos atos dos agentes públicos é um valor relevante em uma

democracia, tanto que a Constituição Federal prevê, no art. 93, IX, da Constituição

Federal: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos [...] sob

pena de nulidade”. É verdade que a maioria das pessoas somente comparece a

audiências judiciais a fim de serem ouvidas, na condição de réus, testemunhas ou

vítimas. Dentre os próprios estudantes de Direito, não é raro encontrar acadêmicos que

nunca participaram de uma audiência. De fato, dificilmente encontram-se cidadãos que

não estão diretamente envolvidos com os processos judiciais a vontade em conhecer os

meandros da justiça. Esse desinteresse da população por acompanhar de modo mais

próximo os atos processuais, os julgamentos do Judiciário, não pode servir de pretexto

para que se dispense a necessária publicidade. A restrição à publicidade somente é

admitida “quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. (art. 5.º, LX,

CF/88).

No caso do interrogatório por videoconferência, não há como se ter o amplo

acesso da população à sala de audiências situada no estabelecimento prisional. Questões

de segurança exigem um controle efetivo sobre toda pessoa que ingresse nas

dependências dos presídios. Sabe-se que, hoje, já é bastante difícil o controle das

pessoas que comparecem para visitar os presos. Com freqüência, essas visitas levam à

penitenciária telefones celulares, drogas, bebidas, dinheiro e armas. Esse aspecto não

pode ser olvidado. Sem a publicidade, enfraquecido fica o controle por parte da 420 Sobre a importância do princípio da publicidade no interrogatório, observa Carlos Henrique Borlido Haddad: “Uma garantia arduamente conquistada, erigida contra os juízos secretos e de caráter inquisitório de tempos idos e que, hoje, eleva o povo a magistrado dos magistrados”. (O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 113).

174

população em relação ao ato de interrogatório. Carlos Henrique Borlido Haddad percebe

esse óbice da ausência de publicidade do interrogatório virtual, asseverando que

“realizado no interior de uma penitenciária, a publicidade inerente à atividade judiciária

e insculpida como princípio constitucional (art. 5.º, LX, CF) fica limitada às partes”.421

7.7.4.5 Princípio da imediação.

O princípio da imediação informa que o juiz deve ter contato direito com as partes

e as provas que irá colher e valorar, não se admitindo, pois, qualquer intermediação de

instrumentos eletrônicos que repassem a prova produzida ou o depoimento das partes. A

modernização do processo penal, com a digitalização de autos, gravação de audiências e

adoção de avançados métodos de colheita de provas não quer traduzir – em nenhum

momento – a aceitação do interrogatório que dispense o contato pessoal do réu com seu

julgador.

O contato face a face do acusado com o magistrado tem relevância tanto para a tão

propalada busca pela verdade material quanto para a preservação da autodefesa do réu.

Na perspectiva do juiz, olhando nos olhos do réu, captando as suas sensações sem

qualquer telão à sua frente, há, sem dúvidas, maiores chances de se captar a sinceridade

do depoimento. São as lágrimas tímidas que escoam lentamente na face daquele que

demonstra arrependimento. É o sorriso sarcástico do interrogando que nega com

evasivas a prática do delito, ou ainda mesmo a firmeza no olhar do réu que mostra

indignação ante uma acusação injusta. São detalhes que podem parecer pequenos, mas

que são relevantes na formação do convencimento do julgador, facilitando, inclusive, a

formulação de perguntas que reforcem e corroborem o que estava desenhado de maneira

implícita no intelecto do magistrado. Nesse passo, observa Carlos Henrique Borlido

Haddad: “O homem que condena não se pode esquecer que o faz em relação ao seu

semelhante. Recomendável que as condenações sejam impostas a réus cujos semblantes

foram antevistos pelo magistrado”.422

421 Op. cit., p. 113. 422 O Interrogatório no Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 114.

175

René Ariel Dotti defende a preservação dos valores humanos no processo,

salientando a importância da existência de uma aproximação física entre o magistrado e

o réu:

[...] a tecnologia não poderá substituir o cérebro pelo computador e muito menos o pensamento pela digitação. É necessário usar a reflexão como contraponto da massificação. É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da mascara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o Senhor da Justiça e o homem do crime, num gesto de alegoria que imita o toque dos dedos, o afresco pintado pelo gênio de Michelangelo na Capela Sistina e representativo da criação de Adão.423

O afastamento físico entre o magistrado e o réu origina uma tendência no julgador

de ser menos sensível, humano, atento às angústias e sofrimentos de quem está a ouvir e

ver apenas por uma tela de computador. Para Aury Lopes Júnior, a distância “contribui

para uma absurda desumanização do processo penal”,424 acrescentando ainda que, com

o interrogatório virtual, “teremos a indiferença e a insensibilidade do julgador elevadas

a níveis insuportáveis”,425 concebendo essa modalidade de ato processual como um

“imenso retrocesso civilizatório”.426

A adoção do interrogatório virtual insere-se em uma série de impactos maléficos

de uma sociedade que despreza o humanismo. Tem-se, muitas vezes, até no plano

relacionamento interpessoal, substituído-se o contato pessoal por utilização de

computadores.427 Visualizando como um malefício ao princípio da imediação a

realização do interrogatório à distância, Guilherme de Souza Nucci é categórico ao

repelir tal método: “Uma tela de aparelho de TV ou de computador jamais irá suprir o

contato direito que o magistrado deve ter com o réu, até mesmo para constatar se ele se

encontra em perfeitas condições físicas e mentais”.428 Com efeito, pode o magistrado ou

mesmo o membro do Ministério Público perceber que o réu sofreu agressões físicas ou

psicológicas ao ter um contato mais próximo com este.429

423 “O Interrogatório à Distância: Um novo tipo de cerimônia degradante”. RT 740. São Paulo: RT, 1997, p. 480. 424 Op, cit., p. 82. 425 Id. ibid., p. 83. 426 Id. ibid., p. 83. 427 Observa Erich Fromm: “O computador pode servir à intensificação da vida humana em muitos aspectos. Mas a idéia de que ele substitui o homem e a vida é a manifestação da patologia de hoje”. (Op. cit., p. 59). 428 Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 394. 429 Em matéria publicada pelo jornal O POVO (Fortaleza/CE), em 28.02.2008, p. 10, intitulada “MP denuncia incompetência policial”, a promotora de justiça da 14.ª Vara Criminal da Fortaleza, Dra. Marília

176

Infelizmente, a prática de agressões físicas contra presos não é um fenômeno

isolado no País. A tortura ocorre de forma generalizada nas delegacias e prisões, sendo

mascarada por parte dos juízes, que classificam o ato como abuso de poder.430

Tolhendo-se o contato pessoal do réu com magistrados e membros do Ministério

Público, não se tenha dúvida de que as estatísticas oficiais sobre tortura ficarão ainda

mais distantes da realidade.

Ao tratar da função investigatória do Ministério Público no âmbito criminal,

Walter Nunes da Silva Júnior defende a importância de uma comunicação prévia entre o

membro do parquet e o indiciado. Mostra o autor que, em muitas oportunidades, se o

promotor de justiça ou o procurador da República tivessem tido a oportunidade de

contato pessoal com o investigado, a denúncia não teria sido ofertada. Detectou o

professor da UFRN a relevância do contato direto entre o órgão do Ministério Público e

o acusado, de modo a possibilitar àquele o conhecimento dos fatos de maneira mais

profunda, “além da pálida imagem que é desenhada nos autos do inquérito por meio de

palavras e mesmo desenhos e fotografias, como também de ver, ao vivo e em cores, o

principal ator do drama criminal, que é a pessoa apontada como a autora do crime”.431

Veja, se é importante para o promotor ter contato com o réu antes de oferecer a

denúncia, essa importância será bem maior para o juiz, já que este dirá se o interrogando

é culpado ou inocente. O princípio da imediação, que exige o contato direto do juiz com

as partes e provas, tem essa função humana, servindo para diminuir o espaço de

incertezas no intelecto do magistrado.

O Judiciário não pode aceitar de forma tão passiva o desaparecimento do contato

humano pessoal nos atos processuais. Os valores dominantes na sociedade precisam ser

repensados. Há determinados bens, tais como a segurança e a propriedade, que

Uchôa de Albuquerque narrou que, em uma audiência destinada a ouvir réus acusados do crime de extorsão mediante seqüestro, em 16.03.2007, um dos acusados compareceu para prestar seu depoimento, sangrando. Falou a promotora: “O pior não foi isso, o preso Cícero Cândido estava pingando sangue na mesa. Depois de insistir muito, ele disse que havia sido espancado no porão do fórum pela polícia. Um absurdo!. Foi registrado boletim de ocorrência, solicitei abertura de inquérito na Delegacia de Apoio ao Judiciário e o encaminhei para fazer exame de corpo de delito”. Será que, em uma situação dessa natureza, o preso teria coragem de informar a agressão sofrida dentro do estabelecimento prisional? O preso teria comunicado essa surra se não tivessem ocorrido pedidos insistentes da Promotora, feitos cara a cara? São questões que merecem reflexão. 430 Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), elaborado nos anos de 2001 a 2008 e que será debatido durante sessão plenária a ser realizada no mês de abril do corrente ano (Jornal O POVO. 27.02.2008, p. 13). 431 Op, cit., p. 583.

177

continuam prestigiados, no entanto, “os valores humanos, que ultrapassam as exigências

de nossa ordem social, realmente perderam sua influência e peso”.432

A importância do ato de interrogatório exige a sua realização com a presença

física de todos os envolvidos, em único ambiente, não podendo “ser banalizado e

relegado ao singelo contato dos maquinários da tecnologia. [...] O contato direto entre

magistrado e o réu, no entanto, parece-nos imperioso”.433

A análise da juridicidade do interrogatório à distância não pode ser encetada tendo

em vista o aspecto meramente normativo do fenômeno jurídico, desprezando-se os

valores humanos que dão sustentação às normas jurídicas. A necessidade do dispêndio

de recursos financeiros com os interrogatórios tradicionais, em um país com tantas

carências como o Brasil, não serve de “justificativa ao distanciamento do juiz do ser

humano que vai ouvir e julgar”.434

7.7.4.6 A norma do art. 185, § 1.º do Código de Processo Penal

Um dos argumentos bastante utilizados pelos que advogam a necessidade da

adoção da videoconferência é o risco de fuga do réu no trajeto do presídio até o fórum.

Evitando-se esse transporte do preso, afasta-se a possibilidade de fuga no transporte. O

legislador pátrio não se mostra alheio a essa possibilidade, tanto que, com a inovação da

lei 10.792/2003, o § 1.º do artigo 185 passou a ter a seguinte redação:

O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.

São dois os meios pelos quais o interrogatório pode ser realizado. O primeiro, que

constitui regra geral, é de que o interrogatório será feito no fórum, com a presença física

de todas as personagens do processo, inclusive do réu preso, que será devidamente

conduzido. Não havendo a possibilidade de deslocamento do preso até o fórum, ou

mesmo na hipótese em que essa condução não for recomendável (em virtude, por

exemplo, de fundado risco de fuga do preso), o réu será ouvido no próprio

432 FROMM, Erich. Op. cit., p. 157. 433 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 394. 434 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 394.

178

estabelecimento prisional, em sala especialmente designada para o ato, com segurança

para todos os participantes.

Em nenhum momento o Código de Processo Penal menciona a realização do

interrogatório pelo novel método on-line, nem mesmo na hipótese de receios de fuga do

preso durante o seu deslocamento ao ambiente forense. Caso haja riscos concretos de

fuga do réu durante o transporte até o fórum, a solução fornecida pelo Código de

Processo Penal é a ida do juiz ao presídio, para que lá proceda ao interrogatório. Juízes,

membros do Ministério Público e advogados, comparecendo aos estabelecimentos

prisionais, terão maior conhecimento da realidade que permeia o sistema carcerário.

Não é nenhum motivo de vergonha para um magistrado sair um pouco do conforto de

seu gabinete para conhecer de perto o ambiente prisional.

Na perspectiva de Guilherme de Souza Nucci, a inovação decorrente da lei

10.792/2003 representou a opção do legislador pela rejeição do interrogatório à

distância, devendo, quando houver necessidade, o ato ser realizado no presídio.435

Eugênio Pacelli de Oliveira aponta que a observância da norma em foco, principalmente

no que toca aos presos em cadeias públicas e delegacias, traria vantagens consideráveis,

pois o juiz, conhecendo um pouco mais de perto a dura realidade dos presídios, passaria

a refletir mais profundamente antes de determinar ou de manter a prisão de alguém.

Para o autor, o interrogatório virtual só poderia ser realizado se houvesse consenso entre

o juiz, membro do Ministério Público e defesa, pois, nessa situação, não haveria

prejuízo para o réu.436

O interrogatório por videoconferência afasta esse contato pessoal, apto a

promover maior humanização da função de julgar, fazendo tornar atualíssima a

observação de Cesare Beccaria, denotando com maestria o que representa o

interrogatório à distância: “O conforto e os prazeres de um magistrado insensível, de um

lado, e, de outro lado, as lágrimas, a desolação do preso?”437. Não é esse paradoxo que

se espera no processo penal, não é essa a atitude que se exige de um magistrado

humano. Repelir o interrogatório virtual revela uma opção pelo tratamento digno a ser

dado ao acusado preso, visualisando-se um processo penal que não submeta o ser

humano às conveniências das novas tecnologias, de modo a prejudicar o seu direito de

defesa pessoal. 435 Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3.ª edição. São Paulo: RT, 2007, p. 397. 436 Op. cit. p. 349-350. 437Op. cit. p. 59.

179

8 CONCLUSÕES

1. Os princípios constitucionais que informam o processo penal não podem ser

reduzidos a meras declarações, a simples recurso retórico. A defesa da Constituição é

algo muito mais nobre, revelando-se em constante “fazer”, um permanente respeito aos

seus mandamentos, um cuidar de seus valores, a cargo de todos.

2. Não se duvida de que a prática de um delito é um fator de desarmonia social. A

impunidade também revela um desrespeito àqueles que atuam conforme a ordem

jurídica. Agora, o mais grave é a busca por um culpado, infringindo os direitos e

garantias fundamentais, pois se trata de uma agressão patrocinada pelo Estado e que

ameaça todo o corpo social.

3. As normas processuais penais têm importância para a realização dos valores

tutelados pelo ordenamento constitucional, fornecendo o instrumental necessário para

que os titulares dos direitos elencados na Carta Magna possam exercê-lo de modo

efetivo.

4. O processo penal, com seu conjunto de solenidades, repercute de forma

negativa na dignidade do acusado, seja este culpado ou inocente. A fim de se concluir

pela procedência ou improcedência da acusação formulada, o réu é submetido a uma

série de atos lesivos à sua liberdade e dignidade.

5. Em um Estado Democrático de Direito, o processo penal deve ser configurado

sob as luzes dos direitos e garantias fundamentais, de modo que o exercício do direito

de punir do Estado não pode ignorar a esfera jurídica do imputado em nenhum momento

da persecução penal. Deve-se, pois, ensejar ao próprio acusado a tarefa de rechaçar a

acusação contra si formulada. A autodefesa não pode, todavia, acentuar a desvantagem

entre o Estado e o indivíduo situado na condição de réu.

6. O juiz penal exerce importante papel para a concretização dos direitos e

garantias fundamentais, na medida em que recusa a aplicação de normas jurídicas

incompatíveis com a Constituição Federal e preenche os espaços normativos mediante a

prolação de decisões judiciais que aproximam o Direito, como realidade abstrata, do

Direito como algo plenamente exercitável por parte de seu titular.

180

7. A ampla defesa – garantia marcante no processo penal do tipo acusatório –

reverencia o interesse público para o desenvolvimento de um embate entre Ministério

Público e acusado marcado pela equivalência de forças, de modo que cada parte tenha

oportunidade de apresentar seus argumentos e de prová-los ao julgador. É realizada por

meio da defesa técnica e da autodefesa, garantias essas que não se excluem, mas

completam-se. A interação réu defensor é de grande relevância para a atividade

defensiva.

8. A defesa deficiente ou a ausência de defesa representam afronta ao princípio da

ampla defesa, de modo que, nesses casos, a nulidade do processo é absoluta. Não

havendo o oferecimento de argumentos sólidos para rechaçar a acusação, não houve

possibilidade de convencer o magistrado, de modo que a sentença será prolatada sem

que tenha havido contrariedade material. O prejuízo é evidente. Somente quando houver

sentença absolutória é que não se decreta a nulidade.

9. A defesa pode ser considerada, ao mesmo tempo, um direito e uma garantia.

Sob uma perspectiva individual, trata-se de um direito, pois permite-se ao seu titular

exercê-lo da maneira que lhe for adequada, de acordo com a sua vontade. Por outro

lado, analisando-se a defesa sob um prisma que ultrapassa os interesses individuais do

imputado, ela é concebida como garantia, essencial para que se tenha uma prestação

jurisdicional materialmente justa.

10. Quanto ao conteúdo da impugnação ofertada pelo réu, a defesa pode ser

classificada em defesa processual ou de mérito. Há defesa processual quando o teor da

irresignação é dirigido contra a forma pela qual foi veiculada a acusação. Tem-se defesa

de mérito quando há ataque incidente sobre a existência do crime, sua autoria e a

fixação da pena.

11. A defesa, quanto à pessoa que a exerce, desdobra-se em autodefesa e defesa

técnica. A primeira representa o direito que cada acusado possui de apresentar

argumentos e provas com o objetivo de contrariar a acusação. A defesa técnica, por sua

vez, é aquela exercida pelo advogado constituído pelo réu ou nomeado pelo juiz, para

proteger os interesses do acusado, repelindo de forma efetiva a imputação posta à

análise judicial.

181

12. A figura do advogado, em qualquer forma de atuação no Estado no exercício

de seu direito de punir, é indispensável. A relevância das funções desempenhadas pelo

defensor, no processo penal, denota o interesse público a ser preservado mediante o

processo. O papel atribuído ao defensor é o de proteger os interesses do acusado,

independentemente e até mesmo contra a vontade deste, pois somente com uma

contrariedade material, tem-se uma relação processual marcada pelo equilíbrio, com

maiores possibilidades para a obtenção de uma decisão justa.

13. O advogado criminalista deve exercer suas funções com zelo completo e

dedicação, sendo figura necessariamente parcial. Incumbindo-lhe a proteção dos

interesses do acusado, não se pode mostrar submisso ou concordar com a acusação, seja

qual for a natureza do delito imputado ao seu cliente; no entanto, o fervor da atividade

defensiva do profissional da advocacia encontra limites éticos e jurídicos, não podendo

transbordar para a realização de uma defesa criminosa.

14. A boa atuação do advogado dependerá da aptidão que ele tem de extrair do réu

informações preciosas, de estimular seu cliente a assumir uma atitude ativa diante da

acusação, de não se intimidar perante a autoridade judiciária, respeitando-a, mas não

temendo-a. Deve o advogado conscientizar seu cliente de que a acusação da prática de

um crime não o torna alguém despido de direitos, mostrando ao imputado a sua

importância para o desfecho do processo.

15. Na seara criminal, não é aplicável o princípio da lealdade processual, não se

podendo exigir do réu um compromisso com a verdade. De igual sorte, o advogado não

é o “juiz” das declarações do imputado, cabendo ao defensor técnico contestar a

acusação, a fim de que o juiz colha a antítese necessária para chegar ao seu veredicto de

modo mais próximo da justiça.

16. O acusado não pode ser visto como mero objeto de investigação. É um dos

autores da tríade processual e merece ser tratado com dignidade. Não se pode aceitar a

mitigação dos direitos e garantais fundamentais sob o frágil argumento de que nada é

absoluto e tudo é relativo. A autodefesa não pode ser desprezada no processo penal,

notadamente em um sistema processual que situa o acusado como um sujeito de direitos

e com importante participação para a realização de uma defesa efetiva.

182

17. A autodefesa é garantia constitucional autônoma, decorrendo dos princípios

constitucionais do Estado de Direito, dignidade da pessoa humana, liberdade e ampla

defesa, bem como dos tratados internacionais de que o Brasil faz parte.

18. Como decorrência do reconhecimento da autodefesa como garantia

constitucional, são estabelecidos limites para a atuação dos órgãos estatais, em todas as

esferas de poder, ao mesmo tempo em que se atribui ao Poder Público o dever de

fornecer os meios concretos para o gozo do direito do acusado de elaborar a própria

defesa.

19. A legitimidade do Poder Judiciário não encontra apoio no consenso popular,

na vontade da maioria. O juiz penal terá legitimidade quando pautar sua atuação pela

efetividade dos direitos e garantias fundamentais, mesmo quando essa maneira de agir

venha a desagradar parte da sociedade e a imprensa. O compromisso do julgador é com

a Constituição e não com os aplausos da mídia.

20. Garantir a todos os acusados a mais ampla defesa não representa um obstáculo

ao atingimento da verdade. Com base no garantismo penal, o respeito aos meios

(garantias) é condição de validade dos fins (atingimento da verdade e realização da

justiça). No campo de proteção do direito de defesa, não se adota a máxima

maquiavelista de que “os fins justificam os meios”.

21. O direito ao conhecimento da acusação é condição prévia e necessária para

que o acusado possa exercer a autodefesa, constituindo-se autêntico pressuposto do

direito de defesa pessoal do réu. Em decorrência desse pressuposto, a denúncia ofertada

contra o acusado deve ser clara, precisa, com descrição suficiente da conduta do

denunciado, permitindo-lhe saber qual o fato contra si atribuído.

22. O ato processual que cientifica o imputado da acusação lançada contra ele há

de ter suas formalidades rigorosamente observadas, pois somente com essa obediência

não haverá prejuízo à garantia da autodefesa.

23. A citação por edital deve indicar não somente o dispositivo penal que se

adequa à conduta do réu, mas trazer a transcrição completa de toda a denúncia. Assim, o

entendimento sufragado pela Súmula 366 do Supremo Tribunal Federal, ao conferir

validade à citação editalícia encetada apenas com referência ao dispositivo legal em que

o réu se achar incurso, não se mostra compatível com o pressuposto da autodefesa,

porquanto inviabiliza o pleno conhecimento da acusação.

183

24. Em atenção ao direito ao conhecimento da acusação, que alberga todos os

acusados no processo penal, a citação do réu preso deve ser feita pessoalmente, em

tempo hábil a viabilizar a estruturação da autodefesa do acusado. A requisição judicial

dirigida ao diretor do estabelecimento prisional não supre a necessidade de citação.

25. A citação do militar deve ser feita pessoalmente ao acusado e não por meio do

chefe de seu serviço, como reza o artigo 358 do Código de Processo Penal; pois o

exercício do direito ao conhecimento da acusação dispensa intermediários, sendo direito

personalíssimo da pessoa acusada da prática de um crime.

26. O réu, ainda que preso, tem o direito de estar presente a todas as audiências do

processo. A participação do imputado nos atos processuais permite maior harmonia

entre a autodefesa e a defesa técnica, na medida em que o acusado pode fornecer

informações relevantes ao seu defensor.

27. A ausência de requisição do réu preso às audiências do processo é causa de

nulidade absoluta, pois inviabiliza o contato do réu com seu advogado, o que enseja

prejuízo manifesto, pois o defensor ficará privado de informações oriundas de seu

cliente durante a colheita dos depoimentos.

28. A retirada do réu da sala de audiências é medida a ser tomada com cautela pelo

juiz, somente quando o imputado toma atitudes que causem temor na testemunha. Trata-

se, pois, de providência em caráter de excepcionalidade, em homenagem ao direito de

presença.

29. O direito de presença ganha especial relevo no Tribunal do Júri. A ausência do

réu ao plenário do júri – para o seu julgamento – pode provocar nos jurados a percepção

de que a pessoa que eles estão julgando é culpada, pois, do contrário, estaria presente,

para rebater as acusações. Em face dessa influência que o não-comparecimento do réu

pode causar nos julgadores, não se permite a realização do julgamento do acusado sem a

sua presença no plenário, quer seja a infração afiançável, quer seja inafiançável.

30. Pelo reconhecimento do direito de postular em causa própria, o réu pode

interpor todas as espécies de recursos, mesmo em relação aos quais a lei impõe a

exigência de oferecimento de razões já quando da interposição, tais como o recurso

especial, extraordinário e embargos infringentes. Nesse caso, deve ser intimado o

advogado do recorrente para oferecer razões ou, no caso de acusado sem advogado

184

constituído, impõe-se a nomeação de advogado dativo ou defensor público para

formular as razões recursais.

31. O direito de postular em causa própria pode ser exercido durante a execução

da pena. Nessa fase, surge uma dificuldade maior para que o réu contrate advogado, por

isso, permite-se ao apenado formular pedido de progressão de regime, livramento

condicional, autorização para trabalho externo, em suma, requerer qualquer benefício

durante o cumprimento da pena imposta.

32. É postulado de um processo garantista, integrando a defesa pessoal do

imputado, o direito de escolha do defensor. Fica, portanto, vedado ao juiz nomear

advogado dativo ao réu sem antes lhe dar a oportunidade de constituir de defensor de

sua confiança.

33. A autodefesa negativa abrange o privilégio contra a auto-incriminação e o

direito ao silêncio, não podendo, em qualquer caso, a posição de inatividade do acusado

ser utilizada para piorar sua situação processual.

34. O privilégio contra a auto-incriminação é uma modalidade da autodefesa

negativa, constituindo uma importante garantia do imputado na persecução penal, na

medida em que não se pode constranger o indivíduo – acusado da prática de um ilícito

penal – em contribuir com a própria destruição, fornecendo elementos aptos a

incriminá-lo.

35. Excepcionalmente, quando houver necessidade demonstrada, o Estado pode

colher provas que dependam da contribuição do acusado, desde que essa participação

seja meramente passiva, de contemplação, sem a utilização de métodos que atinjam o

corpo ou a saúde do imputado (mecanismos invasivos).

36. Nenhum indivíduo pode ser forçado a prestar declarações idôneas a prejudicar-

lhe, por força do direito ao silêncio, constitucionalmente tutelado. Sendo direito do réu

permanecer calado diante das perguntas formuladas pela autoridade policial ou judicial,

esse silêncio não pode ser utilizado pelo juiz como fundamento de um decreto

condenatório, quer seja como prova ou indício de autoria.

37. No Tribunal Popular do Júri, instituição onde se aplica o princípio da

soberania das votações, de modo que os jurados não fundamentam os seus votos, o

silêncio do réu pode ser utilizado contra si, já que não se sabem os motivos pelos quais

os jurados condenaram o acusado. Apesar disso, caso o réu fique em silêncio no seu

185

interrogatório durante a sessão de julgamento, o juiz presidente deve esclarecer os

jurados de que o silêncio é um direito do acusado e que – por tal razão – não pode ser

utilizado contra ele. De igual sorte, não pode o Ministério Público utilizar-se do silêncio

como argumento a indicar a culpa do imputado.

38. O direito de defender-se por si não pode ser exercido com exclusividade no

processo penal, constituindo-se o defensor em personagem ineliminável desse tipo de

processo. A alegada liberdade de escolha do réu, entre realizar sua defesa ou contratar

advogado, não traduz nenhum benefício para o imputado, revelando uma concepção

individualista da autodefesa e que não encontra apoio no ordenamento jurídico

brasileiro.

39. Defesa técnica e autodefesa são atividades que se realizam conjugadamente,

com a finalidade de alcançar a ampla defesa. Admitir a autodefesa sem o simultâneo

acompanhamento por um advogado expressa o descompromisso do Estado em relação

ao respeito incondicional do direito de defesa, pois permite que o juiz produza uma

decisão acolhendo a tese acusatória, sem que esta tenha sido amplamente refutada. A

manifestação da atividade defensiva somente encontrará plenitude quando a defesa

técnica e a autodefesa forem harmônicas, equilibradas.

40. O interrogatório deve ser caracterizado como meio de defesa, momento em

que o acusado presta declarações na presença do juiz, contestando pessoalmente os fatos

narrados na denúncia, Trata-se da principal manifestação do direito de audiência,

expressão da autodefesa.

41. Em todo e qualquer procedimento judicial que possa acarretar a declaração de

culpabilidade do acusado, com o lançamento de uma sanção penal, deve o imputado ter

a chance de rebater pessoalmente a acusação posta. Assim sendo, mesmo quando não

houver previsão legal expressa para a realização do interrogatório em determinado tipo

de procedimento, deve o juiz designá-lo, em atenção ao direito do réu de defender-se

por si próprio, facultativo em seu exercício, mas cogente quanto ao seu ensejo.

42. O réu não está obrigado a responder as perguntas formuladas pelo juiz no

interrogatório. O silêncio é um direito do acusado e pode ser exercitado parcialmente

(deixar de responder a algumas perguntas) ou totalmente (preferir calar-se em relação a

todas as perguntas). Exercido de forma parcial ou completa, de nenhum modo o silêncio

pode ser interpretado em prejuízo à defesa do réu.

186

43. Não cabe ao juiz orientar o réu sobre a melhor estratégia a ser utilizada por

este no interrogatório, expressando de que a confissão e/ou a delação premiada poderão

beneficiá-lo. O papel de esclarecer o réu sobre qual tática será adotada no interrogatório

é de seu advogado, tanto que, para essa finalidade, há de ser garantido o direito de

entrevista pessoal do réu com seu defensor.

44. O direito ao silêncio não faz nascer um autêntico direito de mentir por parte do

réu. Desse modo, as declarações do imputado que deturparem a verdade poderão ser

valoradas pelo magistrado, de modo a debilitar a força e credibilidade do depoimento do

interrogando. Essa possibilidade de valoração da mentira, contudo, não modifica o ônus

do Ministério Público de provar a materialidade e autoria delitivas.

45. Do reconhecimento do silêncio, como direito do réu, não se permite ao

magistado elaborar questionamentos sobre a escolha do interrogando em calar-se, nem

consignar nos autos as perguntas não respondidas. O que não pode ser valorado pelo

juiz não deve fazer parte dos autos.

46. A presença do advogado no interrogatório, orientando e esclarecendo o

acusado, fortalece a autodefesa deste, dando maiores condições ao interrogando para

elaborar sua estratégia defensiva, com o objetivo de influenciar o magistrado em seu

veredicto. Outro importante papel do advogado no interrogatório é o de fiscalizar a sua

regularidade, evitando a prática de arbitrariedades pelo magistrado. Portanto, a ausência

do defensor ao interrogatório é causa de nulidade absoluta. O prejuízo é evidente.

47. O direito de entrevista pessoal do réu com seu defensor não pode ser reduzido

a um simples registro dessa informação no termo de audiência. Qualquer avanço

legislativo só alcançará efeitos práticos se houver a conscientização dos operadores

jurídicos da importância de tornar concretas e fruíveis as garantias inerentes ao direito

de defesa.

48. O juiz deve presidir o interrogatório de maneira imparcial, abstendo-se de se

utilizar, na formulação das perguntas, de qualquer forma de sugestão, pressão, ameaças

ou ciladas, bem como de tecer comentários desacreditando as declarações do acusado,

pois, assim atuando, estará externando prematuramente o seu convencimento. A

valoração do teor do depoimento do acusado deverá ser feita apenas na sentença.

49. A atividade probatória no processo penal não pode estar voltada para obter a

confissão, devendo o Estado colher os elementos necessários sobre a existência do

187

crime e de sua autoria, sem exigir a colaboração do próprio acusado. As tentativas

incessantes do juiz no interrogatório de obter a confissão do réu denotam agressão à

autodefesa negativa (direito do acusado de não contribuir com a acusação), sem falar na

perda de sua imparcialidade, expressando um convencimento antes do tempo adequado.

50. Detém o imputado, no interrogatório, ampla liberdade de prestar declarações,

não assumindo qualquer compromisso com a dicção da verdade; no entanto, tem o réu o

dever de fornecer a sua correta qualificação ao magistrado, persistindo o direito de não

dar informações sobre seus antecedentes criminais.

51. No universo da investigação criminal das infrações penais de menor potencial

ofensivo, no momento em que for prestar declarações durante a lavratura do TCO, o

autor do fato deverá ser esclarecido do direito ao silêncio, sob pena de tornar

imprestáveis essas informações para embasar o oferecimento da denúncia pelo

Ministério Público.

52. A partir do acolhimento da autodefesa como garantia constitucional, não se

permite concluir pela liberdade irrestrita do réu ao realizar a sua própria defesa. A

atividade defensiva do imputado recebe proteção jurídica até o ponto em que não

prejudicar a incolumidade jurídica de terceiros inocentes.

53. Em tese, pode o réu que se identificar falsamente ou atribuir a outrem falsa

identidade realizar a conduta típica prevista no art. 307 do Código Penal.

54. Não comete o crime de desobediência o imputado que se recusa a fornecer às

autoridades públicas informações, documentos ou qualquer outro elemento de prova que

possa vir a ser utilizado contra ele, pois está acobertado pela autodefesa negativa.

55. Do exercício do direito de defender-se por si não se extrai a possibilidade de o

acusado atribuir a prática do crime de que está sendo acusado a terceiro, que sabe ser

inocente. Nesse caso, em tese, o réu pode ser sujeito ativo do crime de denunciação

caluniosa.

56. Ao proteger o acusado da prática de um crime, não pode o ordenamento

jurídico desguarnecer terceiros inocentes nem ignorar o interesse social que busca a

punição do verdadeiro culpado.

57. Quando o réu, perante a autoridade, assume a prática de um crime de que tem

a plena consciência de ser inocente, não exerce atividade defensiva. Desse modo, pode

188

haver a realização do tipo penal previsto no artigo 341 do Código Penal, quando o

imputado, assumindo a prática do delito, atrapalhar a normal apuração das infrações

penais.

58. A análise da validade e da eficiência do interrogatório à distância não pode ser

vista unicamente sob o prisma do interesse e da conveniência das administrações

judiciária e penitenciária.

59. Se o juiz entendeu haver necessidade para a prisão do réu antes do trânsito em

julgado de sentença penal condenatória, deve realizar o interrogatório com observância

de todas as garantias do imputado, dentre as quais o de ser tratado com dignidade e não

ser considerado um fardo para administração penitenciária, ao ter que disponibilizar

recursos financeiros e humanos para a realização do transporte dos presos às audiências.

60. O modo de realização do interrogatório é matéria privativa de lei federal, pois

se trata da regulação de um ato marcado pelo contraditório, elemento que distingue

processo e procedimento.

61. Em razão da inexistência de lei (federal) disciplinando o interrogatório à

distância, a realização deste à míngua de disposição legal importa agressão ao devido

processo legal, pois a moldura dos atos processuais vem estabelecida em lei.

62. O interrogatório à distância representa uma concepção do ser humano, acusado

da prática de um crime, como um simples objeto, um instrumento para o atendimento de

conveniências administrativas, violando o princípio da dignidade da pessoal humana,

que não permite que qualquer pessoa possa ser tratada como um simples meio para o

alcance de outras finalidades.

63. Há uma diminuição da capacidade de defesa do próprio réu com a adoção do

interrogatório on-line, pois a ausência de contato pessoal do acusado com o juiz, com a

imposição de uma barreira eletrônica entre essas personagens processuais, provoca uma

inibição no interrogando, impedindo-o de prestar declarações com maior naturalidade e

de rebater as acusações com mais segurança.

64. A defesa técnica é prejudicada com a videoconferência, uma vez que o

advogado não extrai do réu todas as informações necessárias a sua atuação no

interrogatório, pois o contato que mantém com seu cliente é resumido a uma fria

conversa pelo telefone.

189

65. É tarefa relevante do Poder Judiciário evitar o desaparecimento do contato

pessoal entre as personagens processuais. O princípio da imediação exige que o juiz

tenha contato direto com as pessoas que irá ouvir e com as provas a serem valoradas.

66. Quando não se mostrar segura a realização do interrogatório pelo método

tradicional, com a condução do preso ao fórum, deve o juiz colher o depoimento do réu

no próprio estabelecimento prisional, solução encampada pelo Código de Processo

Penal.

67. Não se admite a utilização do interrogatório por videoconferência no processo

penal. O contato físico do acusado diante do juiz representa não somente a possibilidade

de percepção mais aguda das sensações do interrogando por parte do magistrado, mas

confere ao acusado a chance de tentar mostrar pessoalmente ao juiz a sua versão dos

fatos, sem que haja entre esses protagonistas da novela processual qualquer parafernália

eletrônica que transmita essas sensações ou que traduza sentimentos.

68. Não se afasta, de forma irracional e irrestrita, a implantação de sistemas

audiovisuais hábeis a realizar colheita de depoimentos no processo penal. O óbice é

levantado quando tal tecnologia é utilizada no interrogatório, pois é nesse ato processual

que o acusado, de viva voz, sem a intermediação de ninguém, tem o poder de

influenciar o juiz.

69. No Direito alienígena, a videoconferência tem caráter excepcional, somente

podendo ser utilizada quando da ocorrência de pressupostos rigorosos, relacionados ao

tipo de crime objeto de apuração bem como por questões de ordem pública,

devidamente mensurada em fatos concretos.

70. Preservar a autodefesa é proteger o indivíduo bem como o próprio Estado,

cabendo a este o papel de principal guardião dos direitos e garantias fundamentais. A

crise de credibilidade por que passa o Poder Judiciário não pode ser debelada à custa de

mitigações aos direitos dos acusados.

190

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REVISTAS E JORNAIS:

Jornal O POVO. 28 de fevereiro de 2008.

_______ . 27 de fevereiro de 2008.

Revista Você S/A. Ano 2005, v. 8, n.º 87.

201

ANEXO

202

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 689 DE 2007

Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, para prever a realização excepcional de interrogatório do acusado preso por videoconferência.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1o. Esta Lei altera os artigos 185, 203, 212 e 222 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal.

Art. 2o. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, passa a viger com a seguinte redação:

"Art. 185. .....................................................................................................................

§ 1º. O interrogatório do acusado preso será realizado no estabelecimento prisional em que estiver recolhido, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato.

§ 2º. O juiz, de ofício ou a pedido do Ministério Público ou da defesa, poderá determinar a realização de interrogatório por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, em tempo real, sempre que haja motivo devidamente fundamentado acerca de segurança pública, manutenção de ordem pública ou garantia da aplicação da lei penal e instrução criminal, e desde que sejam assegurados canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que permanecer no presídio e os advogados presentes nas salas de audiência dos fóruns, e entre estes e o preso.

§ 3º. Em qualquer caso, antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor.

§ 4º. A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização dos atos processuais à distância será fiscalizada por membros do Ministério Público, da Magistratura, serventuários da justiça e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

§ 5º. Será requisitada a apresentação em juízo do acusado preso, nas hipóteses em que o interrogatório não se realizar na forma prevista nos §§ 1º e 2º deste artigo." (NR)

"Art. 203. .....................................................................................................................

Parágrafo único. A realização de oitiva de testemunha presa poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, em tempo real, observado o disposto no § 2º do art. 185 deste Código". (NR)

"Art. 212. .....................................................................................................................

Parágrafo único. O acusado poderá, mediante determinação judicial, acompanhar a oitiva de testemunha, por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, permitida a presença de defensor". (NR)

203

"Art. 222. A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável.

§ 1º. As partes serão intimadas da expedição da carta precatória.

§ 2º. A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal, inclusive a audiência de instrução e julgamento, no rito ordinário ou sumário, devendo ser juntada aos autos antes das alegações finais e julgamento.

§ 3º. Caso demonstrado manifesto prejuízo, a parte poderá requerer que a audiência de instrução e julgamento seja realizada após a devolução da precatória.

§ 4º. As cartas rogatórias só serão expedidas se demonstrada a sua imprescindibilidade e não suspenderão a instrução, arcando a parte requerente com os custos.

§ 5º Findo o prazo marcado para a carta rogatória, poderá realizar-se o julgamento, mas, a todo tempo, poderá ser devolvida, sendo imediatamente juntada aos autos.

§ 6º Na hipótese prevista no caput, a oitiva de testemunha poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, em tempo real, permitida a presença de defensor."(NR)

Art. 3o. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

Não busco com esse projeto reintroduzir a discussão sobre a importância e possibilidade do uso da tecnologia de videoconferência em favor da economia aos erários estaduais face aos elevados gastos com transportes de presos para audiências. Foi essa tônica do debate no Congresso Nacional durante a discussão de projetos que tratam da matéria, e ainda seguem sua tramitação.

Busco, portanto, apresentar projeto cuja redação compatibilize o entendimento do Supremo Tribunal Federal (revisando posição do Superior Tribunal de Justiça), com a inquestionável necessidade da introdução do moderno mecanismo de audiências por meio por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de presença virtual, em tempo real.

O Superior Tribunal de Justiça entendia que, não havendo prejuízos ao processo, o interrogatório poderia proceder por meio de videoconferência, conforme ementa de decisão abaixo transcrita:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. NULIDADE. INTERROGATÓRIO. VIDEOCONFERÊNCIA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. PREJUÍZO NÃO DEMOSTRADO.

O interrogatório realizado por videoconferência, em tempo real, não viola o princípio do devido processo legal e seus consectários. Para que seja declarada nulidade do ato, mister a demonstração do prejuízo nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal.

204

Ordem DENEGADA. (HC 34020/SP; Relator Ministro Paulo Medina; 6ª Turma; Data do Julgamento: 15/09/2005; DJ 03/10/2005, p. 334).

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. INTERROGATÓRIO REALIZADO POR MEIO DE SISTEMA DE VÍDEOCONFERÊNCIA OU TELEAUDIÊNCIA EM REAL TIME. CERCEAMENTO DE DEFESA. NULIDADE, PARA CUJO RECONHECIMENTO FAZ-SE NECESSÁRIA A OCORRÊNCIA DE EFETIVO PREJUÍZO, NÃO DEMONSTRADO, NO CASO.

Recurso desprovido. (RHC 15558/SP; Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca; 5ª Turma; Data do Julgamento: 14/09/2004; DJ 11/10/2004, p. 351).

Posteriormente, em decisão de agosto de 2007, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 88.914-0, oriundo do Estado de São Paulo, sob a relatoria do Ministro Cezar Peluzo, decidiu por unanimidade que a realização de audiência criminal através de videoconferência é ilegal, por ausência de uma Lei Federal que regule a matéria, e que é inconstitucional em razão da ofensa ao devido processo legal e limitação do exercício da ampla defesa.

Todavia, o voto do Eminente Relator Ministro Cezar Peluzo indica, no seu ver, quais seriam as características de uma futura lei em sintonia com a Constituição Federal:

"Não fujo à realidade para reconhecer que, por política criminal, diversos países - Itália, França, Espanha, só para citar alguns - adotam o uso da videoconferência - sistema de comunicação interativo que transmite simultaneamente imagem, som e dados, em tempo real, permitindo que um mesmo ato seja realizado em lugares distintos - na práxis judicial. É certo, todavia, que, aí, o uso desse meio é previsto em lei, segundo circunstâncias limitadas e decisão devidamente fundamentada, em cujas razões não entra a comodidade do juízo. Ainda assim, o uso da videoconferência é considerado "mal necessário", devendo empregado com extrema cautela e rigorosa análise dos requisitos legais que o autorizam."(grifo nosso).

Em linhas gerais, a videoconferência pode ser uma exceção, uma possibilidade, não a regra. Parece-me mais adequado, que a regra geral seja a realização de interrogatório no estabelecimento prisional, com o deslocamento do magistrado. E que, o nterrogatório por meio videoconferência seja efetivado apenas excepcionalmente. Para isso, é necessário, primeiro, que o uso da videoconferência esteja condicionado à existência de justificativa, devidamente fundamentada pelo Juiz, com vistas a garantir segurança pública, manutenção de ordem pública ou garantia da aplicação da lei penal e instrução criminal, e desde que sejam assegurados canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que permanecer no presídio e os advogados presentes nas salas de audiência dos fóruns, e entre estes e o preso.

Além do interrogatório do acusado preso, o projeto sugere a ampliação da utilização da videoconferência no caso de oitiva de testemunha presa, e, também, a criação de regra que possibilita, mediante autorização do juiz, que acusado preso acompanhe a oitiva de testemunha por meio de videoconferência.

205

Há na proposta, ainda, o esclarecimento de que será admitida a presença de defensor no estabelecimento prisional durante a realização do interrogatório do acusado preso ou oitiva de testemunha presa à distância.

São as razões pelas quais julgo fundamental a aprovação de norma que autorize a realização de videoconferências em interrogatórios, desde que observado o balizamento imposto pela Constituição Federal, traduzido na excepcionalidade do uso deste novo instrumento.

Por essas razões, submeto à apreciação das Casas Legislativas a presente proposição, por se tratar de inegável avanço na legislação penal do país.

Sala das Sessões,

Senador ALOIZIO MERCADANTE