O Paradoxo Da Esquerda No Brasi

21
NOVOS ESTUDOS 74 ❙❙ MARÇO 2006 25 [1] Trabalho apresentado na confe- rência “A Esquerda na América Lati- na”, organizada pelo Instituto Uni- versitário de Investigação Ortega y Gasset, com a colaboração da Funda- ção Friedrich Ebert e da Fundação Pa- blo Iglesias. Madri, 28-29 nov. 2005. A idéia de esquerda, como todas as demais idéias e ins- tituições na América Latina, é transplantada e em grande parte inau- têntica. Não obstante, é um fenômeno real, na medida em que é sem- pre possível distinguir a esquerda da direita em países capitalistas e democráticos. No caso do Brasil, objeto deste trabalho, a esquerda é uma realidade tão viva e poderosa que se justifica a questão central que quero responder aqui: por que a esquerda no Brasil ganha as eleições mas não governa? Este trabalho gira em torno dessa questão — que pressupõe um conceito amplo de esquerda — e do problema relacio- nado: existe uma especificidade para a esquerda na América Latina e, especificamente,no Brasil? Em que ela se distingue ou deve se distinguir da esquerda na Europa, que sempre lhe serviu de parâmetro, para poder ser autêntica e ter condições de governar? O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL 1 RESUMO A esquerda costuma vencer as eleições no Brasil, mas não governa. Para sustentar o argumento, este artigo repassa os conceitos de direita e esquerda, definindo os grupos polí- ticos de esquerda pela disposição a arriscar a ordem em nome da justiça social. Em segundo lugar, argumenta que, nas democracias modernas, não há inconsistência entre uma coalizão de esquerda e o capitalismo. Por fim, mostra como na experiência brasileira a esquerda de fato vence as eleições, mas não governa. PALAVRAS-CHAVE: partidos políticos; esquerda; democracia moderna; sociedade civil. SUMMARY The left usually wins elections in Brazil but eventually does not govern. In order to validate this claim, the paper, first, reviews the concept of left and right, defining the left politi- cal groups by their disposition to risk social order in the name of social justice. Second, the paper argues that in modern democracies there is no inconsistency between a left coalition and capitalism. Third, it says that in Brazil the experience shows that the left indeed wins elections but does not govern. KEYWORDS: political parties; left; modern democracy; civil society. Luiz Carlos Bresser-Pereira

description

Política

Transcript of O Paradoxo Da Esquerda No Brasi

  • NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006 25

    [1] Trabalho apresentado na confe-rncia A Esquerda na Amrica Lati-na, organizada pelo Instituto Uni-versitrio de Investigao Ortega yGasset, com a colaborao da Funda-o Friedrich Ebert e da Fundao Pa-blo Iglesias.Madri,28-29 nov.2005.

    A idia de esquerda, como todas as demais idias e ins-tituies na Amrica Latina, transplantada e em grande parte inau-tntica. No obstante, um fenmeno real, na medida em que sem-pre possvel distinguir a esquerda da direita em pases capitalistas edemocrticos. No caso do Brasil, objeto deste trabalho, a esquerda uma realidade to viva e poderosa que se justifica a questo central quequero responder aqui: por que a esquerda no Brasil ganha as eleiesmas no governa? Este trabalho gira em torno dessa questo quepressupe um conceito amplo de esquerda e do problema relacio-nado: existe uma especificidade para a esquerda na Amrica Latina e,especificamente,no Brasil? Em que ela se distingue ou deve se distinguirda esquerda na Europa, que sempre lhe serviu de parmetro, para poderser autntica e ter condies de governar?

    O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL1

    RESUMO

    A esquerda costuma vencer as eleies no Brasil, mas nogoverna. Para sustentar o argumento, este artigo repassa os conceitos de direita e esquerda, definindo os grupos pol-ticos de esquerda pela disposio a arriscar a ordem em nome da justia social. Em segundo lugar, argumenta que, nasdemocracias modernas, no h inconsistncia entre uma coalizo de esquerda e o capitalismo. Por fim, mostra comona experincia brasileira a esquerda de fato vence as eleies, mas no governa.

    PALAVRAS-CHAVE: partidos polticos; esquerda; democracia moderna;sociedade civil.

    SUMMARY

    The left usually wins elections in Brazil but eventually doesnot govern. In order to validate this claim, the paper, first, reviews the concept of left and right, defining the left politi-cal groups by their disposition to risk social order in the name of social justice. Second, the paper argues that in moderndemocracies there is no inconsistency between a left coalition and capitalism. Third, it says that in Brazil the experienceshows that the left indeed wins elections but does not govern.

    KEYWORDS: political parties; left; modern democracy; civil society.

    Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 25

  • Essas questes no tm respostas unvocas. Estamos no campominado das ideologias, no qual preciso combinar o mtodo histrico-dedutivo da boa cincia social com o mtodo normativo da teoria pol-tica. Espero, entretanto, conseguir dar uma resposta que nos ajude acompreender a dinmica e as crises da esquerda no Brasil.Uma respostaque seja aberta o suficiente para poder abrigar uma realidade to com-plexa e, ao mesmo tempo, precisa a ponto de no se constituir em merorol de lugares-comuns.

    Para responder primeira questo, terei que definir esquerda edireita. E justificar por que no trabalho com o conceito de centro, pres-supondo que uma pessoa ou um partido de esquerda ou de direita.Issono significa que no admita as situaes ambguas,e sim que no querome perder nelas. Em segundo lugar, terei que mostrar que a esquerdaquase sempre ganha as eleies no Brasil,desde a transio democrticade 1985.Em seguida,terei que explicar por que a esquerda ganha as elei-es mas o governo que se forma afinal no de esquerda,no representaos interesses dos pobres.Para isso,precisarei de duas coisas:do conceitode sociedade civil, que, no Brasil e nos demais pases da Amrica Latina,diverge, muito mais do que em pases desenvolvidos, do conjunto doseleitores votantes,que chamarei de povo;e de um entendimento maior doque sejam efetivamente esquerda e direita na regio ou no Brasil.

    ESQUERDA E DIREITA

    H alguns anos venho propondo um conceito geral de esquerda edireita que reproduzirei aqui. Esse conceito supe que o objetivo pol-tico das sociedades modernas a ordem ou segurana, a liberdade, obem-estar, a justia e a proteo da natureza ou do meio ambiente. Aesquerda no se distingue da direita em termos de liberdade ou de pro-moo do bem-estar atravs do desenvolvimento econmico.Ainda quea liberdade poltica tenha sido originalmente uma conquista da burgue-sia, que fez uso da ideologia do liberalismo, a democracia foi, antes quequalquer outra coisa, uma conquista dos pobres e das classes mdias,que durante o sculo XIX lutaram com os liberais para obter o sufrgiouniversal. No entanto, embora uma parte da esquerda a utpica desdenhe o desenvolvimento econmico, que considera asseguradopelo capitalismo, quando partidos ou coalizes de esquerda chegaramao poder na Europa revelaram-se to interessados e capazes de promo-ver o desenvolvimento econmico quanto partidos e coalizes dedireita.J em relao a ordem,justia e proteo do ambiente,as diferen-as so claras. So to claras que possibilitam a seguinte definio deesquerda e direita. A direita o conjunto de foras polticas que, em umpas capitalista e democrtico, luta sobretudo por assegurar a ordem,dando prioridade a esse objetivo, enquanto a esquerda rene aquelesque esto dispostos,at certo ponto,a arriscar a ordem em nome da jus-tia ou em nome da justia e da proteo ambiental,que s na segunda

    26 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 26

  • [2] Bresser-Pereira, Luiz Carlos.Por um partido democrtico, deesquerda e contemporneo. LuaNova Revista de Cultura e Poltica,no39,1997,pp.53-71;e A nova esquerda:uma viso a partir do Sul. Revista deFilosofia Poltica Nova Srie, vol. 6,2000. Porto Alegre: UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul,Depar-tamento de Filosofia, pp. 46-52. Nosegundo trabalho, desenvolvi maisextensamente esse conceito,contras-tando-o com o de Bobbio (Bobbio,Norberto. Destra e sinistra. Roma:Donzelli Editore, 1994. Existe tradu-o para o portugus.)

    [3] Sader,Emir.O anjo torto: esquerda(e direita) no Brasil. So Paulo:EditoraBrasiliense, 1995, p. 164.

    metade do sculo XX assumiu estatuto de objetivo poltico fundamentaldas sociedades modernas2.

    Adicionalmente, a esquerda se caracteriza por atribuir ao Estadopapel ativo na reduo da injustia social ou da desigualdade, enquantoa direita,percebendo que o Estado,ao se democratizar,foi saindo do con-trole,defende um papel do Estado mnimo,limitado garantia da ordempblica, dando preponderncia absoluta para o mercado na coordena-o da vida social. Porm, em relao ao Estado, h divergncias dentroda prpria direita, porque a experincia histrica mostra que apenasquando h forte aliana dos empresrios com a burocracia do Estado seconsubstancia uma estratgia nacional de desenvolvimento. Por suavez, por muito tempo a esquerda rejeitou o Estado, que para Marx seriao comit executivo da burguesia,e para os anarquistas,o mal maior.Noentanto, a experincia histrica demonstrou que nas democracias oEstado foi deixando de representar apenas os interesses da classe domi-nante para transformar-se em principal instrumento de ao coletiva disposio da sociedade.Enquanto no processo histrico o capitalismose revelava,a um s tempo,um regime injusto e corrupto mas o nicosistema econmico vivel porque relativamente eficiente ,a democra-cia se revelava o instrumento por excelncia atravs do qual as socieda-des modernas domavam esse capitalismo: tornavam-no menos injustoe menos corrupto.Por isso,a esquerda reconciliou-se com o Estado,tor-nando-se prioritrio para ela, nos termos de Sader, a deslocao dapolarizao neoliberal entre estatal/privado para a construo do carterpblico do Estado brasileiro3. Quanto mais democrtico se torna ogoverno do Estado, mais pblico ele se torna, ou seja, atende mais sdemandas dos cidados e menos s das minorias poderosas.

    Embora a defesa da interveno do Estado regulando e corrigindo ocapitalismo seja importante na distino entre direita e esquerda, o ele-mento central dessa definio est na oposio entre ordem e justiasocial. A proteo do meio ambiente tambm cada vez mais impor-tante, na medida em que os grupos polticos que adotam essa posiosejam em geral tambm mais de esquerda que de direita. J os outrosdois objetivos polticos centrais das sociedades modernas (a liberdade eo bem-estar) no distinguem historicamente a esquerda da direita, jque,no passado,tivemos a defesa ardorosa da liberdade e a competnciaem promover o bem-estar dos cidados partindo de governos deesquerda e de direita, como tivemos a violncia contra a democracia e aincompetncia em promover o desenvolvimento econmico origi-nando-se em partidos polticos com as duas orientaes. Quando,porm, se trata da ordem, o verdadeiro conservador no hesita, e lhe dsempre prioridade sobre a igualdade, que, para ele muitas vezes nemsequer um valor significativo. J o verdadeiro progressista tambmpreza a ordem,a segurana,contudo sabe que o progresso social envolveliberdade de protesto por parte dos mais pobres, dos que de algumaforma se sentem oprimidos o que implica certo risco para a ordem.O

    27NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 27

  • conservador afirma em qualquer hiptese o primado da lei; o progres-sista reconhece a necessidade do estado de direito, mas sabe tambmque a lei com freqncia feita para defender os pobres contra os ricos eque aqueles muitas vezes no tm alternativa para se fazer ouvir senoenfrentar a lei. A democracia o regime da ordem, da lei e do compro-misso, porm tambm o regime do conflito social e da argumentao.A esquerda sabe que entre justia e ordem existe uma contradio que osregimes democrticos devem,em princpio,ajudar a resolver.Enquantoa direita busca sempre que possvel negar essa contradio na medidaem que o estado de direito ou o imprio da lei tem absoluta precednciasobre a justia, para a esquerda a lei muitas vezes representa o status quo,portanto os interesses dos ricos,e por isso precisa ser mudada a partir dapresso dos movimentos sociais, os quais, por falta de alternativa, nemsempre usam de meios puramente legais para exercer essa presso. Jpara a direita essa forma de arriscar a ordem ou a lei inaceitvel.

    Em toda parte, inclusive no Brasil, a esquerda enfrenta uma contra-dio bsica:enquanto a direita representa claramente os interesses dosricos, principais defensores da ordem, a esquerda em princpio deveriarepresentar os interesses dos pobres ou dos trabalhadores, mas na pr-tica muitas vezes representa tambm os interesses das classes mdiasprofissionais ligadas ao Estado. Existe a um problema srio, porque,por mais que procure identificar-se com os pobres que pretende infor-malmente representar, essa classe mdia acaba representando tambmseus prprios interesses. O fato de esquerda e direita representareminteresses de classe inevitvel e at desejvel, desde que essa represen-tao no seja meramente corporativa ou seja, desde que o polticono suponha que seu papel o de apenas representar os interesses dosque o apiam ou o elegem. Nos pases mais avanados politicamente,esse corporativismo contrabalanado pelo esprito republicano doscidados e dos polticos, que logram, at certo ponto, agir em funo desuas convices sobre o que seja o interesse pblico,mesmo quando issocolide com seus interesses pessoais.

    A definio que acabei de apresentar para direita e esquerda umadefinio histrica; parte da observao emprica do comportamentoefetivo dos grupos polticos identificados como esquerda ou direita.Em uma definio desse tipo, no seria necessrio acrescentar que aesquerda defende na teoria o socialismo e na prtica o estatismo,enquanto a direita defende o capitalismo? Sim, mas com restries. Osocialismo foi por muito tempo uma utopia da esquerda, pormquando esta se viu no poder, como aconteceu depois da RevoluoComunista de 1917,o sistema econmico afinal estabelecido foi o esta-tismo, no o socialismo. Por qu? Porque a sociedade russa estavalonge de ter a igualdade de conhecimentos necessria para poderimplantar com xito um regime socialista. Essa a contradio centralda revoluo socialista: busca a igualdade, mas para alcan-la precisaque a igualdade, pelo menos de conhecimentos ou capacidades, j

    28 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 28

  • [4] Whitaker, Chico. O desafio doFrum Mundial. So Paulo: EditoraPerseu Abramo, 2005, pp. 15 e 19. Vertambm Aguiton, Christophe et al.O va le mouvement altermondialisa-tion? Paris: La Dcouverte, 2003 eFougier, Eddy. Altermondialisme, lenouveau mouvement demancipation?Paris: Liges de Repres, 2004.

    esteja razoavelmente implantada. Mesmo os pases hoje mais desen-volvidos e com trabalhadores mais educados, teriam dificuldade emestabelecer um regime socialista, porque as diferenas de educao ecompetncia tcnica e organizacional entre os cidados continuammuito grandes. O que dizer de uma sociedade atrasada como era arussa e todas as demais que realizaram revolues que se pretendiamsocialistas? Estabeleceu-se ali, portanto, no o socialismo, mas o esta-tismo. Este teve xito em promover a industrializao pesada a partirde forte acumulao forada de poupanas, porm afinal revelou suaincapacidade econmica de competir com o capitalismo.Dessa forma,o ideal socialista continua a ser um ideal das esquerdas, mas a centro-esquerda em especial, ou esquerda moderada, limita-se a pensar nelecomo utopia e trata de promover de forma reformista a justia e a defesado meio ambiente no capitalismo.

    H muitos tipos de esquerda, mais que de direita, provavelmenteporque esta, alm dos valores e idias, tem o capital a uni-la, enquanto aesquerda s tem valores e idias.Podemos distinguir pelo menos quatrotipos de esquerda: a extrema esquerda, a esquerda utpica, a esquerdaburocrtico-sindical, e a centro-esquerda.

    A extrema esquerda revolucionria,no v na democracia existenteseno uma forma de dominao:pretende assumir o poder revoluciona-riamente para,em seguida, implementar o que denomina socialismo o que seria mais correto chamar de estatismo.

    A esquerda utpica prefere no disputar o poder para manter seusideais socialistas e para poder ser uma fora crtica dentro da sociedade.Nos dias atuais,esse o caso,em especial,do extraordinrio movimentooutromundialista, que se formou a partir dos encontros do FrumSocial Mundial. Seus participantes mais representativos afirmam queno aspiram ao poder,mas querem ser a conscincia crtica das socieda-des capitalistas contemporneas,e querem contribuir para que a socie-dade faa prevalecer, em toda parte, a justia social, a solidariedade e apaz,ou,em outras palavras,um outro mundo possvel4.Esse objetivo sem dvida legtimo,e o movimento j tem dado contribuies positi-vas na direo pretendida, na medida em que a enorme repercusso desuas aes tem obrigado os governantes conservadores ou progressistasa mudar algo de suas polticas.

    A esquerda burocrtico-sindical joga o jogo democrtico, tem basesfortes na burocracia do Estado e nos sindicatos, se autodenominaesquerda simplesmente e,enquanto fora do poder,mantm um discursoformalmente socialista.

    A centro-esquerda reconhece a impossibilidade de transio para osocialismo dentro de um prazo previsvel e, usando uma frase de MichelRocard, trata de governar o capitalismo mais competentemente que oscapitalistas.Ou seja, uma esquerda reformista,que durante o sculo XXfoi social-democrata, mas est se transformando em centro-esquerdasocial-liberal, na medida em que os partidos de esquerda na Europa vm

    29NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 29

  • [5] Expus mais amplamente o con-ceito de social-liberalismo, aplicadosobretudo reforma do Estado, emDemocracy and public managementreform: building the Republican state.Oxford: Oxford University Press,2004. A Frana e a Alemanha conti-nuam resistindo reforma da gestopblica, presos que esto ao modeloburocrtico clssico. Essa uma ex-plicao importante para o mal de-sempenho econmico desses pasesnos ltimos dez anos.

    [6] Sader, Emir. O anjo torto, p. 194.

    [7] Sader, Emir. A vingana da hist-ria. So Paulo: Boitempo Editorial,2003, pp. 175-76.

    [8] Embora profundas modifica-es sejam necessrias na polticaeconmica do governo, no se justi-fica o calote, tanto da dvida externacomo da interna. Mais importante reduzir drasticamente a escandalosataxa de juros Selic (o que importariaem reduo do valor presente da

    reformando suas economias e seu Estado no sentido de manter a garan-tia aos direitos sociais e aprofundar a igualdade, ao mesmo tempo queaceitam um papel mais ativo de mercados regulados na coordenao dosistema. O social-liberalismo representa uma superao positiva dasocial-democracia;entretanto,da mesma forma que a social-democraciafoi por muito tempo acusada de trair os ideais do socialismo revolucion-rio, agora se acusa o social-liberalismo de trair os ideais da social-demo-cracia. Hoje, os pases que apresentam governos de esquerda mais bem-sucedidos caso dos escandinavos, da Holanda e da Gr-Bretanha esto deixando de ser social-democratas para ser social-liberais.A princi-pal mudana a reforma da gesto pblica,auxiliada por organizaes deservio pblicas no estatais na realizao, de forma competitiva, de ser-vios sociais e cientficos.Com isso,o Estado diminui o nmero de servi-dores,mantendo dentro de seu aparelho apenas servidores de alto nvel eprestgio. A despesa pblica em relao ao Produto Interno Bruto (PIB)se mantm elevada, mas, paralelamente, aumenta de modo substancial aeficincia dos servios prestados pelo Estado,e os direitos sociais passama ser mais respeitados, devido melhoria da quantidade e da qualidadedos servios5. Embora prestigie os altos servidores pblicos, essa pers-pectiva de reforma da gesto pblica no tem espao para servidores denvel mdio e baixo, ou para quem no realiza atividades especficas deEstado.No surpreendente,por isso mesmo,que encontre forte oposi-o da esquerda burocrtico-sindical.

    Entre a extrema esquerda e a centro-esquerda h,naturalmente,umagradao de posies saindo do discurso da revoluo para o da reformasocial. Poderamos chamar apenas de esquerda a posio intermediria,cara aos intelectuais:uma esquerda que no faz compromissos nem coma burguesia nem com a burocracia. Essa esquerda, porm, no existe noplano poltico:s idealmente.No Brasil,um de seus principais intrpre-tes Emir Sader, que, em vez de opor justia social a ordem, define aesquerda pela oposio entre justia e neoliberalismo. No Brasil, dizele,ser de esquerda significa a contraposio ao neoliberalismo. Essa uma definio correta,porque por meio do neoliberalismo que a ordemse manifesta hoje, embora haja um nmero razovel de conservadoresque tambm se opem a ele.No entanto,o problema da revoluo socia-lista evitado com a idia de que ser de esquerda no mundo de hoje sig-nifica participar de forma concreta de uma nova sociedade6. Quando,entretanto, se procura saber o contedo dessa nova sociedade, verifica-mos que esse projeto no existe,porque seus propugnadores sabem nopoder ser socialistas mas no querem admitir o capitalismo reformado.Como fica claro em uma obra posterior de Sader, o mais importanteseriam mudanas na poltica econmica. Segundo o autor, essa novasociedade teria como pilares a renegociao da dvida externa, a renego-ciao da dvida pblica e polticas econmicas que privilegiam a distri-buio de renda7.Em que pesem minhas ressalvas pessoais em relao aessas polticas8, importante assinalar aqui que elas no levam a uma

    30 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 30

  • dvida), e adotar uma nova polticade proteo ao capital e ao trabalhonacionais, interrompendo a absurdaabertura financeira do Brasil ao capi-tal externo.

    nova sociedade: apenas buscam reformar de maneira muito modestao capitalismo. No h, portanto, razo prtica para no plano ideolgico aquele em que nossa discusso est inserida distinguir esquerdade centro-esquerda, a no ser que quisssemos incluir entre os critriosde distino competncia ou propriedade das polticas econmicassugeridas o que no o caso.

    INEXISTENTE, MAS FUNDAMENTAL

    Na discusso do conceito de esquerda, essencial debater o problemado centro ou, mais especificamente, do centro que se move. No meuentender,no quadro das sociedades modernas,no existem agrupamen-tos polticos de centro. Aqueles que assim se autodenominam so sem-pre de direita.Na verdade,algum ou algum grupo ou de esquerda ou dedireita. Podemos e devemos transformar essa dicotomia em uma escalaideolgica que vai da extrema direita para a estrema-esquerda, passandopor direita, centro-direita, centro-esquerda e esquerda. Ficamos, assim,com uma escala de seis formaes polticas,porm sem um centro.Nessaescala,o centro inexistente:algum ou algum grupo ou de esquerda oude direita. inexistente,mas,como ponto virtual, fundamental.Porqueesse centro se move de modo cclico ora para um lado ora para outro,e por-que toda a luta ideolgica entre esquerda e direita nas democraciasmodernas se trava em torno da questo de empurrar esse centro mais paraa esquerda ou mais para a direita.

    O que vimos no mundo,desde meados dos anos 1970,foi o xito dadireita em mover o centro para a direita, com a ofensiva ideolgica neo-liberal. Nos anos 1990, diante do fracasso parcial das reformas e pro-messas da direita, iniciou-se um movimento do centro para a esquerda,mas a eleio infausta e controvertida de um presidente conservador nopas dominante, os Estados Unidos, interrompeu esse processo. NaAmrica Latina, porm, na qual o fracasso das reformas neoliberais foiradical,continua o movimento do centro para a esquerda.Isso aconteceuporque algumas dessas reformas,em especial a abertura financeira,almde serem concentradoras de renda, revelaram-se contrrias aos interes-ses nacionais do desenvolvimento econmico. O enorme desenvolvi-mento dos pases asiticos que, embora comprometidos com odesenvolvimento capitalista, rejeitaram as reformas propostas ou pres-sionadas a partir do Norte vem aprofundando esse movimento dospases latino-americanos para a esquerda, no obstante a hegemoniados Estados Unidos sobre a regio.

    O centro inexistente ou, para ser mais preciso, apenas existentecomo realidade virtual,como ponto de referncia a dividir a esquerda dadireita , assim, paradoxalmente todo-poderoso, porque a luta pol-tico-ideolgica nas democracias modernas diz respeito a ele. Os movi-mentos do centro so pendulares:ora o centro caminha para a esquerda,como aconteceu no mundo a partir da Grande Depresso dos anos 1930,

    31NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 31

  • ora caminha para a direita, como ocorreu a partir de meados dos anos1970.Esses movimentos ocorrem na medida em que se esgotam as pro-postas de governo de um ou outro grupo e os eleitores situados mais aocentro deslocam-se na direo oposta dominante.

    Contudo preciso considerar que o centro varia geograficamente.Nos Estados Unidos,onde nunca houve um movimento socialista forte,o centro est muito mais direita que na Gr-Bretanha, a qual por suavez est mais direita que a Frana,a Alemanha,ou a Espanha.Essa dife-rena geogrfica de posio do centro se deve a razes de ordem hist-rica, que no importa discutir aqui. O importante deixar claro que, seaceitarmos essa variao no centro, o conceito de esquerda e direitatorna-se relativo. Polticas consideradas de esquerda nos Estados Uni-dos podero ser consideradas de direita na Frana.Os polticos progres-sistas ou de esquerda americanos so em geral associados ao PartidoDemocrata, e denominados liberais, numa referncia ao sculo XVIII ecomeo do XIX,quando os liberais eram progressistas lutando em nomeda burguesia, contra conservadores ainda aliados aristocracia.

    Ainda convm assinalar que, ao afirmar que o centro se move notempo e que varia de pas para pas, reconheo uma limitao na defi-nio terica que ofereci no incio. Se for estrito em definir esquerdae direita em relao a ordem e justia, no faria sentido essa variao.Seria sempre de esquerda arriscar a ordem, admitir a ao de movi-mentos sociais (como greves), restringir sem violncia aes ilegaisde outros movimentos sociais (como as invases que, no Brasil, ossem-terra e os sem-teto com freqncia promovem) e apoiar suas rei-vindicaes. Em contrapartida, defender a lei a qualquer preo, usarda autoridade tradicional e religiosa para justificar posies polticase morais seria sempre de direita. Isso, porm, verdadeiro at certoponto. Nas questes sociais, o princpio da razoabilidade deve preva-lecer sempre, e esse princpio rejeita distines claras e precisas entrebranco e preto. A realidade social ambgua. A direita tende a pressu-por que o ser humano , por natureza, egosta ou auto-interessado; aesquerda, a pens-lo como generoso ou capaz de generosidade. Naverdade, o ser humano intrinsecamente contraditrio e, portanto,ambguo. Ele nasce com duas necessidades fundamentais e contradi-trias: de um lado, o instinto da sobrevivncia o faz individualista eegosta; de outro, o instinto da convivncia o torna solidrio e coope-rativo. Toda a sociedade humana est baseada nessa ambigidade,por isso os cientistas sociais enfrentam tanta dificuldade em preverseu comportamento.

    ESQUERDA E NAO

    O interesse e a capacidade de promover o desenvolvimento econ-mico, assim como a liberdade, no distinguem a esquerda da direita. natural que cada um dos agrupamentos polticos afirme ser mais capaz

    32 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 32

  • NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    de uma coisa ou de outra,mas vimos historicamente governos de direitae de esquerda sendo bem-sucedidos e desastrosos em relao a essesdois objetivos polticos. Entretanto, nesta seo argumentarei que,quando se pensa na definio de esquerda em pases em desenvolvi-mento, seria preciso incluir a idia de desenvolvimento como objetivobsico e a idia de nao como objetivo para o desenvolvimento. Histo-ricamente, na Europa do sculo XIX e de Marx, a burguesia era naciona-lista e a esquerda,internacionalista.O internacionalismo da Internacio-nal Socialista, porm, nunca convenceu os trabalhadores, que nohesitaram em de alguma forma associar-se burguesia e aos tcnicos dogoverno quando se tratava de competir internacionalmente.Foi isso quepermitiu que todos os pases capitalistas bem-sucedidos no plano eco-nmico consolidassem ao mesmo tempo o projeto de construo deseus Estados-Naes.Uma Nao s ganha coeso e fora,e o Estado sse torna instrumento de ao coletiva dessa Nao, se as classes sociais,no obstante os conflitos,so capazes de tornar-se solidrias quando setrata de competir com outras naes. No momento, porm, em que aconstruo nacional e o desenvolvimento se consolidaram naqueles pa-ses do Norte,o nacionalismo deixou de ser uma ideologia expressa paratornar-se subentendida.O nacionalismo a ideologia da construo doEstado-Nao, o princpio bsico que alimenta as relaes internacio-nais tanto na fase da Diplomacia do Equilbrio de Poderes como na faseda Poltica do Sistema Global,e a afirmao da prioridade dos interes-ses nacionais em relao aos demais pases vistos como competidores.Na prtica,implica atribuir aos governos a responsabilidade de defendero trabalho, o conhecimento e o capital nacionais. Hoje, nesses pases,como nos pases dinmicos da sia muito diferentemente do queacontece nos pases dependentes da Amrica Latina quase ningumtem dvida de que esse o dever de seus governos, de forma que se tor-nou desnecessrio reafirmar o prprio nacionalismo, transformado emvalor consensual. Tornou-se, ento, possvel ocultar essa perspectiva,sempre incmoda nas relaes internacionais, e reservar o adjetivonacionalista para as perverses do nacionalismo, para suas expressesextremadas e violentas como o nazismo, ou para formas de populismode direita e de esquerda em pases em desenvolvimento. Para os pasesricos, esse ocultamento tem a vantagem no prevista de neutralizar oeventual nacionalismo dos pases em desenvolvimento, tornando suaselites mais dceis s diretrizes vindas do Norte,sobretudo s polticas deseu interesse econmico.

    Diante desse quadro, a esquerda nos pases em desenvolvimentono pode reproduzir dos pases ricos nem o discurso sobre naciona-lismo, nem o discurso da esquerda. O motivo no apenas o nvel dedesenvolvimento econmico e poltico, menor que o da Frana, Alema-nha ou Gr-Bretanha. preciso no esquecer que o Brasil,embora apre-sente uma sociedade dual e, portanto, uma economia subdesenvolvida,j uma sociedade capitalista moderna.Porm, preciso tambm consi-

    33

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 33

  • [9] Furtado, Celso. Brasil: a constru-o interrompida. So Paulo: EditoraPaz e Terra, 1992.

    [10] Bresser-Pereira, Luiz Carlos.Do Iseb e da Cepal teoria da depen-dncia. In Toledo, Caio Navarro de(org.), 50 anos do ISEB. So Paulo:Editora da Unesp, 2005.

    [11] Furtado, Celso. O processo his-trico do desenvolvimento. Indesen-volvimento e subdesenvolvimento. Rio deJaneiro: Editora Fundo de Cultura,1961. Republicado em Bresser-Pe-reira, Luiz Carlos e Rego, Jos Mrcio(orgs.). A grande esperana em CelsoFurtado. So Paulo:Editora 34,2002.

    [12] Em Do Iseb e da Cepal teoria dadependncia chamei essa dependn-cia no de associada,nem de contra-partida da superexplorao imperia-lista, mas de nacional-dependenteoximoro que salienta o carter con-traditrio das elites empresariais eintelectuais em pases dependentescomo o Brasil.

    derar que os pases de desenvolvimento mdio no lograro evitar adominao vinda do Norte, se no adotarem as polticas e instituiesnecessrias para seu desenvolvimento. Nos ltimos vinte anos, en-quanto os pases asiticos dinmicos continuavam a usar do naciona-lismo para construir seus Estados nacionais e para promover com xitoseu desenvolvimento, os pases latino-americanos que entre os anos1930 e 1980 estavam realizando suas revolues nacionais viram essaconstruo ser interrompida9. Nos ltimos vinte anos, a nao brasi-leira, a partir da crise da dvida externa transformada em crise fiscal doEstado e em inflao alta, perdeu autonomia real e voltou condiosemicolonial, enquanto era submetida onda ideolgica neoliberal eglobalista vinda do Norte. Isso ocorreu porque o antigo modelo nacio-nal-desenvolvimentista,bem-sucedido em promover a industrializaodo pas entre 1930 e 1980, entrou em crise. Ocorreu tambm porque apresso ideolgica globalista vinda do Norte a qual afirmava que naera da globalizao o Estado-Nao perdera relevncia e anunciava agovernana global em um mundo sem fronteiras tornou-se forts-sima a partir daquela mesma data. E ocorreu, finalmente, porque as eli-tes brasileiras conservadoras e dependentes, sobretudo aquelas ligadasao setor financeiro, aderiram rpido s novas idias.

    Nesses termos, seria razovel esperar que, nos pases latino-ameri-canos, a esquerda fosse nacionalista e tivesse como prioridade o desen-volvimento econmico. No Brasil, isso aconteceu quando os grupos deesquerda mais representativos afinal se associaram aos empresriosindustriais no pacto nacional-desenvolvimentista de Vargas e Kubits-chek (1930-60). Na Amrica Latina, porm, a esquerda deixou de sernacionalista desde que os empresrios apoiaram os golpes militares noCone Sul. A adoo da teoria da dependncia, seja na verso marxista,seja na verso da dependncia associada, no foi motivo para que aesquerda se tornasse mais nacionalista, como se poderia imaginar; pelocontrrio, fez com que copiasse a clssica perspectiva internacionalistada esquerda europia do sculo XIX.Partindo do pressuposto de que noseria possvel haver um empresariado nacional na Amrica Latina,a pri-meira verso da teoria da dependncia concluiu pela revoluo socia-lista,e a segunda pela associao com os pases ricos10.Contudo,a prio-ridade dada ao desenvolvimento econmico foi abandonada pelaesquerda;na medida em que ela assumiu que no capitalismo o desenvol-vimento ocorreria de qualquer maneira,de forma a caber-lhe a preocupa-o com a democracia e a justia social.Entretanto,embora seja verdadeque, para os pases que completaram sua revoluo industrial, o desen-volvimento capitalista tenda a ser auto-sustentado11, isso no verdadepara os demais, submetidos a processos de imperialismo. Nesse caso,suas elites se tornaram ambguas em relao aos interesses nacionais,porque ao mesmo tempo que se identificavam com esses interesses,eram ideologicamente dependentes do centro desenvolvido12.Esse tipode conscincia, porm, no ocorreu nas esquerdas latino-americanas e

    34 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 34

  • [13] Lozano, Wilfredo. La izquierdalatinoamericana en el poder. NuevaSociedad, no 197, 2005, p. 145.

    [14] Dimoser, Ditmar. Democraciasin democratas: sobre la crisis de lademocracia en Amrica Latina.Nueva Sociedad, no 197, 2005, p. 40.

    brasileiras, cujos intelectuais so tambm dependentes. Fizeram, por-tanto,o que inerente situao de dependncia no criticada:copiaramo internacionalismo das esquerdas europias,no se dando conta de queelas s adotaram o internacionalismo em teoria, enquanto se associa-vam aos empresrios na construo da nao e na participao em estra-tgias nacionais de desenvolvimento.

    O PARADOXO DA ESQUERDA

    Se o centro varia geograficamente,seria interessante perguntar o queacontece com o centro no Brasil ou na Amrica Latina. Est mais esquerda ou mais direita do que nos pases desenvolvidos da Europacontinental? No sei responder com clareza, porque a diviso entreesquerda e direita enfrenta uma dificuldade fundamental na regio. Noquero falar por toda a Amrica Latina,onde a esquerda hoje est presenteno governo da Argentina,do Uruguai,do Chile,da Venezuela e do Brasil.Conforme observou Wilfredo Lozano, a esquerda hoje no poder resultaser um complexo produto de sua reacomodao reformadora, o que aobrigou a girar para o centro13.Quanto,entretanto,girar para o centro? Eo giro apenas para o centro ou para a direita? Ditmar Dimoser,em textosobre a democracia na Amrica Latina, pergunta estar o futuro latino-americano caracterizado por democracias sem democratas?14. Tal per-gunta envolve um paradoxo absoluto.No caso do Brasil,no em relao democracia mas sim esquerda,a questo est dominada por outro para-doxo, que talvez no esteja ausente do restante da Amrica Latina: aesquerda ganha as eleies,na medida em que partidos de esquerda ou decentro-esquerda alcanam a maioria no Parlamento,porm no governa.Proponho denominar esse fenmeno de paradoxo da esquerda.Ser eleverdadeiro? Se for,h uma explicao ou um paradoxo puro?

    Tabela 1

    Deputados federais eleitos (1986-2002)

    Fonte: www.iuperj.br/deb/port/Indice.htm. Autor: Jairo Nicolau (Iuperj)Nota: Partidos considerados de esquerda: PT, PSDB, PMDB, PDT, PSB, PCB/PPS, PCdoB e PV; os demaisforam considerados de direita.

    Para responder a essas perguntas, parto do pressuposto de que aideologia determina o voto no Brasil.Esse pressuposto terico foi postoem dvida por uma srie de analistas internacionais, a maioria de filia-

    35NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 35

  • [15] Singer, Andr. Esquerda e direitano eleitorado brasileiro. So Paulo:Edusp, 1999.

    [16] No lograram, todavia, maioriano Senado.

    o conservadora,que tambm tendem a negar a relevncia da diferenaentre esquerda edireita. Mas afinal as pesquisas deixaram claro que oseleitores apesar da falta de estrutura ideolgica definida, para a qualseriam necessrios conhecimentos que eles no tm possuem identi-ficao ideolgica suficiente que lhes permite distinguir as posies deesquerda ou de direita, progressistas ou conservadoras. Singer testouessa hiptese em relao ao Brasil, e a viu confirmada15. O Brasil transi-tou para a democracia em 1985. Desde ento, conforme os dados daTabela 1, os partidos que dominam o Parlamento brasileiro (por ordemhistrica, PMDB, PSDB e PT) sempre se autodefiniram como partidosde esquerda os dois primeiros de centro-esquerda, o ltimo deesquerda e, junto com os pequenos partidos de esquerda, lograram amaioria na Cmara dos Deputados16. Entre os trs presidentes eleitosdiretamente pelo povo desde 1985, dois se autodenominaram deesquerda,Fernando Henrique Cardoso e Luiz Incio Lula da Silva,e ape-nas um aceitava ser de direita,Fernando Collor. verdade que nem todosos parlamentares desses partidos podem ser considerados de centro-esquerda: depois que o PT se tornou governo, alguns petistas so antesde centro-direita, apesar dos programas e das mensagens polticas decentro-esquerda.

    No Brasil, evidente por que os partidos e os candidatos presiden-ciais de esquerda tendem a ser eleitos com mais freqncia do que os dedireita. Est diretamente relacionado com a brutal desigualdade socialexistente no pas.Essa desigualdade,somada aos baixos nveis de edu-cao e de formao cvica do povo brasileiro, fazem-no esperar dospolticos um discurso voltado para melhor distribuio de renda. Ospolticos de esquerda podem fazer isso de forma natural, sem necessa-riamente serem populistas;j os candidatos de direita s so capazes deformular um discurso dessa natureza sendo populistas.Os candidatosde direita que ganham eleies executivas no Brasil so quase semprepolticos populistas e demaggicos, com um discurso que no corres-ponde a suas convices. J os candidatos de esquerda podem ser maisautnticos, embora no estejam livres do populismo.

    Entretanto,uma vez eleitos,nem o presidente nem os parlamentaresde esquerda fazem um governo de esquerda, ou seja, que de fato contri-bua para reduzir a injustia social no pas. Podem incluir em suas admi-nistraes algumas polticas sociais redistributivas, atendendo assim presso dos pobres,mas afinal seus governos promovero sobretudo osinteresses dos ricos,e a renda e a riqueza se mantero concentradas.Issofoi possvel observar no governo Sarney (1985-89), imediatamenteaps a transio democrtica. O prprio presidente no era um polticoda esquerda, e sim um nacionalista populista que militou no partido dogoverno durante o regime militar; porm o Parlamento eleito em 1986era dominado por polticos de centro-esquerda, que haviam se opostoao regime militar. No obstante, no h nada no governo Sarney que sepossa identificar como de esquerda. Pelo contrrio, nos ltimos dois

    36 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 36

  • [17] Esses funcionrios haviam rece-bido o nome de marajs,e o candidatocomprometeu-se habilmente a aca-bar com o privilgio.

    anos o governo caminhou para a direita:o presidente firmou acordo comum grande grupo conservador que se formou ento no Congresso com onome de Centro.

    O primeiro presidente eleito pelo voto popular foi Fernando Collorde Mello, em 1989. Era um poltico conservador. Mas importantesalientar que,mais que de direita,ele era um poltico populista.Isso por-que logrou estabelecer contato direto com a populao em nome damoralizao da burocracia,especificamente dos salrios abusivos de umcerto nmero de altos funcionrios,aproveitando-se da alta inflao emvigor desde 1980 e de falhas legais no sistema de correo monetria dossalrios17. Sua mensagem moralista, entretanto, no impediu que eleprprio se envolvesse em corrupo, a ponto de, dois anos depois, serafastado do governo mediante um processo de impedimento.

    O prximo presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, tinhauma trajetria conhecida: inicialmente, como intelectual de esquerda;depois, como poltico de centro-esquerda. Provinha do PSDB, partidoque se pretende socialdemocrata inclusive no nome: Partido da SocialDemocracia Brasileira. Foi eleito porque, como ministro da Fazenda nogoverno intermedirio de Itamar Franco,logrou controlar a alta inflaobrasileira com um plano de estabilizao que neutralizava com compe-tncia a inrcia inflacionria.Entretanto,seu governo foi antes e centro-direita que de esquerda.Foi de centro-esquerda na rea social,na medidaem que aumentou a carga tributria e gastou mais e com mais competn-cia em educao, sade, reforma agrria e assistncia social. Mas seugoverno acabou concentrando renda. Adotou uma poltica cambial queaprofundou a desnacionalizao da economia brasileira e levou a duascrises de balano de pagamentos. Adotou igualmente uma polticamonetria de elevadas taxas de juros do Banco Central (BC),a qual bene-ficiou os rentistas, ou seja, os que vivem de juros, e o sistema financeiroque recebe comisso dos rentistas.

    Mais surpreendente o governo de direita que vem fazendo o presi-dente Luiz Incio Lula da Silva. Como o PT se declarava um partido cla-ramente mais esquerda do que o PSDB,os mercados financeiros nacio-nais e internacionais pressupunham que sua eleio representasse umaclara guinada do Brasil para a esquerda. A segunda crise de balano depagamentos do governo Cardoso, em 2002, deveu-se em parte a essadesconfiana. Entretanto, o que se viu foi um governo que, embora con-servasse suas alianas com o sindicalismo e movimentos sociais como oMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), revelou-selogo claramente de direita.Isso ficou bastante claro em relao polticamonetria:o nvel da taxa de juros bsica do BC,que j era a mais alta domundo, aumentou ainda mais para satisfazer os rentistas. A taxa dejuros real em 2005 foi em mdia de 12%, quando o risco Brasil no jus-tificava mais que 3%.De um gasto com juros pelo setor pblico estimadoem 160 bilhes de reais em 2005,correspondendo a 8% do PIB,apenas40 bilhes de reais so justificveis: o restante mera transferncia aos

    37NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 37

  • [18] A imprensa tem feito ampla co-bertura desse escndalo. Talvez a me-lhor reportagem at agora tenha sidofeita por Norman Gall (Lula e Mefis-tfoles. Braudel Papers, no 38, 2005,pp. 1-14). O governo Lula e o PT reco-nheceram as irregularidades,mas ten-taram identific-las com caixa dois emcampanhas eleitorais, ou seja, comdoaes de dinheiro no declaradas aofisco e aos tribunais eleitorais. Dessaforma, o PT estaria fazendo algo usualno processo de financiamento de cam-panhas eleitorais. Ao longo desseescndalo,porm,foi ficando claro queo processo envolvia corrupo strictosensu, seja pela compra de votos dedeputados de outros partidos, sejapelo fato de os recursos provirem deempresas estatais cujos contratos depublicidade eram sobrefaturados oude fornecedores do Estado, que com-pensavam as doaes com sobrefatu-ramento dos servios.Alm disso,nose tratava de simples financiamento decampanhas eleitorais, j que o sistemapassou a fazer parte do governo fede-ral, como antes fizera parte dos gover-nos municipais em que o PT elegera oprefeito.

    [19] Carvalho, Fernando J. Cardim.FHC, Lula e a desconstruo daesquerda. Rio de Janeiro: Institutode Economia da UFRJ, 2005, cpia,pp. 10 e 15.

    credores do Estado brasileiro, que se tornou refm com a desculpa deque essa taxa necessria para combater a inflao.Temos,assim,chan-celada por um governo de esquerda, uma brutal transferncia de rendados pobres e da classe mdia, que pagam impostos (principalmenteindiretos, no Brasil) para os ricos, que recebem juros e, no mercadofinanceiro,comisses.Alm disso,a poltica social do governo no reve-lou inovaes.O nico gasto social que aumentou foi o assistencialista,com a substituio do Bolsa Escola, que exigia dos pais pobres que osfilhos estivessem na escola, para o Bolsa Famlia. Ou seja, em vez denfase em polticas universalistas, que so de esquerda, adotou umapoltica conservadora de focalizao. E afinal, no terceiro anodo man-dato, tornou-se pblico que esse governo e o prprio PT, que duranteanos insistira em seus padres ticos,se envolvera em um processo semprecedentes de corrupo poltica,conhecido com o nome de escndalodo mensalo.O PT pagava com dinheiro o apoio que recebia de deputa-dos de outros partidos, financiando-se com recursos oriundos eviden-temente de empresas beneficiadas pelo governo18.Em sntese,conformeobservou Fernando Cardim de Carvalho em trabalho recente sobre aesquerda e a poltica econmica no Brasil, o primeiro governo FHC foiquase a anttese do que seria esperado da passagem pelo poder de umpartido autodenominado socialdemocrata 19.Porm poucos discorda-riam da afirmao que o governo Lula no perseguiu nenhuma das prio-ridades que caracterizam qualquer governo de esquerda no sculo XX.Em outras palavras, foram governos eleitos pela esquerda, mas noforam governos de esquerda.

    GOVERNAR O CAPITALISMO

    No tivemos,portanto,governos de esquerda no Brasil desde a tran-sio democrtica de 1985,no obstante a maioria do eleitorado votasseem candidatos de esquerda. Antes de tentar explicar esse fato, porm,uma pergunta preliminar essencial:pode a esquerda governar o capita-lismo? possvel pensar em governos de esquerda governando um sis-tema econmico que em essncia continua capitalista, ou seja, coorde-nado pelo mercado, e voltado para o lucro privado?

    A resposta positiva, se examinarmos a experincia de um sem-nmero de governos de partidos ou coalizes de centro-esquerda naEuropa desde a Segunda Guerra Mundial. Partidos que agem nos ter-mos da definio de esquerda apresentada nas primeiras sees destetrabalho tm se revelado muitas vezes capazes de governar o capitalismode forma mais competente que os capitalistas. So de esquerda porquebuscam reformar esse capitalismo, porque procuram distribuir melhora renda e caminhar na direo de maior igualdade de oportunidades,porque defendem maior liberdade individual nos quadros de uma socie-dade mais solidria. So sempre partidos de centro-esquerda. Noexiste a hiptese de um partido de extrema esquerda governar um pas

    38 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 38

  • [20] Przeworski, Adam. Capitalismand social democracy. Cambridge:Cambridge University Press, 1985.

    [21] As pesquisas de Lijphart (Lij-phart, Arend. Patterns of democracy.New Haven: Yale University Press,1999) e de Esping-Andersen (Esping-Andersen, Gosta. The three worlds ofwelfare capitalism.Princeton,NJ:Prin-ceton University Press, 1990) sobremodelos de democracia e de capita-lismo so significativas nesse ponto.

    capitalista.No conheo sequer uma experincia de tentativa desse tipo.O governo Allende, por exemplo, assim como muitos outros governosde esquerda derrubados por foras de direita nacionais e externas, noera um governo de extrema esquerda. Foi apenas um governo deesquerda que, no sabendo governar o capitalismo melhor que os capi-talistas, cometeu erros que facilitaram a reao da direita e do imperia-lismo, e por fim o golpe sangrento.

    Para governar o capitalismo melhor e com mais justia que umacoalizo de direita, uma coalizo de esquerda precisa reconhecer a leibsica do capitalismo: a taxa de lucro dos empresrios e dos capitalis-tas ativos deve ser mantida em nvel satisfatrio para que eles conti-nuem a investir. Conforme observou Przeworski, os empresrios tmo poder de veto sobre o sistema.20 Se deixam de investir, o cresci-mento econmico estanca e o pas entra em crise. Por isso, essencialalgum tipo de associao com os empresrios produtivos.J os capita-listas rentistas, que no passado viviam de aluguis e hoje vivem prin-cipalmente de juros pagos pelo governo, no podem ser aliados de umgoverno de esquerda. Tambm no pode ser aliada de uma coalizo deesquerda uma parte dos empresrios produtivos que se recusam afazer compromissos com os trabalhadores e as classes mdias profis-sionais. Da mesma forma, no pode fazer parte do sistema de apoio auma coalizo de esquerda o grupo de profissionais que, sabendo ser ocapitalismo hoje o capitalismo do conhecimento ou dos tcnicos,aproveita-se desse fato para obter ganhos extraordinrios apoiadosem seu conhecimento tcnico. No pode porque um governo s serde esquerda se,alm de ser formado por polticos que se definem comode esquerda, lograr, ainda que marginalmente, desconcentrar a rendae a riqueza; transformar em realidade mais concreta a igualdade dedireitos entre pobres e ricos, entre mulheres e homens, entre as diver-sas raas; avanar na implantao de maior igualdade de oportunida-des de renda, poder e prestgio social; dar democracia um cartermais representativo e mais participativo. No ser possvel ou realistaesperar grandes ganhos nessa matria, mas a experincia mostra quepases governados mais longamente por coalizes de esquerda, assimcomo pases nos quais o centro esteja mais esquerda, alcanamnveis mais elevados de democracia e de justia social. No por outrarazo que o modelo capitalista existente nos pases escandinavos superior em termos de justia e democracia, comparado aos pases domodelo renano, o qual, por sua vez, superior ao nvel de justia sociale de democracia existente nos Estados Unidos. No fcil comprovaruma afirmao geral como essa, porm no difcil chegar a essa con-cluso quando se comparam, entre outros indicadores, os ndices deviolncia e distribuio de renda, assim como as formas de financia-mento de campanhas polticas21.

    Sob essa perspectiva, merece citao especial a experincia recentede oito anos de governo trabalhista na Gr-Bretanha.Esse governo teve

    39NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 39

  • [22] Terceira via foi uma expressoutilizada durante muito tempo, emespecial por autores catlicos, parasugerir que haveria uma terceira pos-sibilidade em relao ao conflitoentre capitalismo e socialismo. A ter-ceira via britnica no tinha essa pre-tenso, pretendia ser apenas umaforma de manifestao da socialde-mocracia ou, mais precisamente, dosocial-liberalismo: a socialdemocra-cia, que, embora garantindo os direi-tos sociais, usa mais os mecanismosde mercado, inclusive no oferecimen-to de servios sociais e cientficos,tornando assim mais eficiente o apa-relho do Estado.

    [23] Giddens, Anthony. Beyond leftand right. Cambridge: Polity Press,1994;The third way and its critics. Cam-bridge:Polity Press,2000;e Giddens,Anthony (org). The global third waydebate. Cambridge:Polity Press,2001.

    [24] Thomas Friedman (The lexus andthe olive tree.2 ed.Nova York:RandomHouse, 2000) no tem dvida emusar a expresso straight-jacket paraargumentar que s existe uma formapossvel de capitalismo eficiente: aamericana.

    [25] Frana, Alemanha e Itlia apre-sentaram desempenho pior por moti-vos diversos. A meu ver, no foi porterem deixado de reduzir a proteoao trabalho, como insiste a direita,mas por no terem feito a reforma dagesto pblica ou reforma gerencialdo Estado,no qual a Gr-Bretanha foipioneira.

    [26] Pearce, Nick e Dickson, Mike.New model welfare.Prospect,no 10,maio 2005, pp. 20-21.

    incio com uma proposta de terceira via22 nome inadequado paraum conjunto de idias concretas sobre como um governo de esquerdamoderna pode governar o capitalismo de forma mais competente queos capitalistas. Embora essas idias estivessem apoiadas em um soci-logo de esquerda de alto prestgio como Anthony Giddens, foramamplamente criticadas pelas esquerdas de outros pases e mesmo daGr-Bretanha23. Na Europa continental, sobretudo, duvidou-se de quefossem de fato idias de esquerda, ignorando que na Gr-Bretanha ocentro est mais direita que no modelo renano da Frana e da Alema-nha. Entretanto, a prova de qualquer coisa s pode ser emprica. Cabe,portanto, perguntar o que aconteceu naquele pas depois de oito anosde governo trabalhista. Nesse perodo, que terminou com nova reelei-o, os trabalhistas, apesar do apoio inconsiderado trgica invasoamericana do Iraque, foram bem-sucedidos em realizar um governo deesquerda.Em tempo de globalismo,no qual seus idelogos no se can-sam em afirmar que todos os pases esto submetidos a uma camisa deforas, no tendo alternativa seno seguir o modelo neoliberal ameri-cano24, os trabalhistas britnicos fizeram o caminho inverso: estabele-ceram o salrio mnimo, tornaram os impostos mais progressivos eaumentaram em cinco pontos percentuais o gasto em educao esade, enquanto apresentavam excelente desempenho econmico25.Com isso, melhorou a distribuio de renda. E o capitalismo britnico,desde Thatcher identificado com o sistema americano, se aproximoudo modelo renano ao invs de afastar-se dele, como prediz a tese docaminho nico26.

    POVO E SOCIEDADE CIVIL

    O governo de esquerda em pases capitalistas , portanto, vivel. Asexperincias europias no deixam dvida a esse respeito. Por qu,ento,no Brasil no tem sido vivel,ainda que os eleitores elejam candi-datos de esquerda ou,pelo menos,com discurso de esquerda? A respostamais geral a essa questo est no fato de que como nos demais pases emdesenvolvimento,h aqui grande descompasso entre o povo e a socie-dade civil, e nesta ltima que sempre est o verdadeiro poder polticonas democracias.Coloquei as duas expresses entre aspas,porque estouusando-as em sentido muito preciso: povo, aqui, o conjunto de cida-dos iguais perante a lei,dotados do direito de voto;sociedade civil essepovo no qual, porm, o poder de cada cidado ponderado pelodinheiro, pelo conhecimento e pela capacidade de organizao. Noestou, portanto, confundindo sociedade civil, conceito clssico, comorganizaes da sociedade civil, principalmente organizaes pbli-cas no estatais de advocacia polticas as chamadas organizaes nogovernamentais stricto senso ,base da lenta transio das atuais demo-cracias de opinio pblica para as democracias participativas.Enquantoo conceito de organizaes da sociedade civil permite o desenvolvi-

    40 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 40

  • [27] Esse conceito de sociedade civil,porm, foi muito til para a anliseque fiz, na segunda metade dos anos1970, da transio democrtica queento comeava.

    [28] Ver excelente resenha do debatesobre as organizaes da sociedadecivil que surgiram como alternativaemancipadora nos anos 1990: Lava-lle,Adrin Gurza.Sem pena nem gl-ria: o debate sobre a sociedade civilnos anos 1990.Novos Estudos,n-o 66,pp.91-109, julho 2003.

    mento de uma teoria de emancipao social por meio da emergncia dademocracia participativa ou da democracia deliberativa, o conceito desociedade civil no tem carter normativo27. Sugere apenas que a socie-dade politicamente organizada ou seja,a sociedade civil tende a sermais conservadora. E talvez menos democrtica que o povo, porqueaqueles indivduos que possuem mais capital, mais conhecimento tc-nico, organizacional e comunicativo e esto inseridos em organiza-es, sejam elas corporativas ou pblicas no-estatais tero indivi-dualmente mais poder que os cidados comuns.

    Quanto mais avanada uma democracia, mais democratizada suasociedade civil; por isso mesmo, menor ser a diferena entre ela e opovo28. Enquanto, em uma sociedade civil autoritria, ela prpria nose distingue com clareza do conceito de elites, a distino clara nocaso de sociedades civis democrticas. Entende-se aqui por sociedadecivil mais democrtica exatamente aquela na qual menor a diferenade poder de seus participantes em relao ao poder de cada cidado nopovo. Ora, isso acontecer na medida em que, em cada sociedade,aumentar o grau de igualdade de renda, conhecimento, capacidade deorganizao e, portanto, de poder poltico real. Ou seja, quandoaumentar o grau de justia social existente nessa sociedade. Dessaforma, embora liberdade, garantida pela democracia, e justia, trazidapelo crescente respeito aos direitos sociais, sejam objetivos polticosindependentes, a teoria poltica indica que afinal eles so tambminterdependentes quando pensamos em termos de graus de liberdadee em graus de justia. Em sociedades como a sueca, ou a sua, nasquais as desigualdades so relativamente pequenas,a sociedade civil fortemente democrtica, diferenciando-se pouco do povo. Assim,nessas sociedades, uma vez eleito pelo povo, um governo de esquerda que afinal reflete o poder da sociedade civil far uma administra-o de esquerda.

    Enquanto isso, em sociedades menos democrticas e menos justas,como as latino-americanas, o descompasso entre povo e sociedade civil enorme. O povo no tende necessariamente a ser mais democrticoque a sociedade civil,como bem mostram as pesquisas sobre o tema rea-lizadas por entidades como o Latinobarmetro,mas tende a ser mais deesquerda, na medida em que demanda do Estado polticas ativas maisdistributivas. Dado esse descompasso, uma vez eleito um governo deesquerda, a tendncia dos novos governantes para alcanar le-gitimidade poltica na sociedade civil ser identificar-se rapidamentecom as percepes e os valores centrais dessa sociedade,que a fonte realde legitimidade. A fonte da legalidade poltica, nas democracias, sem-pre o povo,porm a da legitimidade dada antes pelo apoio da sociedadecivil.Observe-se que essa afirmao,como quase todas as demais que fizneste texto, obedece a um critrio antes histrico que normativo. Doponto de vista normativo, seria melhor que legitimidade e legalidade seconfundissem,mas nesse caso bastaria apenas um conceito.Por isso,e a

    41NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 41

  • partir de Weber, uso o conceito de legitimidade para indicar o fato de queum governo conta com o apoio da sociedade civil, enquanto emprego oconceito de legalidade para dizer que foi eleito regularmente pelo povo.Oprimeiro um conceito real sociolgico e histrico ,o segundo umconceito formal jurdico,no sentido estrito dessa palavra.No governorecm-eleito,h tendncia de a legalidade e a legitimidade poltica coin-cidirem, mesmo que o governo eleito seja de esquerda e no tenha con-tado com o apoio da sociedade civil na eleio.Isso porque,eleito o novogoverno, a sociedade civil tender a dar um voto de confiana aos novosgovernantes.Entretanto,a sociedade civil,e sobretudo seus componen-tes mais direita, esperam que o novo governo, ainda que conservandouma retrica de esquerda, revele rapidamente seu respeito pela proprie-dade e pelos contratos pela ordem estabelecida,portanto ,e que noadote polticas redistributivas fortes. Caso contrrio, o governo correro risco de perder seu apoio.

    Foi o que aconteceu no Brasil,logo aps a eleio de Luiz Incio Lulada Silva no final de 2002.O governo contou com essa boa vontade ini-cial das elites,e para conserv-la tratou de conformar-se quase integral-mente a essa vontade. No plano da poltica econmica, em especial, noqual os interesses da direita rentista e financeira eram muito grandes,aconformidade foi total e permanente. Com isso, o governo deixou deser de esquerda. Atendeu a interesses da classe mdia profissional maioria dos integrantes do PT realizando uma ocupao de cargospblicos antes reservados burocracia profissional do Estado. Esseaparelhamento do Estado, porm, no uma poltica de esquerda, esim apenas uma forma de corporativismo ou clientelismo. Contudo,com a estratgia de conformidade, nos primeiros dois anos o governologrou no apenas acalmar os mercados financeiros, que estavam emcrise no momento da eleio,mas manter durante esse perodo o apoioda sociedade civil. Perdeu-o apenas no terceiro ano, em funo dasdenncias de corrupo ento surgirdas.Foi s a partir desse momentoque o governo Lula perdeu legitimidade, embora conservasse a legali-dade, e por isso paralisou-se.

    O descompasso entre uma sociedade civil mais conservadora e umpovo que no obstante o autoritarismo de que vtima vota emcandidatos de esquerda, explica, portanto, por que no Brasil a es-querda tende a ganhar as eleies mas afinal no governa. O sistemade incentivos existente em uma sociedade como essa leva infideli-dade dos polticos a seus comprometimentos. H outras razes queexplicam por que a esquerda tem dificuldade de governar em um pascomo o Brasil. J me referi ao caso da extrema esquerda, cuja incapaci-dade de governar o capitalismo auto-explicativa. Em todos os pasestemos tambm uma esquerda utpica, cuja opo por no ser governo explcita, prefere, ao contrrio, conservar o papel de crtica dogoverno. Em um caso como esse, porm, a pergunta central deste tra-balho no se aplica.

    42 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 42

  • NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    REPUBLICANISMO E CORPORATIVISMO

    Ficando, porm, apenas com os partidos polticos de esquerda quequerem governar na democracia,a pergunta seguinte ao que foi expostoat aqui saber se, dado o descompasso existente no Brasil entre povo esociedade civil, inevitvel que os partidos ou coalizes de esquerda,uma vez eleitos,no faam governos de esquerda.No creio.Certamenteos partidos de esquerda vitoriosos tero que fazer compromissos afi-nal, a poltica a arte do compromisso. Certamente no realizaro tudoo que seu programa prev,ou mesmo o que foi prometido nas eleies isso sempre acontece nas democracias,com partidos de qualquer orien-tao. Mas eu acredito que, em um pas capitalista de desenvolvimentomdio como Brasil, possvel haver governos de esquerda.

    O que preciso para isso? A meu ver, duas coisas: esprito republi-cano e habilidade poltica. essencial ou esprito ou a virtude republi-cana. No vou discutir aqui se vivel ou no. No contexto desse tra-balho,suponho que sim,com base na referida existncia de dois (e noum s) instintos humanos bsicos: o da sobrevivncia e o da convi-vncia. Considerando essa possibilidade como pressuposta, entendopor republicano o poltico ou o partido poltico que, em algunsmomentos, arrisca perder o apoio de seus eleitores para agir de acordocom suas convices do que seja o interesse pblico. Seus apoiadorespolticos querem algo contrrio ao que o poltico julga ser o interessenacional. No importam as razes de uns ou do outro. O importante haver divergncia. Se o poltico tem a coragem necessria para arriscarsua reeleio, agindo de acordo com suas convices, ser republi-cano, e seu republicanismo poder ser uma sada para o paradoxo daesquerda no Brasil.

    No basta, porm, esprito republicano. preciso tambm compe-tncia poltica.A poltica uma arte na qual no valem apenas princpiosticos e boas intenes. Vale tambm a habilidade de fazer compromis-sos e argumentar para alcanar maioria. Porque, afinal, a poltica no outra coisa seno a arte do compromisso e da argumentao. o exerc-cio da prudncia,na perspectiva de Aristteles; a busca do bem comum,na perspectiva tomista e lockiana; a virt do governante na busca dosobjetivos republicanos, na viso de Maquiavel; o exerccio da tica daresponsabilidade, na forma de ver a poltica de Max Weber. No , por-tanto, tarefa fcil. No entanto, essas qualidades e responsabilidades dapoltica,que a fazem a mais nobre das profisses,no esto limitadas aospolticos de esquerda.Com freqncia tambm so observadas em pol-ticos conservadores, os quais, porm, no enfrentam as contradiesenfrentadas por polticos de esquerda.Por isso,para estes a tarefa maisdifcil, por isso seu esprito republicano tem que ser mais forte, por issosua habilidade poltica mais necessria.

    Quando vemos a esquerda no Brasil curvar-se a uma sociedade civilque principalmente de direita e que se apia em um sistema internacio-

    43

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 43

  • [29] AbSber, Tales. Declaraes emdebate sobre o PT promovido pelaFolha de S.Paulo em 13/10/05.Resumopublicado na edio de 18/10/05.

    [30] Nobre, Marcos. Declaraes emdebate sobre o PT promovido pelaFolha de S.Paulo em 23/10/05.Resumopublicado na edio de 18/10/05.

    [31] Sader, Emir. PT, direita e es-querda. Folha de S.Paulo, 13/10/05,p. 3.

    [32] Santos, Fabiano. Declaraesem debate sobre o PT promovido pelaFolha de S.Paulo. Resumo publicadona edio de 18/10/05.

    nal cujos interesses so contrrios aos do pas, s podemos explicar ofato pela fora dessas elites conservadoras. preciso, entretanto, nolimitar a anlise e reconhecer que h tambm falta gritante de espritorepublicano e de competncia poltica.Ambos faltaram ao PSDB,e falta-ram em maior grau ao PT. Segundo palavras de Tales AbSber, em umdebate pblico, no caso do PT houve descolamento da poltica doespao social ainda mais radical do que j ; a poltica se autonomiza, setransforma em um grande balco de negcios29.Esse descolamento oudescompasso, nesse caso, se aprofundou porque o PT, embora tivesseexpectativa de ocupao a longo prazo do poder poltico (como o PSDBtivera antes), no foi capaz de fazer a crtica do corporativismo que estem suas origens sindicais. Um lder sindical legitimamente corporati-vista:seu papel defender os interesses dos associados,do grupo econ-mico que representa. Um poltico, porm, no pode ser corporativista.De acordo com a tica da poltica que hoje prevalece nas sociedadesdemocrticas, ele deve, em princpio, ser republicano, distinguindo osinteresses prprios, e tambm os interesses daqueles que representadiretamente, dos interesses nacionais. O PT, como partido de origemsindical, nunca foi capaz de fazer essa distino, e tambm por essemotivo no foi capaz de enfrentar o poder das elites no seio da sociedadecivil brasileira. Nas palavras de Marcos Nobre, presente no mesmodebate citado acima, o PT geriu o governo como se fosse um partido, egeriu um partido como se fosse um sindicato. Alm disso, salientouNobre, faltou ao governo do PT capacidade para oferecer ao pas umaalternativa de poltica no apenas econmica,mas tambm social:a criseacontece porque no se consegue de fato mobilizar um discurso pol-tico e estabelecer um modelo poltico para o Brasil30.Ao fazer essas afir-maes, ele volta ao problema do descompasso entre o povo e a socie-dade civil brasileira.

    Apesar da gravidade da crise por que vem passando o PT e o governoLula, que por certo desgastou-o profundamente, tem razo Saderquando critica a tentativa de desqualificar o arcabouo histrico daesquerda, responsvel pelos melhores momentos da histria da huma-nidade, em nome de comportamentos que significaram o abandonodesses valores e a adoo de mtodos e polticas de direita31. FabianoSantos, no mesmo debate, defendeu a tese de que, apesar da crise, o PTcontinua a ser o representante da socialdemocracia no Brasil32. Tenhofeito muitas vezes afirmao semelhante.Embora no seja impossvel,ahiptese de o PSDB preencher esse papel continua remota, dados osapoios com que o partido conta. Como continua incerta a possibilidadede o PSDB dar um passo adiante e tornar-se um partido social-liberal.Apossibilidade de surgir um novo partido de esquerda mais capaz degovernar tampouco parece provvel. O efeito maior da crise poltica foienfraquecer o PT, mas no o levou ao esfacelamento. Os resultados daseleies presidenciais de 2006 so agora incertos,porm provvel queo Parlamento tenha novamente uma maioria de esquerda. Em qualquer

    44 O PARADOXO DA ESQUERDA NO BRASIL Luiz Carlos Bresser-Pereira

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 44

  • hiptese, nada sugere que a curto prazo o paradoxo da esquerda no Bra-sil encontre soluo: o povo continuar votando na esquerda, mas elano governar.

    Luiz Carlos Bresser-Pereira professor da Fundao Getlio Vargas de So Paulo.

    45NOVOS ESTUDOS 74 MARO 2006

    Recebido para publicao em 15 de janeiro de 2006.

    NOVOS ESTUDOSCEBRAP

    74, maro 2006pp. 25-45

    04_Bresser.qxd 4/5/06 7:52 PM Page 45