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O PARCELAMENTO DO SOLO URBANO EM QUESTÃO: EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS AO ESGOTAMENTO DE UM MODELO E PERSPECTIVAS NA NOVA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA * Daniel Colombo Gentil Horn ** Resumo: Visando auxiliar estudantes e pesquisadores do Direito Urbanístico, o presente trabalho tem como objetivo analisar, através do instituto urbanístico do parcelamento do solo urbano, os reflexos negativos da urbanização desenfreada e irregular ocorrida no Brasil, principalmente pela falta de uma legislação adequada que desse tratamento correto à propriedade urbana e suporte para uma gestão eficaz dos entes públicos competentes. Assim, com base nessa pesquisa, abordar-se-á, historicamente, as modificações legislativas sobre o parcelamento do solo urbano, passando pelos seus avanços e retrocessos, até chegarmos ao esgotamento da Lei de Parcelamento do solo Urbano. Também será analisada a nova ordem jurídico-urbanística instituída através da Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, na qual atribuiu novos paradigmas ao, até então, defasado tema do Direito Urbanístico. A partir desse dilema jurídico, decorrente do esgotamento do modelo da Lei 6.766/79 e da alteração considerável do paradigma urbanístico através dos marcos constitucionais e infraconstitucionais, enfrentam-se as alternativas forjadas pelos poderes públicos para o parcelamento do solo urbano, através de um papel pró-ativo e parceiro, por meio das experiências do Urbanizador Social, do Provimento More Legal e do Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial. Palavras-chave: Parcelamento do solo urbano. Nova ordem jurídico-urbanística. Urbanizador Social. Provimento More Legal. Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial. INTRODUÇÃO O crescimento urbano desenfreado durante todo o século passado, principalmente a partir de meados da década de 40, tem propiciado inúmeros problemas territoriais, socioeconômicos e ambientais à sociedade brasileira. Os processos de exclusão social e segregação espacial são resultados dessa urbanização rápida, que representa um dos maiores * Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela Orientadora Professora Betânia de Moraes Alfonsín, Professora Roberta Camineiro Baggio e Professor Ricardo Aronne, em 14 de dezembro de 2008. ** Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. E-mail: [email protected]

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O PARCELAMENTO DO SOLO URBANO EM QUESTÃO: EXPERIÊNCIAS

ALTERNATIVAS AO ESGOTAMENTO DE UM MODELO E PERSPECTIVAS NA

NOVA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA ∗

Daniel Colombo Gentil Horn ∗∗

Resumo: Visando auxiliar estudantes e pesquisadores do Direito Urbanístico, o presente trabalho tem como objetivo analisar, através do instituto urbanístico do parcelamento do solo urbano, os reflexos negativos da urbanização desenfreada e irregular ocorrida no Brasil, principalmente pela falta de uma legislação adequada que desse tratamento correto à propriedade urbana e suporte para uma gestão eficaz dos entes públicos competentes. Assim, com base nessa pesquisa, abordar-se-á, historicamente, as modificações legislativas sobre o parcelamento do solo urbano, passando pelos seus avanços e retrocessos, até chegarmos ao esgotamento da Lei de Parcelamento do solo Urbano. Também será analisada a nova ordem jurídico-urbanística instituída através da Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade, na qual atribuiu novos paradigmas ao, até então, defasado tema do Direito Urbanístico. A partir desse dilema jurídico, decorrente do esgotamento do modelo da Lei 6.766/79 e da alteração considerável do paradigma urbanístico através dos marcos constitucionais e infraconstitucionais, enfrentam-se as alternativas forjadas pelos poderes públicos para o parcelamento do solo urbano, através de um papel pró-ativo e parceiro, por meio das experiências do Urbanizador Social, do Provimento More Legal e do Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial. Palavras-chave: Parcelamento do solo urbano. Nova ordem jurídico-urbanística. Urbanizador Social. Provimento More Legal. Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial.

INTRODUÇÃO

O crescimento urbano desenfreado durante todo o século passado, principalmente a

partir de meados da década de 40, tem propiciado inúmeros problemas territoriais,

socioeconômicos e ambientais à sociedade brasileira. Os processos de exclusão social e

segregação espacial são resultados dessa urbanização rápida, que representa um dos maiores

∗ Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela Orientadora Professora Betânia de Moraes Alfonsín, Professora Roberta Camineiro Baggio e Professor Ricardo Aronne, em 14 de dezembro de 2008. ∗∗ Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. E-mail: [email protected]

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fenômenos globais do século XX. É nesse enfoque que se buscará identificar alguns

referenciais jurídicos que contribuíram inegavelmente para a urbanização irregular de nosso

país, no presente caso, o parcelamento do solo urbano.

A questão do parcelamento do solo urbano tem reflexos em inúmeros setores da

sociedade e nos mais diversos ramos do direito, tanto público como privado. A partir desde

prisma, a legislação que trata da matéria se encontra, atualmente, sem nenhuma eficácia

prática e sem correspondência com a real situação das cidades brasileiras, contribuindo,

assim, para os fenômenos da exclusão social, segregação espacial e má utilização dos espaços

urbanos.

Assim, o presente trabalho tem por escopo, fundamentalmente, a análise e a

construção de um juízo crítico sobre as questões referentes ao tratamento jurídico dado ao

parcelamento do solo urbano, instituto que representa a base do fenômeno horizontal da

urbanização. Essa análise será realizada através de um método histórico e funcionalista,

buscando situar o panorama da urbanização, juntamente com o avanço jurídico sobre a

questão, ao longo dos anos e identificar quais as alternativas criadas pelos poderes públicos

para o problema do parcelamento do solo urbano. Por uma escolha didática, a exposição dos

capítulos e tópicos será realizada de forma cronológica, de forma a facilitar o

acompanhamento histórico do problema do parcelamento do solo urbano.

Num primeiro momento, de extrema relevância o exame do papel que o Direito teve

nesse fenômeno, principalmente no que diz com a função dada à propriedade privada pelas

Constituições Federais. Ademais, o surgimento do Direito Urbanístico, tal como um ramo do

direito, e os primeiros regramentos federais sobre o parcelamento do solo urbano irão nos

proporcionar uma visão integrada do problema, nos situando a respeito das primeiras

proposições jurídicas sobre o tema.

Em seqüência, tratar-se-á do modelo jurídico de parcelamento do solo urbano

instituído pela Lei 6.766/79, até hoje em vigência, abrangendo o momento histórico de sua

criação, bem como os marcos jurídicos que trouxe para o instituto e para a ordem urbanística

brasileira e os problemas à sua aplicação, que resultaram no seu esgotamento frente às

necessidades sociais e às dificuldades de gestão urbana dos entes competentes.

Por sua vez, extremamente relevante expor os marcos jurídicos que instituíram uma

nova ordem jurídico-urbanística no Brasil, através da Constituição Nacional de 1988,

essencialmente no que se refere à função social da propriedade e ao capítulo sobre a política

urbana, e o Estatuto da Cidade, por meio de todas as diretrizes e princípios que tal

regulamentação representou para a ordem jurídico-urbanística brasileira.

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Por fim, o buscar-se-á fazer um estudo estrutural e crítico das alternativas que os

poderes públicos forjaram para o problema do parcelamento do solo, frente ao esgotamento

do modelo da Lei 6.766/79 e à nova ordem jurídico-urbanística, analisando-se as experiências

propostas pelo Município de Porto Alegre, denominado de Urbanizador Social; pelo

Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, intitulado Provimento More Legal; e pelo

Congresso Nacional, através do Projeto de Lei que substitui a então vigente lei de

parcelamento do solo urbano.

1 A ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA E O PARCELAMENTO DO SOLO

URBANO

É verdade que a urbanização acelerada e desenfreada tem transformado o país

principalmente em termos territoriais, socioeconômicos, culturais e ambientais. Em 1960, do

total de 31 milhões de brasileiros, 44,7% viviam em áreas urbanas, sendo que a partir da

década de 70, invertendo a situação campo-cidade, 55,9% dos brasileiros já estavam situados

nas cidades. Isso demonstra o enorme crescimento urbano durante os anos 70. 1

Tal processo intensificado e excessivo de urbanização durante a década de 70, da qual

se verifica um crescimento urbano de mais de 50%, contribuiu de modo significante para o

crescimento de periferias pobres, ilegais, subequipadas, muitas vezes em áreas sem qualquer

infra-estrutura, onerando continuamente os cofres públicos e promovendo um padrão elitista e

tecnocrático de desenvolvimento urbano insustentável. 2

De modo geral, a urbanização desorganizada e acelerada tem gerado processos de

exclusão social, crise habitacional, segregação espacial, violência e degradação ambiental.

Nesse contexto apresentado, o papel do Direito no processo de urbanização é de extrema

importância, razão pela qual iremos analisá-lo a seguir.

1 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, páginas 4. 2 GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A revisão da Lei Federal n° 6766/79 – novas regras no “jogo” da cidade? Disponível em: http://www.cinder2005.com.br/cd/Trabalhos/Gouvea.pdf. Acessado em: 20 de agosto de 2008.

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1.2 PROPRIEDADE URBANA E LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA

O tema que envolve a cidade está profundamente ligado com a noção patrimonial com

que a cultura jurídica e política ocidental têm abordado a respeito da função da propriedade, o

que não se evidencia uma preocupação muito acentuada em distinguir o problema da cidade,

enquanto espaço público, da propriedade privada e dos interesses privados. 3

É nesse enfoque que as primeiras Constituições brasileiras e a aprovação do Código

Civil de 1916, cujo tratamento dado à propriedade possuía um caráter essencialmente

privatístico, contribuíram, inegavelmente, para a formação irregular do solo urbano em nosso

país.

A propriedade como função social foi introduzida no direito brasileiro com a

Constituição de 1934, surgindo como grande marco do direito positivo em matéria de

propriedade urbana e também em sede de urbanismo. A partir daí se tem um parâmetro legal

de orientação sobre a natureza jurídica e política da propriedade, sujeitando-a, inclusive, às

limitações impostas ao particular em benefício do bem comum. 4

A partir de então, o conceito de função social da propriedade foi introduzindo-se no

sistema jurídico brasileiro, tanto nas Constituições seguintes como na doutrina e na

jurisprudência, de tal modo que em 1946 já não se discutia a sua condição de princípio vetor

do direito público.

No entanto, mesmo que tecnicamente presente desde 1934 em todos os textos

constitucionais brasileiros, pode-se dizer que o princípio da função social da propriedade

jamais foi eficaz, sendo devidamente definido somente na Constituição de 1988.

Assim, a função social da propriedade representa o ponto de convergência de todas as

gradativas evoluções pelas quais passou o conceito de propriedade. Para atender a sua função

social, a propriedade deverá representar os interesses coletivos, jamais se sobrepondo a eles.

Tendo em vista a alteração do paradigma referente à propriedade privada, Liana

Portilho Mattos conceitua o Direito Urbanístico como sendo:

o ramo do direito público que tem como objeto o ordenamento da propriedade urbana e a conformação desta a uma função social determinada por lei, no seio dos

3 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, página 26. 4 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, página 89.

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espaços habitáveis, de modo a propiciar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantir o exercício do direito à cidade por todos os que nela habitam. 5

Destarte, pode-se afirmar que o Direito Urbanístico, de acordo com o conceito

supracitado, passou, realmente, a ser encarado e implementado no ordenamento jurídico

brasileiro após o surgimento do princípio da função social da propriedade em nossos textos

constitucionais. Parte-se, portanto, do entendimento de que o Direito Urbanístico

propriamente dito, com suas feições voltadas ao interesse público e social, começou a ser

instituído na legislação brasileira após a década de 30.

A legislação aprovada desde os anos 30 com o objetivo de controle e ocupação do solo

urbano vem desempenhando um papel importante no processo de urbanização. Contudo, a

evolução das leis urbanísticas foi fragmentada e incompleta, referindo-se a aspectos parciais e

específicos do processo geral de urbanização. Desse modo, sem uma regulamentação devida a

respeito da matéria, os princípios gerais que regem o tema vêm recebendo interpretações

judiciais conflitantes ao longo do século, principalmente quanto à competência legislativa e à

eficácia de determinados instrumentos. 6

De um modo geral, Letícia Marques Osório resume o reflexo da lamentável falta de

sistematização legal durante o processo intensivo de urbanização, o que prejudicou

consideravelmente a ordenação das cidades:

Assim mesmo as leis vigentes sobre o desenvolvimento urbano tiveram impactos no processo de crescimento das cidades, tanto sob a ótica da inclusão quanto da exclusão, uma vez que elas têm influência nas condições prevalecentes de acesso à terra e à habitação e de provisão de bens e serviços, no estabelecimento dos direitos e deveres urbanos dos cidadãos, na orientação da ação dos agentes que constroem e produzem a cidade, na definição da abrangência e intensidade da ação estatal na produção socioeconômica do espaço urbano, e na imposição de limites ao direito de propriedade privada. No processo brasileiro de expansão urbana, o qual segregou seriamente a população pobre na periferia, prevalecem os interesses privados de reprodução do capital imobiliário, que continuam a sustentar a sobrevivência da noção de direito de propriedade exclusivamente privada prevista no Código Civil. E a legislação urbanística, durante os 60 anos de sua existência, não foi instrumento qualificado para reconhecer e legitimar as formas múltiplas e diversificadas de ocupação da cidade, mantendo o paradigma da “cidade ideal” que, traduzido em padrões urbanísticos, provoca o aumento do preço da terra e dificulta seu acesso para a população de baixa renda. A dimensão social desta legislação sempre foi marginal. 7

5 MATTOS, Liana Portilho. Limitações Urbanísticas à Propriedade in FERNANDES, Edésio (Organizador). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, página 55. 6 OSÓRIO, Letícia Marques. Parcelamento, urbanização e regularização do solo no Rio Grande do Sul in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Solo Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, páginas 96/97. 7 Ibidem, página 97.

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Enquadrando-se como regulador da produção do espaço urbano, encontra-se o

parcelamento do solo, instrumento de controle do uso do solo urbano com natureza jurídica

predominantemente urbanística, que, nas palavras de Rogério Gesta Leal, se caracteriza como

sendo “a divisão geodésico-jurídica de um terreno, uma vez que, por meio dele, se divide o

solo e, concomitantemente, o direito respectivo de propriedade, formando-se novas unidades,

propriedades fisicamente menores, mas juridicamente iguais”. 8

1.2 NORMATIZAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO

A primeira norma jurídica a cuidar do parcelamento do solo foi o Decreto-Lei 58, de

1937, que regulava apenas o loteamento, espécie do instituto parcelamento do solo, tanto rural

quanto urbano, sem sequer definir o seu conceito. No seu conteúdo, apenas determinava as

relações entre o loteador e os adquirentes de lotes, sem conter pautas sancionatórias de ordem

civil ou penal.

O Decreto-Lei obrigava os proprietários, antes do anúncio das vendas dos lotes, a

obter aprovação do projeto perante a Prefeitura Municipal e a registrá-lo no Registro de

Imóveis. Contudo, a norma deixou, como dito anteriormente, de estabelecer qualquer tipo se

sanção ao loteador que não obedecesse a essas disposições, o que significou, na prática, a

formação de loteamentos inteiramente à margem dos dispositivos legais vigentes. 9

A meta de tal Decreto-Lei era, primeiramente, regular a venda de terrenos e não,

especificamente, tratar da questão do solo urbano. Diante disto, surge a proliferação de

loteamentos clandestinos em todos os centros urbanos do país, com sérios prejuízos aos

adquirentes de lotes e à ordenação das cidades. 10

Tal situação normativa se arrasta até 1967, quando, em plena ditadura militar, foi

editado o Decreto-Lei 271, que, apesar de ainda não atender aos problemas criados pelos

fatores acima ditos, avançou em relação à legislação anterior, principalmente no âmbito da

propriedade privada adotada pelo Código Civil. O Decreto-Lei 271 estabeleceu regras, tão-

8 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, página 185. 9 OSÓRIO, Letícia Marques. Parcelamento, urbanização e regularização do solo no Rio Grande do Sul in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Solo Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, página 101. 10 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002, página 117.

7

somente, sobre os parcelamentos do solo urbano, dispondo, principalmente, sobre a

responsabilidade do loteador e definindo termos ainda não conceituados pelas legislações

anteriores.

Até o ano de 1979, o que se tinha em termos de legislação sobre o parcelamento do

solo urbano, em nível federal, era praticamente isso. O restante ficava a cargo dos Municípios,

que estabeleciam ou não restrições urbanísticas que entendessem cabíveis.

Por fim, em 19 de dezembro de 1979, foi publicada a Lei 6.766, que se tornou o

referencial jurídico do parcelamento do solo urbano até os dias atuais, tratando o tema de

forma mais sistematizada e coerente.

1.3 O MODELO JURÍDICO DA LEI 6.766/79

A Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979, consolidou, em tese, a expectativa de que a

legislação brasileira sobre o parcelamento do solo foi, gradativamente, colocando a prioridade

do interesse público sobre o interesse privado.

Tanto é verdade, que a partir de sua promulgação, o instituto do parcelamento do solo

passou a ter normas gerais de nível federal, abrangendo não só regras no âmbito do direito

civil, mas também regras de ordem urbanísticas e penais.

É importante esclarecer que tal modelo legal de parcelamento do solo veio regular,

tão-somente, o parcelamento para fins urbanos, não tratando sobre o solo rural, razão pela

qual o loteamento rural continua sendo regido pelo Decreto-Lei 58/1937. De outro lado, a Lei

6.766/79 revogou grande parte do Decreto-Lei 271/1967, que não tratava apenas da matéria

atinente ao parcelamento do solo urbano.

Rogério Gesta Leal salienta a evolução do instituto comparado ao modelo instituído

pelo Decreto-Lei 58/1937:

A evolução deste instituto legal frente ao já citado Decreto n° 58/37 também se faz sentir quando ele é aplicado a todo e qualquer loteamento, independentemente de venda ou não dos lotes, isto é, com a edição da nova lei, a comercialização dos lotes deixou de ser elemento caracterizador do loteamento. Passa-se a ter, assim, uma visão de loteamento urbano como sendo um processo de urbanização, o que amplia sensivelmente as formas de concepção do instituto, trazendo à tona aspectos urbanísticos, ecológicos, administrativos, civis e penais. Em outras palavras, o loteamento é um fato social, ao par de ser operação de

8

caráter econômico sobre o qual incidem interesses públicos e particulares, que

devem ser encarados com o máximo de cautela e de respeito.” 11

Um dos avanços mais consideráveis desse novo modelo jurídico foi a atribuição

legislativa concedida aos Estados e aos Municípios para estabelecerem normas

complementares relativas ao parcelamento do solo urbano, acrescida do controle direto que o

Município exerce, tanto na aprovação quanto na fiscalização dos projetos e das definições

peculiares locais.

Diante desta concomitância legislativa, atribuída de maneira infraconstitucional, a

respeito do parcelamento do solo urbano, avançamos consideravelmente sobre o tema, uma

vez que existem particularidades de uma região para outra, de maneira que os Estados e os

Municípios têm a oportunidade de realizar um desenvolvimento harmônico e equilibrado dos

centros urbanos. Ademais, se a referida lei estabeleceu diretrizes de caráter urbanístico, rumo

à melhoria das cidades, o trabalho dos Estados e dos Municípios nesse processo se mostra

imprescindível, atendendo de modo mais dinâmico às necessidades locais. 12

Dentre as novidades trazidas pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano, encontram-se,

ainda, restrições ao direito de propriedade impostas ao proprietário da gleba a ser parcelada,

definidas pelos requisitos urbanísticos, padrões estes a serem observados pelos Municípios.

Os requisitos urbanísticos determinados pela lei, tais como áreas a serem destinadas ao

uso público, tamanho mínimo dos lotes, entre outros, visam à proteção dos futuros

adquirentes de lotes, assegurando-lhes uma vida comunitária com todos os padrões

necessários ao acesso à cidade, além de estabelecer o desenvolvimento na produção do solo

urbano.

Outra inovação que a Lei 6.766, de 1979 introduziu ao instituto do parcelamento do

solo urbano foi um rígido processo de elaboração do loteamento ou desmembramento, ditando

passo a passo o procedimento administrativo a ser observado. O legislador estabeleceu fases

distintas para o processo de elaboração do parcelamento, tal como as fases de projeto,

aprovação, registro e execução, buscando tentar diminuir o crescimento de loteamentos ilegais

e contribuir para a segurança jurídica dos adquirentes de lotes, além, é claro, de buscar uma

produção equilibrada e sustentável do solo urbano.

11 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, página 192. 12 VIANA, Marco Aurélio. Comentários à lei sobre parcelamento do solo urbano: doutrina, jurisprudência, prática. São Paulo: Saraiva, 1984, página 5/6.

9

No tocante à questão da regularização de loteamentos, a Lei 6.766/79 possibilita aos

adquirentes de lotes suspenderem o pagamento das prestações e depositá-las no Registro de

Imóveis no caso de parcelamento ilegal. Trata-se, portanto, de um mecanismo de ordem

econômica, para evitar que o loteador promova parcelamentos ilegais, em detrimento da

ordenação eficaz do solo e do desenvolvimento urbano. 13

Repisando o fato da competência e responsabilidades atribuídas aos Municípios, cabe

a eles verificar a ocorrência de loteamentos que vá ao encontro das normas jurídicas vigentes

e notificar individual e coletivamente os adquirentes dos lotes, determinando-lhes a suspensão

do pagamento e, em seguida, notificando o parcelador para que sejam sanadas as irregulares

do caso concreto.

Por fim, Betânia de Moraes Alfonsin registra a importância da disposição sobre a

regularização de loteamentos clandestinos ou irregulares:

Parece não haver dúvida, porém, de que essa disposição da Lei 6.766/79 tipifica caso de regularização fundiária, na medida em que não só tem efeitos físicos sobre as áreas loteadas ilegalmente, como efeitos jurídicos, sejam administrativos, sejam registrários, em favor de todos os promitentes compradores de imóveis adquiridos, de boa fé, mesmo sob as condições adversas do loteamento irregular. 14

Entretanto, uma das maiores inovações em relação à legislação urbanística que foi

produzida nos anos 30 refere-se às Disposições Penais, tipificando determinadas condutas

como crimes, o que até então era regulado por equiparação aos delitos praticados pelos

incorporadores, definidos pela Lei 4.591, de 1964. Salienta-se que os crimes são definidos

como contra a Administração Pública, o que demonstra o avanço sobre o interesse público e

social do instituto.

Apesar das inúmeras inovações e da sistematização que a Lei 6.766/79 introduziu ao

parcelamento do solo urbano, ela só fez crescer a evidência de sua necessidade frente aos

precedentes marcados pelos anos de ausência de legislação sobre o tema, contribuindo para

que o cenário da informalidade não se modificasse, dificultando ainda mais o acesso à terra

legal, barata e urbanizada aos mais pobres, favorecendo a desqualificação espacial e

propiciando o agravamento do quadro de irregularidade fundiária no Brasil.

13 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002, página 127. 14 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras. Rio de Janeiro: IPPUR: FASE, 1997, página 59.

10

Destarte, apesar da introdução de aspectos notoriamente urbanísticos, a Lei 6.766/79

não foi pensada de forma sistêmica com a importância que realmente possui na formação dos

centros urbanos, mantendo-se, ainda, a predominância do âmbito privado através dos

interesses do proprietário da gleba. 15

Diversos são os fatores que levaram tal modelo a um esgotamento, cuja principal

conseqüência é, sem dúvida, o crescimento desenfreado dos loteamentos clandestinos e

irregulares, resultado dos inúmeros problemas jurídicos e administrativos dos entes da

federação.

De certo modo, a gestão urbana precária dos Municípios brasileiros, tanto nas

disposições da própria legislação federal quanto nos recursos administrativos

disponibilizados, foi um dos fatores que mais contribuiu para o esgotamento desse modelo de

parcelamento do solo urbano, servindo de base para os demais problemas evidenciados na lei

em exame.

O fato é que a grande maioria dos Municípios possui capacidade limitada de gestão e

não tem uma estrutura normativa específica, o que se reflete na qualidade dos projetos e nos

demais passos do processo de elaboração do loteamento, tais como licenciamentos urbanos e

ambientais. 16

Isso quer dizer que a Lei 6.766/79 foi pensada a partir de um paradigma em que o

Município tomaria as rédeas do instituto do parcelamento do solo. Contudo, sem uma

consolidação em termos constitucionais sobre a política urbana e a ausência de instrumentos

determinados por legislação federal, tal modelo fracassa de maneira gritante.

Ademais, é verdade que o número de padrões considerados elitistas para a produção de

loteamentos influencia diretamente na gestão dos Municípios, ou seja, os requisitos

excessivos e determinados pela lei acabam por atrofiar as particularidades locais e a

autonomia municipal para determinadas áreas. Dessa forma as imposições legislativas

federais não condizem com as realidades sociais distintas na diversidade ocupacional do

nosso país.

A lei é ineficaz, também, no que diz respeito à possibilidade de regularização de

assentamentos informais. A Lei 6.766/79 sempre deixou a desejar quanto aos poucos artigos

que tratam da regularização de parcelamentos ilegais. Este é um dos maiores obstáculos no

15 GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A revisão da Lei Federal n° 6766/79 – novas regras no “jogo” da cidade? Disponível em: http://www.cinder2005.com.br/cd/Trabalhos/Gouvea.pdf. Acessado em: 28 de agosto de 2008. 16 Ibidem.

11

que diz, principalmente, com a regularização de parcelamentos realizados em favelas e

assentamentos informais de baixa renda em todo o território nacional. 17

A legislação não facilita nem um pouco a regularização, eis que exige, para fins de

registro, a apresentação de inúmeras certidões diferentes, além do projeto completo do

loteamento aprovado pelos órgãos encarregados.

Tal processo extremamente burocrático de elaboração do parcelamento do solo,

caracterizando-se com uma “gincana” de procedimentos para os loteadores, contribui

inegavelmente para a formação de loteamentos ilegais.

Essas exigências urbanísticas e obrigações demasiadas implicam em altos preços de

lotes que acabam por fomentar o processo de informalidade crescente no país, sobretudo, em

áreas desfavorecidas, públicas e de preservação ambiental.

É a partir dessa realidade que, geralmente, os loteadores agem em desconformidade

com as disposições elitistas da Lei 6.766/79, resultando que a informalidade é fato mais do

que constante na produção do espaço territorial brasileiro.

Para concluir, abordando, de maneira geral, o esgotamento do modelo de parcelamento

introduzido pela Lei 6.766/79, ressaltamos para o fato de que a própria legislação mal

formulada e insuficiente contribuiu para a realidade ocupacional das cidades brasileiras.

2 A NOVA ORDEM JURÍDICO-URBANÍSTICA

É verdade que o processo de segregação socioespacial do nosso país se deve a uma

combinação histórica de diversos fatores, como as dinâmicas formais e informais de acesso à

terra, burocratização político-administrativa e estrutura fundiária de caráter extremamente

privatista. Tais fatores resultam de um desenvolvimento com uma base jurídica inadequada,

na qual havia um descompasso entre a ordem em vigor, de caráter privado, e os processos

socioeconômicos e territoriais da urbanização. 18

17 GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A revisão da Lei Federal n° 6766/79 – novas regras no “jogo” da cidade? Disponível em: http://www.cinder2005.com.br/cd/Trabalhos/Gouvea.pdf. Acessado em: 28 de agosto de 2008. 18 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, páginas 5/7.

12

Dessa forma, fruto de diversos estudos não só jurídicos, mas interdisciplinares, sobre

as dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais da questão da formação irregular do

solo urbano, chega-se a conclusão que tal pesquisa abrangente sobre a questão remete, antes

de tudo, a uma reforma jurídica:

Não há como enfrentar esse enorme desafio que é promover reforma urbana no Brasil se não se fizer uma profunda reforma jurídica no país: cidade e cidadania são o mesmo tema, e não há cidadania sem a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades. Não há como promover mudanças significativas e estruturais desse padrão de exclusão social, segregação territorial, degradação ambiental e ilegalidade urbana que caracteriza o processo de urbanização no Brasil, se não for também mediante uma reforma do Direito, com o envolvimento sistemático dos operadores do Direito nas parcerias acadêmicas e político-institucionais que tem-se formado. 19

Assim, quando Edésio Fernandes afirma que não há reforma urbana sem reforma

jurídica, acreditamos que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade são os

primeiros indícios de que essa reformulação no Direito realmente está ocorrendo no

ordenamento brasileiro, instituindo diretrizes para um avanço significativo do tema, conforme

examinaremos a seguir.

2.1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A grande novidade da tão esperada reforma jurídica sobre a questão do urbanismo

brasileiro se dá com a aprovação da Constituição Federal de 1988, sendo de absoluta

importância a recepção do tema pela Lei Fundamental do nosso país.

A Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, uma vez baseada num

Estado Social Democrático de Direito, estabeleceu um conjunto de princípios e regras

direcionadas para uma promoção política e urbana voltada para o ordenamento e o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade, com o objetivo de garantir o bem-estar social

dos cidadãos. Através da função social da propriedade, da determinação de competências para

19 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, página 5.

13

a matéria e até mesmo de um capítulo próprio para a política urbana, evoluímos

consideravelmente na questão urbanística.

Parece-nos óbvio que o primeiro passo a ser dado quando se busca uma socialização

da cidade por meio de uma Constituição Federal é a recepção da função social da propriedade

como princípio fundamental. E o constituinte de 1988 entendeu essa importância, inovando o

tratamento dado à matéria ao regular de modo efetivo a função social da propriedade, tanto é

que inseriu o direito à propriedade e a sua função social no rol dos direitos e deveres

individuais e coletivos.

O Constitucionalista Alexandre de Moraes analisa o marco que a Constituição de 1988

representou para o direito de propriedade:

Dessa forma, a Constituição Federal adotou a moderna concepção de direito de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que o consagrou como direito fundamental, deixou de caracterizá-lo como incondicional e absoluto. A referência constitucional à função social como elemento estrutural da definição do direito à propriedade privada e da limitação legal de seu conteúdo demonstra a substituição de uma concepção abstrata de âmbito meramente subjetivo de livre domínio e disposição da propriedade por uma concepção social de propriedade privada, reforçada pela existência de um conjunto de obrigações para com os interesses da coletividade, visando também à finalidade ou utilidade social que cada categoria de bens objeto de domínio deve cumprir. 20

Portanto, diante destas mudanças, o direito de propriedade deixa de ser encarado como

um direito individualista e, ainda que seja considerado um direito fundamental, passa a ser

restringido pela função social da propriedade, de forma que o direito individual não entre em

colisão com o direito coletivo.

No capítulo que tratam da organização político-administrativa do Estado, já se

evidencia a inserção da matéria referente ao Direito Urbanístico no rol da competência dos

entes federativos. Sendo assim, pela primeira vez, uma Constituição brasileira veio

estabelecer competências expressas a respeito do Direito Urbanístico.

Contudo, o maior destaque no que diz com a atribuição de competências à matéria do

direito urbanístico foi a competência privativa concedida aos Municípios, confirmando a

tendência da prioridade dos interesses locais.

Cabe transcrever as palavras de José Afonso da Silva sobre a importância atribuída ao

Município para tratar do tema:

20 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2004, página 266.

14

A competência municipal não é meramente suplementar de normas gerais federais ou de normas estaduais, pois não são criadas com fundamento no art. 30, II. Trata-se de competência própria que vem do texto constitucional. Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos Municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, as competências da União e dos Estados esbarram na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado. 21

Por fim, além dessas atribuições constitucionais dadas ao Município, o capítulo sobre

a Política Urbana concede a ele a primazia de ser o ente federativo responsável pela política

de desenvolvimento urbano.

Sendo indiscutível que o Brasil possui um status de país plenamente urbanizado, foi

extremamente adequada a inserção, pela primeira vez na história constitucional brasileira, de

um capítulo destinado à política urbana na nova Constituição Federal, ainda mais que as

formas de organização territorial ainda eram predominantemente aquelas determinadas pelo

Código Civil de 1916. Assim, o legislador constituinte previu uma competência especial ao

Município, diante da responsabilidade de ordenar o pleno desenvolvimento das funções

sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, possibilitando o começo de uma

verdadeira reforma urbana. 22

A grande inovação legislativa atribuída ao Município foi a figura do Plano Diretor,

que, conforme o texto constitucional, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e

de expansão urbana, sendo que a propriedade urbana só cumpre sua função social quando

atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no seu teor, reforçando,

portanto, o princípio da função social da propriedade e da cidade.

Os instrumentos do parcelamento ou edificação compulsórios, imposto sobre a

propriedade progressivo no tempo e desapropriação para fins de reforma urbana, juntamente

com a questão do usucapião constitucional, já nos apresenta uma série de instrumentos

urbanísticos a serem utilizados pelos Municípios na gestão do processo de reforma urbana,

que viriam a ser regulamentados e acrescidos pela Lei Federal 10.257, de 2001, denominada

de o Estatuto da Cidade.

21 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, página 65. 22 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2004, página 1915.

15

Tendo em vista a nova ordem instituída pela Constituição de 1988, a Lei 9.785/99 foi

a primeira manifestação jurídica e política de alteração no modelo de parcelamento do solo

urbano, sendo que Rogério Gesta Leal destaca essa importância:

Podemos dizer, após todo o ponderado, que os objetivos específicos da política urbana delineados pela Carta Política de 1988, nos artigos anteriormente referidos, configuram a obrigação do Estado – fundamentalmente do Município – de promover a defesa dos interesses de sua comunidade em toda sua extensão, aqui envolvendo o tema dos direitos humanos e fundamentais. Em outras palavras, objetivamente, as funções sociais da cidade compreendem - a partir do texto normativo – o acesso de todos à moradia, aos serviços urbanos, ao transporte, ao saneamento, à saúde, etc., sendo da maior relevância que também as normas ambientais sejam respeitadas. (...) De qualquer sorte, no que tange à legislação sobre o parcelamento do solo urbano, é louvável a tentativa de modernizar a antiga Lei n° 6.766/79, ao editar o governo federal a Lei n° 9.785/1999. 23

Ademais, finalmente, a Lei 9.785/99 considerou de interesse público e social os

parcelamentos populares, vinculados a programas habitacionais de iniciativa dos Municípios,

além de facilitar a regularização de tais assentamentos em benefício do direito à moradia das

famílias.

Em seguida, destacamos o fato de que a Lei 9.785/99 introduziu uma flexibilidade dos

índices urbanísticos, fortalecendo o papel dos Municípios e dando-lhes poderes para fixar as

suas próprias diretrizes locais, atendendo, assim, aos preceitos postos pela Constituição

Federal de 1988.

A inclusão da figura do Plano Diretor se evidencia em várias disposições que

alteraram a redação da Lei 6.766/79, remetendo as definições do processo de parcelamento ao

plano urbanístico a ser adotado pelos Municípios.

2.2 ESTATUTO DA CIDADE

Incontestável o fato de que a Constituição Federal de 1988 reservou um significativo

espaço para a matéria de ordem urbanística. Entre os diversos preceitos sobre o tema,

conforme já vistos anteriormente, ressalta-se a atribuição dada à União para instituir diretrizes

23 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, páginas 207/208.

16

gerais para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes

urbanos.

Nesse enfoque é que, depois de mais de dez anos de processo de intensa discussão e

negociação no Congresso Nacional, o capítulo constitucional sobre a Política Urbana foi

regulamentado, na forma de uma lei-marco fundamental, através do mundialmente premiado

Estatuto da Cidade, ou, mais especificamente, Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001.

Assim, em pleno século XXI, o Brasil passa a contar com um instrumento normativo

que vem ao encontro da nova ordem constitucional vigente e das conquistas da cidadania

brasileira, para o fim de determinar um regramento na ordenação das cidades. Neste sentido,

partimos do pressuposto de que o Estatuto da Cidade, enquanto referencial normativo à

ordenação e ocupação do solo urbano, apresenta-se também como um vetor político e jurídico

que informa os objetivos, finalidade e princípios a serem adotados pelos Municípios em busca

da tão desejada reforma urbana. 24

A partir dessa consolidação jurídico-urbanística advinda da promulgação do Estatuto

da Cidade, a lei nos apresenta algumas dimensões fundamentais. Além, é claro, da mudança

paradigmática através de um marco-conceitual jurídico-político para o Direito Urbanístico, o

Estatuto da Cidade nos demonstra outras importantes modificações.

As diretrizes gerais ditam uma série de mecanismos que se desenvolvem no

transcorrer da lei, buscando a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da

propriedade urbana e da cidade, princípios previstos como fundamentais na Constituição de

1988. Significam, pois, em tese, normas que não podem ser derrogadas ou moldadas pela

vontade dos particulares, sendo imperativas e cogentes, sempre objetivando as funções sociais

da cidade, não só como espaço geográfico ou de mera reunião de pessoas, mas também como

espaço destinado à habitação, ao transporte, à circulação, ao lazer, à integração dos seres

humanos e ao crescimento educacional e cultural. 25

Dentre os objetivos de garantir a aplicabilidade das normas urbanísticas introduzidas

constitucionalmente, o Estatuto da Cidade dedica especial atenção aos denominados

instrumentos da política urbana. Assim, após a definição das diretrizes, são concedidos

instrumentos para que se concretizem os objetivos intrínsecos da lei.

24 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, páginas 78/79. 25 MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de (Coordenadores). Estatuto da Cidade. Lei 10.257, de 10.07.2001. Comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, página 16.

17

Consolidando e aumentando o papel constitucionalmente concedido aos Municípios

para o controle e processo de desenvolvimento urbano, o Estatuto da Cidade não só

regulamentou os instrumentos urbanísticos já previstos na Constituição de 1988 como

acrescentou outros mecanismos. Cuida-se de instrumentos a serem utilizados pelos

Municípios de forma combinada, de maneira a promover não só a regulação normativa dos

processos de uso, ocupação e desenvolvimento do solo urbano, mas especificamente para

induzir ativamente os rumos de tais processos.

Dessa forma, é oportunizado aos Municípios, por meio de uma norma geral, melhores

condições instrumentais para interferir diretamente e reverter, em algum ponto, o padrão e a

dinâmica dos mercados imobiliários formais, informais e, sobretudo, especulativos, que têm

determinado profundamente o crescimento da exclusão social e da segregação espacial das

nossas cidades.

Enfim, a utilização desses instrumentos, de modo geral, e a efetivação das novas

possibilidades de ação pelos Municípios depende fundamentalmente da definição de uma

ampla estratégia de planejamento, que, necessariamente, se explicita através da legislação

urbanística do próprio Município, especificamente pelo Plano Diretor. Também nesse prisma,

se torna imprescindível a promoção de uma reforma conceitual jurídica das leis urbanísticas,

tendo em vista os novos princípios constitucionais e legais na nova ordem estabelecida, para

que se conduzam com o paradigma da função social da propriedade e da cidade. Neste

sentido, portanto, é que se encaixa a importância da gestão urbana adotada pelo Município,

através dos comandos ditados pela Lei 10.257/2001. 26

Outra dimensão fundamental do Estatuto da Cidade, novamente ampliando a proposta

básica da Constituição federal, diz respeito à necessidade de os Municípios promoverem a

devida integração entre planejamento, legislação e gestão urbana, de forma a democratizar o

processo de decisões e, assim, legitimar plenamente a nova ordem jurídico-urbanística de

natureza exclusivamente social.

Por conseguinte, o Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional e reorientou

o poder público, o mercado imobiliário e a sociedade através de novos critérios econômicos,

sociais e ambientais. Representa, sem a menor dúvida, um passo marcante em matéria

urbanística, que ao longo do processo de urbanização jamais teve a atenção merecida e

26 FERNANDES, Edésio. Um novo Estatuto paras as cidades brasileiras in OSÓRIO, Letícia Marques (Organizadora). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, página 10.

18

necessária, fazendo renascer o interesse pela questão urbana, tão discutida e influenciável nos

problemas da nossa sociedade atual.

3 ALTERNATIVAS PÚBLICAS PARA A QUESTÃO DO PARCELAMENTO DO

SOLO URBANO E SEUS EFEITOS PRÁTICOS

Ainda que a nova ordem jurídico-urbanística tenha, indiscutivelmente, instaurado-se

no ordenamento brasileiro, surge uma inquietação sobre a insuficiência dos instrumentos

urbanísticos e de regularização fundiária trazidos pelo Estatuto da Cidade e a capacidade de

incidirem no processo de produção das cidades para o propósito de diminuição da

irregularidade. A verdade é que, depois de anos de debate no Congresso, o Estatuto da Cidade

foi aprovado com certa defasagem e, ainda que agilize a produção irregular das cidades não

traz mecanismos suficientes e capazes de impedir tal produção.

Betânia de Moraes Alfonsin fala da questão da insuficiência dos instrumentos

dispostos no legislativo federal e dos desafios das cidades brasileiras frente a essa dificuldade:

No atual período, então, o principal desafio das cidades brasileiras parece ser o de construir a capacidade pública de incidir no mercado imobiliário da cidade no sentido de gerar oferta de lotes regulares a preços acessíveis à população de baixa renda, dado que o “produto” lote barato é ofertado quase que exclusivamente pelo mercado pirata de loteamentos clandestinos e irregulares e dos assentamentos autoproduzidos. Desta forma, a formulação, aperfeiçoamento e disseminação de

políticas alternativas e novos instrumentos para fazer frente ao quadro de impasse vivido pela Política Urbana Brasileira parece central para que possamos avançar em direção a cidades com menores índices de exclusão territorial. 27

Dessa forma, é determinante a formulação, o aperfeiçoamento e a disseminação de

políticas alternativas e novos instrumentos manejados pelos diversos agentes institucionais,

em todos os níveis governamentais, para que possamos dar eficácia à nova ordem jurídico-

urbanística e continuidade ao processo de reforma urbana em busca da produção sustentável

das nossas cidades.

27 ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, página 286.

19

Analisaremos, portanto, as alternativas públicas forjadas pelos entes federativos em

todos os seus poderes para o problema do parcelamento do solo urbano frente à nova ordem

jurídico-urbanística.

3.1 URBANIZADOR SOCIAL: A EXPERIÊNCIA DE PORTO ALEGRE

Uma das alternativas políticas que vem sendo utilizada durante a última década, no

que se refere a novas estratégias de gestão urbana, é a parceria entre o setor público e o setor

privado, transformando em grande medida os padrões tradicionais de gestão urbano-ambiental

no país, especialmente no âmbito municipal. 28

É nesse enfoque renovacional que foi criado o Urbanizador Social, previsto

inicialmente no Plano Diretor de Porto Alegre em 1999, e que após um longo processo de

negociação o projeto foi enviado, pela Prefeitura, para a Câmara Legislativa e restou aprovado

através da Lei Municipal 9.162, de 2003. Posteriormente regulamentado pelo Decreto 14.428,

de 2004, trata-se não só de um instrumento de auxílio ao combate de assentamentos

informais, mas de um programa com o objetivo de superar o insustentável modelo defasado

de oferta de serviços urbanos.

Juridicamente, o Município faz um movimento absolutamente correto, uma vez que,

apesar dos instrumentos previstos na legislação federal, há diretrizes gerais estabelecidas pelo

Estatuto da Cidade que ficam a cargo do Município.

Martim Smolka e Cláudia Damásio, baseando-se no texto legal, conceituam

claramente o que vem a ser o instrumento do Urbanizador Social:

O Urbanizador Social é, portanto, um empreendedor imobiliário privado cadastrado no município e que tem interesse em realizar investimentos em áreas destinadas pelo poder público como adequadas para a habitação de interesse social. Deve operar em conformidade com determinadas condições para que possa estabelecer preços finais de venda dos lotes acessíveis aos pobres. O processo envolve uma parceria na qual o município se compromete com uma série de ações, com o objetivo de reduzir os custos de produção de um lote urbanizado. 29

28 FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil: uma introdução in FERNANDES, Edésio (Organizador). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, página 44. 29 SMOLKA, Martim; DAMÁSIO, Cláudia. Urbanizador Social: uma experiência de política fundiária em Porto Alegre in DAMASIO, Cláudia (Organizadora). Urbanizador Social: da informalidade à parceria. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006, página 23.

20

Desse modo, por meio do instrumento do Urbanizador Social, o Município pretende

estabelecer uma relação privilegiada com os empreendedores privados interessados no

projeto, buscando atraí-los para a regularidade e oferecendo-lhes incentivos para que a

produção de lotes tenha preços acessíveis à população de baixa renda.

Esse instrumento de política urbana foi concebido, justamente, como uma alternativa

ao esgotamento do modelo jurídico de parcelamento do solo urbano vigente, refletido nos

altos custos da produção de loteamentos, gerados a partir de uma atuação direta do poder

público através de normatizações excessivas, padrões elitistas, problemas no processo de

gestão das aprovações e licenciamentos.

Diante de tal situação, o Município parte da idéia de que uma relação privilegiada e

atrativa ao empreendedor privado é legítima na medida em que a Urbanização Social é função

pública que será desempenhada pelo particular em parceria com o poder público. 30

Cumpre esclarecer que tal parceria, ainda que seja a junção de duas pessoas para um

fim comum e público, nada tem a ver com a parceria público-privada estrita da Lei

11.079/2004, uma vez que esta se caracteriza por ser um contrato administrativo de concessão

de serviço público.

A parceria prevista no mecanismo do Urbanizador Social, por sua vez, se caracteriza

por ser um convênio, modalidade esta que não se constitui como um contrato administrativo,

embora seja um dos meios que o poder público utiliza para a sua associação com entidades

públicas ou privadas. No caso do presente instrumento urbanístico, ao contrário de existir um

Contrato Administrativo, há um Termo de Compromisso, que é um ato administrativo

negociado, decorrente da concertação entre o Município e o Urbanizador Social, que

constituir-se-á em título executivo extrajudicial.

A estratégia de implantação do instrumento prevê uma combinação entre diretrizes,

instrumentos e movimentos por parte do poder público: parceria público-privada na produção

de lotes regulares a preços acessíveis à população de baixa renda; articulação entre

proprietários de terra, empreendedores e famílias que são o público-alvo do programa;

indução urbanística de ocupação, uso e parcelamento do solo urbano em áreas previamente

consideradas aptas - urbanisticamente e ambientalmente - para fins de urbanização; captação

das mais valias geradas pelos investimentos públicos, distribuindo de forma mais eqüitativa

30 ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, página 288.

21

os ônus e benefícios da urbanização; mecanismos inovadores para o financiamento da

produção de habitação de interesse social; e aplicação de instrumentos de intervenção urbana

previstos no Estatuto da Cidade para o cumprimento da função social da cidade.

Frente a essa rica combinação de fatores, o Urbanizador Social representa uma nova

via, que, ao contrário das posturas administrativas das cidades de terceiro mundo, reconhece o

papel e o conhecimento dos loteadores informais e a função do poder público, ao oferecer um

apoio para que as populações de baixa renda possam participar do mercado formal de acesso à

moradia. Em outras palavras, “este programa representa um esforço para ‘formalizar o

informal’ e ‘informalizar o formal’, pois incentiva os empreendedores a operarem com mais

flexibilidade em mercado normalmente não-lucrativo”. 31

Além disso, os agentes privados envolvidos no projeto necessitam saber que, tendo em

vista a situação atual de intensa irregularidade e a falta de fiscalização necessária, o único

meio pelo qual o poder público participará diretamente no desenvolvimento de

empreendimentos com preços acessíveis é pelo papel pró-ativo do Município valendo-se do

Urbanizador Social.

Betânia de Moraes Alfonsin também se manifesta, conclusivamente, sobre a inovação

política do instrumento:

No que diz respeito à ordem jurídica e à gestão, também é notável a inovação do instrumento. Tradicionalmente, a relação do poder público com os loteadores é uma relação de mero confronto do estudo de viabilidade urbanística apresentado pelo empreendedor com a legislação urbanística aplicável ao parcelamento do solo. No caso do Urbanizador Social, uma nova forma de análise da proposta apresentada pelo empreendedor se instala no âmbito do município. À diferença de uma postura de mera aprovação/rejeição de um projeto, seguida de um carimbo, o poder público se envolve ativamente com a formatação do projeto do loteamento e, mais do que isso, tutela a tramitação do projeto desde o protocolo do mesmo até a implantação dos lotes. 32

Apesar das inúmeras inovações políticas e administrativas do instrumento,

evidentemente se nota, principalmente com a exposição dos efeitos práticos conseguidos até o

momento, uma série de desafios à Prefeitura de Porto Alegre. Além da lei, a construção de um

processo novo de gestão representa uma “revolução” na estrutura gerencial do Município,

31 SMOLKA, Martim; DAMÁSIO, Cláudia. Urbanizador Social: uma experiência de política fundiária em Porto Alegre in DAMASIO, Cláudia (Organizadora). Urbanizador Social: da informalidade à parceria. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006, página 26. 32 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Urbanizador Social: emergência de um novo paradigma para a democratização do acesso à terra em Porto Aelgre in DAMASIO, Cláudia (Organizadora). Urbanizador Social: da informalidade à parceria. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006, página 52.

22

porquanto trabalhar em parceria com o setor privado é absolutamente distinto da tradicional

relação entre o poder público e loteador.

Sob o ponto de vista institucional, é de suma importância superar o modelo tradicional

de desenvolvimento urbano da cidade, principalmente no que diz com a administração

municipal e sua gestão inerte no processo de ocupação do solo urbano. Sob a ótica negocial

do instrumento, o poder público deve oferecer vantagens mais atraentes para que as empresas

de grande porte participem do programa, além de potencializar a viabilidade de parcerias com

pequenos empreendedores, que geralmente são desprovidos de estrutura e recursos financeiros

para o mercado formal. 33

Por conseguinte, mesmo com inúmeros desafios práticos, tal instrumento foi

concebido para constituir uma alternativa complementar à política habitacional da cidade,

fazendo com que se garanta a segurança da posse e o direito à moradia dos que moram

irregularmente, além de fortalecer a capacidade gerencial do poder público, ampliando o

leque de instrumentos disponíveis, através da realização de parcerias com a iniciativa privada

em busca da produção de loteamentos regulares destinados às classes sociais mais

desfavorecidas e que, atualmente, tem sido atendidas pelo mercado informal por absoluta falta

de opções.

Concluindo, em comparação com os demais métodos tradicionais de combate à

irregularidade urbana, o Urbanizador Social atraiu a atenção de diversas organizações e

Municípios. Em nível federal, o instrumento é visto como inteiramente adaptado aos preceitos

do Estatuto da Cidade, o que lhe rendeu o apoio do Ministério das Cidades e a sua inclusão

em pautas do legislativo federal. 34

O significativo avanço jurídico-urbanístico do Urbanizador Social, em busca da

ocupação regular do solo, está atrelado à postura gerencial que o Município adotará para

superar os desafios existentes de maneira correta, especialmente sob o prisma de sua função

pública, e à atuação social dos demais atores do processo de urbanização, neste caso o

proprietário de gleba e o empreendedor que atua à margem da lei. Assim, com certeza, o

sucesso ou o fracasso do Urbanizador Social trará úteis lições para o amadurecimento da

política urbana e habitacional não só da cidade de Porto Alegre, mas também de outras

33 SMOLKA, Martim; DAMÁSIO, Cláudia. Urbanizador Social: uma experiência de política fundiária em Porto Alegre in DAMASIO, Cláudia (Organizadora). Urbanizador Social: da informalidade à parceria. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006, página 26. 34 Ibidem, página 28.

23

cidades brasileiras, ainda mais se efetivamente adotado pela nova legislação federal sobre o

parcelamento do solo urbano.

3.2 O PROVIMENTO MORE LEGAL E O JUDICIÁRIO: TENTATIVA DO RIO GRANDE

DO SUL

Diante da situação cada vez mais corriqueira de ocupação irregular do solo urbano,

estudos recentes apontam para o surgimento de uma nova cultura política e urbanística de

diversas administrações, norteadas pela aplicação de instrumento de regularização fundiária

de áreas já ocupadas. Essa nova cultura tem como base a legitimação da cidade ilegal e o seu

reconhecimento pelo Direito Urbanístico vigente, ainda mais agora frente à nova ordem

jurídico-urbanística, na perspectiva da democratização das relações entre movimentos sociais

e os espaços jurídico-institucionais em busca da proteção jurídica do direito à moradia. 35

O direito à regularização fundiária não se trata mais somente de uma ação

discricionária do poder público, mas de um direito subjetivo dos ocupantes de assentamentos

informais. Nesse sentido, Edésio Fernandes trata da regularização fundiária à luz dos novos

preceitos da ordem jurídico-urbanística atual:

Outro ponto crucial para a compreensão da nova ordem jurídico-urbanística diz respeito à regularização fundiária dos assentamentos informais, especialmente quanto às possibilidades de materialização desse outro direito coletivo reconhecido pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade. De fato, a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade plenamente reconhecem o direito dos moradores em assentamentos informais consolidados em áreas urbanas públicas ou privadas a permanecerem nessas áreas. Em 2000, o direito social de moradia foi acrescentado à constituição de 1988 por uma emenda constitucional. Desde então, ainda que em um contexto de disputa por hegemonia, uma série de decisões judiciais de natureza progressista tem determinado e ampliado as condições de validação desses princípios e direitos sociais. 36

35 OSÓRIO, Letícia Marques. Parcelamento, urbanização e regularização do solo no Rio Grande do Sul in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Solo Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, página 99. 36 FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, páginas 15/16.

24

Neste particular é que foi instituído, no Rio Grande do Sul, por meio da Corregedoria-

Geral de Justiça, em 1995, o Provimento More Legal, instrumento este com o objetivo de

estabelecer regras simplificadas para a regularização de parcelamentos do solo urbano a fim

de legalizar o exercício da posse informal. Devido a inovações no ordenamento jurídico-

urbanístico nacional, sobretudo no que diz respeito às edições das Leis 9.785/99 e

10.257/2001, tal projeto teve a necessidade de adaptações e atualizações, razão pela qual foi

aprovado, respectivamente, dois novos textos do Provimento More até chegar-se no atual

Projeto More Legal III, instituído pelo Provimento 28/2004 da Corregedoria-Geral de Justiça

do Estado do Rio Grande do Sul.

Esse instrumento de aplicação judiciária, conforme já se verifica dos motivos para sua

edição, indicados no texto legal, mostra-se inteiramente adequado aos princípios e diretrizes

da nova ordem jurídico-urbanística, tais como o atendimento à função social da propriedade e

do direito do cidadão à terra urbana, normas especiais e simplificadas de parcelamento e

ocupação do solo e regularização fundiária de áreas ocupadas por populações de baixa renda.

Não obstante o Provimento More atinja, indiretamente, diretrizes do Estatuto da

Cidade e princípios fundamentais da Carta Magna de 1988, o seu principal objetivo se refere à

imediata regularização de parcelamentos irregulares.

É sabido que o tratamento dado pela legislação federal sobre parcelamento do solo

urbano, regulada pela defasada Lei 6.766/79, sempre se caracterizou por ser insuficiente

frente aos problemas da irregularidade fundiária, advinda de parcelamentos ilegais. Dessa

forma, o Provimento More, adotando as diretrizes básicas da nova ordem jurídico-urbanística

brasileira, reduz, consideravelmente, os documentos necessários para o requerimento do

registro legal do parcelamento ilegal. Além disso, a flexibilidade registrária é percebida

quando os requisitos urbanísticos e exigências fiscais também não são mais impeditivos para

o registro imobiliário de parcelamentos que possuam uma situação jurídica já consolidada.

Conseguintemente, o Provimento, dentre seus efeitos jurídicos, reduz sensivelmente a

documentação necessária para o registro; prevê a regularização na forma coletiva; reconhece

as situações consolidadas como indicadoras da irreversibilidade da posse titulada que induz ao

domínio; permite que a autoridade judiciária proceda ao registro ainda que não atendidas os

requisitos urbanísticos da Lei 6.766/79; facilita o registro dos contratos pelos adquirentes de

25

lotes; e recomenda, nos demais casos em que não autorizados o registro, a utilização do

instrumento urbanístico e processual do usucapião. 37

Considerando que o Provimento More Legal nasce em função do debate da mudança

do paradigma liberal clássico de propriedade e dos preceitos constitucionais e

infraconstitucionais norteadores da nova ordem jurídico-urbanística, necessária a sua

coerência jurídica em busca de seus objetivos para a solução de conflitos práticos de diversas

situações existentes. A partir disto, inegável a intersecção de esforços dos órgãos públicos

institucionais e demais agentes envolvidos na concretização destes objetivos, tais como o

papel do Judiciário na função de tutor da cidadania; o Município no interesse da regularização

de ocupações em sua área no combate ao meio ambiente e à infra-estrutura sustentável; o

Ministério Público na função de representante dos interesses sociais; o próprio cidadão

detentor do título precário de propriedade, maior interessado na regularização; e os serviços

notariais e registrais em busca da viabilidade do projeto e segurança jurídica dos possuidores.

Apesar de não ser um instrumento típico de prevenção à produção ilegal de

loteamentos, desmembramentos, fracionamentos e desdobros, o Provimento More, ainda que

não aja numa regularização estrutural de parcelamentos, autoriza o registro desses

empreendimentos, ou seja, age para assegurar o direito à posse dos adquirentes de lotes, que

muitas vezes acabam sendo induzidos à irregularidade por culpa da gestão fiscalizatória

ineficiente por parte dos Municípios.

Contudo, ainda que seu objetivo primário seja a flexibilização de regras para a

regularização de parcelamentos do solo urbano, o Provimento More Legal possui outra função

secundária, mas também relevante, qual seja, a de coibir futuros parcelamentos irregulares,

uma vez que o Oficial do Registro Imobiliário possui a obrigação de noticiar o fato

imediatamente ao Ministério Público quando do recebimento de documentos para registro,

desde que contenha indícios ou evidências de ilegalidade. 38

Dessa maneira, o Provimento More Legal busca atingir alguns benefícios a todos os

envolvidos, por meio de um rol de objetivos, determinados, principalmente, pela coibição da

propriedade informal; regularização de qualquer imóvel, conferindo o direito de propriedade

àquele que detém apenas o título de posse, protegendo, assim, juridicamente os adquirentes de

37 OSÓRIO, Letícia Marques. Parcelamento, urbanização e regularização do solo no Rio Grande do Sul in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Solo Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, páginas 106/107. 38 LOTTI, Armando Antônio. Anotações ao Provimento n° 28/2004 da Corregedoria-Geral da Justiça/RS – Projeto More Legal III. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/urbanistico/doutrina/id369.htm. Acessado em 30 de setembro de 2008.

26

lotes; e atualização do cadastro das Municipalidades, para fins não só tributários, mas de

ordenação do espaço urbano.

Lamana Paiva enfatiza a importância do instrumento e seu pouco conhecimento e

utilidade, ainda que se trate de um projeto abrangente:

Trata-se do Projeto “More Legal”, que é um tema não tão recente, embora pouco conhecido e utilizado, de suma importância para toda a comunidade gaúcha. Primeiramente, pelo propósito de implementar a regularização fundiária de inúmeras áreas que se encontram na clandestinidade jurídica e, também, pela originalidade do tema, eis que serviu de paradigma para os demais Estados da Federação, inclusive estabelecendo diretrizes para a promulgação da Lei 9.785, de 29 de janeiro de 1999. 39

Destarte, a abertura do processo de discussão entre o Poder Judiciário, o Cartório de

Registros, Ministério Público e Municípios no sentido de estabelecerem diretrizes legais e

processuais referentes à regularização de áreas urbanas de ocupação habitacional

consolidadas, viabilizou, por meio do instrumento More Legal, a fixação de instrumentos e

jurisprudências que dão suporte às políticas habitacionais desenvolvidas pelos poderes

públicos. Nesse sentido, iniciativas, como a edição do Provimento em análise, devem ser

levadas a sério em nível nacional, como forma de solução de conflitos fundiários e de geração

de segurança jurídica, criando, além de condições para a valorização da cidadania e promoção

da justiça social, alternativas para a sustentabilidade do ordenamento urbano. 40

Dessa forma, o instrumento acaba reconhecendo a realidade da exclusão territorial da

população de baixa renda e objetivando uma maneira eficaz de minimizar os conflitos que

desafogam no Judiciário, de forma a efetivar os direitos fundamentais previstos na

Constituição, implicando na simplificação de registros imobiliários e combatendo a

irregularidade sócio-espacial para que possamos caminhar rumo a tão necessária reforma

urbana.

39 PAIVA, Lamana. Comentários sobre o Projeto More Legal. Disponível em: http://www.lamanapaiva.com.br/mostra_novidades.php?id_novidades=82&id_noticias_area=1. Acessado em 02 de outubro de 2008. 40 OSÓRIO, Letícia Marques. Parcelamento, urbanização e regularização do solo no Rio Grande do Sul in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Solo Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, página 112.

27

4.3 LEGISLATIVO FEDERAL E A LEI DE RESPONSABILIDADE TERRITORIAL

Decorrente de necessidades não só da incompatibilidade jurídica da lei de

parcelamento do solo com a nova ordem jurídico-urbanística, mas, principalmente, da

irregularidade urbana, é de crucial importância a aprovação do Projeto de Lei 3.057, de 2000,

que se encontra em fase adiantada de discussão no Congresso Nacional, há mais de oito anos,

para uma revisão ampla da Lei 6.766/1979, que ainda é o principal marco jurídico nacional

em vigor sobre o tema.

A enorme relevância da aprovação desta nova lei sobre o parcelamento do solo urbano

é amplamente destacada por Edésio Fernandes, afirmando que, juntamente com a

Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, compõe o tripé das principais leis

urbanísticas do país:

O Projeto de Lei parte do reconhecimento da enorme importância de uma lei federal de parcelamento do solo urbano – que, juntamente com o capítulo constitucional sobre a política urbana e o Estatuto da Cidade, de 2001, compõe o tripé das principais leis urbanísticas no país –, e explicitamente propõe a aprovação de uma “Lei de Responsabilidade Territorial” a ser obedecida, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, pela sociedade brasileira e em especial pelos Municípios, já que são esses os entes federativos que têm a competência constitucional para aprovação de parcelamentos do solo urbano e de projetos de regularização. 41

A idéia mais abrangente do projeto é, portanto, caminhando ao lado dos princípios e

diretrizes da nova ordem jurídico-urbanística, tornar o ciclo, até então, vicioso de produção

irregular das cidades em um ciclo virtuoso de regularidade e da cidade legal. 42

O Projeto de Lei 3.057/2000, já em seu 4° Substitutivo, dispõe, essencialmente, sobre

critérios e procedimentos de três temas, quais sejam, a aprovação de novos parcelamentos; a

aprovação de condomínios urbanísticos, prática recente e sem regramento; e a aprovação de

projetos de regularização de parcelamentos e assentamentos irregulares consolidados.

Ainda que fruto de diversas alterações nos deus dispositivos, muitos são os avanços do

Projeto de Lei 3.057/200 em relação à Lei 6.766/79. Entretanto, ainda, é necessária uma visão

41 FERNANDES, Edésio. Por uma Lei de Responsabilidade Territorial in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, página 354. 42 GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A revisão da Lei Federal n° 6766/79 – novas regras no “jogo” da cidade? Disponível em: http://www.cinder2005.com.br/cd/Trabalhos/Gouvea.pdf. Acessado em 03 de outubro de 2008.

28

mais conceitual e sistêmica do projeto como um todo, integrando melhor os dispositivos

legais, sem lógicas pontuais de interesse político ou de determinados grupos, que acabam

comprometendo os objetivos e diretrizes propostos. 43

Assim, são muitos os interesses envolvidos nesse projeto de lei, especialmente porque

prima pela complexidade de temáticas urbanísticas, ambientais, jurídicas, sociais e

econômicas. No entanto, é necessário que esse marco legal caminhe para a reforma urbana,

favorecendo a inclusão social e a transformação política de desenvolvimento urbano e

habitacional.

Ao regular a produção de novos parcelamentos do solo, a maior preocupação do

projeto de lei é criar um marco jurídico-político para as cidades brasileiras, em busca da

democratização do acesso ao solo e à moradia adequada. Já no que se refere à regularização

de parcelamentos ilegais, a proposta é buscar uma regularização jurídica das áreas e lotes

combinada com a regularização urbanística dessas áreas e a inclusão social dos ocupantes.

Cumpre deixar claro que apesar de instituir normas gerais para o parcelamento do solo

urbano, tal lei não irá restringir o papel dos Municípios como gestores da política urbana,

servindo principalmente para determinar um padrão nacional sobre o tema, uma vez que

inúmeras cidades não possuem sequer um planejamento urbano considerável para regrar a

ocupação do solo urbano.

Nesse sentido, Edésio Fernandes se posiciona:

Além do respeito à competência municipal, a aprovação de uma tal federal é sempre difícil em um país profundamente heterogêneo como o Brasil, onde a diversidade de situações urbanísticas e socioambientais convive com municípios com capacidades completamente diferentes de ação. De qualquer forma, não se pode ignorar o fato de que, na enorme maioria dos casos, a regra mínima estabelecida pela lei federal é a única regra aplicável aos Municípios, o que só aumenta a importância deste Projeto de Lei. A proposta é que os Municípios que tenham condições plenas de gestão urbana possam aplicar outros critérios uqe não os da lei federal, inclusive reduzindo suas exigências; contudo, na falta de um marco jurídico-urbanístico municipal adequado, a lei federal tem necessariamente que suprir o vazio regulatório. 44

43 GOUVÊA, Denise; RIBEIRO, Sandra. A revisão da Lei Federal n° 6766/79 – novas regras no “jogo” da cidade? Disponível em: http://www.cinder2005.com.br/cd/Trabalhos/Gouvea.pdf. Acessado em 03 de outubro de 2008. 44 FERNANDES, Edésio. Por uma Lei de Responsabilidade Territorial in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, página 355.

29

Com relação à competência municipal e a nova forma de gestão, induzida pela ordem

jurídico-urbanística atual e ressaltada pelo Projeto de Lei 3.057/2000 através da distinção

entre Municípios com e sem gestão urbana plena, concluímos que os Municípios com gestão

plena cumprem exatamente com a atribuição dada a tal ente federativo pela Carta Magna e

pelo Estatuto da Cidade como responsável pelo desenvolvimento da política urbana, podendo

adotar padrões ou procedimentos diversos dos determinados em lei, frente à sua ampla

autonomia. A verdade é que apesar do reconhecimento do Município como gestor urbano,

este conceito foi pouco utilizado nos termos da presente proposição legal e, quando usado, foi

de maneira confusa. Já no que se refere aos Municípios sem gestão plena, além de não

avançar na produção local do solo urbano, se caracteriza um retrocesso a essas cidades, eis

que se torna impossível manter uma gestão de maneira integrada e autônoma, ficando restrito

aos termos da legislação federal.

Diante da importância crucial para o futuro das cidades brasileiras, é extremamente

fundamental que o Projeto da Lei de Responsabilidade Territorial seja amplamente discutido

pelos diversos setores sociais, econômicos, políticos e institucionais interessados na questão

do parcelamento do solo urbano e sua regularização. A partir desse movimento, é essencial o

trabalho conjunto de fóruns de discussões sobre a reforma urbana que vem acontecendo

constantemente nas diversas regiões do Brasil, a fim de cumprir com a democratização efetiva

das decisões e planejamentos sociais frente às diversas realidades brasileiras. 45

Um ponto de convergência das experiências criadas pelos poderes públicos analisadas

até agora é a inclusão, nas diretrizes do Projeto de Lei 3.057/2000, das idéias relativas aos

instrumentos do Urbanizador Social e do Provimento More Legal, motivo pelo qual se

verifica que as experiências adotadas pelo Município de Porto Alegre e pelo Judiciário do Rio

Grande do sul já rumavam ao desenvolvimento sustentável e estritamente adequado aos

preceitos do Estatuto da Cidade, representando um marco para a gestão e participação dos

agentes públicos no processo de urbanização brasileiro.

Dessa maneira, ainda que haja algumas críticas ao projeto, a aprovação da Lei de

Responsabilidade Territorial pelo Congresso Nacional é o próximo passo necessário para a

promoção da reforma urbana que as necessidades da sociedade brasileira há tanto tempo

clama. Juntamente com o capítulo constitucional sobre a política urbana e o Estatuto da

45 FERNANDES, Edésio. Por uma Lei de Responsabilidade Territorial in ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Organizadores). Direito Urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, página 355.

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Cidade, a Lei de Responsabilidade Territorial irá consolidar as bases do novo ordenamento

jurídico-urbanístico no país, substituindo de vez o paradigma civilista instituído pelo Código

Civil de 1916, reconhecendo a função social da propriedade e da cidade como direitos

fundamentais.

CONCLUSÃO

A urbanização acelerada do século XX cumulada com a falta de um tratamento

jurídico correto dado à propriedade privada pelas Constituições Brasileiras trouxe diversos

problemas sociais que perduram até os dias de hoje, visto que o reflexo é, indiscutivelmente,

abrangente nos diversos setores da sociedade.

Indiscutível que o tratamento privado dado ao tema, desde a edição do Decreto-Lei

58, de 1937, contribuiu enormemente para a ocupação irregular do solo urbano. Até a

promulgação da Lei 6.766/79, lei vigente até os dias de hoje, foram décadas de atraso quanto

ao instituto do parcelamento do solo urbano, o que demonstrou uma falta de atenção especial

por parte do legislador em adequar o princípio da função social da propriedade, conforme

previsto nas Constituições pós década de 30.

Ainda que a Lei 6.766/79 tenha introduzido diversas inovações ao instituto, a sua

predominância privada, através de padrões elitistas e processos estritamente burocráticos, só

dificultou ainda mais o acesso à moradia por meios legais. Levando-se em conta, porém, os

avanços introduzidos pela Lei 6.766/79, o grande problema sistêmico que se encontra surge

do conflito entre a intenção da lei, incluindo o Município como o ente responsável pelo

parcelamento do solo urbano, e a capacidade reduzida de gestão urbana desses Municípios,

diante da falta de uma norma geral que determinasse diretrizes e instrumentos de política

urbana para uma atuação correta e eficaz.

Dessa forma, juridicamente falando, concluímos que a própria legislação inadequada

sobre o parcelamento do solo urbano só propiciava que a ilegalidade se espalhasse pelos

centros urbanos de nosso país, aumentando os problemas sociais em diversos setores,

principalmente quanto à exclusão social e a segregação espacial da população de baixa renda.

A conclusão que se retira é que a falta de ação dos entes públicos durante quase um

século inteiro fizeram da ocupação do solo urbano um processo de ilegalidade constante.

Assim, ainda que a aprovação do Estatuto da Cidade, precedido da Constituição de 1988,

31

represente um avanço inigualável no ordenamento jurídico-urbanístico brasileiro, o trabalho é

árduo para que possamos alcançar uma reforma urbana no Brasil, isso tudo reflexo de anos e

anos de atraso quanto à questão do parcelamento do solo urbano e demais institutos, problema

cuja importância sempre saltou aos olhos de toda a sociedade brasileira.

No entanto, as alternativas forjadas pelos entes públicos analisadas neste ensaio,

buscam reverter essa situação ao adequarem-se aos preceitos da nova ordem jurídico-

urbanística, usando de sua criatividade para instituir uma gama de recursos jurídicos para a

questão da legalidade da ocupação do solo urbano.

O Urbanizador Social, representando um projeto ambicioso de parceria entre o setor

público e privado, tende a ser o instrumento mais promissor, contanto que todos os agentes

sociais envolvam-se na realização de loteamentos e regularizações pró-sociedade.

O Provimento More Legal surge no intuito de regularizar a situação jurídica dos

moradores de parcelamentos clandestinos e irregulares. Essa ação da Corregedoria-Geral de

Justiça vem garantir a moradia dos adquirentes de lotes ilegais, reconhecendo a culpa por

parte do Estado ao determinar regras insuficientes e elitistas para o parcelamento do solo

urbano.

Por fim, o Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial, representa, a nosso ver, o

avanço mais significativo após a instituição da nova ordem jurídico-urbanística. Essencial a

determinação de regras sobre o parcelamento do solo urbano e regularização fundiária

adequado aos preceitos do Estatuto da Cidade. Ainda que o Projeto, em trâmite há mais de

oito anos no Congresso Nacional, tenha se demonstrado defasado em certos pontos,

representa um marco para a reforma jurídica em busca da reforma urbana.

Em que pese a Lei de Responsabilidade Territorial ser uma lei em nível federal e que

irá regrar o parcelamento do solo urbano e a regularização fundiária nacionalmente, o que se

revela mais importante para a busca da tão sonhada reforma urbana é, além da ampla

participação dos agentes sociais e políticos, a participação direta dos Municípios, como entes

responsáveis pelo desenvolvimento urbano e pelo tratamento de interesse local, na criação de

instrumentos próprios, tal como aconteceu com o Município de Porto Alegre na formulação

do Urbanizador Social.

Concluindo de maneira geral, com uma pesquisa calcada nas entrelinhas da evolução

legislativa sobre o tema, ainda que o processo legislativo sobre a questão do Direito

Urbanístico e, mais precisamente, do parcelamento do solo urbano tenha sido lento e

insuficiente, em grande parte por causa da predominância do direito privado sobre o público

no que diz com a propriedade urbana, os agentes públicos convergem para um movimento

32

absolutamente correto em busca da reforma jurídica e, posteriormente, a reforma urbana, tão

necessária para as cidades brasileiras.

Assim, as alternativas que foram criadas pelos entes públicos representam uma

perspectiva de avanço jurídico sobre o tema, principalmente quando se verifica que há uma

ampla conscientização social e jurídica em busca de uma reforma na ocupação do solo

urbano.

Cabe a nós, portanto, como aplicadores do direito e como cidadãos, aguardarmos os

resultados dessas alternativas e, sobretudo, torcermos para que tais instrumentos possam

mudar o processo tradicional e perverso de acesso a terra para as populações de baixa renda e,

de fato, contribuir para a diminuição da irregularidade das nossas cidades.

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