O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organizações

download O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organizações

of 12

description

O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organizações

Transcript of O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organizações

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 117

    O pensamento de Michel Foucault na teoria

    das organizaes

    Fernando C. Prestes Motta (In Memoriam)Rafael Alcadipani

    As obras de Michel Foucault exercem influncia em vrias reas

    das cincias humanas. Esse fato se repete em teoria das organiza-

    es, domnio em que as idias foucaultianas esto sendo empre-

    gadas fundamentalmente para trazer novas luzes para as discus-

    ses sobre poder nas organizaes. A despeito da influncia sig-

    nificativa na rea, no h discusses sobre como as obras de

    Michel Foucault esto sendo utilizadas. Neste artigo, tem-se por

    objetivo sistematizar os estudos que utilizaram as idias de Michel

    Foucault em teoria das organizaes, problematiz-los e indicar

    alguns caminhos para o desenvolvimento desse tipo de anlise.

    De uma forma geral, percebe-se que a produo acadmica em

    teoria das organizaes baseada nas obras de Michel Foucault

    trata majoritariamente das disciplinas e deixa de lado outros as-

    pectos da analtica do poder. Ademais, h uma adoo simplificadada analtica do poder e uma juno acriteriosa de conceitos e

    noes oriundas de diferentes matrizes epistemolgicas, alm da

    inadequao da designao ps-modernopara classificar as obras

    de Michel Foucault e suas utilizaes em teoria das organizaes.

    Como desenvolvimentos factveis, indicam-se as possveis anli-

    ses em teoria das organizaes pelo uso das noes de biopoltica

    e governamentalidade.

    Palavras-chave:poder, anlise das organizaes, Michel Foucault.

    1. INTRODUO

    Michel Foucault destaca-se como um dos principais pensadores contempo-rneos. Suas obras tm servido de base para reflexes e problematizaes emvasta gama de reas que vo desde as artes e a dana at a literatura e o direito(PORTOCARRERO e BRANCO, 2000). Atualmente, esse fato se repete no cam-po da teoria das organizaes. sdiken e Pasadeos (1995), em uma anlisebibliomtrica, constataram que Michel Foucault era o stimo autor mais citadono peridico Organization Studies,logo atrs de Max Weber. H coletneasque versam especificamente sobre a influncia do pensamento de Michel

    Os autores agradecem ao Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pelofinanciamento da pesquisa que resultou neste artigo e

    RAUSP pelas sugestes de melhoria do texto. Artigo

    dedicado a Cristina e Carolina

    Recebido em 09/maio/2003

    Aprovado em 14/abril/2004

    Fernando C. Prestes Motta, falecido em 2003, eraProfessor Titular do Departamento de Administrao

    Geral e Recursos Humanos da Escola de

    Administrao de Empresas de So Paulo da

    Fundao Getulio Vargas (CEP 01313-902 So

    Paulo/SP, Brasil) e Conselheiro Editorial da Revista

    de Administrao da Universidade de So Paulo.

    Rafael Alcadipani, Mestre em Administrao de

    Empresas pela Escola de Administrao de Empresas

    de So Paulo da Fundao Getulio Vargas,

    Doutorando em Anlise das Organizaes na

    Manchester School of Management UMIST,

    Inglaterra, bolsista da CAPES e Professor doDepartamento de Administrao Geral e Recursos

    Humanos da Escola de Administrao de Empresas

    de So Paulo da Fundao Getulio Vargas

    (CEP 01313-902 So Paulo/SP, Brasil).

    E-mail: [email protected]

    Endereo:

    Flat 2 Princess House

    144 Princess Street

    M17EP Manchester

    United Kingdon

    RESUM

    O

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco118 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    Foucault em anlise organizacional (McKINLAY e STARKEY,

    1998) e nmeros especiais de peridicos com o mesmo tema

    (THEMED..., 2002).

    Assim, o pensamento foucaultiano exerce influncia signi-

    ficativa na teoria das organizaes em sua vertente crtica

    (KNIGHTS, 2002). A literatura tem demostrado que as obras de

    Michel Foucault so extremamente teis para discutir a ques-to do poder nas organizaes (BURRELL, 1988; McKINLAY e

    STARKEY, 1998; KNIGHTS, 2002). Contudo, no se encontra

    sistematizao alguma sobre como tais obras esto sendo utili-

    zadas pelos tericos organizacionais.

    Diante disso, o objetivo neste artigo sistematizar os estu-

    dos que utilizaram as idias de Michel Foucault em teoria das

    organizaes, problematiz-los e indicar alguns caminhos para

    o desenvolvimento desse tipo de anlise. Para tanto, no tpico

    a seguir sero indicadas as origens da utilizao de noes

    foucaultianas em teoria das organizaes. No tpico 3, discor-

    rer-se- sobre a analtica do poder foucaultiana. No quarto t-

    pico, ser apresentado um levantamento sobre os artigos que

    utilizaram as obras de Michel Foucault em teoria das organiza-

    es. Aps isso, sero problematizados os usos das noes

    foucaultianas nessa rea de estudo. Por fim, apresentar-se-o

    as concluses e indicar-se-o algumas possibilidades de de-

    senvolvimento da aplicao de noes foucaultianas, a partir

    de sua analtica do poder.

    2. AS ORIGENS DO PENSAMENTO FOUCAULTIANONO CAMPO DE TEORIA DAS ORGANIZAES

    At meados da dcada de 1980, as idias de Michel Foucault

    no encontravam muitos entusiastas no campo. Burrell (1996)

    relata que, no incio dessa dcada, ele e um grupo de pesquisa-

    dores da Universidade de Lancaster tomaram contato com a

    obra de um certo filsofo francs chamado Michel Foucault

    por meio da leitura do livro Vigiar e Punir. Aps conhecer a

    obra do pensador, Burrell (1996, p. 454) afirmou: Minha reao

    pessoal ao ler aquele texto foi um importante deslocamento de

    Gestalt, no qual os padres de mundo passaram a ser vistos

    por lentes novas e aperfeioadas. Ele conta que descobriu

    uma nova perspectiva que, a seu ver, poderia ser extremamente

    til para a compreenso das organizaes ao trazer novas luzes

    para o processo de organizar e para o tema do poder em teoria

    das organizaes.

    Entusiasmados que estavam com as descobertas sobre onovo autor, Burrell e outros pesquisadores escreveram um tex-

    to sobre as possveis contribuies do pensamento de Michel

    Foucault para a teoria das organizaes e o submeteram a apre-

    ciao, em 1984, para que fosse publicado na Administrative

    Science Quarterly. Aps um longo perodo de reviso, os ava-

    liadores rejeitaram o artigo questionando a relevncia de um

    filsofo francs desconhecido e perguntaram o que uma

    audincia americana poderia apreender com esse tipo de pen-

    samento (BURRELL, 1996, p.454). No entanto, as idias de

    Michel Foucault so hoje amplamente utilizadas pelos tericos

    organizacionais. At mesmo o peridico que rejeitou a relevn-

    cia da perspectiva do pensador para a teoria das organizaes

    publica artigos foucaultianos (BARKER, 1993; SEWELL, 1998)

    Como essa alterao aconteceu?

    Na busca pelas origens da utilizao das idias de Michel

    Foucault, e analisando o desenvolvimento das diferentes pers-pectivas nessa rea de estudo, possvel constatar que tal intro-

    duo foi vivel graas quebrado domnio absoluto da pers-pectiva funcionalista sobre o campo, o que possibilitou o de-senvolvimento de vertentes tericas crticas.

    At o final da dcada de 1960, a teoria das organizaevivia uma fase de desenvolvimento controlado por um acordotcito a respeito de mtodos, metodologias, perspectivas deanlise e base epistemolgica (BURRELL, 1996). Durante esseperodo, havia predomnio absoluto e incontestvel da teoriaorganizacional funcionalista (BURRELL e MORGAN, 1979)Todavia, essa poca de cincia normalfoi abalada pela publi-cao de algumas obras (WEICK, 1969; SILVERMAN, 1971BRAVERMAN, 1974; BURRELL e MORGAN, 1979) que trouxeram olhares diferentes do funcionalismo para a anlise doobjeto organizao e tiveram o poder de abrir acaixa de Pandorana teoria das organizaes, gerando pluralidade de alternativas viso dominante, as quais se ampliaram ao longo do tempo(CLEGG, HARDY e NORD, 1996).

    Na dcada de 1980, autores como Baudrillard, Lyotard eDerrida, tidos como ps-modernos, passaram a ser cada vezmais utilizados nas cincias humanas (BAUMAN, 1988a e1988b; FEATHERSTONE, 1988), gerando grande debate entreos defensores da perspectiva modernista e da ps-modernistaque persistiu at recentemente (SOKAL e BRICMOT, 1999)

    Os debates que ocorriam nas cincias sociais passaram, nofinal dos anos 1980, a afetar a forma de produzir conhecimentoem teoria das organizaes (COOPER e BURRELL, 1988CALS e SMIRCICH, 1999), pois, com o rompimento do domnio absoluto da perspectiva funcionalista, a rea estava abertapara as vises alternativas dominante.

    Foi no contexto da efervescncia do debate entre modernistas e ps-modernistas nas cincias sociais que Gibson Burrell (1988) publicou artigo que tratava das novas possibilidades que uma abordagem foucaultiana oferecia para a teoria daorganizaes. A partir desse debate, as obras de Michel Fou-cault comearam a ser utilizadas de forma mais marcante na

    teoria das organizaes, pois as idias do autor foram consideradas como ps-modernas pelos pesquisadores organizacio-nais (BURRELL, 1988 e 1996; CALS e SMIRCICH, 1999KNIGHTS, 2002).

    Outro fato que contribuiu para difundir o uso das obras deFoucault para o estudo das organizaes foi o emprego de suaepistemologiapara renovar o debate naLabour Process Theory(LPT). A LPT fora marcada por grande nfase em explicaemarxistas para a anlise do processo de trabalho e do controledas organizaes sobre seus funcionrios. O seu foco eram as

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 119

    O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT NA TEORIA DAS ORGANIZA

    relaes objetivas de trabalho e de classe social. Alm do pr-

    prio Karl Marx, a obra de Braverman (1974) serviu durante muito

    tempo como base terica fundamental para os tericos da LPT.

    Todavia, partindo dos escritos de Michel Foucault, Knights

    e Willmott (1989) analisaram o processo de subjugao no am-

    biente de trabalho e atacaram as abordagens marxistas por en-

    fatizarem somente a explorao econmica e deixarem de lado omodo como as relaes de poder constituem os sujeitos e suas

    subjetividades. O artigo em questo realizou uma ruptura na

    tradicional LPT e criou uma nova corrente: a chamada Man-

    chester School of Foucauldian Labour Process Theory (WRAY-

    BLISS, 2002). Essa nova perspectiva gerou uma srie de arti-

    gos durante toda a dcada de 1990 e, tambm, debates entre

    esses estudiosos, principalmente devido aos ataques mtuos

    entre os tericos de base marxista e foucaultiana (PARKER,

    1999; WRAY-BLISS, 2002).

    Atualmente, a Critical Management Studies (CMS)

    (ALVESSON e WILLMOTT, 1996 e 1997; FOURNIER e GREY,

    2000; THEMED..., 2002), corrente terica que procura subme-

    ter a administrao e as organizaes ao crivo crtico, tem

    sido de fundamental importncia para a propagao de pers-

    pectivas crticas em estudos organizacionais, pois esse movi-

    mento acaba por cumprir uma funo poltica de legitimar es-

    sas perspectivas no campo da teoria das organizaes. A

    CMS, que inclui teorias modernistas de base marxista, teorias

    ps-estruturalistas e teorias feministas, est desempenhan-

    do papel fundamental na legitimao e na defesa da aborda-

    gem foucaultiana para os estudos organizacionais, pois uma

    abordagem crtica muito utilizada nos dias de hoje (FOURNIER

    e GREY, 2000).

    Dessa forma, o desenvolvimento da anlise organizacional

    ps-modernae os desdobramentos das discusses naLabour

    Process Theoryfizeram com que as idias e o pensamento do

    filsofo francs desconhecido passassem a ser aceitos e lar-

    gamente utilizados por tericos organizacionais. O movimento

    da CMS desempenhou papel importante na continuidade da

    utilizao das idias foucaultianas em anlise organizacional.

    Contudo, como Michel Foucault tratou da questo do poder

    em suas obras? A resposta a essa indagao o tema do prxi-

    mo tpico.

    3. A ANALTICA DO PODER NO PENSAMENTO DE

    MICHEL FOUCAULT

    Aqui ser apresentada uma viso geral sobre as obras de

    Michel Foucault que versam sobre a questo do poder. Esta

    exposio feita neste ponto porque servir de subsdio para a

    compreenso das demais partes deste artigo. No entanto, da-

    das a complexidade e a abrangncia das obras foucaultianas,

    trata-se de uma discusso superficial, em que se tenta situar as

    principais caractersticas do seu pensamento* sobre a questo

    do poder. Antes, porm, discorrer-se- a respeito das diferen-

    tes etapasdo pensamento de Michel Foucault.

    3.1. Etapas da obra foucaultiana

    As obras de Foucault distribuem-se ao longo de trs eta-pas: Arqueologia, Genealogia e tica. No h entre elas rompimentos bruscos, mas deslocamentos de nfases metodolgicas(FONSECA, 2001).Na Arqueologia, as obras do pensador tra

    tam das prticas discursivas de certos domnios do saber. Omtodo arqueolgico no leva em conta a verdade ou a falsidade dos enunciados propostos em cada um dos domnios queanalisa, ou seja, no interessou a Foucault esclarecer ou discutir a veracidade ou a falsidade dos ensinamentos da medicinada psiquiatria ou das cincias humanas, mas tratar do que fodito por essas cinciascomo discursos-objeto, buscando es-clarecer quais so as regras que regem os discursos cientficos(RABINOW e DREYFUS, 1995; FONSECA, 2001).

    Aps as discusses em Arqueologia, o pensador realizou oprimeiro deslocamento de nfase metodolgica das suas obrasPartindo da Genealogia de Nietzsche, e apoiado por ela, passou a investigar e a tematizar as relaes entre verdade, teoriavalores e instituies, bem como as prticas sociais nas quaistais relaes emergiam. A nova abordagem fez com que eleprestasse ateno e passasse a tematizar as questes relacionadas ao poder (RABINOW e DREYFUS, 1995). Nessaetapatambm apresentou e discutiu a biopoltica. Discusso essaque se finalizou com a discusso sobre a governamentalidadeA partir dela, Foucault realizou o segundo deslocamento de nfase metodolgica (ORTEGA, 1999; FONSECA, 2001) em suaobras, que resultou na terceira delas, conhecida como ticaNesse perodo, passou a tratar das diferentes formas de constituio do sujeito por meio de procedimentos de uma ticaapoiada na reflexo sobre si, sem que nesse processo houves

    se a presena prescritiva de cdigos, interditos e mecanismodisciplinares (FONSECA, 1995). A analtica do poder desenvolvida pelo pensador, que est localizada na etapa genealgicadas suas obras, ser detalhada a seguir.

    3.2. A analtica do poder

    Pode-se dizer que Foucault possui uma teoria do poder? Noo termo teoriano o mais adequado para compreender o quefoi desenvolvido pelo pensador em suas discusses sobre oassunto. Michel Foucault (1995) considera que a questo dopoder no apenas terica, mas faz parte de nossa experincia e

    mais compreensvel quando analisada dentro de racionalidadesespecficas. Para o pensador, no existe algo unitrio chamadopoder, mas unicamente formas dspares, heterogneas, em constante transformao. O poder no um objeto natural, uma coisa; uma prtica social (MACHADO, 1979, p. X).

    * Para uma reviso aprofundada das obras de Michel Foucault, veja: Rabinow

    e Dreyfus (1995), Ortega (1999) e Fonseca (2001).

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco120 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    Assim, para caracterizar o trabalho desenvolvido pelo pen-

    sador sobre o assunto, o mais correto falar em uma analtica

    do poder, pois o que est em jogo determinar quais so, em

    seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relaes, esses

    diferentes dispositivos de poder que se exercem em nveis

    diferentes da sociedade, em campos e com extenses to varia-

    das (FOUCAULT, 1999a). Na sua analtica do poder, MichelFoucault analisa trs mecanismos de poder: os suplcios, as

    disciplinas e a biopoltica. Na realidade, as anlises das disci-

    plinas e da biopoltica surgem em oposio ao mecanismo dos

    suplcios.

    O regime dos suplciosocorreu durante as monarquias pr-

    capitalistas, quando a punio dos que atentavam contra a or-

    dem social ocorria por meio de rituais sanguinrios de tortura,

    humilhao e massacre pblico. Esses rituais expressam que o

    erro, o crime e a punio se intercomunicavam e se ligavam sob

    a forma de uma atrocidade pblica cometida contra os contra-

    ventores. A idia era fazer do criminoso um exemplo para que as

    pessoas evitassem transgredir as regras. Tais rituais represen-

    tavam a mecnica do poder de punir das monarquias para as

    quais a desobedincia era um ato de hostilidade. Assim, na

    falta de uma vigilncia ininterrupta, procuravam a renovao

    de seu efeito no brilho e na fora de suas manifestaes singu-

    lares reiterando e ostentando ritualmente a sua realidade de

    superpoder (FOUCAULT, 1987).

    Todavia, no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, o

    ritual das punies comeou a extinguir-se por dois motivos. O

    primeiro deles era que a nova ordem capitalista que se instaura-

    va no precisava somente punir os crimes, mas tambm evitar

    ao mximo que eles fossem cometidos, ao mesmo tempo que

    necessitava de uma populao com vigor e presa ao aparato de

    produo. O outro motivo foi o crescimento da conscincia

    dentro das sociedades de que os espetculos dos suplcios

    eram desumanos e imorais (FOUCAULT, 1987 e 1999b).

    Dessa forma, a questo, presente nos suplcios, de fazer

    com que o Estado se vingasse dos criminosos, passou, com o

    capitalismo, a ser de evitar que os crimes fossem cometidos e

    de majorar a capacidade de as pessoas e de a populao produ-

    zirem mais, pois essa seria uma forma mais eficiente e econmi-

    ca de controlar a sociedade e maximizar sua fora. Procurava-se

    agir sobre a vida, por meio de um biopoder, com o intuito de

    geri-la e major-la, exercendo sobre ela controles precisos e

    regulaes de conjunto: Pode-se dizer que o velho direito de

    causar a morte ou deixar viver foi substitudo por um poder decausar a vida ou devolver morte (FOUCAULT, 1988, p.130).

    Assim, o regime dos suplcios foi sendo paulatinamente subs-

    titudo por um regime de biopoder, que apresenta dois meca-

    nismos fundamentais: as disciplinas e a biopoltica. Vale frisar

    que Michel Foucault no considera que essas alteraes ocor-

    reram de forma orquestrada e guiada por mentes malignas e

    dominadoras, mas que elas aconteceram por si ss. Ele tambm

    no parte do pressuposto de que as relaes econmicas de-

    terminam as relaes sociais.

    Para o autor, enquanto o mecanismo de poder disciplinar

    funciona sobre os indivduos no interior de um espao fecha-

    do, atravessado por procedimentos de vigilncia, a biopoltica

    age sobre um conjunto de processos populacionais, exercendo

    sobre eles efeitos de conjunto e regulao (FOUCAULT, 1999b)

    Em outras palavras, as disciplinas atuam sobre o corpo indivi-

    dual, e a biopoltica sobre o corpocoletivo, a populao (FOU-CAULT, 1999b).

    Mais especificamente, asdisciplinasdizem respeito ao ades-

    tramento dos indivduos, tornando-os dceis e submissos. Elas

    impem um modelo, uma norma previamente estabelecida, pa-

    dronizando os indivduos e seus comportamentos. Assim, elas

    normalizam os indivduos a partir de um normal definido a priori

    Para tanto, elas funcionam dentro de um espao fechado, anali-

    sam, decompem os indivduos, os lugares e o tempo, classifi-

    cam os termos decompostos, estabelecem seqncias, ordena-

    es, entre eles, fixam procedimentos de adestramento e de con-

    trole e, a partir da, estabelecem uma separao entre o normal e

    o anormal, o padronizado e o no-padronizado, o disciplinado e

    o no-disciplinado, agindo sempre sobre o no-disciplinado para

    torn-lo normalizado (FONSECA, 1995). Para concretizar-se, a

    vigilncia deve ser exaustiva, ilimitada, permanente e indiscreta

    Porm, no deve ser visvel como no regime dos suplcios, mas

    extremamente subliminar. O modelo arquitetural ideal em que as

    disciplinas operam da maneira mais eficiente possvel o do j

    amplamente difundido Panptico* (FOUCAULT, 1987). Dessa

    forma, o campo das disciplinas diz respeito srie corpo orga-

    nismo disciplina instituies(FONSECA, 2001).

    A biopoltica, por sua vez, no age sobre cada indivduo

    especificamente, mas sobre o conjunto das pessoas. O campo

    da biopoltica determinado pela srie mecanismos de segu-

    rana populao governo(FONSECA, 2001). Ela age sobreum conjunto de processos populacionais, como a proporo

    dos nascimentos e dos bitos, as taxas de reproduo, de nata-

    lidade, a fecundidade de uma populao, a velhice etc. (FOU-

    CAULT, 1999b). Assim, a biopoltica uma forma de poder que

    intervm, sobretudo, para aumentar a vida, controlando seus

    acidentes, suas eventualidades, suas deficincias globais.

    A biopoltica tambm realiza uma normalizao que se d

    por meio de mecanismos de regulao, ou mecanismos de se-

    gurana, que atuam sobre os processos da vida de um dado

    conjunto populacional. O que ela procura fazer agir sobre um

    grupo de pessoas, no para impor uma norma predeterminada

    como no caso das disciplinas, mas para combater certas nor-

    * O panptico uma priso em forma de crculo em que no centro h uma torre

    onde esto os vigias. A luz entra nessa estrutura arquitetnica pelo lado de

    fora, iluminando cada cela em que esto os prisioneiros. Dessa forma, os

    vigias sempre podem ver os prisioneiros que no so capazes de saber

    quando esto sendo vigiados. Essa estrutura foi analisada e discutida por

    Benthan.

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 121

    O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT NA TEORIA DAS ORGANIZA

    malidades vistas como mais desviantes em relao ao que se

    poderia definir como uma curva normal geral. Os mecanismosde segurana procuram conduzir as curvas desfavorveis deuma dada varivel populacional a estados mais favorveis.

    Assim, nesses mecanismos, o comportamento consideradonormal extrado da populao analisada. Dessa forma, primei-

    ro so estudadas as diferentes curvas de normalidade e somentedepois se fixa a norma. Essa norma sempre especfica para umgrupo determinado (uma dada populao) em relao a umasituao determinada (por exemplo, uma doena) (FONSECA,2001). Os mecanismos de segurana possuem caractersticasespecficas: lidam com uma srie de eventos possveis e pro-vveis, avaliam por meio de clculo de custos comparativos eno prescrevem uma demarcao binria entre permitido e proi-bido, normal e anormal, mas agem por meio da especificaode uma mdia tima com uma variao tolervel (GORDON,1991). Para majorar os elementos positivos e minimizar os nega-tivos, tanto atuais quanto futuros, os mecanismos de seguran-a trabalham com previsibilidades, riscos e probabilidades deocorrncias.

    Nos mecanismos de segurana est em jogo a gesto desries abertas de elementos que se deslocam de forma indefini-da (bens, pessoas, doenas), a partir de probabilidades e es-tatsticas (FONSECA, 2001). Os procedimentos da biopolticano implicam uma excluso ou uma disciplina, mas so caracte-rizados por uma forma de atuao de governo, no sentido daconduo de condutastendo por foco central atuar sobre osprocessos inerentes vida. nesse ponto que Michel Foucaultentra no ltimo tema de sua analtica do poder: a governa-mentalidade ou artes de governar(FONSECA, 2001).

    A governamentalidade concerne natureza da prtica de

    governar e ao como

    se governa. Ela caracteriza-se por uma

    prtica de soberania poltica que busca governar as pessoas

    em conjunto, ao mesmo tempo que se preocupa com cada indi-

    vduo, ou seja, uma gesto que procura ser, concomitantemente,

    totalizante e individualizante e que atua dentro de uma lgica

    governamental especfica. Em seus cursos no Collge de

    Franceentre 1979 e 1981, Michel Foucault realizou a anlise de

    alguns tipos de governamentalidade: a Pastoral Crist, a Razo

    de Estado, o Liberalismo, o Neoliberalismo Alemo e o Neo-

    liberalismo Americano (GORDON, 1991). As diferentes gover-

    namentalidades possuem em comum o fato de, ao mesmo tem-

    po, induzirem uma gesto dentro de uma lgica especfica para

    cada poca e fornecerem a possibilidade da salvaopara osindivduos, por meio da apresentao de uma verdade que quer

    ser aceita, que quer se impor. As artes de governaraplicam-se

    vida cotidiana das pessoas, caracterizando-as e marcando

    suas identidades (FOUCAULT, 1995).

    Com a sua discusso sobre os mecanismos de segurana e

    as artes de governar, Michel Foucault ampliou as suas anli-

    ses das disciplinas e agregou sua analtica do poder outros

    domnios (os processos da vida em uma dada populao), ou-

    tras prticas (prticas de gesto das condutas dos homens) e

    outras instncias (o Estado e seus aparelhos administrativos)

    em relao s que foram realizadas na anlise das disciplinas

    (FONSECA, 2001).

    A relao entre poder/saber perpassa toda a analtica do

    poder foucaultiana. A idia geral a de que todo ponto em que

    se exerce poder , ao mesmo tempo, um lugar de formao de

    saberes. O hospital pode mostrar isso, j que no apenas umamquina de cura, mas tambm um instrumento de produo

    acmulo e transmisso de saber sobre os seres humanos e a

    sua sade. Da mesma forma, a escola est na origem da peda-

    gogia e o hospcio na da psiquiatria (MACHADO, 1979). A

    biopoltica tambm se exerce gerando saberes sobre uma dada

    populao. Alm disso, quando os saberes so criados, o que

    est sendo criado, concomitantemente, um tipo especfico de

    regime de verdade. Assim, a verdade no existe fora das rela-

    es de poder. Eles servem tambm para sustentar as relaes

    de poder (FOUCAULT, 1979).

    Outro aspecto que perpassa a analtica do poder a idia

    de que o sujeito se constitui, historicamente, a partir das rela-

    es de poder. Por exemplo, os mecanismos das disciplinas

    produzem cada indivduo, elaboram sua histria e a arquivam

    distribuem os indivduos no espao de forma particularizada,

    elaboram suas atividades, controlam e relacionam seu tempo e

    os combinam com outros indivduos. Nas disciplinas, todo

    indivduo singularizado, tem o statusde possuidor de uma

    identidade que traz a marca da utilidade e da docilidade (FON-

    SECA, 1995). Assim, as escolas produzem os estudantes; as

    fbricas, os trabalhadores; as prises, os delinqentes; os

    manicmios, os loucos. Ao tentar impor uma verdade aos indi-

    vduos, as artes de governartambm criam sujeitos presos a

    relaes de poder.

    As discusses sobre a questo da resistncia so tratadas

    por Foucault em dois momentos de sua analtica do poder. Pri-

    meiro, quando tratava das disciplinas, tinha como pressuposto

    a idia de que a resistncia o outro termo das relaes de poder

    ou seja, onde havia poder, havia resistncia (FOUCAULT, 1987)

    Nas suas discusses sobre a biopoltica, com a ampliao de

    suas anlises sobre o tema poder, quando passou a analisar o

    seu exerccio como conduo de condutas, Michel Foucault dis-

    cutiu a possibilidade de as pessoas exercerem uma atitude cr-

    ticaque significa a recusa de ser governado (FONSECA, 2001)

    Por fim, vale destacar que Foucault (1999b) argumenta que

    a possibilidade de haver uma articulao entre as disciplinas e

    a biopoltica ocorre na norma, pois ela pode ser aplicada tantoa um corpo que se quer disciplinar quanto a uma populao

    que se quer regular. A sociedade de normalizao, adverte, no

    somente uma sociedade em que imperam as instituies e o

    modelo disciplinar. Ela uma sociedade em que se cruzam a

    norma da disciplina e a norma da regulamentao. Dizer que o

    poder tomou posse da vida, no sculo XIX at os dias de hoje

    dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfcie que engloba

    tanto a mecnica do corpo quanto a mecnica da populao

    (FOUCAULT, 1999b).

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco122 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    4. INVENTARIANDO O USO DAS IDIAS DE MICHELFOUCAULT EM TEORIA DAS ORGANIZAES

    Neste tpico, sero apresentados dados da pesquisa reali-

    zada em peridicos, a fim de levantar as caractersticas dos

    artigos que utilizaram a perspectiva foucaultiana para a cons-

    truo do seu argumento, como base analtica na rea de teoriadas organizaes.

    4.1. Procedimento de coleta de dados

    A busca foi realizada nos seguintes principais peridicos

    em teoria das organizaes:Administrative Science Quarterly,

    Academy of Management Review, Academy of Management

    Journal, Organization Studies, Organization, Human Rela-

    tions, Organizational Sciencee The Journal of Management

    Studies, entre os anos de 1975 e o primeiro semestre de 2002.

    Procuraram-se, na bibliografia de todos os artigos, aqueles

    que mencionavam obras de Michel Foucault. No total, foram

    selecionados 183 artigos que referenciaram ao menos uma

    obra do autor. Vale destacar que o primeiro artigo que se utiliza

    das obras de Michel Foucault foi encontrado somente no ano

    de 1986.

    Em seguida, analisou-se o contedo de cada um deles e

    selecionaram-se para a anlise final somente os artigos que

    utilizavam as noes desenvolvidas pelo filsofo como base

    analtica para a construo dos seus argumentos ou para a

    interpretao de dados empricos. Assim, artigos que somente

    referenciavam Foucault sem utilizar suas idias para a constru-

    o do argumento foram desprezados.

    Aps essa segunda seleo, restou um total de 47 artigos,

    os quais foram catalogados de acordo com os seguintes da-

    dos: autor, ano, peridico, tema, objetivo do artigo, uso de

    Foucault (quais noes foucaultianas foram empregadas), uti-

    lizao de noes e conceitos desenvolvidos por outros au-

    tores alm de Foucault e metodologia declarada. Na anlise a

    ser realizada aqui, sero consideradas somente as informa-

    es relativas a tema, noes foucaultianas empregadas nos

    artigos e autores utilizados alm de Michel Foucault. A fre-

    qncia dos artigos por ano na amostra selecionada apre-

    sentada no quadro 1.

    Conforme consta no quadro 1, a maioria dos artigos da amos-

    tra est concentrada entre os anos de 1992 e 2001, com exceo

    de 1994, quando h somente um artigo publicado. Em outraspalavras, percebe-se que a partir do incio da dcada de 1990

    houve aumento do uso das idias de Foucault como fundamen-

    to de artigos. Isso ocorreu provavelmente devido ao incremen-

    to, na teoria das organizaes, da utilizao de noes desen-

    volvidas por autores considerados como ps-modernos e ao

    aprofundamento do embate entre marxistas e foucaultianos na

    Labour Process Theory. Em termos de metodologia declarada,

    os artigos da amostra esto assim divididos: 24 so ensaios

    tericos, 15 so estudos de caso e 8 so anlises de discurso.

    Quadro 2

    Freqncia de Temas

    Temticas Freqncia

    Crtica s teorias em anlise das organizaes 12

    Poder e construo de verdade 9

    Denncia de mecanismos de controle 9

    Relaes de poder em contexto organizacional 5

    Construo de subjetividade e poder 4

    Crtica utilizao de Foucault 4

    Gnero 2

    Renovao da anlise das organizaes

    a partir de Foucault2

    Total 47

    A seguir so apresentadas as

    principais caractersticas dos ar-

    tigos analisados, na seguinte or-

    dem: tema, noes foucaultianas

    empregadas e autores utilizados

    alm de Michel Foucault.

    4.2. Temas dos artigos

    Como se pode observar no

    quadro 2, os artigos analisados

    contemplam diferentes temas

    que vo de mecanismos de con-

    trole nas organizaes at rela-

    es de gnero. Os tericos organi-

    zacionais empregam noes fou-

    caultianas para submeter as or-

    ganizaes e a sua teoria ao crivo

    crtico, denunciar mecanismos

    de controle em operao nas or-

    ganizaes, discutir relaes de

    poder no contexto organizacio-

    nal, bem como argumentar como

    a perspectiva foucaultiana pode-

    ria fundamentar novos tipos de

    anlise das organizaes e de

    suas teorias. A maioria dos temas analisados diz respeito a ques-

    tes relativas a poder e controle nas organizaes.

    Quadro 1

    Freqncia de

    Artigos por Ano

    Ano Freqncia

    1986 1

    1987 0

    1988 1

    1989 3

    1990 0

    1991 1

    1992 5

    1993 4

    1994 1

    1995 3

    1996 3

    1997 4

    1998 6

    1999 8

    2000 4

    2001 1

    2002 2

    Total 47

    4.3. Noes foucaultianas empregadas nos artigos

    O quadro 3 mostra a freqncia de noes desenvolvidas

    por Michel Foucault utilizadas para construir a argumentao

    dos artigos presentes na base de dados. Vale frisar que as no-

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 123

    O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT NA TEORIA DAS ORGANIZA

    es aqui apresenta-

    das esto muitas ve-

    zes inter-relacionadas

    nas obras do pensa-

    dor, como se viu an-

    teriormente. Todavia,

    nesta anlise dos tex-tos selecionados, per-

    cebe-se que os auto-

    res em teoria das or-

    ganizaes as utilizam

    de forma dissociada,

    como se fossem ins-

    trumentos que aten-

    dem a necessidades

    especficas de argu-

    mentao.

    Em 20 artigos, os autores extraram do pensamento de

    Foucault a noo de poder disciplinar para a realizao de suas

    anlises. Em oito artigos, eles apropriaram-se da noo de po-

    der/saber e a complementaram com a questo da relao entre

    poder e verdade, com os demais pontos da analtica do poder

    foucaultiana, com a noo da constituio da subjetividade do

    sujeito pelas relaes de poder, com a relao entre poder, dis-

    curso e resistncia, com a noo de poder como relao e com

    poder e verdade. Em outros oito artigos os autores emprega-

    ram a noo de que o poder no algo possudo, mas que

    existe somente como relao. Quatro autores fizeram uma revi-

    so geral das obras de Michel Foucault: dois para apresentar

    novos caminhos para o estudo das organizaes; um para

    mostrar as incoerncias entre os artigos que empregaram as

    noes de Foucault e as suas obras em si; e outro para realizar

    uma leitura realista-positivista de Foucault. A arqueologia foi

    utilizada em dois artigos. A idia de que a subjetividade cons-

    tituda por meio das relaes de poder foi utilizada por dois

    autores. Quanto ao mtodo genealgico, a governamentalidade,

    a liberdade e a resistncia foram idias discutidas cada uma em

    um artigo. Pelo exposto, percebe-se que as obras de Michel

    Foucault esto sendo empregadas pelos tericos organizacio-

    nais para discutir a questo do poder em contexto organi-

    zacional, especialmente o mecanismo do poder disciplinar em

    ao nas organizaes. So recorrentes tambm as discusses

    sobre poder/saber e sobre poder como relao. Os demais as-

    pectos das obras do pensador aparecem de forma pontual nosartigos analisados.

    4.4. Autores utilizados alm de Michel Foucault

    Nesta anlise, nota-se que, em nmero significativo de arti-

    gos, os autores utilizaram noes foucaultianas em conjunto

    com as de outros autores. No quadro 4 consta a freqncia dos

    autores que aparecem associados a Foucault na construo do

    argumento dos textos analisados.

    Os autores de 16

    artigos utilizaram so-

    mente as noes desen-

    volvidas por Michel

    Foucault como funda-

    mento para a constru-

    o do argumento deseus artigos. No entan-

    to, a maioria utilizou

    como base conceitual,

    alm de idias desen-

    volvidas por Foucault

    e pelo segundo autor

    mencionado no qua-

    dro 4, idias e noes

    oriundas de outros au-

    tores que contribuem

    para a construo da argumentao desenvolvida. Assim

    Habermas e Foucault aparecem como base analtica para a cons-

    truo do argumento de seis artigos: noes desenvolvidas

    somente pelos dois autores esto presentes em trs artigos,

    nos demais os dois pensadores aparecem juntamente com

    Orwell, com idias derivadas da fenomenologia transcendental

    e com Dilthey. Em outros seis artigos foram utilizadas as idias

    de Marx e Foucault como fundamento. As idias de Derrida

    aparecem trs vezes, em Actor-Network Theory, Lyotard e

    Saussure. Giddens e Foucault tambm aparecem em trs casos

    Em dois dos artigos analisados foram utilizadas as noes de-

    senvolvidas por Freud e Foucault. Em outros dois foram em-

    pregadas as idias de Max Weber e Foucault. Conceitos teri-

    cos da psicossociologia, teorias de estratgia,Actor-Network

    Theory relacionada com a Escola de Frankfurt (Adorno e

    Marcuse) , Bahaskar, Dawey, teorias feministas, teorias sobre

    gnero, Goffman e Larsh aparecem com as noes foucaultianas

    somente em um artigo cada.

    Pelo apresentado, pode-se notar que, embora haja nmero

    substancial de artigos que empregam majoritariamente noes

    foucaultianas, parcela significativa realiza junes de noes e

    conceitos oriundos de diversos pensadores. Vale frisar que nos

    artigos analisados no so feitas discusses ou anlises sobre

    a compatibilidade dessas utilizaes.

    5. PROBLEMATIZANDO A PRODUO EM TEORIA

    DAS ORGANIZAES FUNDAMENTADA NASIDIAS DE MICHEL FOUCAULT

    Neste tpico, sero problematizadas as caractersticas da

    produo acadmica em teoria das organizaes que possui

    como fundamento as idias de Michel Foucault.

    Em primeiro lugar, como j se disse, a disseminao das

    idias do pensador em teoria das organizaes ocorreu medi-

    ante a abertura do campo para a perspectiva ps-moderna, pois

    a maioria dos tericos organizacionais classifica o tipo de tra-

    Quadro 4

    Autores Utilizados alm

    de Foucault

    Autores Freqncia

    Somente Foucault 16Habermas 6

    Marx 6

    Derrida 3

    Giddens 3

    Freud 2

    Weber 2

    Outros 9

    Total 47

    Quadro 3

    Noes Foucaultianas

    Fundamentais Utilizadas

    Noes Foucaultianas Freqncia

    Poder disciplinar 20Poder/saber 8

    Poder como relao 8

    Viso geral 4

    Arqueologia 2

    Construo dasubjetividade

    2

    Outros 3

    Total 47

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco124 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    balho fundamentado nas suas idias como trabalhos ps-mo-dernos (BURRELL, 1988; CALS e SMIRCICH, 1999; COOPERe BURRELL, 1988). Contudo, seria coerente com os trabalhosde Michel Foucault classific-los como tal?

    Rabinow (1999), um dos mais respeitados estudiosos dofilsofo, avalia que suas obras se opem ao que chama de anti-

    pensadores: os ps-iluministas e os ps-modernos. Quandose classifica as obras de Michel Foucault como ps-moder-nas, acaba-se circunscrevendo seu pensamento a um campolimitado e disciplinado do saber. Com isso, alm de criar-seum saber disciplinado sobre o que ele fez, gera-se um discur-so de verdade sobre sua obra que induz a uma maneiracorre-ta e verdadeirade compreend-la e, assim, analisar suas con-

    tribuies.

    nos artigos, na maioria das vezes as demais noes surgem a

    partir da anlise das disciplinas em operao no contexto de

    organizaes especficas.

    Recordando a analtica do poder, percebe-se que o prprio

    Foucault reconheceu a importncia das disciplinas nas dinmi-

    cas de instituies. Todavia, com os desdobramentos de suas

    anlises, o pensador ampliou a analtica do poder com as dis-cusses a respeito da biopoltica. Foucault (1988) discutiu cla-

    ramente a relevncia da biopoltica e de sua articulao com os

    mecanismos disciplinares para a compreenso das relaes de

    poder na sociedade coetnea.

    Dessa maneira, focar a anlise do poder, a partir dos traba-

    lhos de Michel Foucault, somente na questo das disciplinas e

    dos seus mecanismos, negligenciar parte importante das suas

    idias. Por isso, ao analisarem pontualmente a questo do po-

    der disciplinar nas organizaes, os tericos organizacionais

    tocam em um ponto crucial, mas deixam de lado outros aspec-

    tos vistos pelo prprio Foucault como fundamentais para a

    compreenso da dinmica das relaes de poder na sociedade

    atual, bem como nas organizaes nela inseridas.

    Corroborando esse fato, a noo de poder disciplinar con-

    segue dar conta sem limitaesde analisar as relaes de po-

    der presentes no paradigmataylorista/fordista de produo

    (McKINLAY e STARKEY, 1998). No entanto, quando os teri-

    cos organizacionais se voltam para a anlise de ferramentas de

    gesto atuais como empowerment(HARDY e LEIBA-O

    SULLIVAN, 1998), culturas corporativas (WILLMOTT, 1993),

    equipes de trabalho (BARKER, 1993) etc. , notam que o poder

    disciplinar no aparece de forma pura, embora seja uma noo

    importante para compreender parte das dinmicas das relaes

    de poder. Assim, h nuanas e variaes sobre a operao do

    poder nas organizaes que a noo de disciplina no conse-

    gue explicar, pois caractersticas de relaes de poder no-dis-

    ciplinares esto cada vez mais presentes nas organizaes

    (MUNRO, 2000).

    Surge, ento, um quadro em que os tericos organizacionais

    fundamentados nos escritos de Michel Foucault no esto

    conseguindo dar conta da realidade observada com as noes

    que empregam, apesar de a analtica do poder possuir instru-

    mentosadequados para esse fim. Alm disso, no foram en-

    contrados entre os artigos analisados aqueles que discutissem

    a questo do poder fora da dinmica interna das organizaes

    ou seja, como as diferentes organizaes exercem poder sobre

    as pessoas fora de suas fronteiras, e a lgica externa que influ-encia a adoo dos mesmos mecanismos de controle por dife-

    rentes organizaes. No s a governamentalidade poderia ser

    muito til nesse sentido, mas tambm a possibilidade de anali-

    sar as articulaes entre mecanismos de disciplinarizao e de

    regulao em contextos organizacionais especficos, discus-

    so que no apareceu na amostra pesquisada.

    Em muitos artigos, os autores deixam transparecer a idia

    de que h um comandante da lgica das disciplinas e que as

    relaes de poder nas empresas so coordenadas por gestores

    O que parece mais temerrio em classific-lo como tal o

    fato de o pensador ter dedicado boa parte de suas obras

    denncia desses mecanismos classificatrios, discutindo como

    eles constituem disciplinas com interpretaes verdadeirasso-

    bre uma dada realidade e como a verdade contingente a uma

    dada poca e a um dado perodo. Burrell (1996) reconhece a

    limitao de classificar como ps-modernas as obras de um

    autor com idias complexas e posicionamentos tericos im-

    precisos. Portanto, a despeito de o incio da utilizao das

    noes desenvolvidas por Foucault na anlise das organiza-

    es ter ocorrido por meio da introduo de pensadores tidos

    como ps-modernos nesse campo de estudo, classific-lo como

    tal simplificar seu legado e ir contra aspectos importantes de

    suas obras.

    Ademais, h um problema especfico com a categoria de

    classificao ps-moderno. Ela pode ser vista, somente para

    citar alguns exemplos, como um movimento artstico (HAS-

    SARD, 1993), como novas perspectivas de estudo (PARKER,1992), como caractersticas de um novo tipo de sociedade

    (BAUMAN, 1988a e 1988b) e como um novo tipo de organiza-

    o (CLEGG, 1990), sem que haja coerncia entre essas diferen-

    tes vertentes. Trata-se, na verdade, de uma categoria bastante

    ampla e carente de unidade.

    Um segundo aspecto a se destacar que, conforme o apre-

    sentado, a maior parte dos textos realizados em anlise das

    organizaes com base nas obras de Michel Foucault apro-

    priou-se da noo de poder disciplinar. Quando empregadas

    Conceitos e noes tericas surgem dentro do

    contexto da obra de autores e formam conjuntos

    complexos de teorias. Quando extrados sem a

    devida relativizao, a chance de cometerem-se

    absurdos tericos muito grande.

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 125

    O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT NA TEORIA DAS ORGANIZA

    exploradores que as impem sobre os demais empregados, como

    se eles estivessem livres dos seus efeitos e vivessem margem

    das relaes de poder. Tais consideraes so absurdas para a

    analtica do poder, que considera as relaes de poder como

    estratgias sem comandantes de suas racionalidades e como

    estruturantes da sociedade em seus menores espaos (MA-

    CHADO, 1979).Uma terceira considerao que, como se viu anteriormen-

    te, dos 47 artigos analisados, somente 16 empregaram as idias

    de Foucault para a construo do seu argumento. Os demais

    utilizaram as idias de Foucault e de outros autores. Habermas,

    Marx, Derrida, Giddens, Freud e Weber so os mais recorrentes

    nos artigos do inventrio. Mostrou-se que, quando analisados

    de forma detalhada, os artigos no ficaram presos somente a

    conceitos foucaultianos e de mais um autor. Alm deles, vasta

    gama de diferentes abordagens e autores complementaram a

    base argumentativa dos artigos da amostra, como teorias femi-

    nistas, teorias de estratgia, psicanlise, teorias de gnero e

    at mesmo marxismo. Em outras palavras, as idias de Foucault

    foram complementadas pelas de outros tericos e por outras

    perspectivas.

    Outra caracterstica dos artigos da amostra o fato de as

    noes foucaultianas utilizadas terem sido abstradas do seu

    contexto. Alm disso, na argumentao que elaboraram, os auto-

    res dos artigos analisados exploraram, ao seu bel-prazer, idias

    de autores provenientes de outras reas das cincias huma-

    nas, realizando, na verdade, uma colcha de retalhosde concei-

    tos, sem preocupao com contextualizaes ou com a compa-

    tibilidade das idias empregadas. Dessa forma, utilizaram con-

    ceitos derivados de diferentes matrizes tericas como se usas-

    sem uma caixa de ferramentas.

    Pode-se perceber isso, por exemplo, no caso da juno en-

    tre as idias da psicanlise e de Foucault. Casey (1999) extrai da

    psicanlise a questo da influncia dos processos primrios na

    atividade humana e de Foucault a questo da construo da

    individualidade disciplinar. Utiliza-se desses conceitos para

    interpretar dados empricos extrados de entrevistas e pesqui-

    sa etnogrfica que realizou com o intuito de verificar os proces-

    sos de disciplina e integrao em culturas organizacionais. Outro

    exemplo Leflaive (1996), que construiu um artigo apontando

    as organizaes como estruturas de dominao; para tanto,

    utilizou-se de conceitos foucaultianos, marxistas, habermasianos

    e de Luhmann para a construo de seu argumento.

    Vale frisar, no entanto, que a relao do pensamento fou-caultiano com o pensamento psicanaltico no de com-

    plementaridade direta. H pontos de choque e discordncia

    (CHAVES, 1988). No caso das idias do marxismo, o mesmo

    fato se repete. Foucault tem srias objees concepo mar-

    xista de poder e ideologia. Com Habermas no diferente.

    Foucault teve, inclusive, embates com esse pensador (RABI-

    NOW, 1999).

    Portanto, verifica-se nos artigos analisados a utilizao de

    idias complexas como se fossem complementares, ou seja, a

    reduo sociolgica (RAMOS, 1996) est presente de forma

    marcante na teoria organizacional fundamentada nas idias de

    Michel Foucault. Isso no deveria ser feito sem uma anlise

    rigorosa da possibilidade da juno de conceitos e da admis-

    so das simplificaes que esse tipo de uso pode causar. Con-

    ceitos e noes tericas surgem dentro do contexto da obra de

    autores e formam conjuntos complexos deteorias

    . Quandoextrados sem a devida relativizao, a chance de cometerem-se

    absurdos tericos muito grande.

    Nas anlises fundamentadas nas idias de Foucault os au-

    tores empregaram principalmente a questo das disciplinas

    deixando de lado outros aspectos relevantes da analtica do

    poder. Com isso, acabaram por fazer o que criticam, pois realiza-

    ram uma utilizao corretae disciplinada das obras foucaul-

    tianas. Quais seriam os motivos disso?

    Em primeiro lugar, a obra Vigiar e Punir(1987) a mais

    famosa do pensador e apresenta a possibilidade de desenvol-

    ver paralelos interessantes com as organizaes de uma forma

    geral. Com isso, as pessoas tendem a l-la de forma isolada,

    deixando de lado a compreenso da complexidade da analtica

    do poder foucaultiana. Os autores organizaram seus artigos

    usando noes foucaultianas fora do contexto da obra do au-

    tor como se elas fossem instrumentos isolados, ou seja, parce-

    la significativa das anlises com base em Foucault foi realizada

    com o uso de noes individuais sem que elas estivessem den-

    tro do contexto metodolgico da Genealogia. Esse fato se repe-

    tiu com as idias de outros autores utilizadas para complemen-

    tar as leituras foucaultianas. Isso evidencia que os autores que

    empregaram noes foucaultianas em suas anlises esto mar-

    cados por uma viso simplista de conceitos complexos sem as

    devidas problematizaes,ao mesmo tempo que tm grande

    gosto pela instrumentalizao simplificada de conceitos.

    Em segundo lugar, a maioria das discusses de Foucault

    sobre a biopoltica no est disponvel ao pblico, j que faz

    parte dos cursos ministrados pelo pensador no Collge de

    Francee ainda indita. Dessa forma, as anlises desses te-

    mas dependem dos trabalhos de autores como Gordon (1991) e

    Fonseca (2001), que tiveram contato com os cursos e do indi-

    caes de como Foucault desenvolveu os temas de interesse

    em teoria das organizaes. Portanto, o uso exaustivo das dis-

    ciplinas pelos tericos organizacionais pode ser explicado pela

    instrumentalizao simplificada de conceitos e pela relativa

    ausncia de fontes sobre a biopoltica.

    6. CONCLUSO E POSSVEIS DESENVOLVIMENTOS

    Neste artigo, levantaram-se as principais caractersticas da

    produo acadmica em teoria das organizaes fundamenta-

    da no pensamento de Michel Foucault e problematizou-se a

    utilizao das obras foucaultianas pelos tericos da rea. Nas

    anlises, pde-se perceber que a produo acadmica em teo-

    ria das organizaes baseada nas obras de Michel Foucault

    trata majoritariamente das disciplinas e deixa de lado outros

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco126 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    aspectos da analtica do poder. Viu-se, tambm, que h a ado-

    o simplificada da analtica do poder e uma juno acriteriosa

    de conceitos e noes oriundos de diferentes matrizes epis-

    temolgicas. Discutiu-se, ainda, a inadequao da designao

    ps-modernopara classificar as obras de Michel Foucault e

    suas utilizaes em teoria das organizaes.

    Tendo como pano de fundo a analtica do poder, indicar-se-o, agora, algumas possibilidades de desenvolvimento para as

    anlises organizacionais foucaultianas. Um ponto que parece

    fundamental na diferenciao e na complementaridade entre as

    disciplinas e a biopoltica, mas que no foi explorado nos arti-

    gos analisados, a questo da norma biopoltica e da articula-

    o entre esses mecanismos de poder na norma.

    Diante disso, os tericos organizacionais poderiam utilizar

    a noo da norma biopoltica para analisar a realidade das or-

    ganizaes, e procurar observar como diferentes empresas

    possuem diferentes normalidades, que so especficas, e quais

    so os mecanismos (tcnicas de gesto, inovaes gerenciais,

    estratgias de ao, programas organizacionais etc.) utilizados

    pelas organizaes no para disciplinar, mas para criar curvas

    mais favorveis, buscando a regulao de seus funcionrios.

    Assim, poder-se-ia tentar perceber como os mecanismos de

    regulao esto presentes em diferentes contextos organiza-

    cionais, como atualmente as empresas procuram regular os flu-

    xos internos em suas organizaes, dando maiores possibilida-

    des de participao para seus empregados, fugindo de um con-

    trole disciplinar e buscando um controle de regulao. Nesse

    aspecto, poder-se-ia analisar como tcnicas gerenciais servem

    para a apreenso de diferentes curvas de normalidade dentro

    de empresas especficas para, depois, agir sobre as curvas des-

    favorveis. Alm disso, poder-se-ia investigar a articulao

    entre a norma disciplinar e a norma biopoltica, ou seja, como

    diferentes mecanismos de poder, exercidos de forma diferente,

    se articulam em contextos organizacionais especficos.

    Outro ponto passvel de ser desenvolvido o das poss-

    veis contribuies da noo de governamentalidade para a

    anlise organizacional. Mostrou-se na primeira parte que a uti-

    lizao dessa noo foi muito pouco desenvolvida pelos teri-

    cos organizacionais. A governamentalidade poderia ser de gran-

    de valia para a discusso das dinmicas de governo de organi-

    zaes e dos instrumentos e mecanismos utilizados para fazer a

    conduo de todos e de cada indivduo ao mesmo tempo, para

    conseguir o melhor resultado econmico dessa gesto, procu-

    rando ver como se d e que mecanismos geram as integraesentre as disciplinas e a biopoltica dentro das empresas e de-

    mais organizaes. A governamentalidade seria pertinente para

    analisar os mecanismos de poder que assujeitamos indiv-

    duos por discursos de verdade especficos e que vendem, de

    forma clara ou velada, a possibilidade de salvao.

    De forma complementar, a governamentalidade seria perti-

    nente para analisar as interaes de diferentes empresas e or-

    ganizaes que se articulam entre si e utilizam mtodos simila-

    res, mas que levam em conta suas peculiaridades, ao se inte-

    grarem a lgicas comuns. No caso das multinacionais, seria de

    particular interesse analisar, de forma pormenorizada, os mode-

    los e mtodos de gesto impostos s suas subsidirias pelas

    centrais, dentro da gesto utilizada para a multicomo um todo

    e as peculiaridades e as variaes que assumem em diferentes

    contextos.

    Dentro desse espectro de anlise, poderia ser investigadoo tipo de regulao que uma lgica mais geral, tanto nacional

    quanto internacional, impe s diferentes organizaes por meio

    de mecanismos nacionais (agncias de regulao, legislaes

    especficas, rgos de ministrios) e de mecanismos internacio-

    nais (Organizao Mundial do Comrcio e Organizao Inter-

    nacional do Trabalho, alm de Organizaes No-Governamen-

    tais como Greenpeace e Corporate Predators). A noo de

    governamentalidade poderia ser particularmente interessante

    paraanalisar como esses mecanismosafetam diretamente o

    tipo de gesto desenvolvido nas organizaes e o tipo de ins-

    trumentos e tcnicas de gesto implementados para geri-las

    Liberaes de crdito e aceitao de produtos dependem, mui-

    tas vezes, do cumprimento de regras, como no utilizar mo-de-

    obra infantil, no degradar o meio ambiente e adotar tcnicas

    de gesto especficas (como sistemas de auditoria, SAPs ou

    ISO-9000). Assim, tais integraes poderiam ser analisadas e

    pormenorizadas, discutindo como elas afetam a forma do go-

    verno e da conduo de condutas dentro das empresas.

    A analtica do poder poderia, por fim, ser empregada na

    teoria das organizaes para aprofundar as discusses sobre a

    dinmica entre poder e resistncia. Os autores dos artigos da

    amostra analisada discutem a resistncia nas organizaes pela

    tica do choque das relaes de poder, ou seja, considerando-

    a como indissocivel dessas relaes, pois so seu outro ter-

    mo. A idia fundamental a de que onde h poder, h resistn-

    cia. A noo de atitude crticaamplia esse espectro, pois com

    ela se pode resistir s formas de um governo (compreendido

    como conjunto de mecanismos de conduo de condutas), j

    que existe a possibilidade de recusar ser governado.

    Assim, se asartes de governarprocuram assujeitaros in-

    divduos por meio de mecanismos de poder que buscam para si

    uma verdade no interior da realidade de uma prtica social, a

    atitude crtica o movimento pelo qual o sujeito se d o direito

    de interrogar a verdade sobre os efeitos do poder do governo

    e interrogar o poder sobre seus discursos de verdade (FONSE-

    CA, 2001, p.272). Poder-se-iam investigar as atitudes crticas

    tomadas pelos indivduos em diferentes contextos organiza-cionais, seus significados, suas formas de atuao e suas con-

    seqncias. Seria interessante analisar os motivadores dessas

    atitudes nos contextos especficos e as suas formas de expres-

    so, alm de observar as diferenas dessas atitudes no nvel

    individual e no nvel coletivo.

    Pelo que se acabou de expor, indicou-se que possve

    ampliar o uso de noes foucaultianas em teoria das organi-

    zaes, trazendo novas luzes para o tema do poder e evitando

    simplificaes analticas.u

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizacoR.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004 127

    O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT NA TEORIA DAS ORGANIZA

    ALVESSON, M.; WILLMOTT, H. Making sense ofmanagement. London: Sage, 1996.

    __________. Critical management studies. London:Sage, 1997.

    BARKER, J. Tighting the iron cage: concentive control in the

    self management team. Administrative Science Quarterly,Cornell, v.38, n.3, p.373-398, 1993.

    BAUMAN, Z. Is there a postmodern sociology? Theory,Culture and Society, London, v.5, n.2, p.245-289, 1988a.

    __________. Viewpoint: sociology and postmodernity.Sociological Review, Keele, v.36, n.6, p.73-96, 1988b.

    BRAVERMAN, H. Labor and monopoly capital. New York:Monthly Review Press, 1974.

    BURRELL, G. Modernism, post-modernism and organization

    analysis 2: the contribution of Michel Foucault. OrganizationStudies, London, v.9, n.2, p.367-396, 1988.

    __________. Normal science, paradigms, metaphors,discourses and genealogy of analysis. In: CLEGG, S.;HARDY, C.; NORD, W. Handbook of organization analysis.London: Sage, 1996.

    BURRELL, G.; MORGAN, G. Sociological paradigms andorganization analysis. London: Routledge, 1979.

    CALS, M.; SMIRCICH, L. Past posmodernity? Reflectionsand tentative directions. Academy of Management Review,

    Atlanta, v.24, n.4, p.253-275, 1999.CASEY, C. Come, join our family: discipline and integration incorporate organizational culture. Human Relations, Tavistock,v.52, n.2, p.527-553, 1999.

    CHAVES, E. Foucault e a psicanlise. Rio de Janeiro:Forense Universitria, 1988.

    CLEGG, S. Modern organizations.London: Sage, 1990.

    CLEGG, S.; HARDY, C.; NORD, W. Handbook of organizationanalysis. London: Sage, 1996.

    COOPER, D.; BURRELL, G. Modernism, postmodernism andorganizational analysis.Organizational Studies, London, v.9,n.1, p.126-159, 1988.

    FEATHERSTONE, M. In pursuit of the postmoden: anintroduction.Theory, Culture and Society, London, v.5, n.2,p.345-380, 1988.

    FONSECA, M. Michel Foucault e a constituio do sujeito.So Paulo: Educ, 1995.

    FONSECA, M. Foucault e o direito. 2001. Tese (Douturado) Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, SoPaulo, So Paulo, Brasil.

    FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: MACHADO, R.Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

    __________. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987.

    __________. Histria da sexualidade: a vontade de saber.Rio de Janeiro: Graal, 1988.

    ___________. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.;DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetria filosfica paraalm do estruturalismo e a hermenutica. Rio de Janeiro:Forense Universitria, 1995.

    __________. A verdade e as formas jurdicas. 2ed. Rio deJaneiro: Nau Editora, 1999a.

    __________. Em defesa da sociedade.So Paulo: MartinsFontes, 1999b.

    FOURNIER, V.; GREY, C. At the critical moment: conditionsand prospects for critical management studies. HumanRelations, Tavistock, v.53, n.1, p.183-227, 2000.

    GORDON, C. Governamentality. In: BURCHELL, G.;GORDON, C.; MILLER, P. The Foucault effect: studies ingovernamentality. Chicago: The University of Chicago Press,1991.

    HARDY, C.; LEIBA-OSULLIVAN, S. The power behindemporwerment: implications for research and practice. HumanRelations, Tavistock, v.51, n.4, p.378-403, 1998.

    HASSARD, J. Sociology and organization analysis: positivism,paradigms and post-modernism. Cambridge: University ofCambridge, 1993.

    KNIGHTS, D. Writting organitional analysis into Foucault.Organization, London, v.9, n.4, p.112-147, 2002.

    KNIGHTS, D.; WILLMOTT, H. Power and subjectivity at work:from degradation to subjugation in social relations. Sociology,v.23, n.4, p.156-188, 1989.

    LEFLAIVE, X. Organizations as structures of domination.Organization Studies, London, v.17, n.1, p. 456- 491,1996.

    MACHADO, R. Por uma arqueologia do poder. In:MACHADO, R. Microfsica do poder. Rio de Janeiro:Graal, 1979.

    McKINLAY, A.; STARKEY, K. Foucault, management andorganization theory. London: Sage, 1998.

    REFERNCIAS

    BIBL

    IOGRFICAS

  • 5/18/2018 O Pensamento de Michel Foucault Na Teoria Das Organiza es

    http:///reader/full/o-pensamento-de-michel-foucault-na-teoria-das-organizaco128 R.Adm., So Paulo, v.39, n.2, p.117-128, abr./maio/jun. 2004

    Fernando C. Prestes Motta e Rafael Alcadipani

    MUNRO, I. Non-disciplinary power and the network society.Organization, London, v.7, n.4, p.315-357, 2000.

    ORTEGA, F. Amizade e esttica da existncia em Foucault.Rio de Janeiro: Graal, 1999.

    PARKER, M. Critique in the name of what? Postmodernism and

    critical approaches to organization. Organization Studies,London, v.16, n.4, p.412-460, 1992.

    __________. Capitalism, subjectivity and ethics: debatinglabour process analysis. Organization Studies, London,v.20, n.1, p.219-241, 1999.

    PORTOCARRERO, V.; BRANCO, C. Retratos de Foucault.Rio de Janeiro: Nau Editora, 2000.

    RABINOW, P. Antropologia da razo. Rio de Janeiro: RelumeDumar, 1999.

    RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetriafilosfica para alm do estruturalismo e a hermenutica. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 1995.

    RAMOS, G. A reduo sociolgica. Rio de Janeiro: Editora daUFRJ, 1996.

    SEWELL, G. The discipline of teams: the control of team-basedindustrial work through eletronic and peer surveillance.

    Administrative Science Quarterly, Cornell, v.43, n.2, p.416-455, 1998.

    SILVERMAN, D. The theory of organization.London:Heinemann Educational Books, 1971.

    SOKAL, A.; BRICMOT, J. Fashionable nonsense:

    postmodern intellectuals abuse of science.New York:Picador, 1999.

    THEMED section on Foucault, management and history.Organization, London, v.9, n.4, p.316-345, 2002.

    SDIKEN, B.; PASADEOS, Y. Organizational analysisin North America and Europe: a comparation ofco-citation networks. Organization, London, v.16, n.3,p.411-467, 1995.

    WEICK, K. The social psycology of organizing reading.Cambridge: Addison-Weslay, 1969.

    WILLMOTT, H. Strengh is ignorance, slavery is freedom:managing culture in modern organizations. Journal ofManagement Studies, Leeds, v.30, n.4, p.412-461, 1993.

    WRAY-BLISS, E. Abstract ethics, embodied ethics:the strange marriage of Foucault and positivism in labourprocess theory. Organization, London, v.9, n.1,p.289-314, 2002.

    Michel Foucault, power and organizational theory

    Michel Foucaults works has been used widespread in different areas of social studies. The same is true to Organizational

    Theory (OT), specially to analyze power related issues. Despite his ideas has been used by many authors in OT, few

    critical analysis has been carried out about its usage. The aim of this paper is to analyze critically the uses of Foucaults

    ideas in OT. To do so, we present the main aspects of that usage and analyze taking into account Michel Foucaults

    own work.

    Uniterms:Michel Foucault, power, organizational analysis.

    Michel Foucault, poder y la teora de las organizaciones

    Se han utilizado los trabajos de Michel Foucault en diferentes reas de las ciencias humanas. Lo mismo est ocurriendo

    en el campo de la teora de las organizaciones, en especial, para analizar relaciones de poder en contexto organizacional.

    Y, a pesar de la influencia significativa en el rea, no hay discusiones sobre cmo se estn utilizando las obras del autor

    El objetivo de este artculo es el de sistematizar los estudios el los que se han utilizado las ideas del pensador en teora

    de las organizaciones, y el de indicar algunos caminos para ese tipo de anlisis.

    Palabras clave:Michel Foucault, poder, teora de las organizaciones.

    RESUMEN

    ABSTRACT

    REFERNCIAS

    BIBL

    IOGRFICAS