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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004 ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES 9 O PODER CONSTITUINTE E SUA EXPRESSÃO POLÍTICA Alexandre Ferreira de Assumpção Alves* Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Noção de Poder Constituinte. 3. Os vários conceitos. 4. Poder Constituinte originário e instituído. 4.1. Natureza. 4.2. Limites do Poder Constituinte originário. 5. Poder Constituinte e teoria do Poder Constituinte. 5.1. A doutrina do Poder Constituinte: Emmanuel Joseph Sieyès. 6. Características. 7. A lei constitucional e o controle de constitucionalidade. 8. Titularidade - nação e povo. 8.1 O Poder Constituinte do povo e dos monarcas. 9. O Poder Constituinte e a Revolução. 9.1. A Revolução como fenômeno jurídico. 9.2. A Revolução como fenômeno social. 9.3. Revolução e Constituição. 10. Formas de Expressão. 11. O Poder Constituinte na análise de Carl Schmitt. 12. Conclusões. 1. Considerações iniciais O estudo do tema em epígrafe tem duas acepções: política e jurídica. Este trabalho cuidará apenas da primeira, que compreende os conceitos e as teorias sobre o Poder Constituinte, sua natureza, titular e espécies, formas de expressão e limites. O assunto é um dos mais expressivos do Direito Constitucional, com liames em questões como: conteúdo e eficácia da Constituição, reforma constitucional, controle de constitucionalidade, poderes constituídos, entre outros. * Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito / Mestrado, da Faculdade de Direito de Campos.

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004

ALEXANDRE FERREIRA DE ASSUMPÇÃO ALVES 9

O PODER CONSTITUINTE E SUA EXPRESSÃOPOLÍTICA

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves*

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Noção dePoder Constituinte. 3. Os vários conceitos. 4. PoderConstituinte originário e instituído. 4.1. Natureza. 4.2.Limites do Poder Constituinte originário. 5. PoderConstituinte e teoria do Poder Constituinte. 5.1. Adoutrina do Poder Constituinte: Emmanuel JosephSieyès. 6. Características. 7. A lei constitucional e ocontrole de constitucionalidade. 8. Titularidade -nação e povo. 8.1 O Poder Constituinte do povo edos monarcas. 9. O Poder Constituinte e aRevolução. 9.1. A Revolução como fenômenojurídico. 9.2. A Revolução como fenômeno social.9.3. Revolução e Constituição. 10. Formas deExpressão. 11. O Poder Constituinte na análise deCarl Schmitt. 12. Conclusões.

1. Considerações iniciais

O estudo do tema em epígrafe tem duas acepções:política e jurídica. Este trabalho cuidará apenas da primeira,que compreende os conceitos e as teorias sobre o PoderConstituinte, sua natureza, titular e espécies, formas deexpressão e limites.

O assunto é um dos mais expressivos do DireitoConstitucional, com liames em questões como: conteúdoe eficácia da Constituição, reforma constitucional, controlede constitucionalidade, poderes constituídos, entre outros.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito / Mestrado, da Faculdadede Direito de Campos.

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A exposição que ora se inicia procurou examinar, deforma pontual e objetiva, os aspectos mais relevantes daTeoria do Poder Constituinte, a partir do pensamento deseus principais articuladores, destacando-se as obras deEmmanuel-Joseph Sieyès (Qu’est-ce que le tiers Etat?) eCarl Schmitt (Verfassungslehre), sempre relacionando oPoder Constituinte com a Constituição que dele se origina.

Verifica-se, malgrado a vetustez dos primeirostrabalhos, datados do século XVIII, que o instituto está emconstante renovação, haja vista que os paradigmasnorteadores da elaboração da Constituição (ou “decisõesfundamentais” na expressão utilizada peloconstitucionalista alemão Carl Schmitt) não sãoexatamente os mesmos que há duzentos anos. O EstadoSocial Democrata tem valores e objetivos diversos doestado Liberal ou do Autoritário. Estes valores constituemuma tábua axiológica que repercute, inexoravelmente, noconteúdo da Constituição e na forma das organizaçõespolítica e jurídica que ela disciplina. Insta, outrossim, tersempre em mente a forma de expressão do PoderConstituinte para compreender melhor sua obra.

2. Noção de Poder Constituinte

O sentido e a finalidade do Poder Constituinte estãointrinsecamente ligados à Constituição, pois ele é o poderque estabelece a Constituição e, como tal, a organizaçãofundamental de um Estado, sua base política e jurídica.

Paulo Bonavides analisa o Poder Constituinte sobum aspecto dinâmico, abstraindo seu titular: ele “se reduzformalmente a uma ação constituinte, capaz de criar oumodificar a ordem constitucional ou de produzir asinstituições fundamentais de uma determinadasociedade.”1 No mesmo sentido encontra-se Nelson

1 BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 136.

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Saldanha, para quem o Poder Constituinte “é a aptidão ouoportunidade de estabelecer uma Constituição. Suanatureza, destarte, consiste antes de tudo em ser “poder-para-ação.” Ele é antes do mais “potência constituinte”,algo cuja essência é tender para o ato e só no ato alcançarplenificação.”2

Cumpre advertir que existem vários conceitos dePoder Constituinte, apontados por Jorge Reinaldo Vanossi,os quais serão examinados a seguir.

3. Os vários conceitos

O jurista argentino Jorge Reinaldo Vanossi, na obra“Teoría Constitucional”, apresenta cinco conceitos dePoder Constituinte, a partir da análise de obras clássicassobre o tema e o pensamento esposado por seus autores,a saber: fundacional-revolucionário (Maurice Hauriou – “Ateoria da instituição e da fundação”), materialista (Lênin –“O Estado e a revolução”), dialético-plenário (HermannHeller – “Teoria do Estado”), racional-ideal (Emmanuel-Joseph Sieyès – “O que é o Terceiro Estado?”) eexistencial-decisionista (Carl Schmitt – “Teoria daConstituição”). Os dois últimos serão analisados nodecorrer do trabalho.

Maurice Hauriou enxerga no Poder Constituinteuma operação fundacional, resultado de um poderfundador e um procedimento de fundação. Este poder temcaracterísticas definidas: em primeiro lugar, é uma espéciede poder legislativo, levando-se em conta que asupralegalidade constitucional é uma espécie delegalidade e que as constituições escritas são leisconstitucionais; em segundo, o Poder Constituintepertence à nação, do mesmo modo que todos os poderesconstituídos, especialmente o poder legislativo. Hauriou

2 SALDANHA, Nelson. Poder constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 65.

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adverte que a nação não pode exercer diretamente o PoderConstituinte, como também os demais poderes; ele éexercido através de seus representantes. Em terceirolugar, o Poder Constituinte não se confunde com olegislativo (que é um poder constituído e político porantonomásia), pelas matérias e pela natureza de cada um.Os constituintes atuam mais como representantes danação do que do Estado, ao passo que os legisladoresordinários são melhor identificados como representantesdo Estado do que da nação. Jorge Reinaldo Vanossi3

explica a razão da denominação “fundacional-revolucionário:”

En la visión historicista de Hauriou, hayun derecho nacido del Estado, esdecir, lo social antes que lo estatal. Entiempos normales, predomina elderecho estatal, siendo su reformacompetencia privativa del aparatogubernamental; pero en los tiempos deanormalidad, sobreviene unresurgimiento del derecho de lasociedad que se rebela contra elpredominio estatal: las revolucionesimplican el renacimiento de la “liberdadprimitiva”, que en el lenguaje de Haurioues lo mismo que los autores llamanpoder constituyente originario y quenosotros distinguimos o detectamos enlas instancias fundacionales del Estadoy en los momentos de sus cambiosrevolucionarios. La revolución es, pues,la vuelta al constituyente originario, elrecomienzo de la libertad del ordensocial para ordenar el Estado, elsurgimiento de un nuevo derecho, quese traduce en una nueva constitución.4

3 VANOSSI, Jorge Reinaldo. Teoría constitucional. V. 1 Buenos Aires: Depalma,1975. p. 9-118, passim.4 Ibidem, p. 36.

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Vladimir Lilitch Ulianov, conhecido como Lênin,desenvolveu uma concepção materialista de Estado, deíndole nihilista, pois prega a extinção do próprio Estado. Oteórico da Revolução Russa prevê transformações sociaispor etapas, culminando com a superação das funções doEstado – este tornar-se-ia obsoleto – que passariam aser exercidas por uma sociedade sem classes, umacomunidade sem conflitos. Lênin apresenta osfundamentos de suas idéias na obra “O Estado e arevolução,” sustentando que o Estado é produto dascontradições irreconciliáveis entre as classes. Como nãoé possível se obter a harmonia e a paz, o Estado,expressão da burguesia, deve ser destruído peloproletariado através da revolução, que deve ser violenta,para extirpar de vez toda e qualquer forma de opressãode uma classe por outra. Na sociedade comunista não háclasses; desse modo, o Poder Constituinte pertence aoproletariado, que é o povo. Nota-se que no pensamentomaterialista não se cogita da divisão de poderes: ostrabalhadores unidos são os únicos e permanentesdirigentes da nação.

Herman Heller considera o Poder Constituinte comouma vontade política dotada de poder e autoridade, emcondição de determinar a existência da unidade políticacomo um todo. Entretanto, esta vontade política deve sernormatizada, sem a qual fica a massa humana sem poderde ação, e muito menos de autoridade. A existência e anormatividade do Poder Constituinte estão interligadas.Todo Poder Constituinte deve estar vinculado aos princípiosjurídicos comuns, sob pena de não ser poder nemautoridade, tampouco ter existência. Heller identifica aConstituição como uma totalidade, na qual estão reunidosem relação dialética o estático e o dinâmico, a normalidadee a normatividade. Nesse sentido, a Constituição éequiparada à organização do Estado, onde cada parteintegrante tem autonomia; ela representa uma cooperaçãoentre os indivíduos e grupos, através de relações de supra,

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sub e coordenação, graças as quais o Estado atingeexistência e unidade de ação.

4. Poder Constituinte originário e instituído.

A doutrina constitucional distingue dois “PoderesConstituintes:” um originário e outro constituído ouinstituído. Paulo Bonavides 5 ensina que o primeiro “faz aConstituição e não se prende a limites formais: éessencialmente político ou se quiserem extra-jurídico”(poder de fato). O segundo está inserido na própriaConstituição e, portanto, tem limitações tácitas eexpressas; é um poder de direito, cujo objeto é a reformado texto constitucional.

Georges Burdeau atribui ao Poder Constituinteoriginário a potência de construir a Constituição,independentemente do momento histórico; PoderConstituinte instituído, por seu turno, é aquele ínsito naConstituição através do qual é possível proceder à revisãoconstitucional.6

Aplaudindo a terminologia de Georges Burdeau, masdiscordando de sua aplicação, Nelson Saldanha consideracomo originário o poder primordial que antecede qualquernorma positiva, sendo, por isso mesmo, dela desvinculado.Segundo o mestre pernambucano, este poder estápresente no momento da formação do EstadoConstitucional (toda Constituição nova, com base nesteraciocínio, pressupõe um Poder Constituinte anterior), e,como instituído, aquele que estabelece a Constituição num“ordenamento jurídico-estatal já existente.”7

José Afonso da Silva, discorrendo sobre o tema,nega ao Congresso Nacional um Poder Constituinte de 1º

5 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., nota 1, p. 139.6 Apud SALDANHA, Nelson. Op.cit., nota 2, p. 78.7 Ibidem.

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grau. De fato, o Congresso Nacional, através de suasCasas Legislativas, tem competência para emendar aConstituição (art. 60, I, e § 2º da CF/88); trata-se de umórgão constituído que possui, dentre outras, estaprerrogativa. Ocorre que “esse poder não lhe pertence pornatureza, primariamente, mas, ao contrário, deriva deoutro (isto é, do poder constituinte originário).”8

O Poder Constituinte originário, ao estabelecer aConstituição (“Nós, representantes do povo brasileiro,reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituirum Estado Democrático, [...] promulgamos, sob aproteção de Deus, a seguinte Constituição da RepúblicaFederativa do Brasil.”), instituiu um Poder Constituintereformador, ou poder de emendar a Constituição. Atravésdesse expediente o Poder Constituinte originário atua demodo indireto, “em 2º grau”, pela outorga de competênciaa um órgão criado pela própria Constituição para, em seulugar, proceder às modificações no texto constitucional quea realidade e as mutações políticas, sociais e econômicasassim o exigem.

Manuel Gonçalves Ferreira Filho esclarece que éinerente às Constituições rígidas esta preocupação coma atribuição a um órgão da prerrogativa de modificar o seuconteúdo, indicando um procedimento para taldesideratum. Esta solução, na visão do professor paulista,é bastante democrática e útil, uma vez que possibilita aadaptação da Constituição às novas necessidades dasociedade para a qual ela foi concebida, sem que sejapreciso recorrer à Revolução ou ao Poder Constituinteoriginário: “permitir a modificação da Constituição dentroda ordem jurídica, sem uma substituição da ordem jurídica,sem a ação, quase sempre revolucionária, do PoderConstituinte originário.”9

8 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed.São Paulo: Malheiros, 1998. p. 67.9 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. O poder constituinte. 3ª ed. SãoPaulo: Saraiva, 1999. p. 124.

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4.1. Natureza

Cabe, por oportuno, investigar a natureza daConstituição fruto do Poder Constituinte. A respeito dotema existem duas orientações: positivista e jusnaturalista.Em síntese, trata-se de analisar o Poder Constituinte sobo prisma de uma categoria fática, extra-axiológica, ouaxiológica, apta a exprimir uma forma de legitimidade.

A doutrina do positivismo jurídico se baseia no fatode que todo direito é direito positivo, assim, o direito é postopelo Estado. A Constituição, nesta análise, é o ponto departida da ordem jurídica, pois dela emana o direitopositivo. A Constituição é um fato e o Poder Constituinteuma força social e não um poder de direito. Oestabelecimento de uma Constituição é um fato nãojurídico, fora da órbita da Ciência do Direito, embora sejaseu elemento propulsor. O Poder Constituinte, por ser umfato social, deve ser estudado pela Sociologia e não peloDireito. À vista do exposto, o único Poder admitido pelospositivistas é o Poder Constituinte derivado.

A tese jusnaturalista propõe que o direito não seresuma ao direito positivo, uma vez que, além dele, existeum outro, resultado da natureza humana – direito natural.O direito positivo para os jusnaturalistas só é válido quandoestiver de acordo com a lei natural.

O que é a “lei natural”? Esta noção é fundamental,posto que se trata de uma condicionante ao direito positivo.Conforme a doutrina tomista, é a parcela da lei eterna queDeus revelou aos homens; já para os adeptos da Escolado Direito Natural ou das Gentes é a razão humana. OPoder Constituinte, nesta análise, está ligado à liberdade,o primeiro dos direitos naturais do homem; é ela que iráfundamentá-lo.

Se todo homem tem o direito natural de liberdade,de autodeterminação, os homens podem, igualmente, pelodireito natural, determinar a vida coletiva, estabelecendoe alterando as Constituições sempre que convierem.

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Desse modo, o Poder Constituinte não é uma força sociale sim um poder de direito que decorre da ordem jurídico-social, mediante o qual os homens auto-organizam asociedade.

Partindo-se dos postulados acima, é possível afirmarque o Poder Constituinte sobrevive à promulgação daConstituição porque é o resultado da liberdade humana eo homem pode, a qualquer tempo, rever suas decisões,inclusive a organização constitucional, mesmo pela via daforça (direito de revolução).

O artigo 28 da Declaração dos Direitos do Homeme do Cidadão, documento primordial da RevoluçãoFrancesa, aprovado a 26 de agosto de 1789 pelaAssembléia Nacional, é considerado um dispositivoclássico de aplicação da tese jusnaturalista: “um povo temsempre o direito de rever, de reformar e de mudar a suaConstituição. Uma geração não pode sujeitar a suas leisas gerações futuras.”10

Nelson Saldanha considera o Poder Constituinte umpoder de fato, ao afirmar que: “o poder constituinte, umavez que cria o poder político que dará ao ordenamento oseu direito positivo, é um poder criador de poder.”11

Manoel Gonçalves Ferreira Filho12 analisa o debateem torno do Poder Constituinte a partir do binômiolegalidade/legitimidade, identificando quatro tipos de poder:legítimo e legal, legítimo e ilegal, ilegítimo e legal, e ilegítimoe ilegal.

O poder é legítimo porque está estabelecido deacordo com a concepção da comunidade em relação aoque é justo, à sua idéia de direito - se o poder emana do

10 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi incorporada, comopreâmbulo, à Constituição de 1791. Seu conteúdo tem inspiração nitidamenteiluminista e nas obras dos enciclopedistas, além das idéias de liberdadedifundidas pela Declaração de Independência dos Estados Unidos (4 de julhode 1776). Os governantes são simples mandatários dos governados e devemrespeito à Constituição, por isso mesmo, o povo tem o direito de resistir àopressão.11 SALDANHA, Nelson. Op. cit., nota 2, p. 68.12 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Op. cit., nota 9, p. 49-50.

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povo ou do monarca, se o sufrágio é universal ou censitário,enfim, é o consensus, a concordância da comunidadepolítica com a forma de Estado e de governo que ela desejae o funcionamento das instituições. O poder é legal porqueemana de normas jurídicas que justificam-no e a todosobrigam.

Quando o poder é legítimo, de acordo com oconsensus, ele é um poder de direito, ainda que não sejalegal (o Poder Constituinte revolucionário é um exemplo);todavia, havendo incompatibilidade dos desígnios dosgovernantes com os da comunidade, o poder é de fato,ilegítimo, e só se mantém pela força de seus “donos” oucom o auxílio dos aliados. Verifica-se esta última situaçãoem vários Estados soberanos, como o Afeganistão, e, naAmérica Latina, os episódios da Nicarágua e do Haiti antesda deposição dos ditadores Anastacio Somoza e Jean-Claude Duvalier, respectivamente.

Insta sublinhar que a polêmica em torno da naturezado Poder Constituinte (poder de fato ou poder de direito) sedá especificamente para o Poder Constituinte originário, hajavista que o Poder Constituinte instituído é sempre um poderde direito, subordinado quanto ao seu alcance (cf. art. 60, §4º da CF) e condicionado quanto ao seu exercício,13 ou seja,existem regras a serem observadas no processo legislativode uma emenda constitucional (art. 60, parágrafos 2º e 3º).

Se não há dúvidas quanto aos atributos do PoderConstituinte derivado, cumpre indagar a seguir: o PoderConstituinte originário tem limites?

4.2. Limites ao Poder Constituinte Originário

Qual o alcance do Poder Constituinte originário? Paraos positivistas é ilimitado, posto que antes dele não há direito.Nenhum direito pode ser invocado contra o Poder

13 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982. p.93.

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Constituinte. Os escritores jusnaturalistas sustentam que o limiteé o direito natural, aqueles direitos fundamentais universalmentereconhecidos.

Paul Bastid,14 abstraindo as duas posições antagônicas,propõe limites, de fato e de direito, ao Poder Constituinte. Osprimeiros estão ligados, de acordo com o autor, a inaplicabilidadeda Constituição toda vez que ela conflitar com os interesses dacomunidade e não obtiver o seu reconhecimento; os segundossão de ordem internacional (posição minoritária), uma vez que oDireito Internacional não é superior ao direito interno, nemsubordina o Poder Constituinte às suas normas; não obstante,existe uma tendência mundial das Constituições incorporaremao seus textos os princípios e mandamentos das DeclaraçõesUniversais de Direitos, como se verifica no art. 5º da Constituiçãode 1988.

5. Poder Constituinte e Teoria do Poder Constituinte.

Paulo Bonavides esclarece a distinção entre o PoderConstituinte e sua teoria (ou doutrina). O Poder Constituinte sempreexistiu em toda sociedade política, pois jamais deixou de haver oato de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de suaprópria organização; no entanto, uma teorização desse poderpara legitimá-lo, só ocorreu no século XVIII. De acordo com EgonZweig, na obra Die Lehre von Pouvoir Constituant, citada por PauloBonavides, é a “suma potestas nationis et rationis.” 15

5.1. A doutrina do Poder Constituinte: Emmanuel JosephSieyès

A doutrina do Poder Constituinte surge no século XVIIIassociada à idéia de Constituição escrita, a partir do pensamento

14 Apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., nota 9, p. 76.15 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., nota 1, p. 132-133.

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do francês Emmanuel Joseph Sieyès, tendo a obra “Qu’est-ce que le tiers État?” lançado as bases da doutrina.

O livro de Sieyès é um manifesto com asreivindicações do Terceiro Estado (o povo). O tema édesenvolvido através de perguntas. A primeira delas é “oque tem sido o Terceiro Estado?” Responde o autor: “nada”,uma vez que o Terceiro Estado não tinha privilégios e, naestrutura jurídica francesa da época pré-revolucionária, nãoter privilégios naquela sociedade era ser “nada”. “O que é?”:“tudo”, já que o terceiro Estado desenvolvia todas as tarefasnecessárias à comunidade (o comércio, a indústria, aagricultura, os serviços), ele era uma comunidade perfeita,existindo sem depender do clero ou da nobreza (Primeiro eSegundo Estados, respectivamente). A terceira indagaçãoé: “o que pretende ser?”: “alguma coisa” e, neste ponto,Sieyès apresenta as reivindicações do povo quanto aestrutura política e social, defendendo a supremacia danação sobre os governantes. O poder pertence à nação,mas ela pode decidir a quem atribuir o Poder Constituinte eexercê-lo como seu delegatário.

A tese de Sieyès parte da premissa de que todoEstado tem uma Constituição escrita e ela é fruto de umPoder Constituinte anterior, cuja obra é o documentoconstitucional. A Constituição é a fonte dos Poderes doEstado e a eles é superior. A Carta Magna estabelece ospoderes do Estado (constituídos), os quais não podemjamais extrapolar seus limites, haja vista que o PoderConstituinte é um poder supremo, soberano “poder criadorde poder(es).”

6. Características

Analisando o poder de criar a Constituição, Sieyèsidentifica suas características: permanência, ilimitação eincondicionamento ou desvinculação.

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Permanência: o Poder Constituinte se mantémmesmo depois de promulgada a Constituição. A naçãopode mudar, a qualquer tempo, a Constituição. Ela (anação) está acima da lei magna, é a origem de tudo, sendoconcebida pelo Direito Natural. Do mesmo modo que anação decide se dar uma Constituição, ela tem o poderde modificá-la. Esta importância que Sieyès atribui à naçãoreside no fato de ser ela, segundo seu pensamento, a titulardo Poder Constituinte.

Ilimitação: o Poder Constituinte da nação é ilimitado,isto é, não está adstrito às normas do direito positivoanterior (ex: pode abolir o direito à herança, suprimir oucriar poderes). A ilimitação encontra contudo um obstáculo:o Direito Natural, a única coisa que está acima da nação.Desse modo, Sieyès reconhece que os direitos do homeme do cidadão são permanentes. Isto só ocorre (ilimitação)com o Poder Constituinte originário; o de revisão tem seuslimites estabelecidos na própria Constituição.

Incondicionamento: a nação não está sujeita aqualquer forma pré-estabelecida para manifestar suavontade, ela não tem que seguir nenhum procedimentoespecífico. A vontade da nação é suprema, salvo o direitonatural.

7. A lei constitucional e o controle de constitucionalidade

Sieyès afirma que a Constituição está acima dospoderes constituídos; qualquer manifestação destes deveser conforme a lei magna. Isto revela uma supremaciaindiscutível do Poder Constituinte sobre os poderesconstituídos.

A Constituição é obra do Poder Constituinte. Todosos demais poderes a ela se subordinam; não cabe aosdelegatários alterar os limites do poder que lhes foiconfiado. Não pode, assim, o Poder Legislativo elaborarleis que conflitem com a lei constitucional, pois esta norma

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serve de base para toda a organização do Estado. O atoinconstitucional é nulo e sem efeito. Do pensamento deSieyès é possível extrair as bases para a supremacia daConstituição sobre as leis ordinárias e a necessidade,segundo o autor, de um órgão especializado para controlara constitucionalidade das leis (Tribunal Especial). AConstituição de 1799 acolheu em parte esta proposição,atribuindo ao Senado a verificação da conformidade dasleis com a Constituição, mas na prática isso não foi feito,especialmente em virtude da progressiva centralização dopoder em torno de Napoleão Bonaparte.

Urge sublinhar que alguns anos depois da publicaçãodo livro de Sieyès “Qu´est-ce que le tiers État?”, em 1803,nos Estados Unidos, o juiz Marshall da Suprema Corte,no rumoroso caso Marbury vs. Madison, sustentou ocontrole de constitucionalidade através dos juízesmonocráticos e não somente por um tribunal.

A decisão do juiz Marshall teve como premissas ofato de que a elaboração de uma Constituição exprime avontade do povo em ter consubstanciado neste documentoseu direito fundamental e supremo; portanto, qualquer atoou dispositivo que o viole é nulo, e de que cabe ao Judiciário(em todas as suas instâncias e graus de jurisdição)declarar qual é o direito do Estado, apreciando aconstitucionalidade das leis e atos administrativos.Negados tais paradigmas, nem a Constituição seráconsiderada uma norma hierarquicamente superior, nemo Legislativo teria limites na elaboração das leis.

Celso Duvivier de Albuquerque Mello16 adverte queos argumentos apresentados pelo juiz Marshall foramcontestados à época: sustentou-se que a Constituiçãoamericana não atribuiu o controle de constitucionalidadeao Judiciário; ademais, o Legislativo aprecia se as leisestão ou não conformes à Constituição durante o

16 MELLO, Celso Renato Duvivier de Albuquerque. Direito constitucionalinternacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 188.

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processo de sua elaboração. A decisão proferida porMarshall tinha um cunho eminentemente político eprocurava diminuir a atuação do Poder Legislativo, onde opresidente Thomas Jefferson, seu opositor, tinha maioria.Não obstante, a tese em exame foi incorporada pelasConstituições modernas,17 cabendo à Áustria a primaziana instituição de uma Corte Constitucional (1919),disciplinada pela Constituição de 1920.

8. Titularidade - nação e povo

Se existe um poder que estabelece a Constituição,a quem ele pertence? Cumpre apresentar, hic et nunc, odebate entre as doutrinas da soberania nacional(Emmanuel-Joseph Sieyès) e da soberania popular (Jean-Jacques Rousseau).

No pensamento de Sieyès, o poder de estabelecera organização fundamental do Estado é um poder supremoe está associado à sua soberania, mas onde se encontraa soberania? Este poder soberano, capaz de dispor sobrea organização política e elaborar a Constituição pertenceà nação, que é a comunidade e não o povo. Para o teóricofrancês, a nação é a encarnação da comunidade em suapermanência, nos seus interesses constantes, enquantoque o povo é a simples reunião de indivíduos, numdeterminado momento, sujeitos a um poder. A soberanianão está a serviço dos indivíduos, ela existe em razão dointeresse da comunidade em estabelecer as instituiçõesque irão governá-la.

Sieyès encara no povo uma noção transitória,individualizada, enquanto que a comunidade é estável,

17 A Constituição brasileira de 1988, no art. 102, I, a; confere ao SupremoTribunal Federal a competência para processar e julgar, originariamente, aação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estaduale a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.

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inferindo-se a sua preocupação com as gerações futuras.O povo pode mudar suas ambições, enquanto que acomunidade só se submete ao direito natural.

A doutrina de Sieyès associa a soberania a umamanifestação do Poder Constituinte. A soberania, no dizerde Nelson Saldanha, é

uma situação a partir da qual seconcebe o poder, possuído porqualquer unidade política, de se darConstituição. Ela é o fundamentoatmosférico do poder constituinte, quea pressupõe; mas, por seu turno, opoder constituinte, uma vez realizado,serve de suporte positivo e decomprovante da soberania. 18

Para Sieyès a nação é a própria lei, sua vontade ésempre legal. A supremacia da lei significava no séculoXVIII a supremacia da razão. A lei valia pela sua adequaçãoaos interesses da comunidade e do direito natural, ou seja,a razão era ditada pelo direito natural. O que se privilegiasão os interesses permanentes sobre os momentâneos,haja vista que a comunidade tem interesses permanentesdeterminados pela razão, enquanto que os do povo sãoresultado das paixões de um dado momento. A fonte dasoberania está na nação e não no povo.

Jean-Jacques Rousseau, na obra “Du ContratSocial,” defende a soberania popular como legitimadorado poder. O único governo legítimo é aquele estabelecidopela vontade geral, através da participação de todos oshomens nas decisões. O conjunto de homens que vivemnum determinado momento, numa determinadacomunidade, é o povo.

A soberania para Rousseau está no indivíduo, quedetém uma parcela dela. Sieyès não concebe a soberaniacomo algo divisível, fracionável; a soberania é unitária e18 SALDANHA, Nelson. Op. cit., nota 2, p. 67.

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pertence à comunidade. Na doutrina de Rousseau ogoverno só será legítimo se todos participarem doprocesso político (verifica-se a valorização do sufrágiouniversal); Sieyès, ao contrário, permite que a naçãoconfira a quem ela queira o poder de representação(representação-imputação) – o monarca pode serdeclarado como representante da nação e dar àcomunidade uma Constituição. Da mesma forma, no quetange ao eleitorado, este é uma função e não um direito;assim, é possível o sufrágio censitário.

Rousseau analisa a representação como umaexpressão da soberania popular. Com a adoção dosufrágio universal há uma coincidência prima facie entreas duas teorias: os representantes da nação (aqueles quefalam em seu nome através do voto) são os que constituemo povo. Na verdade, a principal distinção é que, para Sieyès,o interesse da comunidade está acima do interesse dosindivíduos, enquanto que Rousseau não tem umapreocupação tão saliente com o interesse geral.

No direito constitucional moderno a doutrina dasoberania popular é aquela que domina e está consagradano art. 1º, parágrafo único, e no art. 14 da Constituição de1988.

8.1. O Poder Constituinte do povo e dos monarcas

Paulo Bonavides mostra, dentro de uma abordagemhistórica, que a titularidade do Poder Constituinte vematribuída ora a Deus, ora ao príncipe ou monarca, ao povo,à nação, ao Parlamento ou a uma classe.19

Em Roma o poder do imperador emanava do povo,porém através do seu mais alto órgão representativo: oSenado. O Senado formalizava a outorga deste poder atravésda lex regia.

19 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., nota 1, p. 154.

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Na Idade Média a concepção política de poder estavaassociada a Deus, conforme o brocardo “omnis potestas aDeo”. Com o absolutismo, sua titularidade recai sobre omonarca, que a justificava sob a invocação do direito divino.

Durante a Revolução Francesa o Poder Constituintecoube à nação ou ao povo, mas efetivamente a uma classe –a burguesia; na Rússia com a revolução, o Poder Constituinteestava com o proletariado. Não há, de fato, um PoderConstituinte abstrato, pois ele está sempre ligado a umindivíduo, a um grupo ou ao povo; quem quer que seja seudetentor, não é visualizado num único e definido ente, aocontrário, sua titularidade é indecisa.

A origem do Poder Constituinte do povo está ligada aopensamento de Santo Tomás de Aquino. Este canonistabaseou-se na obra de São Paulo que prega a origem divina dopoder para elaborar sua doutrina.

Para São Paulo, “non est enim potestas nisi a deo” –não há poder que não venha de Deus. É Deus quem escolheo governante de um povo num dado momento, seja porqueele quer e o faz diretamente (doutrina do direito divino originário),seja porque ele age de acordo com a providência, que dispõeas coisas como elas devem ser (doutrina do direito divinoprovidencial).

Santo Tomás de Aquino não aceita que todo poder venhade Deus, pois ele não é uma figura abstrata e sim humana.Deus é a fonte de todo o poder, como acreditavam oscanonistas da época, mas ele é dado ao homem para quepossa viver. O homem, para Santo Tomás de Aquino, é o povo.E completa a frase do apóstolo São Paulo: “non est enimpotesta nisi a deo, sed per populum”- não há poder que nãovenha de Deus, mas pelo povo; é o povo quem fixa as basesdo seu governo.

Paradoxalmente ao desenvolvimento das idéias liberaisdo século XVIII, surge no século XIX a doutrina do PoderConstituinte dos monarcas.

De acordo com esta doutrina, o monarca poderialivremente alterar as instituições e a organização do próprioEstado. A princípio, parece contraditório após o fim do

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absolutismo surgir esta posição que valorizava o rei ou oimperador, especialmente quando na Idade Moderna eraadotada a doutrina das Leis Fundamentais do Reino, quereputava certas normas, relativas à estrutura política, comosendo superiores às demais, inclusive ao próprio rei.Qualquer ato praticado em contradição às leisfundamentais era sem valor; por exemplo, o sistema depropriedade da terra, a organização religiosa, entre outras.

O aspecto mais importante da doutrina das leifundamentais é a força pela qual eram alteradas: atravésda reunião dos Estados Gerais. Tal pensamento serve defonte para a doutrina da Constituição rígida, aquela que sópode ser alterada por um dos mecanismos que ela própriaprevê. A diferença desta doutrina para a da soberaniapopular ou nacional é que não havia nada que conferisseao povo ou à nação o poder de elaborá-las.

Exatamente pela existência de concepção quelimitava os poderes dos governantes, parece umainvolução a doutrina do Poder Constituinte dos monarcas,mas ela foi muito comum na primeira metade do séculoXIX, inclusive teve influência na Constituição brasileira doImpério.

Os reis, diante dos movimentos liberais dos séculosXIII e XIX, foram obrigados a autolimitar seu poder,outorgando constituições nas quais invocavam um PoderConstituinte que lhes era próprio (somavam o direito divinoà soberania popular).20 Cumpre observar, no casobrasileiro, a existência na Constituição Imperial do PoderModerador, privativo do imperador, considerado o pontode equilíbrio dos demais poderes. A fundamentação doPoder Constituinte nos reis vai sendo paulatinamentesuperada na segunda metade do século XIX, entrandocompletamente em desuso no século XX. O supremo

20 O preâmbulo da Constituição imperial (1824) é considerado um “modelo” dadoutrina do Poder Constituinte dos monarcas, uma vez que ele invoca odireito divino e a soberania popular, juntos, para legitimar o poder real. “DomPedro Primeiro, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos, ImperadorConstitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: [...]”

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poder no Estado pertence ao povo, que o exerce atravésde seus representantes eleitos, aos quais incumbe a tarefade elaborar uma Constituição.

Se o povo é fundamental na ordem constitucional,eis ser o titular do Poder Constituinte, o que significa estetermo, “povo”? A Constituição brasileira, que afirma asoberania popular nos arts. 1º e 14 não define o povo,apenas determina que ele é a fonte de todo poder e que éexercido através de seus representantes eleitos. A noçãode povo é ideológica e varia conforme o regime de cadaEstado. Nos regimes comunistas, o povo é identificadocomo o proletariado (conjunto dos trabalhadores); nosregimes democratas ocidentais o povo compreende oscidadãos, isto é, aqueles que têm direitos políticos. O queé possível afirmar é que sem o seu consentimento nãoexiste Constituição, porém, de acordo com ManoelGonçalves Ferreira Filho, é impossível precisar seuconceito de modo uniforme.21 Esta questão doconsentimento do povo assume um aspecto peculiarquanto a eficácia da Constituição elaborada pelo gruporevolucionário que toma o poder.

9. O Poder Constituinte e a revolução

Como já foi dito, o Poder Constituinte pertence aopovo, mas ele pode se manifestar através de um fenômenosocial que questiona, em geral através do uso da força, opoder dos governantes e a forma de Estado por elesestabelecida: a revolução. É bastante freqüente esta formade manifestação; a Constituição se estabelece pelaRevolução: ela é o elemento propulsor do PoderConstituinte. Não obstante, embora fenômeno nitidamentesocial, a revolução também tem um sentido jurídico.

21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., nota 9, p. 30-31.

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9.1. A revolução como fenômeno jurídico.

Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, ensinaque revolução é toda modificação ilegítima da Constituiçãopor um meio nela não previsto; destarte, é a alteração daConstituição contra a própria Constituição. Kelsen incluiem seu conceito tanto o golpe de Estado como a revoluçãofenômeno social, embora existam diferenças na seara daCiência Política.22 Para este jurista não importa se aConstituição é alterada ou substituída por emprego da forçaarmada vinda do governo, das massas populares ou deum grupo de indivíduos: sempre há revolução quando aConstituição é substituída ou alterada por mecanismosnão previstos. Assim sendo, juridicamente, a revoluçãoindepende de um movimento social. O simples golpe deEstado, com mudança dos titulares do poder contra asregras constitucionais, modificando as instituiçõespolíticas, é considerado como revolução.

9.2. A Revolução como fenômeno social.

Jean Baecheler23 analisa os fenômenosrevolucionários a partir da contestação da ordem social,demonstrando que nem todos almejam a conquista dopoder.

O primeiro movimento atinge as classes ou gruposmarginalizados, que se recusam a obedecer às regras dasociedade e quase sempre buscam a autodestruição, semqualquer pretensão política (hippies, clubbers, clochards).No segundo fenômeno, já aparece o objetivo de tomadado poder para mudar a ordem constitucional; entretanto,os meios utilizados para este desideratum são incapazes

22 Paulo Bonavides, em primoroso estudo, apresenta várias distinções entre os vocábulos“revolução” e “golpe de Estado”. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 6ª ed. Rio deJaneiro: Forense, 1986. Cap. 26, passim23 BAECHLER, Jean. Les phénomènes révolutionnaires. Paris: Presses Universitairesde France, 1970. Apud FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Op. cit., nota 9, p. 38-40.

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de atingir os objetivos colimados. São grupos que queremuma sociedade ideal, sem poder, classes ou leis, masse utilizam de expedientes ineficazes – atentados, reunirdiscípulos e fundar cidades-fortalezas, fazer comícios ougreves – cite-se, no Brasil, as revoltas ocorridas durantea Regência (Balaiada, Cabanagem, Farroupilha), a guerrade Canudos (última década do século XIX) e a Questãodo Contestado (1912 a 1916).

O terceiro movimento é o mais importante: temlugar quando a contestação ao regime usa os meiosadequados para atingir o poder e obtém êxito nesseintento. É o único movimento de oposição à ordem socialque merece ser denominado revolução, segundo JeanBaechler, pois é aquele que triunfa derrubando o poderestabelecido.

9.3. Revolução e Constituição

O grupo revolucionário que toma o poder logo sepreocupa em elaborar uma nova Constituição, espelhode sua vitória, que anuncie a nova ordem político-social.É a base jurídica, suprema e obrigatória, da nova ordem.A promulgação de uma Constituição, pelo ditador ou pelaspessoas que estão no poder, é um ato constituinteapenas quando obtiver a concordância por parte dosgovernados, pelo povo. O ato constituinte estácondicionado ao cumprimento do teor da Constituição,ganhando eficácia (efetividade) verificada essa condição(o povo acata as ordens editadas pelo governante). Misterse faz que a idéia de direito que o grupo invoca sobre omodo e a forma da unidade política seja aceita pelacomunidade, sem o qual ela cai no vazio e o poder só semantém pela força.

A tese da eficácia da Constituição foi sustentadapor Hans Kelsen, para quem a eficácia é condição de

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validade da ordem jurídica e pode ser obtidaexpressamente – quando a Constituição é referendadapelo povo 24 – ou tacitamente – quando suas regras sãocumpridas, inclusive pelos Tribunais, sem adesãoexpressa.

O ato constituinte, quando decorrente do fenômenosocial revolucionário, está sujeito a um cumprimentoglobal, sem o que não se transforma em direito positivo.Ganhando efetividade, passa a ser Constituição, docontrário, fica simplesmente no plano social, não tem forçajurídica. 25

10. Formas de expressão

O Poder Constituinte pode se expressar eestabelecer a Constituição por meios diversos: é o que adoutrina identifica como suas “formas de expressão”,basicamente, a outorga e a convenção ou assembléiaconstituinte.

Insta sublinhar que não há nenhum meio pré-estabelecido para a manifestação do Poder Constituinte,haja vista que este é desvinculado, incondicional, de acordocom a doutrina de Sieyès.

A outorga ocorre quando a Constituição éestabelecida por ato unilateral do agente do PoderConstituinte (ato de poder), que oferece ao povo umaConstituição, autolimitando seus poderes no textonormativo. Para demonstrar o desejo do soberano emcercear seus poderes, a outorga da Constituição é seguida

24 A experiência constitucional francesa é marcada pela preocupação dosgovernantes em, imediatamente após sua subida ao poder, dar ao povo umaConstituição ou convocar uma Assembléia Constituinte, submetendo o textoconstitucional ao referendum popular.25 À guisa de ilustração, foi o que ocorreu com a Revolução Espartaquista de1918, instalada logo após a queda do Império Alemão, e a Revolução defevereiro de 1917 na Rússia, com a deposição do czar Nicolau II.

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do juramento ao documento – esta forma foi muito usadano século XIX, sendo o Poder Constituinte representadopelo monarca. No Brasil, as Constituições de 1824 e de1937, além dos Atos Institucionais, tiveram esta forma deexpressão. Cumpre notar que é condição de eficácia doato constituinte a sua observância pelo povo.

Quando a Constituição é estabelecida a partir dadeliberação dos representantes populares (v . g.Constituição brasileira de 1946), com debates e votações,o Poder Constituinte se manifesta pela convenção ouassembléia constituinte. É um ato sucessivo e democráticoe não simultâneo e unilateral.

11. O Poder Constituinte na análise de Carl Schmitt

Carl Schmitt,26 em sua obra clássica“Verfassungslehre”, considera a Constituição como frutode uma decisão política unilateral do sujeito do PoderConstituinte, ou mediante convenção plurilateral de váriossujeitos. Verifica-se, segundo o autor, uma ligaçãoindissociável entre os termos “Constituição” e “PoderConstituinte”. Este é uma vontade política, com força ouautoridade para adotar a concreta decisão de conjuntosobre o modo e a forma da própria existência política.Desta decisão emana a validade de todo o ordenamentojurídico (legal-constitucional). A Constituição, nesteraciocínio, se apóia numa decisão emanada de um serpolítico e não numa norma que tenha na justiça seufundamento de validade. Este ser político concreto é oPoder Constituinte, a vontade política em que se baseia aConstituição.

A edição de uma Constituição não esgota, absorveou consome seu poder organizador, uma vez que este

26 SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982.p. 93-103, passim.

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não pode se autodestruir nem agir contra si, pois a vontadepolítica que é o Poder Constituinte é superior, unitária eindivisível; é a base que engloba todos os outros poderese divisões de poderes. É o único poder capaz de resolveros conflitos constitucionais que afetem os pilares daConstituição, assim como as lacunas do textoconstitucional, as obscuridades e discrepâncias das leisconstitucionais; enfim, só é possível mudar, esclarecer ouresolver as questões referentes à decisão políticafundamental pela via do Poder Constituinte.

Ressalta Manuel García-Pelayo, analisando a obrade Carl Schmitt, a distinção entre a Constituição e as leisconstitucionais: aquela é resultado de uma decisão únicado Poder Constituinte, definidora de toda a unidade política,já estas estão apoiadas no texto da Carta Magna,guardando conexões com as decisões fundamentais. Eacrescenta:

La distinción entre constitución y leyesconstitucionales se manifiestaprácticamente, entre otros ejemplos,en los siguientes: a) el procedimientode reforma es válido para las leyesconstitucionales, pero no para laconstitución, pues una reforma de lasdecisiones políticas fundamentales nosupondría una enmienda, sino laanulación de la constitución; b) lasleyes constitucionales puedensuspenderse (estado de guerra), perono la constitución como totalidad, puesprecisamente la razón de talsuspensión es el mantenimiento de laconstitución como totalidad; c) unconflito constitucional no afeccta a lasparticularidades, sino a las decisionespolíticas fundamentales; d) eljuramento de lealtad a la constituciónno vincula a ser leal a todos lospreceptos constitucionales, que

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pueden cambiar siguiendo el métodode reforma previsto – y un juramentoen blanco no tiene sentido -, sino quea lo que vincula es a las repetidasdecisiones políticas fundamentales. 27

Outro ponto importante no pensamento de CarlSchmitt é a atividade do Poder Constituinte. Reafirmandoa posição de Emmanuel-Joseph Sieyès sobre adesvinculação do Poder Constituinte de qualquerprocedimento pré-estabelecido, o jurista alemão analisao Poder Constituinte do monarca e do povo.

O primeiro é exercido de forma unilateral, sendoauto-regulador quando a monarquia absoluta é umainstituição estabelecida. A vantagem, nesse caso, é quea vontade política está clara e expressa numa entidadefirme e presente, individualizada, mas as desvantagenssão maiores, haja vista que a organização e a instituiçãoda monarquia não descansam em conceitos políticos, masdinásticos (direito de família e das sucessões). O PoderConstituinte do monarca se expressa pela outorga, sem oreconhecimento deste poder pelo povo, ainda que aConstituição seja o resultado de entendimentos mantidoscom setores da sociedade política ou com as massas. Ofato do monarca aceitar a manifestação de terceiros naelaboração do texto constitucional não significa umalimitação ou uma renúncia ao poder que ele se atribuiu,ou foi a ele conferido pelo direito divino de dar à sociedadeuma Constituição.

O povo manifesta seu Poder Constituinte atravésde qualquer decisão de conjunto, dirigida sobre o modo ea forma de anuência com a unidade política. O povo não éuma autoridade permanente, uma instância organizada.A forma normal de sua manifestação é a aclamação – voz deconsentimento ou de repulsa da multidão reunida. A aclamação

27 GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado. Madrid:Alianza Editorial, 1987. p. 86.

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28 SCHMITT, Carl. Op.cit., nota 13, p. 111-112.

se manifesta como opinião pública. O povo pode dizer “sim”ou “não”, assentir ou rechaçar. Em tempos de ordem e pazsão raras e desnecessárias, na opinião de Carl Schmitt,28

semelhantes manifestações, já que há precisamente umconsentimento na subsistência da Constituição; no entanto,em tempo de crise, um “não” representa a afirmação de umadecisão que se oferece como alternativa.

Isto ocorreu em novembro de 1918, quando o povoalemão negou o princípio monárquico dizendo “sim” àRepública; no Brasil, em 1963 e em 21 de abril de 1993, osbrasileiros manifestaram-se em plebiscito sobre a forma e osistema de governo que queriam para o Brasil.

Em síntese, é possível afirmar que Carl Schmittconsidera a vontade constituinte do povo sempre manifestadanum sim ou não fundamental, desse modo ele adota a decisãopolítica que dá conteúdo à Constituição. Esta vontadeconstituinte é imediata e não está jungida a nenhumprocedimento constitucional, nem à própria Constituição.

12. Conclusões

1. Constituição e Poder Constituinte são noçõesinseparáveis. A Constituição é o documento que estabelece aorganização política e jurídica fundamental de um Estado, é aexpressão maior de sua soberania. Este documento é resultadode um poder dinâmico que cria ou modifica os poderesconstituídos e as instituições básicas de uma sociedade,manifestando-se para estabelecer ou reformar a Lei Maioratravés da outorga (ato de poder) ou da Assembléia Constituinte(ato sucessivo e democrático).

2. Não há um conceito uniforme e cediço de PoderConstituinte. O tema é fortemente imbuído de ideologias einfluências políticas, refletindo-se nas várias opiniões eteorias sobre sua natureza. Tal pluralismo revela cinco

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vertentes, apontadas por Jorge Reinaldo Vanossi:fundacional-revolucionária; materialista; dialético-plenária;racional-ideal e existencial-decisionista.

3. Existem duas espécies de Poder Constituinte –originário e constituído. O primeiro é ilimitado e criador,enquanto que o segundo tem suas condicionantesprevistas na própria Constituição (v.g. as cláusulas pétrease o procedimento de reforma constitucional).

4. Grassa uma dissidência acerca da natureza doPoder Constituinte, diretamente vinculada à doutrina dopositivismo jurídico ou do jusnaturalismo. Para a primeiracorrente, só existe o Poder Constituinte derivado ouconstituído, pois o originário é uma categoria extra-axiológica, alijada do mundo jurídico. O ponto de partidado direito positivo é a Constituição, fonte do ordenamento;antes dela não há direito, mas um fato social sem limitesprevistos que impulsiona a criação da Lei Magna.

A visão jusnaturalista considera o Poder Constituintecomo um poder de direito, apto a exprimir a legitimidadeda Constituição e dos poderes por ela criados. Os adeptosdeste pensamento não reconhecem apenas o direitopositivo, haja vista que acima da norma legal está a leinatural, isto é, a parcela da lei divina revelada ao homemou a razão humana, que restringem a atuação do PoderConstituinte. Destarte, a liberdade é a sua fundamentação,pois é ela que leva os homens a estabelecer e alterar asConstituições, auto-organizando a sociedade.

5. A doutrina do Poder Constituinte surge a partir dacrise do Estado Absolutista, tendo a obra de Emmanuel-Joseph Sieyès “Qu’est-ce que le tiers Etat?” sido aprecursora. Neste livro o autor apresenta as reivindicaçõesdo Terceiro Estado e defende a supremacia da nação sobreo povo, conflitando suas idéias com as de Jean-JacquesRousseau. Para Sieyès o Poder Constituinte é anterior àConstituição e está acima dela e dos poderes constituídos,em virtude de seus caracteres de permanência, ilimitaçãoe incondicionamento.

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O trabalho de Sieyès lançou as bases para a tese docontrole de constitucionalidade das leis pelo Judiciário,através da criação de um Tribunal Especial por ele proposto.Posteriormente, nos Estados Unidos, o juiz Marshallampliou a proposta de Sieyès, defendendo que qualquermagistrado ou Corte de Justiça pode apreciar aconformidade ou não dos atos normativos com aConstituição. De fato, tal proposição só foi incorporada àsConstituições neste século, cabendo a primazia ao direitoconstitucional austríaco.

6. No direito constitucional moderno prevalece a noçãode que o sujeito do Poder Constituinte é o povo (doutrina dasoberania popular), afastando-se a idéia de que a nação –encarnação da comunidade em sua permanência, nos seusinteresses constantes – seria a titular desse poder. Naverdade, nunca houve um único e definitivo titular, adverteManoel Gonçalves Ferreira Filho. A experiência históricademonstrou que Deus, o príncipe, o monarca, um grupo ouclasse, entre outros, já foram detentores Poder Constituinte.

7. No século XIX o Poder Constituinte se manifestoucomumente através da outorga de Constituições pelos reis,que invocavam o direito divino somado à soberania popularpara legitimar sua autoridade. Este expediente foi utilizadopor Dom Pedro I no preâmbulo da Constituição de 1824.

A teoria do Poder Constituinte dos monarcasrepresentou um retrocesso em relação ao século anterior,onde os filósofos e escritores sustentaram a eliminação dopoder centralizado numa pessoa e sua disseminação entreos membros de uma comunidade, individual oucoletivamente considerados (povo/nação). Ademais, jáexistia na França a doutrina das Leis Fundamentais doReino, que proibia a alteração de certas normas,consideradas fundamentais para o Estado, sem a reuniãodos Estados Gerais.

8. O Poder Constituinte pode se manifestar atravésda Revolução. Esta, além de ser uma fenômeno social, é

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também jurídico. Revolução, em sentido jurídico, é todamodificação da Constituição por um mecanismo nela nãoprevisto, abarcando inclusive movimentos que a CiênciaPolítica considera como golpe de Estado.

O fenômeno revolucionário só é eficaz quando acontestação ao regime utiliza os meios adequados paraderrubá-lo e, após conseguir seu intento, surge uma novaConstituição, cuja eficácia está condicionada ao seucumprimento – expresso ou tácito – pelo povo e pelosTribunais, do contrário o ato revolucionário fica no planosocial, sem força jurídica.

9. Carl Schmitt foi um dos maiores nomes naelaboração de uma Teoria Constitucional. Para o juristaalemão a Constituição é o resultado de uma decisão políticado sujeito do Poder Constituinte. Desta decisão emana avalidade de todo o ordenamento jurídico. O povo manifestao Poder Constituinte através de manifestações positivasou negativas, acatando ou rejeitando as opções que secolocam diante dele. Estas decisões, contudo, nãovinculam as gerações futuras que podem, a qualquermomento, mudá-las.

Referências:

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