O Portugal do tempo em António moderno salazarista, viveu · truiu o documentário como quem faz...

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Documentário O Portugal do tempo em que António Ferro, moderno e salazarista, viveu Documentário sobre o Portugal do Estado Novo, hoje, às 21h, na RTP2. O eixo central é o director da propaganda de Salazar, António Ferro, o amigo dos modernistas e dos ditadores Lucinda Canelas A parede coberta de recortes cria uma espécie de vórtice, engole. As imagens são fortes e atraentes, às vezes inusitadas. Umas estão lá para evocar pessoas, outras situações, ide- ologias, maneiras de ver o mundo em transformação (mais para uns do que para outros). até açaimes pendu- rados, que Paulo Seabra encontrou à porta de uma casa de cabedais da Rua de S. Paulo que faliu. "Cheiram a censura. Estão para lembrar que ela existiu e deu cabo de muita coi- sa", diz o realizador. No estúdio onde Paulo Seabra fez grande parte do documentário Esté- tica, Propaganda e Utopia no Portu- gal de António Ferro, cujo primeiro de dois episódios se estreia hoje às 21h na RTP2 (o segundo passa a 16 de Dezembro), estantes repletas de livros, revistas e outros periódicos, postais, fotografias e objectos que ra- pidamente associamos às primeiras décadas do século XX português e, em particular, ao Estado Novo. Cotti- nelli Teimo, o gato siamês com nome de arquitecto, anda por ali a tentar entrar num móvel que Tom, um dos modernistas ligados ao regime, desenhou para a Pousada de Eivas e que o realizador e Maria Antónia Linhares de Lima, responsável pela pesquisa, encontraram numa loja de velharias. É que guardam muitas das pre- ciosidades bibliográficas que anda- ram a "respigar" - a expressão é dela - nos alfarrabistas. Foi num de Torres Vedras que encontraram um docu- mento de que se orgulham particu- larmente, o diploma de funções pú- blicas de António Ferro, que Salazar haveria de nomear director do Se- cretariado de Propaganda Nacional (SPN), principal motor da "política do espírito" do Estado Novo. A dupla não quis fazer um docu- mentário sobre este jornalista e po- lítico português, homem polémico que se habituou a entrevistar dita- dores um pouco por toda a Europa e que trouxe a Portugal figuras im- portantes do nazismo, como Albert Speer, o arquitecto da nova Berlim, e Robert Ley, o responsável do Reich pelo trabalho escravo. "A pesquisa é que nos levou a Ferro", explica Maria Antónia Linhares. "Começámos por nos sentir atraídos pela estética do Estado Novo, pela imagem nova que veio trazer. E essa imagem está mui- to ligada ao Ferro e aos artistas e ar- quitectos que ele vai buscar." Seabra resume: "Ferro éa pessoa necessária para contar a história, mas o protago- nista do documentário é o Portugal do tempo em que ele viveu." No mural do estúdio, que aparece diversas vezes ao longo de duas ho- ras de documentário e que começou por um simples traço negro e que se transformou num caleidoscópio de referências da política e cultura portuguesas e internacionais, re- produções de obras de Amadeo e Al- mada, fotografias de Lenine e Estali- ne, promoções de filmes de Leitão de Barros e retratos de Samuel Beckett, James Joyce e Alexandre O'Neill ves- tido à César. Mas há também capas de edições do SPN do "genial" Paulo Ferreira, cartazes a fomentar que se cozinhe sardinha portuguesa enlata- da e fotografias do primeiro congres- so da União Nacional no Coliseu dos Recreios e do descarregamento do ouro em Lisboa, em 1932. "Muitas vezes mudámos recortes da parede para filmar um plano no- vo", explica o realizador, que cons- truiu o documentário como quem faz cinema, segundo o diagrama de movimento do cineasta russo Serguei Eisenstein. "Foi sem pretensão. O que me interessava era que fosse a música a conduzir a emoção." E é. Em Estética, Propaganda e Utopia a música dos portugueses Luís de Frei- tas Branco, Joly Braga Santos e Fre- derico de Freitas, em interpretações "excessivas" dirigidas pelo maestro Álvaro Cassuto, ganha uma dimensão verdadeiramente cinematográfica. Fascinado por ditadores Chefe da propaganda e responsável pela política cultural do Estado Novo entre 1933 e o final dos anos 40, An- tónio Ferro (1895-1956) é uma figura que ainda hoje não reúne consenso. Mesmo na época, sobretudo depois de 1940, "ninguém o levava a sério", garantem os historiadores José-Au- gusto França e Margarida Acciaiuoli, que aparecem a conversar em vários momentos do documentário de Sea- bra, que inclui também intelectuais e outros estudiosos deste período, como Eduardo Lourenço, Fernando Rosas, José Barreto, Fernando Dacos- ta, Lauro António, Rui Afonso, Emília Tavares e Fernando Guedes.

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Documentário

O Portugal do tempo em que AntónioFerro, moderno e salazarista, viveuDocumentário sobre o Portugal doEstado Novo, hoje, às 21h, na RTP2. Oeixo central é o director da propagandade Salazar, António Ferro, o amigo dosmodernistas e dos ditadoresLucinda Canelas

A parede coberta de recortes criauma espécie de vórtice, engole. As

imagens são fortes e atraentes, às

vezes inusitadas. Umas estão lá paraevocar pessoas, outras situações, ide-

ologias, maneiras de ver o mundo emtransformação (mais para uns do quepara outros). Há até açaimes pendu-rados, que Paulo Seabra encontrouà porta de uma casa de cabedais daRua de S. Paulo que já faliu. "Cheirama censura. Estão aí para lembrar queela existiu e deu cabo de muita coi-

sa", diz o realizador.No estúdio onde Paulo Seabra fez

grande parte do documentário Esté-

tica, Propaganda e Utopia no Portu-gal de António Ferro, cujo primeirode dois episódios se estreia hoje às21h na RTP2 (o segundo passa a 16 de

Dezembro), há estantes repletas de

livros, revistas e outros periódicos,postais, fotografias e objectos que ra-

pidamente associamos às primeirasdécadas do século XX português e,em particular, ao Estado Novo. Cotti-nelli Teimo, o gato siamês com nomede arquitecto, anda por ali a tentarentrar num móvel que Tom, umdos modernistas ligados ao regime,desenhou para a Pousada de Eivase que o realizador e Maria AntóniaLinhares de Lima, responsável pelapesquisa, encontraram numa loja develharias.

É lá que guardam muitas das pre-ciosidades bibliográficas que anda-ram a "respigar" - a expressão é dela- nos alfarrabistas. Foi num de TorresVedras que encontraram um docu-mento de que se orgulham particu-

larmente, o diploma de funções pú-blicas de António Ferro, que Salazarhaveria de nomear director do Se-cretariado de Propaganda Nacional(SPN), principal motor da "políticado espírito" do Estado Novo.

A dupla não quis fazer um docu-mentário sobre este jornalista e po-lítico português, homem polémicoque se habituou a entrevistar dita-dores um pouco por toda a Europae que trouxe a Portugal figuras im-portantes do nazismo, como Albert

Speer, o arquitecto da nova Berlim,e Robert Ley, o responsável do Reich

pelo trabalho escravo. "A pesquisa é

que nos levou a Ferro", explica MariaAntónia Linhares. "Começámos pornos sentir atraídos pela estética doEstado Novo, pela imagem nova queveio trazer. E essa imagem está mui-to ligada ao Ferro e aos artistas e ar-

quitectos que ele vai buscar." Seabra

resume: "Ferro é a pessoa necessária

para contar a história, mas o protago-nista do documentário é o Portugaldo tempo em que ele viveu."

No mural do estúdio, que aparecediversas vezes ao longo de duas ho-

ras de documentário e que começoupor um simples traço negro e quese transformou num caleidoscópiode referências da política e culturaportuguesas e internacionais, há re-

produções de obras de Amadeo e Al-

mada, fotografias de Lenine e Estali-

ne, promoções de filmes de Leitão deBarros e retratos de Samuel Beckett,James Joyce e Alexandre O'Neill ves-tido à César. Mas há também capasde edições do SPN do "genial" Paulo

Ferreira, cartazes a fomentar que se

cozinhe sardinha portuguesa enlata-da e fotografias do primeiro congres-so da União Nacional no Coliseu dosRecreios e do descarregamento doouro em Lisboa, em 1932.

"Muitas vezes mudámos recortesda parede para filmar um plano no-vo", explica o realizador, que cons-truiu o documentário como quemfaz cinema, segundo o diagrama demovimento do cineasta russo SergueiEisenstein. "Foi sem pretensão. O

que me interessava era que fosse amúsica a conduzir a emoção." E é.Em Estética, Propaganda e Utopia a

música dos portugueses Luís de Frei-tas Branco, Joly Braga Santos e Fre-derico de Freitas, em interpretações"excessivas" dirigidas pelo maestroÁlvaro Cassuto, ganha uma dimensãoverdadeiramente cinematográfica.

Fascinado por ditadoresChefe da propaganda e responsávelpela política cultural do Estado Novoentre 1933 e o final dos anos 40, An-tónio Ferro (1895-1956) é uma figuraque ainda hoje não reúne consenso.Mesmo na época, sobretudo depois

de 1940, "ninguém o levava a sério",

garantem os historiadores José-Au-

gusto França e Margarida Acciaiuoli,que aparecem a conversar em váriosmomentos do documentário de Sea-

bra, que inclui também intelectuaise outros estudiosos deste período,como Eduardo Lourenço, Fernando

Rosas, José Barreto, Fernando Dacos-

ta, Lauro António, Rui Afonso, EmíliaTavares e Fernando Guedes.

"Queríamos mostrar as várias carasda figura, porque o Ferro é múltiplo",diz o realizador. Acciaiuoli chega afalar do facto de ele encarnar várias

personagens. Lembra a historiadora

que é Ferro quem escreve: "Sou umguarda-fato de almas e todos os diasvisto uma."

Próximo de artistas e escritores -é também autor, estreando-se comTeoria da Indiferença, aos 17 anose continuando com títulos como AIdade do Jazz Band, em 1924 -, amigodo poeta Mário de Sá Carneiro desde

os tempos do liceu, Ferro deixa-sefascinar pela figura de Sidónio Pais,a quem atribui o seu despertar paraa política. A ligação que estabelececom este Presidente da República,"figura esbelta", chega a escrevero director da propaganda, fê-lo en-contrar "o sentido poético da palavra'chefe'".

"Ferro nunca mais se liberta desta

presença de Sidónio", explica MariaAntónia Linhares de Lima. "Ele vivefascinado pelos ditadores, estejam láonde estiverem." José-Augusto Fran-

ça diz mesmo que o líder do SPN lhes"tem uma fidelidade canina".

Os homens autoritários fascinam-no. Fernando Pessoa apreciava o tra-balho jornalístico de António Ferro,em particular as suas entrevistas acelebridades internacionais, na suamaioria grandes industriais e ditado-res com quem ia conversar a Roma e

a Munique, conta o historiador José

Barreto, dizendo que não é verdade

que o autor da Mensagem privasse de

perto com o director da propaganda,como defendem alguns.

Apesar de ter "muito menos po-der do que as pessoas supunham",dizem França e Acciaiuoli, a ambiçãode Ferro é grande. E é precisamen-te no campo da propaganda que elamais se manifesta. Ele não quer só

construir a imagem de Salazar, ele

quer reconstruir a identidade cultu-ral de um país, mudando a cabeçados portugueses por dentro, assegu-ra o historiador Fernando Rosas.

É António Ferro quem se oferecea Salazar como homem do marke-ting político, escrevendo uma sériede artigos em que diz que "o regime

precisa de alguém que lhe trate dafachada".

Ferro sabe que é necessário criaruma narrativa à volta do líder queseja capaz de o humanizar. Salazar,explica este especialista em Estado

Novo, não tem esta visão, acredi-ta simplesmente numa sociedadeem que a autoridade e a hierarquiafuncionam, em que uns mandam e

outros obedecem, de acordo com oestatuto de cada um. "À partida, Sa-

lazar desconfia da propaganda", dizRosas. Para esta encenação da vidado chefe de governo, muito contribu-íram as grandes entrevistas que An-tónio Ferro lhe faz, quando era ainda

jornalista. Nelas é descrito como umhomem "que vive modestamente e écasado com a nação".

"0 Ferro tem a Dretensão de fabri-car uma consciência nacional atravésda propaganda." É ele, aliás, quemcria o carisma de Salazar, acrescentao professor Adriano Moreira na pri-meira parte deste documentário.Mas não sem que os dois tenham vi-sões muito diferentes da função do

SPN, contrapõe Rosas: para Salazar é

"uma máquina preparatória da obe-

diência", para Ferro uma forma de"criar o homem novo salazarista".

Uma certa alegriaPaulo Seabra não quis fazer deste do-

cumentário, que tem um lado artesa-nal propositado, uma tese, emborao trabalho de investigação que a ele

conduziu, e que o levou a viajar pelopaís na sua velha carrinha à procurade revistas e outros documentos, não

seja muito diferente. "Não é uma tese

porque não há conclusão. Cada uminterpreta o Ferro como entender.Para mim ele é moderno, mas é tam-bém profundamente salazarista", diz

o realizador.Fernando Guedes, escritor, acadé-

mico e fundador da editora Verbo,compara-o ao poeta e intelectualnorte-americano Ezra Pound, autor

de Hugh Selwyn Mauberley, grandeadmirador de Lenine e Mussolini.

"Ferro sai do documentário muitobem, com contradições, como todaagente", defende o realizador. "Sai-

se como um moderno", sublinha a

responsável pela pesquisa.As mostras internacionais, a estéti-

ca ligada às raízes e às indústrias re-

gionais, as edições vanguardistas do

SPN - há até um kit com vários volu-mes de bolso que parece sugerir uma

política do espírito em versão "façavocê mesmo" -, e sobretudo a gran-de Exposição do Mundo Português,em 1940, passam pelo documentá-rio como espelhos da visão de Ferro,ou pelo menos do Portugal que eletentou criar.

"Não compreendo a nostalgia das

idades mortas", lê-se no seu livro AIdade do Jazz Band. "Ter saudadesdos séculos que morreram [...] é sercadáver. [...] A nossa época não se

julga, canta-se."E, no caso de Ferro, pouco se can-

tou depois da exposição de 40, como "magnífico pavilhão" que CottinelliTeimo dedica a Portugal, "apogeucultural do regime", segundo o his-toriador e conservador do Museu doChiado Rui Afonso.

Ferro começa a ser posto em cau-sa pelos artistas e pelo próprio regi-me, caindo "quase tragicamente emdesgraça", considera Rosas, porque"Salazar não lhe perdoa o falhançoda política do espírito". O chefe do

governo, explica Acciaiuoli, serve-se do seu director de propaganda,mas nunca confia nele. Em parte,acrescenta por sua vez o realizador,"porque não acha bem que Ferro se

dê com a boémia, que se deite às trêsda manhã e não seja capaz de cum-prir um orçamento".

O escritor Fernando Dacosta pare-ce defender que Salazar não se senteà vontade no meio da elite culturalem que o director do SPN se move:"Ferro trouxe um certo glamour aoEstado Novo - colaborava com o Esta-do Novo, mas estava acima dele."

O "falhanço" de que fala Rosas de-

ve-se, para Paulo Seabra, ao facto deele não ter conseguido criar o tal por-tuguês novo que pretendia, "mas emtermos culturais muita coisa ficou".Como a Cinemateca, a Sociedade

Portuguesa de Autores ou o Museude Arte Popular, um dos projectosem que mais se empenhou.

"Ele deixa uma marca no tempo.Podemos ser mais ou menos anti-salazaristas, podemos gostar da fi-

gura ou não, mas António Ferro eraum homem com um projecto. E o

seu tempo também teve um lado

bom que se deve sobretudo à arte,à arquitectura, à estética. Ele é umhomem do mundo, que vai ao Har-lem ouvir, muito provavelmente, aBessie Smith e escreve, como diz o

[realizador] Lauro António, um dos

primeiros ensaios sobre cinema emPortugal. O Salazar não sai do quin-tal de São Bento." No fundo, concluiFernando Guedes, é António Ferro

quem traz uma certa alegria ao Es-

tado Novo.

"Ferro trouxeglamour aoEstado Novo-colaboravacom ele, masestava acimadele", diz nodocumentárioFernandoDacosta

No estúdioondeSeabra fez odocumentáriohá estantescom livros eobjectos dasprimeirasdécadas doséculo XXportuguês.Há tambémaçaimespendurados."Cheirama censura.Estão aí paralembrar queela existiu"

Uma paredecoberta de recortes cria um vórtice: imagens, ideologias, o mundo em transformação