Andrei Sicsú de Souza, Arilúcio Bastos Lobato, Serguei Aily Franco ...
O Portugal do tempo em António moderno salazarista, viveu · truiu o documentário como quem faz...
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Documentário
O Portugal do tempo em que AntónioFerro, moderno e salazarista, viveuDocumentário sobre o Portugal doEstado Novo, hoje, às 21h, na RTP2. Oeixo central é o director da propagandade Salazar, António Ferro, o amigo dosmodernistas e dos ditadoresLucinda Canelas
A parede coberta de recortes criauma espécie de vórtice, engole. As
imagens são fortes e atraentes, às
vezes inusitadas. Umas estão lá paraevocar pessoas, outras situações, ide-
ologias, maneiras de ver o mundo emtransformação (mais para uns do quepara outros). Há até açaimes pendu-rados, que Paulo Seabra encontrouà porta de uma casa de cabedais daRua de S. Paulo que já faliu. "Cheirama censura. Estão aí para lembrar queela existiu e deu cabo de muita coi-
sa", diz o realizador.No estúdio onde Paulo Seabra fez
grande parte do documentário Esté-
tica, Propaganda e Utopia no Portu-gal de António Ferro, cujo primeirode dois episódios se estreia hoje às21h na RTP2 (o segundo passa a 16 de
Dezembro), há estantes repletas de
livros, revistas e outros periódicos,postais, fotografias e objectos que ra-
pidamente associamos às primeirasdécadas do século XX português e,em particular, ao Estado Novo. Cotti-nelli Teimo, o gato siamês com nomede arquitecto, anda por ali a tentarentrar num móvel que Tom, umdos modernistas ligados ao regime,desenhou para a Pousada de Eivase que o realizador e Maria AntóniaLinhares de Lima, responsável pelapesquisa, encontraram numa loja develharias.
É lá que guardam muitas das pre-ciosidades bibliográficas que anda-ram a "respigar" - a expressão é dela- nos alfarrabistas. Foi num de TorresVedras que encontraram um docu-mento de que se orgulham particu-
larmente, o diploma de funções pú-blicas de António Ferro, que Salazarhaveria de nomear director do Se-cretariado de Propaganda Nacional(SPN), principal motor da "políticado espírito" do Estado Novo.
A dupla não quis fazer um docu-mentário sobre este jornalista e po-lítico português, homem polémicoque se habituou a entrevistar dita-dores um pouco por toda a Europae que trouxe a Portugal figuras im-portantes do nazismo, como Albert
Speer, o arquitecto da nova Berlim,e Robert Ley, o responsável do Reich
pelo trabalho escravo. "A pesquisa é
que nos levou a Ferro", explica MariaAntónia Linhares. "Começámos pornos sentir atraídos pela estética doEstado Novo, pela imagem nova queveio trazer. E essa imagem está mui-to ligada ao Ferro e aos artistas e ar-
quitectos que ele vai buscar." Seabra
resume: "Ferro é a pessoa necessária
para contar a história, mas o protago-nista do documentário é o Portugaldo tempo em que ele viveu."
No mural do estúdio, que aparecediversas vezes ao longo de duas ho-
ras de documentário e que começoupor um simples traço negro e quese transformou num caleidoscópiode referências da política e culturaportuguesas e internacionais, há re-
produções de obras de Amadeo e Al-
mada, fotografias de Lenine e Estali-
ne, promoções de filmes de Leitão deBarros e retratos de Samuel Beckett,James Joyce e Alexandre O'Neill ves-tido à César. Mas há também capasde edições do SPN do "genial" Paulo
Ferreira, cartazes a fomentar que se
cozinhe sardinha portuguesa enlata-da e fotografias do primeiro congres-so da União Nacional no Coliseu dosRecreios e do descarregamento doouro em Lisboa, em 1932.
"Muitas vezes mudámos recortesda parede para filmar um plano no-vo", explica o realizador, que cons-truiu o documentário como quemfaz cinema, segundo o diagrama demovimento do cineasta russo SergueiEisenstein. "Foi sem pretensão. O
que me interessava era que fosse amúsica a conduzir a emoção." E é.Em Estética, Propaganda e Utopia a
música dos portugueses Luís de Frei-tas Branco, Joly Braga Santos e Fre-derico de Freitas, em interpretações"excessivas" dirigidas pelo maestroÁlvaro Cassuto, ganha uma dimensãoverdadeiramente cinematográfica.
Fascinado por ditadoresChefe da propaganda e responsávelpela política cultural do Estado Novoentre 1933 e o final dos anos 40, An-tónio Ferro (1895-1956) é uma figuraque ainda hoje não reúne consenso.Mesmo na época, sobretudo depois
de 1940, "ninguém o levava a sério",
garantem os historiadores José-Au-
gusto França e Margarida Acciaiuoli,que aparecem a conversar em váriosmomentos do documentário de Sea-
bra, que inclui também intelectuaise outros estudiosos deste período,como Eduardo Lourenço, Fernando
Rosas, José Barreto, Fernando Dacos-
ta, Lauro António, Rui Afonso, EmíliaTavares e Fernando Guedes.
"Queríamos mostrar as várias carasda figura, porque o Ferro é múltiplo",diz o realizador. Acciaiuoli chega afalar do facto de ele encarnar várias
personagens. Lembra a historiadora
que é Ferro quem escreve: "Sou umguarda-fato de almas e todos os diasvisto uma."
Próximo de artistas e escritores -é também autor, estreando-se comTeoria da Indiferença, aos 17 anose continuando com títulos como AIdade do Jazz Band, em 1924 -, amigodo poeta Mário de Sá Carneiro desde
os tempos do liceu, Ferro deixa-sefascinar pela figura de Sidónio Pais,a quem atribui o seu despertar paraa política. A ligação que estabelececom este Presidente da República,"figura esbelta", chega a escrevero director da propaganda, fê-lo en-contrar "o sentido poético da palavra'chefe'".
"Ferro nunca mais se liberta desta
presença de Sidónio", explica MariaAntónia Linhares de Lima. "Ele vivefascinado pelos ditadores, estejam láonde estiverem." José-Augusto Fran-
ça diz mesmo que o líder do SPN lhes"tem uma fidelidade canina".
Os homens autoritários fascinam-no. Fernando Pessoa apreciava o tra-balho jornalístico de António Ferro,em particular as suas entrevistas acelebridades internacionais, na suamaioria grandes industriais e ditado-res com quem ia conversar a Roma e
a Munique, conta o historiador José
Barreto, dizendo que não é verdade
que o autor da Mensagem privasse de
perto com o director da propaganda,como defendem alguns.
Apesar de ter "muito menos po-der do que as pessoas supunham",dizem França e Acciaiuoli, a ambiçãode Ferro é grande. E é precisamen-te no campo da propaganda que elamais se manifesta. Ele não quer só
construir a imagem de Salazar, ele
quer reconstruir a identidade cultu-ral de um país, mudando a cabeçados portugueses por dentro, assegu-ra o historiador Fernando Rosas.
É António Ferro quem se oferecea Salazar como homem do marke-ting político, escrevendo uma sériede artigos em que diz que "o regime
precisa de alguém que lhe trate dafachada".
Ferro sabe que é necessário criaruma narrativa à volta do líder queseja capaz de o humanizar. Salazar,explica este especialista em Estado
Novo, não tem esta visão, acredi-ta simplesmente numa sociedadeem que a autoridade e a hierarquiafuncionam, em que uns mandam e
outros obedecem, de acordo com oestatuto de cada um. "À partida, Sa-
lazar desconfia da propaganda", dizRosas. Para esta encenação da vidado chefe de governo, muito contribu-íram as grandes entrevistas que An-tónio Ferro lhe faz, quando era ainda
jornalista. Nelas é descrito como umhomem "que vive modestamente e écasado com a nação".
"0 Ferro tem a Dretensão de fabri-car uma consciência nacional atravésda propaganda." É ele, aliás, quemcria o carisma de Salazar, acrescentao professor Adriano Moreira na pri-meira parte deste documentário.Mas não sem que os dois tenham vi-sões muito diferentes da função do
SPN, contrapõe Rosas: para Salazar é
"uma máquina preparatória da obe-
diência", para Ferro uma forma de"criar o homem novo salazarista".
Uma certa alegriaPaulo Seabra não quis fazer deste do-
cumentário, que tem um lado artesa-nal propositado, uma tese, emborao trabalho de investigação que a ele
conduziu, e que o levou a viajar pelopaís na sua velha carrinha à procurade revistas e outros documentos, não
seja muito diferente. "Não é uma tese
porque não há conclusão. Cada uminterpreta o Ferro como entender.Para mim ele é moderno, mas é tam-bém profundamente salazarista", diz
o realizador.Fernando Guedes, escritor, acadé-
mico e fundador da editora Verbo,compara-o ao poeta e intelectualnorte-americano Ezra Pound, autor
de Hugh Selwyn Mauberley, grandeadmirador de Lenine e Mussolini.
"Ferro sai do documentário muitobem, com contradições, como todaagente", defende o realizador. "Sai-
se como um moderno", sublinha a
responsável pela pesquisa.As mostras internacionais, a estéti-
ca ligada às raízes e às indústrias re-
gionais, as edições vanguardistas do
SPN - há até um kit com vários volu-mes de bolso que parece sugerir uma
política do espírito em versão "façavocê mesmo" -, e sobretudo a gran-de Exposição do Mundo Português,em 1940, passam pelo documentá-rio como espelhos da visão de Ferro,ou pelo menos do Portugal que eletentou criar.
"Não compreendo a nostalgia das
idades mortas", lê-se no seu livro AIdade do Jazz Band. "Ter saudadesdos séculos que morreram [...] é sercadáver. [...] A nossa época não se
julga, canta-se."E, no caso de Ferro, pouco se can-
tou depois da exposição de 40, como "magnífico pavilhão" que CottinelliTeimo dedica a Portugal, "apogeucultural do regime", segundo o his-toriador e conservador do Museu doChiado Rui Afonso.
Ferro começa a ser posto em cau-sa pelos artistas e pelo próprio regi-me, caindo "quase tragicamente emdesgraça", considera Rosas, porque"Salazar não lhe perdoa o falhançoda política do espírito". O chefe do
governo, explica Acciaiuoli, serve-se do seu director de propaganda,mas nunca confia nele. Em parte,acrescenta por sua vez o realizador,"porque não acha bem que Ferro se
dê com a boémia, que se deite às trêsda manhã e não seja capaz de cum-prir um orçamento".
O escritor Fernando Dacosta pare-ce defender que Salazar não se senteà vontade no meio da elite culturalem que o director do SPN se move:"Ferro trouxe um certo glamour aoEstado Novo - colaborava com o Esta-do Novo, mas estava acima dele."
O "falhanço" de que fala Rosas de-
ve-se, para Paulo Seabra, ao facto deele não ter conseguido criar o tal por-tuguês novo que pretendia, "mas emtermos culturais muita coisa ficou".Como a Cinemateca, a Sociedade
Portuguesa de Autores ou o Museude Arte Popular, um dos projectosem que mais se empenhou.
"Ele deixa uma marca no tempo.Podemos ser mais ou menos anti-salazaristas, podemos gostar da fi-
gura ou não, mas António Ferro eraum homem com um projecto. E o
seu tempo também teve um lado
bom que se deve sobretudo à arte,à arquitectura, à estética. Ele é umhomem do mundo, que vai ao Har-lem ouvir, muito provavelmente, aBessie Smith e escreve, como diz o
[realizador] Lauro António, um dos
primeiros ensaios sobre cinema emPortugal. O Salazar não sai do quin-tal de São Bento." No fundo, concluiFernando Guedes, é António Ferro
quem traz uma certa alegria ao Es-
tado Novo.
"Ferro trouxeglamour aoEstado Novo-colaboravacom ele, masestava acimadele", diz nodocumentárioFernandoDacosta
No estúdioondeSeabra fez odocumentáriohá estantescom livros eobjectos dasprimeirasdécadas doséculo XXportuguês.Há tambémaçaimespendurados."Cheirama censura.Estão aí paralembrar queela existiu"