O Princípio da Proteção da...

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O Princípio da Proteção da Confiança Em Busca da Tutela de Expectativas Legítimas Prof. Valter Shuenquener de Araújo Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. KZS pela Universidade de Heidelberg - Alemanha Prof. Adjunto da UERJ. Prof. da EMERJ Juiz Federal

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O Princípio da Proteção

da Confiança

Em Busca da Tutela de Expectativas Legítimas

Prof. Valter Shuenquener de Araújo

Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ.

KZS pela Universidade de Heidelberg - Alemanha

Prof. Adjunto da UERJ.

Prof. da EMERJ

Juiz Federal

Conceito e função jurídica

• O princípio da proteção da confiança é um mandado de otimização

com alcance determinável pelo caso concreto impeditivo ou atenuador

dos possíveis efeitos negativos decorrentes da frustração, pelo Estado,

de uma expectativa legítima do administrado.

• Funções primordiais:

- defender posições jurídicas dos cidadãos contra inesperadas mudanças de

curso. (Walter Schmidt);

- proteger as expectativas dos indivíduos através da continuidade do

ordenamento (Kyrill-A. Schwarz);

- garantir que a expectativa do particular seja considerada em uma prévia

ponderação com o interesse estatal na implementação de mudanças na ordem

jurídica (Paul Kirchhof).

A confiança na construção do futuro

• O planejamento do futuro é um fator extremamente relevante na vida de todo e qualquer ser humano. “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás. No entanto ela deve ser vivida por meio da contemplação do futuro” (Søren Kierkergaard).

• Sem confiança, apenas relações pouco complexas são viáveis. Apenas se verificam formas muito simples de cooperação entre os seres humanos (Niklas Luhmann).

• O nível de confiança nos atos estatais é um fator relevante para o sucesso econômico de um país. Quanto maior a confiança e menor o controle, maior é a liberdade, o rendimento e expectativa de vida (Jornal Frankfurter Allgemeine)

Confiança • O enfraquecimento da confiança nas relações entre os

indivíduos reduz o sentimento de solidariedade existente

no mundo. (Barbara Misztal – Profª de Sociologia da

Universidade de Leicester)

• Sem confiança, as pessoas evitarão relacionar-se

juridicamente com o Estado e buscarão vias alternativas,

e não tão idôneas, para a preservação de seus interesses.

(Sheilagh Ogilvie – Profª de História Econômica da Universidade

de Cambridge)

Solidariedade entre as gerações

• Um povo corresponde ao somatório de gerações.

• Decisões tomadas por uma geração não devem

apenas considerar as necessidades do presente e do

futuro. O passado também merece respeito.

• “Cada geração actual é responsável não só pelo destino das

gerações futuras como também pelo destino sofrido em

inocência pelas gerações passadas”. (Habermas)

Evolução histórica do Princípio

• O Concílio Cadavérico do Papa Formoso de 896.

• O novo Papa Estevão VI determinou que o corpo do Papa Formoso fosse desenterrado para que, em seguida, pudesse ser submetido a um julgamento.

Evolução histórica do Princípio

• Tribunal inglês de Exchequer:

• “Um indivíduo não deve ser autorizado a simultaneamente assoprar quente e frio – a afirmar em um momento e a negar em outro... Tal princípio assenta sua base no senso comum e na justiça comum, e seja ele chamado estoppel ou de qualquer outro nome, este é um princípio que as cortes de justiça têm mais efetivamente adotado nos tempos modernos. (Decisão de 1862 no precedente Cave v. Mills)

Proteção da confiança e princípio da

legalidade

• Decisão da viúva de Berlim (Witwengeld): BVerwGE 9, 251 – decisão de 1959 que confirmou a decisão do Tribunal Revisor de Berlim em Matéria de Direito Administrativo (Oberverwaltungsgericht) de 1956.

• A viúva confiara na informação recebida da Administração alemã e, com base nela, tomou medidas drásticas e duradouras (einschneidende und dauernde) que reorganizaram todo o seu modo de vida.

Evolução histórica do Princípio • Posição de Ernst Forsthoff. Há um abandono do Estado de

Direito quando o Estado admite uma proteção da confiança contra legem.

• Conferência de Mannheim de 1973 (Otto Bachof, Norbert Achterberg, Walter Schmidt, Gunter Kisker, Günter Püttner, Ernst-Wolfgang Böckenförde, Fritz Ossenbühl e Peter Badura).

• Lei alemã de Processo Administrativo Federal de 1976.

• O aumento da interação do homem com a organização estatal eleva a necessidade de constância da atividade do Estado e de tutela das expectativas legítimas dos cidadãos.

Em busca de um fundamento

• Direitos fundamentais – princípio seria derivado de

algum direito fundamental aplicável no caso específico. Ex.:

direito de liberdade, de desenvolvimento da personalidade

etc. Serviria para limitar a intervenção do Estado nos

direitos fundamentais.

• “A crença na estabilidade do ordenamento é fundamental para a

autodeterminação do indivíduo”. (Stefan Muckel)

Em busca de um fundamento

Críticas:

• i) restringe a tutela do princípio da proteção da confiança à

tutela dos direitos fundamentais. A confiança pode merecer

proteção ainda que um direito fundamental não esteja em

risco.

• ii) a tutela de posições jurídicas ilegais e favoráveis ao

particular ultrapassam o alcance da tutela proporcionada

pelos direitos fundamentais.

• iii) a tutela de direitos fundamentais pode estimular uma

ruptura e instabilidade do ordenamento. Ex: a proteção da

liberdade de expressão pode incentivar uma revolução.

Em busca de um fundamento

• Dignidade humana: o princípio da proteção serve para

impedir que o ser humano seja tratado pelo Estado como

um mero objeto e obriga o Estado a criar condições para

que o particular posa fruir plenamente a sua dignidade.

• Crítica: o princípio da proteção da confiança não almeja

unicamente a tutela de uma área núcleo (Kernbereich) dos

direitos dos seres humanos.

Em busca de um fundamento

• Boa-fé objetiva (Treu und Glauben) – exige-se do Estado e

de qualquer pessoa uma atuação em conformidade com o

seu comportamento pretérito. Protege tanto o particular

quanto o Estado. Aplicação diante de relações jurídicas

concretas (Sonderbeziehung), diante de relações do tipo

Estado-cidadão (Staat-Bürger). Instituto inaplicável nas

relações do tipo Estado-súdito (Staat-Untertan) que não são

individualizadas (Humberto Ávila).

Em busca de um fundamento

• Críticas:

i) O princípio da proteção da confiança abrange relações

jurídicas concretas e abstratas;

ii) A boa-fé objetiva não teria uma estatura de princípio

constitucional (verfassungsrechtliche Dignität). (Kyrill-A. Schwarz)

iii) O princípio da proteção da confiança protege, em regra,

apenas o particular perante o Estado. “O princípio da proteção da

confiança almeja exclusivamente a contenção dos poderes públicos”. (Peter

Haas).

iv) Se o princípio da proteção fosse derivado da boa-fé objetiva,

a proteção apenas teria lugar quando a contrariedade em relação

a um comportamento estatal prévio fosse feita com

desonestidade ou deslealdade.

Em busca de um fundamento

• Segurança jurídica e Estado de Direito – os dois exigem que o

poder estatal seja exercido com respeito à confiança que os particulares

depositaram no Estado (Peter Badura).

• Cadeia de derivação (Herleitungskette) Estado de Direito-segurança

jurídica-proteção da confiança. (Tribunal Constitucional alemão)

• O Estado de Direito deve garantir ao cidadão uma continuidade,

previsibilidade e eliminar surpresas desagradáveis, sem bloquear

eternamente as mudanças necessárias do ordenamento. (Winfried

Brugger).

Em busca de um fundamento

• Segurança jurídica designa i) a confiança nos atos do poder

público, ii) a estabilidade das relações jurídicas, e iii) a

previsibilidade dos comportamentos (Luís Roberto Barroso).

• Crítica: segurança jurídica seria um princípio

plurissignificativo que seria capaz de permitir inúmeras

pretensões. Natureza de Zauberkiste (Günter Püttner)

• BVerfG, BVerwG e STF têm fundamentado o princípio da

proteção da confiança na segurança jurídica e no Estado de

Direito.

Expectativas de direito e

direitos adquiridos

• “De modo geral, não é relevante a esperança de adquirir

um direito” (Limongi França)

• Esses dois institutos são insuficientes para solucionar todas as

dificuldades surgidas em razão das violações nas expectativas que os

particulares depositam no Estado. Os dois desconsideram os diferentes

níveis de confiança que o particular deposita nos atos estatais e não

apresentam soluções intermediárias, tal como o resultado de uma

correta ponderação exigiria.

i) A expectativa de aquisição de um direito deve ser respeitada;

ii) as fases intermediárias no processo de aquisição de um direito

devem ser respeitadas.

Expectativas de direito e

direitos adquiridos

• O princípio da proteção da confiança oferece uma proteção “mais ampla que a preservação dos direitos adquiridos, porque abrange direitos que não são ainda adquiridos, mas se encontram em vias de constituição ou suscetíveis de se constituir” (Odete Medauar)

• Um regime jurídico pode ser alterado, mas não em uma extensão que prejudique o titular de uma expectativa legítima. Isso a teoria dos direitos adquiridos não é capaz de fazer.

• O Direito deve ter a missão de coordenar e assegurar as expectativas legítimas criadas pelos mais distintos regimes jurídicos (Stephan Kirste).

Condições para o emprego do

princípio da proteção da confiança

i) Base da confiança;

ii) Existência subjetiva da confiança;

iii) Exercício da confiança através de atos concretos, e

iv) Comportamento estatal que frustre a confiança.

Condições para o emprego do

princípio da proteção da confiança • Base da confiança (Vertrauensgrundlage): comportamento, omissão ou

ato normativo estatal (lei, decreto, portaria, decisão judicial, práticas da Administração etc.) que origina a confiança. É o que vai servir para introduzir a confiança na mente dos particulares.

• As promessas estatais somente geram um direito subjetivo, caso tenham sido exteriorizadas de modo firme, preciso e concreto (Almiro do Couto e Silva).

• O tempo será relevante para determinar se a base da confiança será

forte. (Humberto Ávila)

Condições para o emprego do

princípio da proteção da confiança • Existência subjetiva da confiança: O desconhecimento total

do particular do ato estatal base da confiança é capaz de impedir o manejo do princípio.

• O particular precisa ter efetivamente confiado na continuidade do comportamento estatal para que uma expectativa se torne legítima. (Anna Leisner-Egensperger).

• Não se pode aceitar uma confiança cega (blind), uma confiança

que desconhece os fatores que justificam um modo de proceder (Claus-Wilhelm Canaris).

Condições para o emprego do

princípio da proteção da confiança

• Exercício da confiança através de atos concretos (Vertrauensbetätigung): A confiança precisa ser “colocada em funcionamento” (ins Werk gesetzt), uma vez que ela apenas ganha relevância jurídica quando se exterioriza por meio de atos concretos.

• Não se deve exigir invariavelmente a prática de atos de disposição patrimonial. Ex: preso que tem a expectativa de beneficiar-se com o livramento condicional ou ato que modifica o regime previdenciário prejudicando aquele que vai aposentar-se. O que se exige , mesmo que não haja provas quanto à prática de atos com um conteúdo pecuniário/patrimonial, é que o cidadão tenha se comportado sob a influência da expectativa criada pelo Estado.

Condições para o emprego do

princípio da proteção da confiança

• Comportamento estatal que frustre a confiança: Além do ato,

omissão ou comportamento estatal inicial que serve de base da

confiança, é preciso que exista um outro em sentido contrário. É na

divergência entre duas ou mais manifestações de vontade que a

expectativa alicerçada na base da confiança poderá ser frustrada.

Críticas específicas ao princípio

• Violação à democracia e ao princípio da separação dos poderes.

Hipertrofia do Poder Judiciário. Argumento não procede, pois a

democracia exige a tutela das expectativas legítimas. A hipertrofia

apenas ocorrerá se o Estado violar excessivamente expectativas

legítimas.

• Risco de engessamento (ossification) da política. A proteção da confiança

não impede necessariamente a evolução da política e a resposta

imediata do Estado às demandas sociais. A continuidade que o

princípio assegura apenas garante uma “mudança com consistência” (Anna

Leisner-Egensperger).

• Redução da vontade do administrador de divulgar informações. Isso

deve ser analisado em conjunto com o aumento da qualidade das

manifestações. Elevação da aceitação voluntária das decisões estatais

(aumento da legitimidade estatal). (Søren Schønberg)

Críticas específicas ao princípio

• Proliferação de ações judiciais com o objetivo de materialização do

princípio da proteção da confiança. Não há provas de que isso

ocorrerá efetivamente.

• Proliferação de decisões divergentes sobre um mesmo tema, o que

pode ser mitigado através do aprofundamento no estudo do princípio

e através da criação de normas gerais sobre a matéria.

Redução da certeza do Direito em decorrência de decisões pontuais. A

diminuição da previsibilidade é compensada por uma elevação do

sentimento de justiça.

• O princípio não demanda o impossível daqueles que tomam decisões.

Princípio da proteção da

confiança e princípio da

legalidade

• Não existe um dever cego de anulação do ato

administrativo inválido.

• Há um estado de tensão entre os dois princípios.

• O Estado não deve deslocar para os particulares todas as

conseqüências danosas advindas da produção de um ato

ilegal (Hartmut Maurer).

Proteção da confiança e princípio da

legalidade Sistemas de invalidação:

i) Austríaco: retirada do ato inválido depende de uma lei. Ato administrativo, ainda que ilegal, teria força semelhante à de um ato jurisdicional.

ii) Francês e Espanhol: direito da Administração de invalidar atos administrativos fica limitado pelo critério objetivo do tempo.

iii) Alemanha e Suiça: direito da Administração de invalidar atos administrativos fica limitado pelo critério objetivo do tempo e por outros fatores que possam justificar a preservação do ato administrativo (idade do destinatário do ato, sacrifício do particular, irreversibilidade do ato etc.).

• Brasil, por força do art. 54 da Lei nº 9.784/99, é adepto do segundo sistema.

Proteção da confiança e princípio da

legalidade

Efeitos da adoção do princípio da proteção da confiança em relação a atos inválidos:

i) manutenção do ato;

ii) desfazimento com efeitos ex tunc;

iii) desfazimento com efeitos ex nunc;

iv) desfazimento com efeitos em um momento futuro.

Exemplos de aplicação prática do

princípio da proteção da confiança • Mudança nas regras de um regime previdenciário ou estatutário.

• Leis que proíbem atividades econômicas (ADIn nº 3.937. Julgamento em 04/06/08) – Vedação de comercialização de amianto em São Paulo).

• Prorrogação do contrato de concessão da Bacia de petróleo situada em Camamu/Bahia – prorrogação de 36 contratos exigia a prorrogação do contrato de Camamu. Expectativa de tratamento isonômico.

• Ampliação dos requisitos para o exercício de uma profissão.

Ex. 1: ampliação do período de residência médica antes da conclusão.

Aplicação prática do princípio da

proteção da confiança

Ex.: 2: Validação automática de diplomas obtidos no exterior (Decretos nº 80.419/77 e nº 3.007/99).

Posição do STJ:

(...) NECESSIDADE DE PROCEDIMENTO – TÉRMINO DO CURSO NA VIGÊNCIA DO DECRETO N. 3.007/99 – INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO – RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO PARA JULGAR IMPROCEDENTE A AÇÃO.

• 1. (...) assiste razão à UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – quanto ao mérito. 2. Os autos dão conta que a ora recorrida ingressou no curso de medicina no Instituto Superior de Ciências Médicas de Havana – Cuba, na vigência do Decreto n. 80.419/77, que conferia ao formando a revalidação automática do diploma expedido por instituição de ensino no exterior. 3. Entretanto, o término do curso ocorreu na vigência do Decreto n. 3.007/99, que revogou o Decreto anterior, razão pela qual impossibilitado o pretendido reconhecimento de direito adquirido ao registro imediato do diploma sem a observância dos procedimentos legais elencados pelo sistema educacional brasileiro. Agravo regimental improvido. (STJ. Segunda Turma. Rel. Min. Humberto Martins. Agravo Regimental no REsp nº 936.974-RS. Data do julg.: 20/09/07. DJU: 03/10/07)

Aplicação prática do princípio da

proteção da confiança • Posição do TRF da 4ª Região:

Médico brasileiro:

“(...) Tendo o estudante brasileiro planejado sua formação no exterior almejando o regresso ao fim do curso, sendo a possibilidade de revalidação automática (garantida pela Convenção, quando de seu ingresso no curso) elemento de caráter fundamental à sua deliberação de cursar faculdade no estrangeiro, a revalidação automática deve lhe ser deferida, em homenagem aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, dois dos pilares do Estado Democrático de Direito.” (TRF da 4ª Região. Quarta Turma. Rel. Des. Fed. Edgar Antônio Lippmann Júnior. Agravo de Instrumento nº 200404010480073-RS. Data do julg.: 16/11/05. DJU: 19/07/06).

Médico cubano:

“(...) Deve ser levada em conta a nacionalidade cubana do médico que pretende validar o diploma do curso no Brasil. 2. Graduando-se no curso de medicina em 1986, em Cuba, seu próprio país, não se pode aduzir, deste fato, o mesmo grau de riscos e investimentos a que se sujeitaram os brasileiros que saíram do país e foram estudar no exterior. Além disso, o fato de ter cursado a faculdade sem planejar exercer a profissão em nosso país afasta a aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.” (TRF da 4ª Região. Quarta Turma. Rel. Des. Fed. Márcio Antônio Rocha. Agravo no Agravo de Instrumento nº 200404010544439-RS. Data do julg.: 22/02/2006. DJU: 22/03/2006).

Aplicação prática do princípio da

proteção da confiança

• Normas com prazo determinado. Ex.: subsídio ou isenção fiscal com prazo certo, visto de permanência etc. Fixação do prazo cria uma expectativa legítima tutelável de que o ato será mantido até o seu término.

• Precedente pioneiro do direito inglês Schmidt v. Secretary of State for Home Affairs (decisão de 1969) – Dois norte-americanos que pretendiam serem ouvidos antes da decisão acerca da prorrogação do visto de permanência na Inglaterra. Lord Denning indeferiu o pleito de prorrogação dos vistos e considerou inexistente qualquer expectativa legítima. Segundo Lord Denning, a expectativa legítima só existiria se o visto de permanência tivesse sido revogado antes do seu prazo final.

Aplicação prática do princípio da

proteção da confiança • Quando se está diante de um requerimento de renovação de um ato

estatal, a Administração precisa atentar para o fato de que o requerente já obteve um deferimento prévio (Hartmut Maurer). Há uma redução do espaço de discricionariedade (Ermessensspielraum).

• Pretensão de renovação de um ato estatal que se apresenta como um ato final (Endpunkt) (Ex.: autorização de uso de uma praça pública por um dia para a realização de um evento) ≠ pretensão de renovação de um ato estatal cuja demanda inicial pode ultrapassar o seu período de vigência (Ex.: visto de permanência de um estrangeiro, autorização para funcionamento de um estabelecimento). Nesta segunda hipótese, há, em regra, uma expectativa legítima depositada pelo particular de futura renovação do ato com vigência determinada.

O princípio da proteção da confiança e os

preceitos violadores dos Direitos Humanos

• Decisão de proteção do muro de Berlim oriunda do Segundo Senado do Tribunal Constitucional Federal alemão (1996) (Mauerschützen-Entscheidung) – BVerfGE 95, 96 (Confirmação da decisão do BGH de 1992 – BGHSt 39,1).

• Punição dos soldados da extinta Alemanha Oriental pelas mortes na fronteira (Grenzverletzer... zu vernichten) – comando excessivamente injusto. Dispositivo que acarreta uma insuportável violação aos preceitos de justiça e aos direitos humanos. Aplicação da fórmula de Radbruch (Radbruch’schen Formel).

• Gustav Radbruch e Robert Alexy: direito excessivamente injusto não é direito. Preceito extremamente injusto não é norma jurídica.

• John Rawls: leis injustas precisam ser respeitadas, mas desde que não excedam certos parâmetro de injustiça.

• Proibição da retroatividade da lei penal, salvo se benéfica (art. 5º, XL, da CRFB) – não tem aplicação quando da transição de regimes injustos para um Estado de Direito (von Unrechtsregime zum Rechtsstaat) (Thilo Rensmann).

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República

• O princípio da proteção da confiança deve proteger o particular contra atos estatais oriundos de todos os Poderes da República.

• Embora seja majoritário o entendimento de que o princípio também alcança os atos oriundos do Poder Judiciário (Ex.: Bernhard Knittel), o tema não é pacífico. Anna Leisner-Egensperger é contra a aplicação em relação ao Judiciário. Segundo ela, embora existisse um direito à continuidade do ordenamento, não existiria um direito do particular à confiança na percepção antiga e ruim de um juiz. O que seria vedado na sua concepção seriam apenas mudanças bruscas de posicionamento.

• Discordamos: cremos que o que se protege é a expectativa a má-compreensão do Direito criou. Também é possível que uma leitura equivocada do Direito crie expectativas.

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República

• Em relação às mudanças de orientação jurisprudencial, o princípio da proteção da confiança pode ter o condão de deslocar os efeitos da nova orientação para um momento futuro. Ele é capaz de preservar a orientação antiga para os casos pendentes de julgamento (Wilhelm Knittel).

• “Quando uma corte de justiça, notadamente o Supremo Tribunal Federal, toma a decisão grave de reverter uma jurisprudência consolidada, não pode nem deve fazê-lo com indiferença em relação à segurança jurídica, às expectativas de direito por ele próprio geradas, à boa-fé e à confiança dos jurisdicionados. Em situações como esta, é a própria credibilidade da mais alta corte que está em questão” (Luís Roberto Barroso).

• O particular não deve arcar com todas as conseqüências danosas oriundas de uma nova compreensão judicial que conclui ser equivocada uma visão anterior (Paul Kirchhof).

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República

• Modulação temporal em razão de uma mudança de orientação na jurisprudência.

Visão de Luís Roberto Barroso:

• “a questão pode ser colocada em três cenários distintos: a) a declaração de inconstitucionalidade em ação direta; b) a declaração de inconstitucionalidade em controle incidental; c) a mudança da jurisprudência consolidada acerca da determinada matéria”.

• Assim como é possível permitir que um dispositivo inconstitucional produza efeitos futuros mesmo após o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, também é viável que uma antiga e ultrapassada orientação jurisprudencial tenha aplicação em relação a, por exemplo, fatos pendentes de julgamento.

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República Precedente do crédito-prêmio IPI

Orientação do STJ:

(...) salvo nas hipóteses excepcionais previstas no art. 27 da Lei 9.868/99, é incabível ao Poder Judiciário, sob pena de usurpação da atividade legislativa, promover a “modulação temporal” das suas decisões, para o efeito de dar eficácia prospectiva a preceitos normativos reconhecidamente revogados. (STJ. Primeira Seção. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Embargos de Divergência em REsp nº 738.689-PR. Data do julg.: 27/06/07. DJU: 22/10/07)

Votos da posição vencida favorável à modulação: Min. Hermann Benjamin e Min. João Otávio Noronha.

• Orientação do STF:

(...) IPI - INSUMO - ALÍQUOTA ZERO - CREDITAMENTO - INEXISTÊNCIA DO DIREITO - EFICÁCIA. Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica.

(STF. Plenário. Rel. Min. Marco Aurélio. RE nº 353.657-PR. Data do julg.: 25/06/07. DJU: 29/06/07 e STF.)

Voto da posição vencida favorável à modulação: Min. Ricardo Lewandovski.

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República

• O entendimento que veio a prevalecer no âmbito da Corte Suprema no caso do crédito-prêmio do IPI, por seis votos a cinco, foi o de que não teria ocorrido uma “virada jurisprudencial” na matéria, mas tão-somente uma “reversão de precedente” em razão da mudança da composição do Supremo. Como o STF ainda não havia proferido uma decisão final sobre o tema, não teria acontecido uma virada abrupta de jurisprudência hábil a justificar a tutela dos contribuintes. Houve mera reforma de um entendimento anterior (reversão de precedente) ainda não transitado em julgado e, segundo a orientação da Corte Suprema, os contribuintes não pagaram o tributo por sua conta e risco, uma vez que não havia coisa julgada sobre o assunto. Ao diferenciar virada jurisprudencial de reversão de precedente, o STF fixou uma exigência específica para que sua jurisprudência pudesse eventualmente dar amparo à proteção da confiança de particulares: a existência de coisa julgada.

Alcance do princípio da proteção da confiança

em relação aos Poderes da República • Precedente do cancelamento da Súmula nº 394 do STF

Nas decisões que reconheceram o cancelamento da Súmula nº 394 (“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”), o STF decidiu, por outro lado, aplicar tão-somente para o futuro seu novo entendimento contrário ao antigo verbete.

Voto do relator Min. Carlos Britto:

“O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete”.

(STF. Plenário. Rel. Min. Carlos Britto. CC nº 7.204/MG. Data do julg.: 29/06/05. DJU: 09/12/05. )

Meios de proteção da confiança

• Forma procedimental e substancial.

• Procedimental: proteção obtida mediante um procedimento

que conte com a efetiva participação do particular antes da

decisão estatal capaz de frustrar uma expectativa legítima.

• Substancial: visa à concreta tutela da expectativa. Pode

apresentar-se por meio da i) tutela da constância do ato, ii) fixação

de uma compensação ou através iii) da criação de regras de transição .

Grupo de Trabalho da EMARF

Grupo de Trabalho realizado com a presença de Juízes Federais do TRF da 2ª Região para debater o tema do princípio da proteção da confiança.

Principais conclusões do debate:

As expectativas legítimas dos administrados, ainda que não se enquadrem no conceito de direitos adquiridos, precisam ser respeitadas pelo Estado. Existem graus distintos de tutela das expectativas que variarão de acordo com o caso concreto. Não existe um direito absoluto à inalterabilidade do ordenamento jurídico, mas o ordenamento, quando sofrer alteração, precisa respeitar as expectativas legítimas dos particulares.

Principais conclusões

do debate na EMARF

• O decurso de cinco anos previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99

para a manutenção de atos inválidos é um parâmetro a ser observado como regra geral. Contudo, um ato inválido com duração inferior a cinco anos pode ser, excepcionalmente, mantido. A ponderação exigida pelo caso concreto é que determinará se ele deverá ser expulso ou mantido no ordenamento.

• A proteção da confiança independe de atos de disposição patrimonial. Contudo, a expectativa legítima apenas deverá ser tutelada quando o administrado houver praticado algum ato concreto, ou quando tiver se comportado com base na confiança.

• O vício de competência não obsta que o princípio da proteção da confiança seja empregado para impedir a frustração de expectativas legítimas. Ato praticado por autoridade incompetente também pode originar uma confiança digna de tutela.

Principais conclusões

do debate na EMARF

• Os atos estatais podem produzir efeitos retroativos. No entanto, as expectativas legítimas dos administrados, e não apenas os direitos adquiridos, devem ser respeitadas pelos atos estatais dotados de efeitos retroativos.

• A retroatividade da lei penal não obsta que o direito excessivamente injusto deixe de ser aplicado. Atos praticados com amparo em normas excessivamente injustas podem levar à punição futura daqueles que os praticaram.