o problema da arte e do realismo em anna kariênina, de tolstói

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA O PROBLEMA DA ARTE E DO REALISMO EM ANNA KARIÊNINA, DE TOLSTÓI LUANA SIGNORELLI FARIA DA COSTA Brasília DF, março de 2016

Transcript of o problema da arte e do realismo em anna kariênina, de tolstói

  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA

    O PROBLEMA DA ARTE E DO REALISMO EM

    ANNA KARININA, DE TOLSTI

    LUANA SIGNORELLI FARIA DA COSTA

    Braslia DF, maro de 2016

  • LUANA SIGNORELLI FARIA DA COSTA

    O PROBLEMA DA ARTE E DO REALISMO EM ANNA KARININA,

    DE TOLSTI

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Literatura do Departamento de Teoria Literria e

    Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de

    Braslia como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Literatura. rea de concentrao: Literatura e

    Prticas Sociais.

    Orientador(a): Prof. Dr. Ana Laura dos Reis Corra

    Braslia DF, maro de 2016

  • LUANA SIGNORELLI FARIA DA COSTA

    FOLHA DE EXAMINAO

    O PROBLEMA DA ARTE E DO REALISMO EM ANNA KARININA,

    DE TOLSTI

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Literatura do Departamento de Teoria Literria e

    Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de

    Braslia como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Literatura. rea de concentrao: Literatura e

    Prticas Sociais.

    COMISSO DE EXAMINAO

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Ana Laura dos Reis Corra Ps-Lit (UnB)

    Orientadora

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Edvaldo Aparecido Bergamo Ps-Lit (UnB)

    Examinador

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Ana Aguiar Cotrim (USP)

    Examinadora

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Alexandre Simes Pilati Ps-Lit (UnB)

    Suplente

    Braslia, 29 de maro de 2016

  • "Qualquer que seja ou venha a ser o nosso destino,

    somos ns que o fazemos".

    Liev Tolsti, Anna Karinina

    Imagem: Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii (1863-1944).

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, Que de tudo cuida e por tudo zela.

    minha me, Helena Signorelli Faria. Serei feliz se um dia eu for pelo

    menos metade de quem voc . Dedico a voc este meu sonho.

    minha famlia no geral, dentro da qual encontrei alguns exemplos que

    muito me influenciaram.

    Dela, em particular, Luciana Signorelli Faria Lima, quem primeiro me

    indicou e, depois com a sua garra, incentivou-me rumo ao caminho acadmico.

    Aos parentes mais prximos: tia Carmelita, tio Admar, Gisela, Juliana,

    Fernando, Alexandre e Elaine. Pelas conversas, conselhos e pacincia.

    Aos meus tios Rubens, Hortncio e Reinaldo, luzes lembradas.

    A todos os professores que eu j tive na vida, por me fazerem quem eu

    sou.

    minha professora de russo, Adriana dos Reis Emygdio da Silva.

    minha orientadora Ana Laura dos Reis Corra.

    professora coordenadora da Ps-Graduao em Literatura (Ps-Lit),

    Sylvia Helena Cyntro.

    A todo(a)s o(a)s meus e minhas colegas do Departamento de Teoria e

    Literaturas, sobretudo, do Ps-Lit alunos, professores e funcionrios , pelas

    reflexes e contribuies ao longo de nossa jornada acadmica.

    Em especial, s minhas colegas de profisso e amigas Elizabete Barros

    e Emanuelle Alves.

    s minhas amigas, sem as quais eu pouco seria. Em especial, minha

    amiga Amanda Leite Lopes Moreira, pela presena, pelo acompanhamento e

    por estar ao meu lado durante todo o meu mestrado. E por defender a arte.

    minha amiga Andressa Pinheiro Constanti, por ter compartilhado

    comigo uma experincia incrvel e nica de viagem durante o meu Mestrado.

    Andressa Sousa da Silveira, Helena Schubert L. Silva, Letcia Borges

    e Caio Albuquerque, apesar da distncia.

    CAPES (Comisso de Aperfeioamento de Pessoal do Nvel Superior),

    pelo apoio institucional e amparo financeiro.

    Ao amor.

  • RESUMO

    Este trabalho realizar uma anlise literria do romance Anna Karinina (na

    edio de 2011, lanada pela editora Cosac Naify), escrito pelo russo Liv

    Tolsti em 1873-77, estabelecendo relaes tericas com o hngaro Gyrgy

    Lukcs, sobretudo com a sua Esttica (1965-1967). O trabalho consiste em

    esmiuar o problema do realismo, considerando-o como modo de

    representao literria (e no como o perodo literrio propriamente dito). A

    dissertao tambm tange o conceito de arte, abordando a literatura como arte.

    Para tal, a metodologia abarca a teoria do reflexo, e julga a arte literria como

    mimesis da realidade social. A pesquisa destaca a ideia de processo de

    produo artstica enquanto categoria filosfica e criativa, e ainda estuda

    trechos do romance relacionados arte. Esta anlise literria examina as

    personagens, principalmente o artista Mikhilov, que pensa a relao do artista

    frente aos crticos da arte ou melhor, crtica da sua prpria arte. Entre

    outros personagens, a crtica investiga Golenchev (escritor), Livin

    (proprietrio rural) e Anna (protagonista). Tolsti, portanto, encontra a

    totalidade da arte, conseguindo aliar tanto a ordenao da narrao quanto o

    nivelamento da descrio, e os gneros literrios da tragdia, do drama

    (conflito interno) e da grande pica (realismo). A realidade uma totalidade

    estruturada, de forma que o realismo o mtodo literrio apropriado para se

    reproduzir o automovimento da totalidade. Desse modo, a obra de arte

    autntica s possvel se for realista. Por fim, a definio de realismo concebe

    em si mesmo o carter mimtico da arte.

    PALAVRAS-CHAVE: Realismo. Arte. Mimesis. Gneros.

  • ABSTRACT

    This work will accomplish a literary analysis of the novel Anna Karenina (in the

    edition of 2011, released by Cosac Naify publisher), written by the Russian Leo

    Tolstoy, in 1873-77, establishing theoretical relations with the Hungarian Gyrgy

    Lukcs, especially with its Aesthetics (1965-1967). The work consists in

    scrutinize the realism problem, considering it as a literary mode of

    representation (rather than the literary period itself). The dissertation also

    regards the concept of art, treating the literature as art. To this end, the

    methodology covers the reflex theory, and it judges the literary art as mimesis of

    the social reality. The research highlightes the idea of the artistic production

    process as a philosophical and creative category, and it also studies parts of the

    romance related to art. This literary analysis examines characters, mainly the

    artist Mikhailov, who thinks a relationship between the artist forward the art

    critics or, rather, the criticism of his own art. Among other characters, the

    criticism investigates Golenchev (writer), Livin (land owner) and Anna

    (protagonist). Tolstoy, therefore, finds the art totality, and manages to combine

    both the ordering of the narration and the leveling of the description, and the

    literary genres of the tragedy, drama (internal conflict) and great epic (realism).

    Reality is a totality structured, so that realism is the appropriate literature

    method to reproduce the self-movement of the totality. Thus, the real art work

    can only be realistic. Lastly, the realism definition conceives itself the mimetic

    nature of art.

    KEYWORDS: Realism. Art. Mimesis. Genres.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO...........................................................................................p. 1

    2 CAPTULO 1 A arte dentro da arte: o realismo em Tolsti.....................p. 18

    2.1 Teoria do reflexo: a abordagem esttica do conceito de mimesis.....p. 32

    2.2 Meio homogneo e tolstosmo: questes do meio circundante.........p. 46

    2.3 O grande realismo de Tolsti: o triunfo..............................................p. 64

    3 CAPTULO 2 Personae: anlise das personagens

    em Anna Karinina....................................................................................... p. 74

    3.1 Livin: discusso do tpico e do particular..........................................p. 82

    3.2 Mikhilov/Golenchev: a pintura e a literatura como

    formas mimticas do mundo....................................................................p. 93

    3.3 Anna e o protagonismo....................................................................p. 107

    4 CAPTULO 3 Teoria dos gneros..........................................................p. 117

    4.1 Tragdia: categoria histrico-social.................................................p. 125

    4.2 O drama e o conflito interno............................................................p. 142

    4.3 A grande pica: o realismo..............................................................p. 152

    5 CONSIDERAES FINAIS......................................................................p. 167

    Referncias bibliogrficas............................................................................p. 176

    ANEXO.........................................................................................................p. 187

  • 1

    1 INTRODUO

    Este trabalho realizar uma anlise literria do romance Anna Karinina,

    escrito pelo russo Liv Tolsti, estabelecendo relaes tericas com o hngaro

    Gyrgy Lukcs. A edio do romance utilizada foi a mais recente, compilada e

    relanada pela editora Cosac Naify, em 2011, e com prefcio do tradutor Rubens

    Figueiredo. O esforo do trabalho consistir principalmente em esmiuar o problema

    do realismo literrio, considerando o realismo como modo de representao literria

    (e no apenas como o perodo literrio em si). A dissertao versar uma crtica

    literria sobre Anna Karinina, com o objetivo de desenvolver o conceito de arte,

    tratando a literatura tambm como arte.

    Escrito entre 1873 e 1877 (apenas quatro anos), Anna Karinina j nasce com

    uma inteno histrica, pois era intuito de Tolsti escrever um romance sobre a

    poca em que Pedro I tambm conhecido como o tsar Pedro, o Grande foi o

    primeiro imperador do Imprio Russo, reinando entre 1682 e 1725. Ressalta-se

    ento uma primeira diferena entre inteno e resultado do projeto literrio. Aps ter

    desistido do projeto inicial, Tolsti impulsionado por seu amigo e parceiro de

    caada Bibkov. A amante de seu amigo se chamava Anna, e se suicidou na vida

    real, de modo muito parecido personagem literria e ficcional de Anna Karinina,

    suicidando-se tambm sobre trilhos de trem. A estao de trem de Nevskii Prospekt

    a principal avenida de So Petersburgo at hoje torna-se na Rssia famosa

    desde ento e ilustra a edio estudada do livro, da Cosac Naify.

    importante considerar primeiramente o pas de produo do romance, pois

    a Rssia ocupa um lugar perifrico no desenvolvimento do capitalismo, de forma que

    o realismo russo se d quando a Rssia no estava no mesmo nvel de avano

    econmico-poltico da Europa. Quando Tolsti escreve, o mais alto realismo francs

    j tinha decado, mas na Rssia no, o realismo s estava chegando. O capitalismo

    russo teve um desenvolvimento tardio, o que propiciou no pas o surgimento do

    realismo, enquanto na Europa ele j estava decadente e passava pela fase

    apologtica da burguesia. Isso equivale a dizer que a Rssia se localiza na periferia

    da Europa. Mesmo assim, Tolsti capaz de produzir uma arte verdadeira e realista.

  • 2

    Para realizar uma anlise melhor e mais aprofundada de uma arte produzida neste

    pas, faz-se necessrio o levantamento conciso da histria russa.

    Anna Karinina foi primeiramente publicado captulo por captulo, na revista

    Mensageiro Russo, editada por Katkov, tambm amigo de Tolsti. O contexto era de

    agitao social, estando em voga na sociedade temas como problemas do

    casamento, direitos da mulher, administrao agrcola, regime da propriedade da

    terra, a relao do senhor com os mujiques (1825: revolta dezembrista contra

    Nicolau I; 1861: libertao camponesa) todos estes so temas que permeiam o

    romance. Trata-se, portanto, de uma relao do homem com o seu meio

    circundante, com a sociedade. Na heterogeneidade do mundo, o artista Tolsti capta

    algo homogneo e produz uma obra-prima.

    Como objetivos especficos, esta pesquisa intenta:

    Explicar algumas categorias filosficas presentes tanto no pensamento

    crtico de Lukcs quanto na narrativa literria de Tolsti. Eis alguns

    destes termos: romance histrico; termos gregos como mimesis,

    poisis, dnamis; processo; objetivao; reflexo; nome, criao do

    mundo artstico; contradio; mediao; realismo; possibilidade;

    atualidade;

    Problematizar a prpria crtica, tanto da literatura, quanto da arte. A

    crtica literria dialtica o mtodo a ser usado nesta dissertao; ela

    est presente tanto na teoria, quanto na literatura de Tolsti,

    principalmente, na figura do artista Mikhilov;

    Estabelecer a relao do realismo literrio, neste caso tanto o perodo

    histrico quanto o mtodo compositivo, com outras fases do

    desenvolvimento literrio, como o romantismo e o naturalismo,

    estudando, sobretudo, a crtica em relao a esses modelos;

    Considerar, alm dos dois trechos marcadamente delimitados nesta

    introduo, a existncia de outros dilogos entre as personagens, para

    melhor ilustrar a crtica literria dialtica;

    Verificar a relao do gnero romanesco com a pica, a tragdia e o

    drama, por meio de uma longa e aprofundada discusso j estipulada

    por Lukcs, Vernant, entre outros.

  • 3

    luz destes conhecimentos, o objeto geral desta pesquisa analisar

    criticamente o realismo literrio, no seu mtodo compositivo que inclui diretamente a

    mimesis, a partir principalmente de dois trechos do romance Anna Karinina de

    Tolsti. A hiptese dessa dissertao ser indicar como este realismo no s indica,

    mas aponta em direo desfetichizao, catarse e autoconscincia da

    humanidade.

    A pesquisa se divide em trs momentos: um captulo sobre a teoria do

    realismo e o conceito aristotlico de mimesis, um captulo destinado discusso da

    crtica literria do romance Anna Karinina a partir de uma seleo de suas

    personagens e um captulo sobre a teoria dos gneros. Faz parte deste projeto

    dissertativo elaborar uma anlise da totalizao de gneros que realiza Tolsti no

    seu romance. Tolsti no capta s uma totalidade da realidade, mas tambm dos

    gneros literrios entre si. Em Tolsti, d-se, portanto, o reflexo exato e profundo da

    realidade objetiva.

    O primeiro captulo comea trazendo alguns fatos da vida de Tolsti, da

    relao de sua obra como um espelho, ou espelhamento da realidade objetiva.

    Explicam-se respectivamente o conceito de mimesis, realismo e tolstosmo. Vale-se

    do texto Len Tolsti, espejo de la revolucin rusa (1979), para apontar como que

    Lenin, enquanto crtico literrio, enxerga na obra de Tolsti as profundas

    contradies que repercutiram na Revoluo Russa de 1917. Investiga-se o conceito

    aristotlico de mimesis, relacionando-o com a Esttica (1966-67) de Lukcs e

    partindo para a anlise de trechos especficos da obra de Tolsti.

    O segundo captulo o momento da anlise da crtica literria do romance

    Anna Karinina a partir de suas personagens. Livin um personagem sobre o qual

    se construir o paradigma lukcsiano do particular. Mikhilov e Golenchev so o

    gatilho para a discusso sobre arte. Neste segundo captulo, tem-se como meta uma

    justificativa extrada a partir das artes plsticas, considerando a pintura e a literatura

    como formas artsticas e mimticas do mundo. Apesar de aparecer em poucos

    momentos e muito especficos ao longo de todo o grande romance, a reflexo em

    relao arte ocorre em Anna Karinina, e uma ponte para se estudar o realismo

    russo nesta dissertao. Em suma, o segundo captulo se conclui com a anlise dos

    dois trechos-sntese j mencionados que incorporam o realismo, propiciando a

  • 4

    crtica literria propriamente dita. E, por fim, pensa-se sobre o protagonismo a partir

    da personagem de Anna. O seu protagonismo erige-se pelo seu comportamento em

    relao s outras personagens, porque um protagonista s se constri como tal em

    conjunto, nunca isolado.

    No terceiro e ltimo captulo, examina-se a totalidade dos gneros literrios

    em Tolsti: a tragdia, o drama e a pica. Esta crtica ser orientada, sobretudo, em

    relao aos gneros artstico-literrios. A tragdia enquanto categoria histrico-

    social ser estudada, de forma a explicar que, apesar de o livro constituir um

    romance gnero narrativo, portanto a tragdia se insere e se circunscreve no

    livro como um todo. Porm, no o gnero da tragdia, no seu modo cnico, teatral

    e espetacular, mas so caractersticas particulares da tragdia, por meio das quais

    se possvel definir a tragdia enquanto uma categoria, e no um gnero, no caso

    de Anna Karinina. Nesta categoria, so agrupados elementos como o conceito de

    heri (no caso herona) trgico(a), momento histrico de transio, ptos, dentre

    outros. Por outro lado, o drama se verifica pelo conflito interno e a pica pela grande

    narrativa.

    Dentro de um romance de mais de 800 pginas, preciso fazer um recorte, a

    fim de determinar o objeto de estudo. No captulo 2, algumas personagens so

    escolhidas, devido sua importncia, para elaborar este estudo: Anna Karinina,

    Konstantin Livin, Mikhilov e Golenchev. Para fazer uma breve introduo da

    anlise das personagens, a primeira apario de Livin por meio de um dilogo

    com o seu amigo Oblnski. Livin um personagem que, a princpio, demonstra-se

    como bruto, mas que, ao chegar prpria casa, revela-se um verdadeiro filsofo e

    pesquisador, engajado em amplos problemas lgicos, e at mesmo estava

    escrevendo um livro sobre a agricultura na Rssia, algo que seu colega Oblnski,

    embora fosse funcionrio pblico e aparentasse refinada reputao, devido ao alto

    cargo que ocupava, de nada tinha opinies estabelecidas, seno opinies gerais

    (senso comum). Mesmo que o indivduo Oblnski tivesse a sua prpria conscincia,

    a sociedade lhe impunha aquela que convinha a ela. Entre esse par de

    personagens, aquilo que parece no . Encontra-se aqui um problema entre a

    essncia e a aparncia.

  • 5

    Por sua vez, a protagonista Anna Karinina age primeiramente no romance

    como uma mediadora na relao deteriorada, desfacelada entre o seu irmo

    Oblnski e a sua esposa Dria, aps o adultrio. Logo, os personagens interagem-

    se e interligam-se: O mais alto crculo da sociedade em So Petersburgo um

    crculo, propriamente dito; todos se conhecem, e at se frequentam (TOLSTI,

    2011, p. 135). Ento, percebe-se a preocupao com a reputao na sociedade

    russa, uma vez que Anna vivia em uma poca em que dela era cobrada a

    manuteno da compostura, o autodomnio do sujeito poltico-social. Muito aparece

    no romance um forte costume social das elites da poca: saber falar outras lnguas,

    e, no bastando isso, demonstr-lo em sociedade. Longos trechos e mesmo

    conversas inteiras de Anna Karinina so escritos na ntegra, por exemplo, em

    francs. Ou ainda: E, como hbito entre russos, em lugar de falar em russo,

    passou a falar em francs aquilo que desejava ocultar dos criados (TOLSTI, 2011,

    p. 454).

    Este trabalho ir se embasar numa parte especfica de Anna Karinina, um

    problema que comea a ser colocado a partir da parte 5, na qual Anna e Vrnski

    haviam fugido juntos para o exterior (Itlia). Ento, Vrnski se v entediado l, e

    comea a se dedicar arte da pintura e tambm teoria da arte no geral. Na Itlia,

    eles tambm conhecem um pintor profissional, Mikhilov, com o qual travam uma

    conversa sobre arte.

    significativo notar tambm que, nesta parte do romance, antes de pensar a

    arte como tal, Vrnski trava ligao com outro russo hospedado na mesma

    estalagem que o casal, o personagem-escritor Golenchev, responsvel pela

    introduo da discusso sobre arte na obra do romancista russo. Golenchev estava

    escrevendo um livro intitulado Os dois princpios, uma autorreferncia de Tolsti ao

    nome inicial que seria dado sua obra (Os dois casais, como esclarecido logo

    mais pelo tradutor Rubens Figueiredo).

    Dado este conflito interno na alma e no destino de Vrnski, o personagem

    pe-se a pintar um retrato de Anna. No obstante, uma nova pea introduzida no

    jogo: o pintor (j consagrado, no amador como Vrnski) Mikhilov. Vrnski era

    artista amador, portanto brincava de pintar; para Mikhilov a arte trabalho

    profissional, trabalho potico. Mikhilov pensava que ningum pinta duas vezes o

  • 6

    mesmo quadro, ele sabia que aquilo que pretendia transmitir e que transmitira

    nesse quadro ningum jamais havia transmitido (TOLSTI, 2011, p. 463), isto ,

    cada obra de arte nica. Mikhilov uma personagem que ser muito bem

    analisada, uma vez que ele quem conduz no romance o caminho para a

    plasticidade dramtica. A personagem Mikhilov tambm pensa uma relao do

    artista frente aos crticos da arte ou melhor, crtica da sua prpria arte (se que

    arte algo que se possa apropriar).

    Dessa forma, um novo problema aqui instalado: o problema do ponto de

    vista, tanto do artista, quanto de quem observa, aprecia ou percebe a obra de arte,

    seja ele espectador, seja leitor. Isso se evidencia no romance em ocasio da visita

    de Anna e Vrnski a Mikhilov, pois o que ao artista Mikhilov parecia importante na

    sua obra de arte produzida, aos olhos dos visitantes, entretanto, passava-se

    totalmente despercebido, e tambm se dava o contrrio, aquilo que os visitantes

    no haviam notado, mas que, ele [Mikhilov] sabia, era o mximo da perfeio

    (TOLSTI, 2011, p. 469).

    Em termos de metodologia, esta dissertao baseia-se primordialmente no

    conhecimento e projeto terico de Lukcs, perpassando pelos livros Teoria do

    romance (esboado em 1914-15, cuja escrita foi influenciada justamente pela

    ecloso da Primeira Guerra Mundial), O romance histrico (publicado no exlio em

    Moscou, em 1936-37, tambm influenciado pela Segunda Guerra Mundial, e depois

    em alemo em 1954), e a Esttica (edies Grijalbo, em quatro volumes, de 1966-

    67). Alm destes livros, sero adotadas outras importantes produes de Lukcs,

    relacionadas diretamente a esta dissertao no que diz respeito crtica literria e a

    considerao de Tolsti, como: Marxismo e teoria da literatura (2010),

    especialmente, no artigo Narrar ou descrever; Introduo a uma esttica marxista

    (1970) e as vastas consideraes lukcsiana acerca do realismo russo.

    Lukcs um pensador muito rico, pois encarna em si transformaes de um

    mesmo pensamento. Por exemplo, em relao categoria da totalidade; em Teoria

    do romance, para Lukcs, a totalidade est perdida, o homem no tem ptria e essa

    totalidade nunca pode ser encontrada; j em Histria e conscincia de classe (1922),

    essa totalidade pode ser alcanada, a ptria recuperada, mas por meio da

    transformao social/revoluo; por fim, em 1935 (justamente no exlio em Moscou),

  • 7

    Lukcs considera que o ptos da personagem tanto na arte quanto na vida

    buscar por essa totalidade. Para elucidar e acompanhar melhor essa evoluo de

    pensamento desde o incio, sero utilizados estudos que explicam a trajetria do

    pensamento de Lukcs e funcionam como obras de consulta. Para dar alguns

    exemplos: a dissertao de mestrado de Ana Cotrim, intitulada O realismo nos

    escritos de Georg Lukcs dos anos trinta (2009), a obra de Nicolas Tertulian Georg

    Lukcs: etapas do seu pensamento esttico (2008) e o livro de Celso Frederico A

    arte no mundo dos homens (2013).

    importante explanar um pouco sobre a evoluo histrica do pensamento

    ocidental, no que diz respeito ao mtodo materialista, o que implica estudar

    Aristteles. Deste pensador grego, selecionam-se especialmente as seguintes

    obras: Potica (sua ltima obra, redigida durante a sua maturidade e desenvolvida

    no Liceu, entre 335-323 a. C.), Retrica (seu penltimo livro) e Metafsica (obra de

    sua juventude, escrita sob influncia de Plato, mas j apresentando crtica em

    relao ao pensamento platnico). Este estudo em particular objetiva esclarecer a

    diferenciao entre o pensamento materialista e o idealista. Adiante, detm-se sobre

    o filsofo alemo Friedrich Hegel, realizando resumidamente o acompanhamento da

    transio de Fenomenologia do esprito (2011) para Cursos de esttica (2000-04,

    verso digital lanada pela EDUSP). A partir da construo deste conhecimento,

    possvel estudar corretamente e com propriedade as categorias lukcsianas dentro

    da narrativa de Tolsti.

    Portanto, esta dissertao utilizar como mtodo a crtica literria dialtica,

    produzindo um prospecto da histria russa, e utilizando ainda as filosofias

    aristotlica e hegeliana, a fim de chegar esttica lukcsiana. Em termos de

    mtodo, so adotadas as consideraes histricas e estticas marxistas,

    principalmente Manuscritos econmico-filosficos (2010) e as suas reflexes acerca

    do suicdio e da luta de classes na Rssia. Pensa-se o mtodo da crtica literria

    dialtica e marxista em paralelo e dilogo com outros tericos, como Leandro

    Konder, Walter Benjamin, Peter Szondi, etc.

    No incio do romance Anna Karinina, em ocasio da chegada de uma das

    personagens principais, Anna conhece o seu futuro amante, conde Vrnski, o qual

    amigo do irmo de Anna, Oblnski. Juntos, eles presenciam o mau pressgio de um

  • 8

    suicdio na estao de trem (o que se repete ao final do romance com a

    protagonista). Esta constatao inicial confere obra primeiramente os seguintes

    problemas: o acaso, a superstio, ou ainda, a previsibilidade. A repetio seja ela

    de forma ou, no caso, de contedo (suicdio) poderia assumir uma posio

    acessria, insignificante, como no caso do Naturalismo (enquanto perodo e

    mtodo literrio); porm, no caso de Tolsti, ela entra no eixo integrador da obra.

    Lukcs desenvolve, ao longo de toda a sua Esttica, uma crtica sobre categorias

    filosficas, como a necessidade e o acaso. Este acaso ganha importncia, pois ele

    reabilitado na histria humana.

    Rubens Figueiredo, o tradutor de Anna Karinina para o portugus pela

    editora Cosac Naify, explica em seu prefcio que A exemplo de Guerra e paz,

    Tolsti fez das pessoas sua volta familiares, amigos e conhecidos os modelos

    para os personagens (FIGUEIREDO, 2011, p. 8). A arte, ao imitar as aes

    humanas, no s as reproduz copiosamente, mas confere a elas uma nova

    dimenso, dimenso esta que superior quela da vida cotidiana; desta forma,

    introduz-se aqui o prprio conceito de mimesis.

    Em outras palavras, a obra de arte cria para si um mundo prprio; contudo,

    este mundo no criado a partir do nada, ele nasce do reflexo da realidade objetiva.

    Exemplo maior de reflexo no h do que o prprio nome Anna, estabelecendo em si

    e para si uma condio de palndromo, que o nome refletido nele mesmo, o que

    tambm no deixa de ser uma ironia trgica, pois o final do livro igual ao comeo,

    ou ao menos um tema do contedo repetido. Diz Aristteles na Potica: O nome

    um som composto, significante, sendo que nenhuma parte dele tem significao

    independente (ARISTTELES, 2011, p. 76).

    A fim de ressaltar ainda mais o problema do nome em Anna Karinina,

    importante perceber que ambos os primeiros nomes dos dois amantes da

    protagonista so Aleksiei. Tanto que na cena da reconciliao segundo Lukcs

    em Teoria do romance (2009), a experincia de comunho entre Karinin e Vrnski

    junto ao leito de Anna h certa confuso (proposital) entre estes dois nomes

    iguais. Anna, aps ter dado luz ni, filha dela com o Vrnski, pede aos dois

    homens que a amam, no seu leito enquanto ela se encontrava muito doente por

    causa do parto, que se reconciliem diante e por ela. No entanto, quando ela chama

  • 9

    aos homens, ela diz somente Aleksiei! Aleksiei!, e, repetindo o nome, esclarece-se

    que ela est a chamar os dois companheiros e no apenas um deles. Este um

    profundo momento de unio dentro do livro.

    Portanto, o nome diz respeito a certa totalidade e importante para a anlise

    crtica do romance Anna Karinina. Aqui, tambm cabe a observao a em relao

    particularidade da lngua russa, que consiste no uso do patronmico para designar

    aos nomes prprios a ideia de posse, referente famlia. Desta forma, Anna

    Karinina significa, literalmente, Anna de Karinin, uma vez que ele o seu

    marido. Este patronmico tambm pode ser marcado para indicar somente

    parentesco, no caso do gnero masculino, por exemplo, em Aleksiei

    Aleksndrovitch, denotando Aleksiei, filho de Aleksnder (pai).

    o nome que ampara legalmente, e contempla Anna nos direitos familiares,

    diante da lei. Isto demonstra, por meio da lngua, o patriarcalismo que ainda reinava,

    tal qual um tsar ele prprio, na Rssia naquele momento. Apesar disso, Tolsti no

    indica somente esta dificuldade na condio da mulher, mas tambm a evoluo do

    direito russo, que na poca comeava a considerar o divrcio judicialmente.

    Desta forma, o nome (substantivo) uma categoria gramatical aristotlica,

    parte da elocuo. Nesta anlise realizada, o nome ganha importncia, pois ele

    encarna a potncia mimtica, uma vez que o nome aquele responsvel por refletir

    imediatamente a realidade objetiva. Logo, Anna Karinina uma mulher, na

    sociedade patriarcalista russa do sculo XIX, com nome, mas no totalmente com

    voz. Lembrando que o alfabeto russo o cirlico, de forma que este trabalho

    pretende, nos anexos, exibir alguns exemplares do original em russo, a ttulo de

    curiosidade e, se possvel, de comparao.

    Figueiredo, o tradutor, fala o seguinte no prefcio:

    Assim, no admira que Anna Karinina esteja estruturado com base em pares e paralelismos. Alis, seu ttulo, nos primeiros rascunhos, era Dois casamentos, ou Dois casais: o adltero e o legtimo. No

    desdobramento do romance, em sua verso definitiva, esse dstico se articula em outras sries de contrastes: a cidade e o campo; as duas capitais da Rssia (Moscou e So Petersburgo); a alta sociedade e a vida dos mujiques; o intelectual e o homem prtico, e assim por diante (FIGUEIREDO, 2011, p. 10).

  • 10

    Estes contrastes no so entendidos por esta crtica literria de maneira

    polarizada, excludente, mas sim complementar, na perspectiva da sntese dialtica.

    O filsofo alemo Hegel institui que as contradies so o verdadeiro motor da

    humanidade. A seu modo, Tolsti consegue muito bem captar essas nuanas. Na

    verdade, o tema do adultrio no o que h de mais importante no romance,

    havendo tantos outros temas. O fato de o amor romntico ser um contedo literrio

    tratado de forma secundria dentro do romance Anna Karinina significa que Tolsti

    superou estilstica e historicamente o perodo literrio do romantismo. O autor no s

    o supera, como tambm o critica muitas vezes, assim como ao naturalismo.

    Lukcs, em Teoria do romance (2009), fala sobre o amor em Anna Karinina.

    Para o terico, Tolsti no defende o amor romntico, mas o amor pattico paixo

    como poder dominante da vida em que se configura da maneira mais concreta e

    patente. J em O romance histrico (2011a), Lukcs dialoga com o romantismo

    alemo de Goethe, Schiller, e o francs de Vitet e Merime (Carmen). Trata-se

    dessa crtica ao romantismo, um modelo literrio em falncia. Outro elemento que

    Figueiredo destaca em Anna Karinina a popularidade da linguagem,

    corroborando com a hiptese de que a forma de composio do romance por si s j

    representa uma resistncia a formas literrias j esgotadas, seja no contedo contra

    o romantismo, seja na forma contra uma linguagem mais rebuscada.

    Tudo dentro do romance Anna Karinina diz respeito a uma crise que se

    generaliza, a um modelo em falncia (o tsarismo). Lembrando que crise,

    etimologicamente, uma palavra proveniente do grego clssico, podendo significar

    alterao, desequilbrio, tenso e/ou conflito, mas que, sobretudo, originou a prpria

    palavra crtica, exerccio sobre o qual vem se propondo este trabalho. Desta forma, a

    composio do romance indica uma complexa arquitetura textual, e o escritor edifica

    dentro de sua obra uma coeso interna.

    O famoso incipt de Anna Karinina contrape famlias felizes s infelizes. A

    infelicidade se refere perda da fortuna, mas tambm ao ptos paixo ao

    sofrimento.1 Aristteles ainda diz na Potica (2011), que a tragdia no s

    espetculo cnico, mas ela importante, sobretudo, pela estrutura dos atos, porque

    1 Do grego, (ptos), termo que origina, por exemplo, a Pscoa e significa sofrimento. Nesta

    dissertao, a fim de maior esclarecimento, os termos em grego sero fornecidos na sua lngua original, mas sero tambm transliterados.

  • 11

    a tragdia a imitao dos seres humanos e de suas aes (mimesis prxeos),

    tanto de sua felicidade quanto de sua infelicidade. Logo, conclui-se estar essa

    felicidade ao final da vida, uma vez que o seu sentido construdo. Principalmente,

    essa felicidade a sorte, a fortuna muda ao longo do romance, pois a prpria

    Anna sofre o seu desfecho trgico. A primeira vez que se debate sobre morte no

    romance Anna Karinina na fala da personagem de Livin, quando ele fala com o

    seu irmo Serguei em sua primeira apario (somente na parte 3) no romance. Diz

    Livin o seguinte: Penso que, apesar de tudo, o motor de todas as nossas aes

    a felicidade pessoal (TOLSTI, 2011, p. 249).

    Livin v-se face morte ao final da parte 3, agravada a situao de

    tuberculose de seu irmo Serguei. A morte, portanto, ser um fio condutor que ir

    redimensionar o romance. Livin opta por mudar a sua maneira de agir de gerir a

    sua propriedade rural ante a percepo e o medo da morte. O captulo XX da parte

    5 o nico intitulado de todo o romance, e ele se intitula Morte, a fim de falar da

    morte de Serguei, irmo de Livin. Uma vez que faz parte deste projeto acompanhar

    a mudana das personagens ao longo do romance, este fato revela-se importante.

    Lukcs diz no ensaio Sobre a tragdia, em Arte e sociedade (2011b), que a

    histria humana uma sucesso de tragdias, mas que o seu resultado final no

    trgico, e o trgico se observa tanto na vida quanto na arte. O tempo e o lugar que

    emergem do conflito sob forma trgica so provenientes da concreta situao

    histrica-social. Na arte, s a trama contida na realidade capta a forma artstica do

    trgico, provando o estabelecimento da relao entre realismo e tragdia.

    O fato de haver comoo movimento em conjunto com Anna provoca o

    sentimento de simpatia o mesmo ptos, ptos em conjunto por ela, de forma que

    a partir da possvel haver reconhecimento, ou identificao, com a personagem

    literria, o que chamado de catarse. A catarse quando o leitor reconhece que o

    destino representado na personagem na verdade o destino dele tambm; assim,

    entende-se que o seu destino no s pessoal, mas da coletividade como um todo.

    O indivduo singular no caso o leitor torna-se melhor do que era, para alm de si

    mesmo, humaniza-se.

  • 12

    por isso que a tragdia (e a arte de forma geral) produz a autoconscincia

    humana. A tragdia provoca a catarse e evoca o passado, mas no como porto

    seguro, um fato dado, mas sim para question-lo, contestar os seus valores. O

    momento da tragdia um reflexo da prtica humana: um momento de

    questionamento, de dvida, de hesitao. E tambm a tragdia histrica a tragdia

    da atualidade, isto , do seu tempo, dizendo respeito ao seu tempo histrico e sua

    realidade. Sobre isso, diz Pierre-Vernant no seu artigo O sujeito trgico: historicidade

    e transistoricidade (2011) que a tragdia no nasceu para ser puramente lendria,

    mas tambm histrica. Ele defende que este termo transistoricidade a

    capacidade da tragdia de superar o seu prprio tempo histrico e poder durar.

    Antes mesmo do incipt no romance, h uma epgrafe extrada da Bblia, mais

    especificamente do livro de Deuteronmio (quinto livro da Bblia). Esta epgrafe se

    refere ao destino de Anna Karinina, o qual desenvolvido a partir de uma srie de

    cenas altamente dramticas, que assinalam uma profunda mudana no conjunto do

    enredo, diz Lukcs no artigo Narrar ou descrever (2010), ressaltando ento a

    relao do romance no s com a tragdia, mas tambm com o drama. Tolsti se

    vale no s da concepo trgica na sua figurao literria como tambm do drama.

    Eis uma coisa que est guardada comigo, /consignada nos meus

    segredos: /a mim me pertencem a vingana e as represlias, /para o

    instante em que o seu p resvalar. /Porque est prximo o dia da sua

    runa /e o seu destino se precipita. (BBLIA SAGRADA,

    Deuteronmio, 32:34-35).

    Anna no precipita s runa, mas se precipita a si mesma, isto , se

    antecipa e se termina. Na edio da Cosac Naify, o trecho : De mim vir a

    vingana, mas tambm a recompensa. O interessante aqui notar como a vingana

    vem antes da recompensa, e tentar encontrar qual o sentido disso. Lembrando

    tambm que Tolsti, durante grande parte da sua vida, foi cristo ortodoxo, uma

    tradio do costume russo. Em Anna Karinina, h tambm um dilogo muito

    significativo, quando Livin vai se casar com Kitty. Antes do casamento, ele precisa

    se confessar, mas nessa admisso ele reconhece a sua vacilao, e o padre

    responde a ele que hesitar tpico do humano, e mesmo os padres hesitam.

  • 13

    A riqueza de Tolsti est nos detalhes e, novamente, o que h de mais

    importante no comeo no o incipt, mas, a frase seguinte: Tudo era confuso na

    casa dos Oblnski (TOLSTI, 2011, p. 17). Este perodo mostra que, apesar de o

    romance se intitular Anna Karinina, ele no comea por tratar dela em especial

    (nem termina, tambm, por sinal, porque a ltima parte inteira sobre Livin). Anna

    protagonista, mas as outras personagens tambm apresentam fora de

    protagonista, e muitas vezes roubam a cena. Lukcs debate em O romance histrico

    (2011a) sobre, como para abordar a histria propriamente dita, no se fala

    diretamente da personagem principal, mas de coadjuvantes, pois s assim o detalhe

    captado, e a totalidade do conjunto, pensando tambm na relao entre centro e

    periferia das prprias personagens.

    A dificuldade do trabalho artstico, sobretudo, o da pintura, para a

    personagem de Mikhilov, consistia em pintar rostos, pois cada rosto tem um carter

    prprio, cada vez uma nova expresso e o momento pintado aquele singular que

    o artista consegue captar. Contudo, quando um rosto representado em uma obra

    de arte (e aqui abrangendo no s a pintura, mas tambm a literatura), ele deixa de

    ser um mero singular, para se tornar um universal, pertencente ao gnero humano.

    A esta categoria, o terico Lukcs confere o nome de particular. O particular uma

    mediao necessria, um centro organizador. E esta a funo da obra de arte:

    produzir particulares. No seu ensaio Tribuno do povo ou burocrata?, Lukcs diz o

    seguinte sobre o artista Mikhilov: E Tolsti contrape esta relao do trabalho

    artstico com a vida concepo dos tempos atuais (LUKCS, 2010, p. 128),

    provando no romance de Tolsti no s o seu grande realismo, mas tambm a sua

    atualidade, nos dois sentidos do termo: o fato de o realismo ser recente, mas

    tambm atuante.

    A visita de Anna e Vrnski ao pintor resulta em que Mikhilov vende um

    quadro a Vrnski e aceita fazer um retrato de Anna. O problema do retrato muito

    bem se encontra na literatura ocidental, para citar dois exemplos, O retrato de

    Dorian Gray, de Oscar Wilde, e em O retrato oval, conto de Edgar Allan Poe. Trata-

    se, portanto, de analisar como se d o reflexo da realidade objetiva na obra de arte.

    Fazer essas conexes importante, pois dentre as leituras ocidentais do prprio

    Tolsti estavam Stendhal, Flaubert, Balzac e Guy de Maupassant. Considera-se,

  • 14

    portanto, que mesmo o artista no caso, o escritor Tolsti no pode ser

    considerado isolado, mas dentro de um conjunto, pois a sua prtica enquanto

    escritor reflete a acumulao de uma prtica literria maior a produo literria de

    toda a humanidade.

    H outra personagem importante dentro do romance, que no ser analisada

    detidamente nesta dissertao, a no ser em relao s outras personagens, que

    Aleksiei Aleksndrovitch, o marido de Anna. Aps ter-se consumado o adultrio, ele

    se encontrava desamparado: O mais difcil de tudo em tal situao era no poder,

    de forma alguma, unir e conciliar o prprio passado quilo que agora ocorria

    (TOLSTI, 2011, p. 497). H um momento em que Karinin anda de um lado para o

    outro no cmodo, emparedado, sem saber o que fazer. Lukcs fala em O romance

    histrico (2011a) de quando as personagens se encontram nessa situao de

    deciso, quando elas se enxergam numa verdadeira encruzilhada. Pois se

    Shakespeare em Hamlet se pergunta: To be, or not to be, that is the question,2 j

    em Coforas de squilo as personagens se perguntam: agir ou no agir?3 A

    personagem o centro da deciso, ela quem toma o ato da deciso, pois decidir,

    mais do que um verbo, um ato em si. E, sobretudo, apesar de passados dois mil

    anos de histria humana, decidir ainda continua sendo um ato dramtico e humano,

    dizendo respeito no somente a um indivduo singular na Grcia Clssica, ou

    Rssia, mas ao gnero humano.

    Por outro lado, Anna, quando volta Rssia do seu retiro na Itlia, achava-se

    numa delicada situao social. Dvidas pairavam sobre o casal rompido em relao

    ao divrcio, e dificuldades se avolumaram. A relao entre Anna e Aleksndrovitch

    tornara-se agora virtual, meramente epistolar, ao passo que a relao com Vrnski

    rende-lhes uma filha, ni (mesmo nome da me). Constituda essa nova famlia,

    uma alternativa permitida apesar de muito mal aceita pela sociedade moderna

    russa, os trs vo se reestabelecer em outra casa, no campo, e afastada do meio

    urbano. A parte 6 demonstra a decadncia dessa segunda relao conjugal de Anna

    Karinina, antes to deslumbrante, agora tambm saturada, sufocante, e a

    infelicidade e a frustrao que se instalaram entre o casal, provocando entre eles

    uma situao tenebrosa.

    2 Ato III, cena 1: Ser ou no ser, eis a questo. Disponvel em: .

    3 Disponvel em: .

  • 15

    Nesta nova casa, d-se o primeiro e nico encontro entre Anna e Livin

    (na parte 7, penltima); porm, antecedendo o ato em si do prprio encontro entre

    os dois, localiza-se o retrato de Anna. Esta dissertao ir se deter em um segundo

    momento do romance, o momento que Livin contempla o retrato de Anna

    Karinina, produzido pelo artista Mikhilov. Este trecho suscita relaes entre o

    realismo, o efeito provocado pela obra de arte e a mimesis.

    Para Lukcs, a obra de arte autntica s pode ser aquela realista. A obra de

    arte realista aquela capaz de configurar personagens concretos em situaes

    concretas e em ao, o que muito se difere cpia, ou reproduo fotogrfica da

    realidade, qual se ope Lukcs rigidamente e que, portanto, no corresponde

    arte realista, nem mimesis. E esta arte autntica responsvel por fazer com que

    a humanidade enxergue as relaes humanas em suas determinaes,

    propriamente ditas, em vez de fetichizadas.

    A fetichizao quando as relaes aparecem na vida ou na arte

    objetificadas, em vez de humanizadas, e a arte potente justamente porque resgata

    essa humanizao. S por meio do realismo se capaz de recuperar a humanidade.

    O artista cria um mundo, o mundo da obra de arte, que autntica porque um

    mundo em si (do escritor) e para si (do leitor). A definio de realismo concebe em si

    mesmo o carter mimtico da arte. Ento, esta dissertao se conclui defendendo o

    triunfo do realismo, no sentido engelsiano do termo de representao de

    personagens tpicas em situaes tpicas na obra de Anna Karinina.

    Estando morta, apagada e extinta para sempre a Anna, Livin assume o

    primeiro plano da narrativa e a termina. Isso significa dizer que Livin se torna o

    centro no ltimo captulo. Coloca-se, por fim, que o sofrimento (ptos) o que d

    sentido finalmente narrativa de Anna Karinina. A atualidade do realismo evoca a

    compreenso da realidade objetiva por meio da obra de arte literria, valendo-se da

    mimesis.

    Anna Karinina , sobretudo, um romance sobre os projetos e as paixes

    humanas. Em Anna Karinina, todos so um pouco protagonistas, a fora est nas

    relaes, nas conexes. Esta dissertao no uma anlise dos seres em si,

    isolados, mas no seu conjunto social. A fora de Anna Karinina mostrar a

  • 16

    seguinte universalidade: todos chegam concretizao de seus destinos, mas

    diante disso duas decises distintas podem ser tomadas: resignar-se ou recusar-se

    a se curvar s determinaes. As personagens agem dentro do romance; desta

    forma, nem se se estagnam, nem se resignam, e por isso possvel acompanhar a

    evoluo humana em cada personagem. Com isso, pode-se afirmar que de

    responsabilidade de todas as personagens sejam elas literrias ou reais lutar

    contra as tendncias. Como diria o poeta alemo Rainer Maria Rilke, em seu soneto

    Torso arcaico de Apollo: Du musst dein Leben ndern, o que significa na traduo

    de Manuel Bandeira: Fora mudares de vida.4

    A criao literria por parte de Tolsti um engendramento to fortuito que

    conduz as personagens todas no s ao seu destino particular, mas ao destino da

    humanidade, que no nico, mas sim um caminho que visa mas nem sempre

    alcana liberdade da escolha. Anna uma herona trgica, problemtica; no

    deve ser simplesmente aceita, mas debatida. O processo mimtico, enquanto

    categoria histrica , portanto, um automovimento de superao. A dialtica da

    superao prpria da vida e fundamental na arte: a arte realista produz essa

    ultrapassagem, que uma superao no sentido do verbo alemo aufheben,

    superar, mas conservando.5 A possibilidade da superao na arte a

    desfetichizao, que produz consequentemente a catarse, possibilitando a mudana

    no pensamento e na atitude; por fim, o papel do ser humano central nessa

    mediao.

    Em Anna Karinina, h a luta contra o determinismo e a conveno. O mundo

    da conveno na verdade atemporal: uma monotonia eternamente recorrente e

    repetitiva. Ontologicamente, torna-se humano justamente porque em algum

    momento e de alguma forma se possvel virar contra as determinaes, a fim de

    super-las, portanto, tambm uma luta pela autenticidade. At o ltimo momento

    em que se est vivo, pode-se mudar, mesmo que aparentemente uma situao

    parea sem sada. Esta constatao tem em ltima instncia um carter positivo, e

    no fatalista, pois nesse sentido que a arte principalmente, a articulada e

    portanto grandiosa arte de Tolsti confere um sentido superior vida.

    4 Disponvel em: . Acesso em: 21 jun. 2015.

    5 Consulta ao dicionrio MICHAELLIS: dicionrio escolar alemo: alemo-portugus, portugus-

    alemo. So Paulo: Editora Melhoramentos, 2009, p. 29.

  • 17

    Por fim, a mimesis o modo pelo qual a arte se constri como dimenso

    superior vida cotidiana, pois na arte h uma concentrao homognea de

    problemas que na vida cotidiana esto dispersos, confusos heterogneos. Para

    que haja mimesis, preciso haver tambm poisis (inveno, criao). A dinmica,

    como mtodo compositivo na narrao de Tolsti, d conta do drama e dos destinos

    humanos. Nesse sentido, Anna Karinina prevalece na representao realista, do

    reflexo literariamente exato e profundo da realidade, triunfando, assim na figurao

    concreta de personagens concretas e na capacidade de atingir um conhecimento

    ntimo do homem. Desta forma, a arte de Tolsti significativa porque ela efetua a

    transio do passado para o presente em um momento particular na Rssia e assim

    representa a arte enquanto a memria da humanidade.

  • 18

    2 CAPTULO 1 A arte dentro da arte: o realismo em Tolsti

    Este captulo pretende abordar a referncia problematizao da arte no

    romance Anna Karinina (2011), de Tolsti, luz da crtica literria dialtica, a partir

    da anlise de alguns trechos do livro. Estes trechos elucidam a perspectiva que

    Tolsti apresenta sobre o conceito de arte, e a obra de arte no geral, e eles so

    elegidos para o estudo porque, apesar de serem poucos trechos e aparentemente

    perifricos ao longo do romance, eles se vinculam a uma discusso central, que o

    papel de formao da arte. A seleo destes trechos, por isso, funciona como uma

    espcie de lupa, que primeiro realiza um movimento de investigao e minimizao,

    para depois aprofundar e amplificar a viso do mundo, em relao no s arte,

    mas tambm sociedade, possibilitando assim uma autoconscincia e a apreenso

    da totalidade. So trechos cuidadosamente escolhidos por conta destes aspectos.

    Escolhem-se trechos que falam explicitamente de arte dentro do romance e,

    embora sejam um dos nicos excertos ao longo de todo o romance que cumprem

    essa funo, eles so de extrema importncia, uma vez que teorizam sobre a arte

    realista.6 Portanto, este captulo objetiva apresentar trechos-sntese da obra Anna

    Karinina de Tolsti, nos quais se observam a teoria do realismo, a mimesis, dentre

    outros elementos. Em termos de metodologia, vale-se do percurso que realizou

    Lukcs em sua teoria, esclarecendo alguns termos-chave para a compreenso do

    mtodo da crtica literria dialtica e materialista que sero utilizados ao longo desta

    dissertao, a partir dos trechos literrios de Tolsti, sem com isso, contudo, deter-

    se na teoria.

    O objetivo especfico deste captulo apresentar a obra literria Anna

    Karinina (2011) de Tolsti como marco do realismo russo, selecionando trechos

    que comprovam esta teoria do realismo enquanto mtodo literrio. Em paralelo

    anlise e crtica literria, sero utilizados conceitos-chave na teoria literria

    lukcsiana, e que se verificam a partir da obra de Tolsti, tais como arte e realismo e

    como que estes conceitos se desdobram em novos, que o caso da ideologia do

    tolstosmo. O tolstosmo uma ideologia surgida das reflexes , da vida (biografia) e

    6 A palavra russa para arte (iskusstva), e ela aparece contabilizada 13 vezes no original

    russo.

  • 19

    da prpria teoria do Tolsti, mas no objetivo dessa dissertao aprofundar este

    termo, nem foco deste trabalho.

    No primeiro subcaptulo, utiliza-se um trecho sobre o quadro de Anna e o

    efeito esttico que ele provoca em Livin, explicando o que a teoria do reflexo e o

    conceito da mimesis literria, no sentido aristotlico do termo. Depois, o excerto a

    ser explorado a discusso sobre a arte realista pensada pela personagem de

    Vrnski, desenvolvendo o conceito lukcsiano de meio homogneo, e os fatos da

    vida de Tolsti que fizeram dele um grande escritor e perpetuaram o realismo dentro

    de Anna Karinina. Por fim, trazido tona outro trecho da obra, a fim de ele ser

    analisado e criticado em relao teoria do realismo, indicando pontualmente a

    figurao da grande pica em Tolsti.

    Para se aproximar dessa obra to vasta com acuidade, preciso realizar um

    recorte. Trata-se de dois momentos no romance em que se fala da arte dentro da

    prpria arte literria, portanto, consiste na mimesis dentro da mimesis, uma vez que

    Tolsti cria duas personagens Mikhilov e Golenchev que so, respectivamente,

    pintor e escritor. Ento, aqui se intenciona pensar a arte em um lugar de

    importncia, um lugar privilegiado um lugar central. No interessa ainda neste

    captulo entrar a fundo na anlise das personagens tarefa destinada ao segundo

    captulo; porm, neste primeiro momento, tentar-se- introduzir a discusso sobre o

    realismo, partindo-se da prpria arte e respeitando o que ela , e, assim, perceber

    como o realismo no s se verifica, mas triunfa em Tolsti.

    Como grande escritor que , Tolsti escreve da Rssia para o mundo. A fora

    de toda a sua obra evidencia um conhecimento profundo da realidade e faz de

    Tolsti um homem de seu tempo, j que ele, enquanto escritor, compreendeu que

    deveria viver/pensar o prprio tempo, enfrent-lo, entend-lo. O dilema do seu

    tempo o dilema dele mesmo, so seus prprios problemas, que eram muitos, como

    diz o prprio ttulo do livro de um dos biografistas de Tolsti, Aylmer Maude: Tolstoy

    and his problems (2007). Neste livro em particular, existem importantes

    consideraes e ensaios tericos do Tolsti em relao sua viso de arte.

    Na vida de Tolsti, segundo um outro biografista, William Shirer, em Love and

    hatred: the stormy marriage of Leo and Sonya Tolstoy (2007), aprende-se que

  • 20

    Tolsti encontrava problemas: no casamento em que, embora muito tumultuado,

    teve 13 filhos, e mais um bastardo com uma camponesa, sua amante, de nome

    Axinyia; na sua vida religiosa; na sua relao com a igreja. Tolsti era cristo

    ortodoxo, porm, durante uma crise de meia idade, comeou a se questionar, apoiar

    outras seitas, como os Dukhobors, por quem Tolsti queria concorrer ao Prmio

    Nobel de Literatura em 1901, para doar-lhes o dinheiro (mas acabou perdendo para

    o francs Sully Proudhomme). Todos estes dados so importantes, porque eles

    rendiam srias discusses ao casal Tolsti e a sua esposa Sonya (cujo nome real

    era Sofya). Este conflito psicolgico entre o casal muito bem se explica no livro de

    Tolsti A sonata a Kreuzer (2010), lanado pela primeira vez em 1889, o que prova

    que importante estudar a obra literria de Tolsti vinculada ao perodo de vida do

    autor em que o livro foi escrito, a fim de corroborar para uma crtica literria

    acertada. O conflito religioso se verifica principalmente em Ressurreio (2013),

    publicado primeiramente em 1899, e o tema do casamento e das questes conjugais

    da vida privada so muito visveis em Anna Karinina.

    Por exemplo, a esposa de Tolsti, Sonya, muitas vezes j pensara quando

    estava viva em se suicidar, e j escrevera em seu dirio que ia se jogar sobre trilhos

    do trem, tal qual a personagem literria e ficcional de Anna Karinina. Sonya got her

    ideas of how to depart this world from her husbands fiction. Previously, she had

    threatened to throw herself in front of a locomotive, as Anna Karenina had done.

    (SHIRER, 2007, p. 159).7 Os conflitos religiosos, por sua vez, podem ser

    encontrados na hesitao que Livin sente na hora em que vai casar. No captulo 1

    da parte 5 de Anna Karinina, Livin precisa se confessar antes de casar com Kitty,

    e ele admite o seguinte para o padre: Meu principal pecado a dvida. Duvido de

    tudo e, na maioria das vezes, estou em dvida. (TOLSTI, 2011, p. 436), ao que o

    prprio padre o responde: A dvida prpria da fraqueza humana. (TOLSTI,

    2011, p. 436). Toda a parte do casamento entre Kitty e Livin na realidade

    baseada no casamento real entre Sonya e Tolsti. Logo, a dvida um sentimento

    que permeia todo o livro de Anna Karinina, e Livin uma imagem de seu criador.

    7 Sonya teve as suas ideias de como deixar este mundo a partir da fico do marido. Anteriormente,

    ela ameaou se jogar na frente de uma locomotiva, como Anna Karenina havia feito. (SHIRER, 2007, p. 159, minha traduo).

  • 21

    Apesar dos problemas da vida cotidiana, pode-se falar em Tolsti de um

    apego realidade, que o apego vida, e isso o que conduz ao humanismo.

    Outro exemplo biogrfico que Tolsti contemporneo de Gandhi (Tolsti

    respondeu a duas cartas dele), e o influenciou diretamente, sobretudo no conceito

    da possibilidade de uma revoluo pacfica. assim que Tolsti se aproxima do

    realismo, pois abraando a realidade que se pode transform-la, e o realismo no

    geral se trata dessa transformao, profunda e efetiva na vida dos homens. Essa

    pacificao pode ser encontrada, por exemplo, no altrusmo da personagem de

    Anna Karinina, que fala: No amor, no h mais nem menos. (TOLSTI, 2011, p.

    685), isto , todas as formas de amar so consideradas dignas, uma vez que Anna

    educava as suas empregadas como se fossem seus prprios filhos.

    Dessa forma, o realismo trata do amor pela realidade efetiva. Como diria o

    poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: O tempo a minha matria, o

    tempo presente, os / homens presentes / A vida presente.8 Tudo o que est

    acontecendo no cho russo naquele momento (1877) est ali, em Anna Karinina. E

    o livro no se limita somente a tratar desta mulher, Anna, mas sim de todos os

    problemas russos e tambm da prpria vida de Tolsti. Isso o realismo. Sem a

    vida, no h poesia, poesia no sentido do fazer potico e, portanto, no h arte no

    geral. Sem a vida, a arte no interessa. A vida dos homens que matria para a

    arte, a verdadeira matria para o realismo. Esse o centro da perspectiva

    materialista. Para se compreender a realidade atual (contempornea do sculo XX)

    de forma realista, preciso tambm entender o passado (o sculo XIX), pois este

    sculo algo ainda muito atual, uma vez que os problemas nele enfrentados ainda

    8 Mos Dadas Carlos Drummond de Andrade

    No serei o poeta de um mundo caduco. Tambm no cantarei o mundo futuro. Estou preso vida e olho meus companheiros. Esto taciturnos mas nutrem grandes esperanas. Entre eles, considere a enorme realidade. O presente to grande, no nos afastemos. No nos afastemos muito, vamos de mos dadas. No serei o cantor de uma mulher, de uma histria, no direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela, no distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, no fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo a minha matria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. (ANDRADE, 2002, p. 80).

  • 22

    no foram resolvidos efetivamente no presente. Faz-se importante para Tolsti a

    distino entre a vida artificial e a vida autntica, e esta vida autntica s possvel

    por meio do realismo enquanto mtodo literrio.

    Em Anna Karinina, a arte um dos reflexos da realidade, porque o

    pensamento no pode ser desligado da vida, mas a arte quem a representa ou a

    reflete, a partir de uma forma de reflexo especfico, o esttico. No entanto, a arte

    enquanto forma esttica determinada pela forma social (poltica, social, econmica

    da vida concreta). Karl Marx diz, nos Manuscritos econmico-filosficos (2010), que

    justamente porque o homem obra, efetiva e economicamente na realidade

    objetiva, que ele capaz de elaborar arte, de modo que a produo da arte est

    diretamente ligada com a produo econmica, pois a vida produtiva , porm, a

    vida genrica. a vida engendradora de vida. (MARX, 2010, p. 84) e ainda: o

    homem tambm forma, por isso, segundo as leis da beleza. (MARX, 2010, p. 85). A

    arte existe como exteriorizao das foras essenciais do homem, e por isso que

    ela capaz de refletir esteticamente a vida.

    Deste modo, todo fenmeno esttico reflexo da vida social. No existe o

    meramente esttico. O mundo sensvel da obra de arte, das emoes, dos

    sentimentos subjetivos no pode estar desvinculado da base, da vida econmica, da

    materialidade objetiva o mundo da realidade. Quando Karinin, por exemplo,

    depara-se diante da dvida em relao esposa, comea a pensar nos seus

    sentimentos, pensamentos, desejos e ideias, algo que ser analisado no terceiro

    subcaptulo. A esttica o reino das sensaes humanas, ao fazer e experimentar a

    arte. Ela ainda a criao de um mundo, por meio das palavras j existentes, na

    prtica da comunicao humana.

    No entanto, as palavras distribudas no romance j so diferentes,

    transfiguradas, so e no so as mesmas palavras do nosso mundo, ou seja, so as

    mesmas palavras; no obstante, dentro do romance elas vo adquirindo um novo

    significado. Esta construo de um significado especial, de uma mudana de

    significao de extrema importncia em Anna Karinina, pois permite ao leitor o

    caminho para a autoconscincia. Por exemplo, algo que tinha muito significado e

    valor para as personagens no incio do romance, podem no o ter no final, mas

    tambm algo que no tinha nenhum valor ou significado passa a ter, ao longo do

  • 23

    romance. Ganhar um significado ou um sentido do que se trata a obra de arte no

    geral, como Anna Karinina. Logo, a arte no s representa a realidade, mas

    tambm capaz de transform-la, pois ela cria um mundo parte. Pode-se dizer,

    assim, que a arte no copia a realidade, mas a recria.

    O ser humano cria um mundo para si devido s suas necessidades,

    interesses e a seu favor, por meio do trabalho de forma que assim o mundo se

    humanizou. A vida isso: um processo vivo sobre o qual nem sempre possvel ter

    controle. A inteno aqui mostrar como o pensamento de Tolsti slido, lgico e

    consciente, apesar dos problemas da vida objetiva, pois a viso da arte tambm

    uma viso de mundo, da vida social e esttica. O que se quer dizer com isso que

    apesar das turbulncias na vida pessoal, Tolsti produz uma arte forte e unificada.

    Segundo Maude (2007), a arte para Tolsti um trabalho, uma produo objetiva de

    beleza. Segundo o artigo de Tolsti, What is art?, Art is a human activity, that one

    man consciously hands on to other feelings he has lived through, and that other

    people are infected by these feelings and also experince them. (MAUDE, 2007, p.

    70).9 Esta acepo de Tolsti muito se assemelha ao materialismo.

    Tolsti sempre valoriza o reflexo artstico em detrimento do cientfico. O

    romancista pessoalmente no acreditava em mdicos, e achava que a arte no

    devia ser uma explicao, ou um guia (uma receita), como se fosse um remdio.

    Apesar de suas prprias crenas, Tolsti sempre encontrou dificuldade em se

    expressar corretamente por meio da arte, e por isso sempre contraiu problemas com

    a censura, como foi o caso de A sonata a Kreuzer (2012) e o tema do adultrio em

    Anna Karinina. Portanto, a definio de arte de Tolsti precisa ser aceita sob um

    vasto campo de entendimento. Lembrando que o problema do conceito da arte e do

    seu efeito ser de extrema importncia para o julgamento dos trechos de Anna

    Karinina presentes nesta dissertao.

    Ento, compreender a realidade de maneira correta um movimento

    realizado por Tolsti a partir do passado em direo ao futuro, o que significa dizer

    que o momento presente est conectado com o passado. Esta tambm uma

    relao temporal e, sobretudo, histrica. Tolsti prope uma reflexo histrico-

    9 A arte uma atividade humana, que se baseia conscientemente em sentimentos pelos quais um

    homem passou, e na qual outras pessoas so infectadas por estes sentimentos e tambm os experiencia. (MAUDE, 2007, p. 70, minha traduo).

  • 24

    temporal mais profundamente em Guerra e paz (2012), o qual constitui um romance

    histrico propriamente dito, mas que no ser alvo de crtica e anlise desta

    dissertao. Em Anna Karinina, a questo histrica-temporal mais latente a

    Revoluo Russa (1917), vislumbrada por Tolsti, que enxerga uma possvel unio

    de Livin (proprietrio) com camponeses, do singular com o coletivo, categoria

    qual o terico Lukcs chama de particular. Por isso, Tolsti prefigura um perodo de

    crise, algo que est entre o fim e o incio de outro perodo. Tambm no ser

    devidamente explorado, mas de extrema importncia ressaltar o que disse Lukcs

    em seu texto Tolstoy and the development of realism: Tolstoy is the poet of the

    peasant revolt that lasted from 1861 to 1905. In his life-work the exploited peasant is

    this visible-invisible ever-present protagonist. (LUKCS, 1964, p. 145).10

    Em Anna Karinina, tambm aparece o princpio de dissoluo da velha

    ordem feudal da Rssia tsarista. A comear pelo prprio exemplo do avano do

    cdigo de conduta antigo e medieval do Domostri (sculo XVI) para a nova

    legislao que permitia Anna se divorciar, algo que j era possvel na Europa.

    Contudo, Tolsti no foi capaz de viver pessoalmente a Revoluo, tendo falecido

    sete anos antes dela. Para dar um nico exemplo, sem se aprofundar, pois este

    tambm no o foco da dissertao: If it was not, he [Tolsti] wrote in a conclusion

    that was more prophetic than even he realized, there would come in Russia a

    workers revolution. (SHIRER, 2007, p. 126).11 So esses os conceitos que

    rondeam Tolsti em relao Revoluo: proftico, vidente, genial, juzos de valor

    que na realidade no so s propriamente dele, mas resultado do prprio contexto

    da poca e inerente prpria arte. Na arte, existe uma tentativa de formular alguma

    coisa que ainda no foi formulado, algo premente, latente, por vir. por isso que

    Lenin no seu texto Len Tolsti, espejo de la revolucin rusa (1979) considera

    que as contradies de Tolsti so um espelho vivo da realidade efetiva da Rssia

    naquele perodo.

    Assim, fica estabelecida a importncia da reflexo histrica para um escritor

    realista como Tolsti. J Marx diz que s existe uma cincia unitria: a cincia da

    10

    Tolsti o poeta da revolta camponesa que durou de 1861 a 1905. No seu trabalho de vida, o campons explorado este visvel-invisvel sempre presente protagonista. (LUKCS, 1964, p. 145, minha traduo). 11

    Se no, ele [Tolsti] escreveu em concluso que era mais proftico do que ele se dava conta, haveria de chegar na Rssia uma revoluo trabalhadora. (SHIRER, 2007, p. 126, minha traduo).

  • 25

    histria. Consequentemente, importante dar unidade e totalidade, tanto forma

    histrica, quando artstica. Ambas as formas histricas e artsticas esto sujeitas

    fetichizao, que um meio de deformar, dividir e isolar, privando estas formas de

    sua dialtica. Dar sentido ao passado tem repercusso no presente, e nisso que

    consiste a atualidade do realismo: a possibilidade de perdurar, de atuar.

    O homem cria o seu mundo frente a essa imagem de atuao. Por meio do

    gesto criativo, o homem transcende e modifica as condies materiais. Em Anna

    Karinina, Tolsti confere um sentido material realidade por ele vivida. O mundo

    da sociabilidade humana, que histrico, tambm depende da criatividade humana,

    de forma que um escritor realista como Tolsti vincula a sua arte s reflexes

    sociais, no s de sua poca e de seu pas, mas tambm do seu passado nacional.

    Dessa forma, comea-se a explorar o conceito de arte. A arte um reflexo,

    mas um reflexo sem original (VEDDA, 2014), no sentido de que ela um trabalho

    sem cpia, que no pode ser copiada; a arte s pode ser criada, e ento ela

    conquista para si autonomia. Tolsti precisa de um olhar realista para captar a

    dinmica dos problemas sociais da sua poca. A imediatez da vida sempre muito

    rica, cheia de desnveis, mutabilidades, diferenas, podendo esta vida ser russa ou

    qualquer outra.

    A arte no tem obrigao de imitar (imediatamente) um referente externo,

    mas conforma um mundo prprio, autnomo, divergente do mundo emprico. O que

    na arte considerado natural, fidedigno e realista deve partir da prpria realidade,

    de forma que Tolsti no ignorou a Rssia da sua poca para escrever Anna

    Karinina. Ele abandona o seu projeto inicial de se remeter ao passado nacional e

    escrever um romance histrico sobre Pedro, o Grande, para escrever sobre

    questes prprias da sua poca.

    A arte surge em um momento da histria da humanidade quando as foras

    produtivas j esto desenvolvidas, de forma que ela no uma objetivao primria,

    mas tardia. A arte possvel quando o homem j ocupa uma centralidade (na

    condio material). Ele pode viver em vez de sobreviver, porque para um homem

    (moderno) que trabalha tem de lhe restar tempo para poder tambm criar (SCHULZ

  • 26

    apud MARX, 2010, p. 31-32). o caso de Vrnski, analisado no segundo

    subcaptulo, quando ele se dedica arte.

    O ser humano criou a arte para expressar os seus sentimentos numa poca

    em que foi possvel a ele ter esses sentimentos. Estes sentimentos so histricos,

    isto , historicamente construdos, no dados, abstratos. Os sentimentos dentro de

    uma obra de arte no so expressados subjetivamente, mas sim, historicamente.

    Em termos de mtodo, aqui o conceito material prevalece sobre o ideal. Os

    sentimentos humanos so uma herana, no sentido de acumulao, mas tambm

    so construdos, modificados, a partir da vida cotidiana, da vida dos homens, que

    nem sempre fcil, e encontra em si muitos determinismos. Porm, a verdadeira

    arte aquela que vence essas hiperdeterminaes, de uma tragdia aparentemente

    inelutvel e inevitvel, ou ao menos a enfrenta. A arte uma forma de superao

    (aufheben), j mencionada na introduo, cuja importncia central dentro da obra

    de Tolsti. Desse modo, Anna Karinina surge como uma obra transformadora, e

    no fatalista, porque ela vislumbra a perspectiva de mudanas de significados. A

    verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana,

    representando-a no seu movimento, na sua evoluo e desenvolvimento. (LUKCS,

    2011b, p. 105).

    Anna Karinina um livro que d muita importncia em como as personagens

    vivem as suas vidas. No possvel ter sentimentos no limite da sobrevivncia (luta

    pelo imediato); para t-los, preciso viver. Um mujique de Livin que morre de fome,

    e passa frio noite, algo que ele confessa ao seu proprietrio, no enxerga a

    experincia da vida da mesma forma que Anna, quando foge com Vrnski. Por

    exemplo, em junho de 1891, a Rssia presenciou uma grande fome, e Tolsti ajudou

    ativamente na vida do povo, distribuindo sopa populao mais pobre. Este foi um

    momento de unio no s do proprietrio com o povo, mas do prprio Tolsti com a

    sua esposa Snia, pois os dois se reuniram para ajudar na partilha da sopa.

    Em seus dirios, Tolsti falava sobre a desfaatez de classe de sua poca,

    dos proprietrios preocupados somente consigo mesmos. There was plenty of food

    in Russia, he [Tolsti] argued, but there was a famine because it was not distributed

  • 27

    fairly. (SHIRER, 2007, p. 148).12 Isso faz insurgir em Tolsti, enquanto escritor, uma

    preocupao premente sobre as questes sociais de sua poca. Por ter participado

    ativamente da experincia da fome, o romancista amplia o seu olhar sobre a

    realidade, que se torna diferenciado, realista e humanista, e reflete essa acuidade

    em sua obra.

    Portanto, a arte uma forma de reorganizar o mundo para encontrar os

    sentidos que na vida imediata no esto to claros. A obra de arte aquela que

    promove a coincidncia entre a objetividade e o centro mais ntimo e essencial do

    ser humano (o sujeito), o que caracterstica decisiva do reflexo esttico, e tambm

    um conceito hegeliano. Logo, a arte no s cpia, mas criao.

    Antes da arte, veio o trabalho; contudo, a arte significa trabalho no sentido de

    poesia (poisis), de fabricao e de produo, mas fabricao e produo artsticas,

    estticas, criativas. Portanto, a arte um momento de centralidade da figura

    humana. Consequentemente, um pas de economia atrasada pode produzir uma

    obra de arte avanada, como o caso de Tolsti na Rssia, pois Na arte, sabido

    que determinadas pocas de florescimento no guardam nenhuma relao com o

    desenvolvimento geral da sociedade (...) (MARX, 2011, p. 62).

    A Rssia, em comparao Inglaterra, Frana e outros pases da Europa no

    final do sculo XIX e incio do XX, apresentava economia atrasada, porque ela era

    essencialmente agrria e feudal. Lukcs, no seu texto Tolstoy and the development

    of realism (1964), destaca tambm a situao de outras literaturas nacionais

    perifricas, como o caso da literatura escandinava, com Ibsen. At a Revoluo de

    1917, a Rssia lutou contra as bases do regime tsarista, e a sua modernizao foi,

    portanto, atrasada, ao passo que a Europa j encaminhava para os rumos da

    economia imperialista. Apesar destes dados econmicos, Tolsti produz uma obra

    avanada, mesmo na periferia do capitalismo, tanto no sentido da elevada captao

    da psicologia interna humana, quanto da captao desses rumos, dessas direes

    para as quais o mundo se encaminhava no sculo XX. Assim, a arte no quer ser

    verdade, ela se assume como inveno (falsidade, nesse sentido), mas por isso

    12

    Havia comida em abundncia na Rssia, ele [Tolsti] argumentou, mas havia a fome porque a comida no era distribuda justamente. (SHIRER, 2007, p. 148, minha traduo).

  • 28

    mesmo ela verdade autntica. A arte, justamente por no querer ser lei e verdade,

    acaba sendo.

    A arte conecta o que est invisvel na realidade imediata. A arte trabalho

    livre, no qual o trabalhador se reconhece como protagonista. A literatura no

    apenas uma tela de projeo do autor, de sua viso de mundo, de seus paradigmas.

    O pensamento do autor no determinista, pode mudar, algo que muito bem

    comprovado em Anna Karinina, desde o seu projeto inicial ao seu resultado. Tolsti

    encontrou muita dificuldade para terminar este romance, pois ele no sabia que final

    dar ao livro. No podendo escolher apenas um final, Tolsti deu finais diferentes a

    cada personagem. Por meio da arte, tambm se pode superar preconceitos que na

    vida cotidiana um escritor como Tolsti, proprietrio, provavelmente teria. Por isso, a

    arte uma defesa da integridade da humanidade contra todas as tendncias. A arte

    autntica d essa experincia ao leitor: o poder de reconhecimento, isto ,

    reconhecer que outro ser humano pode passar pela sua prpria experincia, mas

    tambm o poder de reconhecer a si mesmo como protagonista da sua prpria vida,

    reconhecer que a vida pode mudar.

    Por essas razes, para Lukcs, Tolsti tem a sua importncia reconhecida

    internacionalmente por causa do lugar que ele ocupa dentro da crtica literria

    democrtica russa. Por exemplo, Lukcs evita considerar Tolsti como culto e

    erudito, mas sim popular e campesino. Isso faz de Tolsti um escritor conhecido,

    popular e, em ltima instncia, universal. Universal principalmente porque a sua obra

    pode ser lida em diferentes perodos histricos e manter a sua significncia.

    Tolstoy not only opposed such conceptions [naturalistas] and stresses richness of a life of work and the inner monotony of a parasitic life, but maintained that modern art was much inferior to the really great, really popular art of former days in dealing with the great and decisive problems of life. He also maintained that a wealth of detail was merely a dazzling camouflage of an internal poverty and that the old poets (he adduces as an example the legend of Joseph in the Old Testament) needed no such mass of detatl because they were magnificently simple and easy to understand

    (LUKCS, 1964, p. 198).13

    13

    Tolsti no s se opunha a tais concepes [naturalistas] como ressalta a riqueza de uma vida de trabalho, e a ntima monotonia de uma vida parasitria, mas mantida de modo que a arte moderna era muito inferior do que a realmente grande, a realmente popular arte dos dias passados no enfrentamento dos grandes e decisivos problemas da vida. Ele tambm manteve que a opulncia de detalhes era meramente uma deslumbrante camuflagem da pobreza interna, e que os velhos poetas (ele cita como exemplo a lenda de Jos no Antigo Testamento) no precisavam de tal massa de

  • 29

    assim, em meio a consideraes econmicas, sociais e literrias, que se

    introduz o conceito de ontologia, trabalhado melhor na grande obra de Lukcs Para

    uma ontologia do ser social volume 1 (2012) e 2 (2013). Do grego, (ntos)

    o particpio presente do verbo (eim), que significa ser. Ainda do grego, o tempo

    particpio tem em si uma ideia de gerndio, de estado de continuidade

    (APRENDENDO GREGO, 2010, p. 77) e de aspecto, isto , temporalidade. Dessa

    forma, sempre traduzido como sendo, e a crtica dialtica se apropria

    destes conceitos, no sentido de entender o ser humano enquanto continuidade, isto

    , processo. Lembrando ainda que um trabalho literrio deve ser sempre tambm

    um trabalho filolgico, no sentido literal do termo. Assim como no existe o

    puramente esttico, pois ele est vinculado ao social, o esttico ainda interage com

    a ontologia, no sentido que ela histrica. Trata-se disto aqui porque, em Anna

    Karinina, a arte assume um papel esttico e ontolgico.

    Dessa forma, o ato criativo uma posio esttica, mas consiste num

    trabalho ontolgico. A ontologia, enquanto categoria filosfica, tambm pode ser

    verificada no trabalho e, quando um trabalho ontolgico, ele livre e libertador.

    Como diz o poeta brasileiro Vinicius de Moraes no seu poema O operrio em

    construo: Esse fato extraordinrio: / Que o operrio faz a coisa / E a coisa faz o

    operrio. (MORAES, 1956). Isto , a perspectiva materialista de que se produzido

    enquanto produz, e que o homem produz um objeto para o seu sujeito.

    Compreende-se aqui que a arte uma forma de trabalho livre e ontolgico,

    sobretudo a grande arte realista de Tolsti, que tambm desfetichizadora, isto ,

    ela acaba com fetiches, com ocultamentos. Isto equivale a dizer que na realidade

    imediata e aparente aquilo que est invisvel refletido esteticamente na arte de

    Tolsti de forma desfetichizada, descoberta, reveladora.

    Aqui ainda se destaca, dentro do conceito de arte, o que a mimesis, sendo

    ela um modo de representao da realidade e de objetivao do homem. A mimesis

    o mtodo fundador da arte, e para ela so inmeras as possibilidades, e ela ser

    explorada no primeiro subcaptulo. A experincia ontolgica acumulada pela

    humanidade permite infinitas possibilidades de ao. Assim, a mimesis no s um

    gesto esttico, mas social, partindo da realidade e voltando para ela.

    detalhes porque eles eram magnificentemente simples e fcil de entender. (LUKCS, 1964, p. 198, minha traduo).

  • 30

    O que interessa que a maneira do reflexo esttico existir por meio da

    criao (mimesis) de um mundo. No se trata, portanto, de refletir imediatamente,

    mas profundamente, captando mudanas profundas. Isso o que faz um grande

    escritor realista como Tolsti. O mundo da arte tal que nele esto concentradas as

    foras humanas. Intensificar: esse o verdadeiro reflexo mimtico. A arte uma

    expresso do fazer potico no caso da literatura, com palavras das aes

    humanas, para alm dos sentimentos.

    nesse sentido que a arte de Tolsti, no sculo XIX, vai dar conta das

    contradies visveis e invisveis da sociedade russa, consumando a transformao

    de objetos em sujeitos. Na vida cotidiana, as potencialidades existem apesar de no

    estarem visveis (aparentes), de forma que a arte a responsvel por revelar a

    essncia da realidade, por mais estranhada que ela parea. A arte mostra o que no

    est visvel e a sua potncia modificadora tamanha que ela capaz de at mesmo

    antecipar o futuro; o caso, por exemplo, da possibilidade de antever na obra de

    Tolsti a Revoluo de 1917, a qual Tolsti morre sem conhecer (sete anos antes).

    Sendo assim, os problemas do sculo XIX, mesmo os problemas da Rssia, so

    tambm problemas do sculo XXI, o que no uma questo exclusiva da arte, mas

    de toda a vida social, com a qual se depara a arte.

    Aqui tambm se comea por penetrar no conceito geral de realismo. A arte

    no tem a inteno de modificar o destino humano, mas justamente por no ter essa

    inteno, ela o faz to bem, que, em Tolsti, verifica-se o triunfo do realismo no

    sentido engelsiano do termo: figurao de personagens concretas em situaes

    concretas. O triunfo do realismo no um milagre, mas o resultado necessrio de

    um processo dialtico bastante complexo, de uma relao mtua e fecunda do

    escritor com a realidade. (LUKCS, 2010, p. 76).

    Para fazer uma crtica da realidade, para resolver as questes estticas, para

    produzir algo que tenha fora, preciso conhecer, ou seja, realizar o conhecimento

    e a pesquisa apaixonada da realidade. So estas as caractersticas principais do

    realismo, no enquanto movimento ou escola literria, mas sim enquanto mtodo de

    composio, de figurao artstica. O direito a ter uma perspectiva crtica viva no

    s de Tolsti, enquanto escritor, mas tambm do leitor. Tolsti capaz de refletir a

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    realidade social e objetiva muito fielmente, e assim o artista marca a sua passagem

    no tempo.

    O artista realista escolhe a matria de sua obra no tumulto da vida e parte

    dela para fazer a arte. Shirer, enquanto biografista de Tolsti, muito se vale desta

    palavra para explicar a vida do escritor: tumultuada. O artista realista precisa

    transfigurar a realidade para capt-la fielmente, mas para tal ele precisa encontrar

    no interior da aparncia a essncia, de forma que ambas formem entre si uma

    unidade dialtica. Por isso, a arte realista lida diretamente com a dialtica da

    essncia-aparncia.

    O realismo capta algo prprio da vida que a mudana seno estaramos

    presos na repetio. As personagens mudam ao longo do romance: Anna, Vrnski,

    Livin, Kitty e todos os outros. Nenhum permanece como est do princpio ao fim.

    Dessa forma, o realismo de Tolsti toma o partido da mudana. Transformao

    significa enfrentamento buscar conhecimento das contradies, dos limites

    histricos e pessoais. O realista, por fim, prope uma fuso com o mundo criado, de

    forma que o reflexo assim alcana a verdade da realidade. Por isso, importante o

    texto literrio refletir a realidade corretamente, sem distorc-la.

    A essncia das aparncias so os homens, revelando e no escondendo

    as suas aes. Isso a poesia ntima da vida, a luta cotidiana dos homens. As

    vrias etapas da vida esto em constante movimento, pois no so eternas, e

    consequentemente elas constroem para a humanidade algo eterno, primeiramente

    em um nvel individual, mas que adquire um valor coletivo. Isso possibilita o

    reconhecimento do leitor na realidade literria; nesse momento, ocorre a

    desfetichizao, que uma forma de humanizao e tambm uma tentativa de

    encontrar um sentido para a vida.

    E no momento em que h o reconhecimento do leitor em relao ao que

    vivido pela personagem literria, no caso Anna Karinina, mesmo em seu polmico

    e trgico destino, possvel reconhecer-se para alm de si mesmo, o que

    altamente humanizador, porque a tragdia no uma categoria puramente

    individual, mas sim universal (o conceito de tragdia ser melhor explorado no

    captulo 3). nessa vida cotidiana, de enfrentar problemas, que est a prxis

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    humana. Por fim, a arte realista deixa claro que no possvel a poesia sem a vida,

    nem a vida sem poesia, pois a vida a verdadeira riqueza, a vida que vale a pena.

    Ento, frente a um agravamento das foras sociais, Tolsti toma um partido, o

    partido do realismo. O escritor reflete integralmente a realidade, que est ali

    profundamente na sociedade russa, de forma que possvel ver refletida na ao

    das personagens a prpria sociedade interconectada, e a histria um fluxo feito no

    embate dessas foras. As personagens criadas na literatura j existem no

    dinamismo da vida social, assim como a vida social a vida dos homens em

    movimento, agindo, transformando, influenciando-se mutuamente, em determinada

    direo.

    No realismo, os pontos s fazem sentido porque esto ligados. O realismo

    como Tolsti percebe o mundo e o projeta. assim que o realismo de Tolsti capta

    a dinmica prpria da histria humana. Anna Karinina, enquanto romance, de certa

    forma mimetiza esse processo evolutivo, as estruturas mais profundas da sociedade

    e da histria humana que garantem a possibilidade/continuidade (ou no) de certo

    destino. Tolsti compe literariamente um caminho realista que conduz ao

    enriquecimento da vida, plenitude humana.

    2.1 Teoria do reflexo: a abordagem esttica do conceito de mimesis

    Este subtpico em particular pretende esclarecer o conceito de mimesis e a

    sua repercusso dentro de Anna Karinina. Para tal, associa-se o conceito de

    mimesis ao conceito do reflexo esttico, algo muito contemplado pela crtica de

    Lukcs. As formas estticas, de certa maneira, devem refletir a realidade. O escritor

    precisa criar um mundo autnomo, o mundo da arte, para refletir a realidade

    efetivamente. A fora da arte est nessa criao; no gerando um mundo prprio, o

    escritor copiaria o mundo real j existente, no criaria nada. Lenin, enquanto crtico

    literrio, diz o seguinte: a obra um espelho. Entende-se tambm que a obra um

    retrato do autor e resultado dessa complexidade.

    Consequentemente, entra-se na anlise dos trechos propriamente ditos da

    obra de Tolsti. Estudam-se alguns trechos particulares dentro da obra que falam

    sobre arte e, por isso, introduzem no livro uma discusso artstica. So trechos

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    especficos, pontuais, e no constituem o centro da obra; contudo, a discusso que

    eles introduzem central. Parte-se destes trechos de Anna Karinina, inicialmente,

    mas chega-se a outros tambm, os quais evidenciam tanto a discusso sobre a arte