O problema Sinótico

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O PROBLEMA SINÓTICO Por Marcos Alexandre R. G. Faria 1.1. Apresentação do problema Quadro da redação dos Evangelhos 1 M. Gourgues e Charpentier 2 nos apresentam esse Plano Histórico no relato de Lucas 1.1-4: I. Evento Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós, II. Comunidades (testemunhas) conforme o que nos transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da Palavra, III. Redator a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever de um modo ordenado. IV. Nós (leitores) a ti, muito ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste. 1.2. Quadro de desenvolvimento da formação dos Evangelhos 3 - 1 -

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O PROBLEMA SINÓTICOPor Marcos Alexandre R. G. Faria

1.1. Apresentação do problemaQuadro da redação dos Evangelhos 1

M. Gourgues e Charpentier 2 nos apresentam esse Plano Histórico no relato de Lucas 1.1-4:I. EventoVisto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós,II. Comunidades (testemunhas)conforme o que nos transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da Palavra,III. Redatora mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever de um modo ordenado.IV. Nós (leitores)a ti, muito ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste.

1.2. Quadro de desenvolvimento da formação dos Evangelhos 3

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Descrevendo o quadro acima, J. Terra nos apresenta o seguinte esquema 4:a. Jesus é a fonte da mensagem evangélica: por seus ditos e feitos Cristo deu origem à tradição evangélica.b. Jesus formou discípulos e ensinou-lhes o que deviam transmitir e o modo como deviam transmitir.c. O acontecimento da Páscoa revelou aos Apóstolos a verdadeira dimensão dos atos e palavras de Jesus.d. O início da Pregação: os atos e ensinamentos do Senhor foram sempre apregoados pelos Apóstolos e discípulos de modo a atender a necessidades dos ouvintes (cristãos e não-cristãos) aos quais se dirigiam.e. Diversos gêneros literários: Por causa dessa diversidade de ouvintes, a pregação tomava estilos diversos: a – para os fiéis: catequese (setenças doutrinais e parenéticas) e narrativas litúrgicas; b – para os não-crentes: apologética (controvérsias, apoftegmas, repertórios de textos bíblicos, seleção de milagres).f. Do Evangelho oral ao Evangelho escrito: após a fase da pregação meramente oral, houve o período de redação escrita da Boa Nova. Os Evangelhos colheram, dentre os numerosos dados da tradição oral, os elementos com os quais confeccionaram o Evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João. Cada um dos autores sagrados imprimiu a esses dados o seu estio próprio, procurou realçar os aspectos de Cristo que mais interessavam aos seus destinatários.g. A fidelidade dos Evangelistas: Apesar dos Evangelistas não terem pretendido escrever crônicas no sentido moderno, formularam contudo, uma catequese histórica de modo a realçar com fidelidade a mensagem religiosa dos acontecimentos históricos.

1.3. DesenvolvimentoOs evangelhos sinóticos 5 (Mateus, Marcos e Lucas) não apenas se unem devido a semelhança que possuem, mas também se distanciam de João 6, o que faz deles um bloco sui generis.Os sinóticos estruturam o ministério de Jesus de acordo com uma seqüência geográfica geral: ministério na Galiléia, retirada para o norte, ministério na Judéia e Peréia e o ministério final em Jerusalém. Essa seqüência está praticamente ausente em João, que se concentra no ministério de Jesus em Jerusalém. 7

O “problema”, basicamente, surge a partir das semelhanças e diferenças 8 que encontramos quando comparamos os sinóticos entre si. Assim nos diz Carson: “O que torna o problema sinótico particularmente difícil de solucionar é o fato de que, lado a lado com tais repetições exatas [ex: Mt 23.37-39 e Lc 13.34-35], existem tantas diferenças enigmáticas”9 [Mt 12.1-8; Mc 2.23-28 e Lc 6.1-5]. A partir daí várias hipóteses e teorias surgem para tentar dar uma solução.

1.4. Evidências do problema dos sinóticos:Surge quando a seguinte estatística é observada:- 94/95% do Ev. de Marcos está em Mateus e Lucas- 661 vers. de Marcos, todos – 30, estão em Mateus e Lucas- Lucas reproduz 320 vers. de Marcos + 24 que Mateus não usou

1.5. Abordagens Ao Problema 10

Em particular, três enfoques deram contribuições distintas e relevantes para o problema das origens e desenvolvimento dos evangelhos: 1) a crítica da forma (Formgeschichte), que concentra a atenção no período de transmissão oral; 2) a crítica das fontes, que focaliza a maneira como unidades literárias diferentes foram reunidas para constituir os evangelhos; e 3) a crítica da redação (Redaktionsgeschichte), que focaliza as contribuições literárias e teológicas dos autores dos evangelhos. 11 Carson nos lembra que esses métodos “não são mutuamente exclusivos; na atualidade, a maioria dos críticos emprega simultaneamente todos os três no que se convencionou chamar de análise da tradição ou crítica da tradição (Traditionsgeschichte).” 12

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2. Tradições Orais (Crítica da Forma)2.1. IntroduçãoEssa etapa de transmissão oral durou aproximadamente 20 anos, se considerarmos o Evangelho de Marcos tendo sido escrito em meados dos anos 50 do século 1. 13

Três grandes representantes: Karl Ludwing Schmidt, Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Suas pressuposições e crenças que dam base para a Crítica da Forma são:1. Os relatos sobre a vida e declarações de Jesus circularam em pequenas unidades independentes.2. A transmissão dos dados não é de indivíduos, mas da comunidade, dentro da qual o material toma forma e é transmitido.3. Os relatos e declarações de Jesus assumem certas formas padronizadas. (Daí o nome Crítica da Forma)4. A forma de um relato possibilita a determinação de seu Sitz im Leben (“situação vivencial”), seu contexto na vida da igreja primitiva.5. A comunidade cristã primitiva não só colocou esse material em certas formas, mas também o modificou sob pressão de suas próprias necessidades e situações. Com isso Bultmann diz que quase nada pode ser encontrado que pudesse dizer com segurança ser originário do ministério terreno de Jesus.6. Na transmissão do dados, algumas supostas leis surgem: a) o encoprimdamento de seus relatos; b) o acréscimo de detalhes; c) a conformação com seu próprio linguajar; e d) a preservação e criação somente do que se harmoniza com suas necessidades e crenças. A partir dessas leis fica mais fácil determinar a idade e historicidade dos relatos.

2.2. Avaliação:2.2.1. Positivas:a) Constatação de um período de transmissão oral do material evangélico;b) a hipótese de que esse material se compunha inicialmente de pequenas unidades;c) o fato de que esse material tendesse a uma forma padrão; ed) o fato de que a igreja primitiva influenciou a maneira como esse material foi transmitido.2.2.2. Negativas:a) O material escrito nesse período pode ser maior do que os críticos querem admitir;b) a forma do material como determinante da situação vivencial deve ser vista com um “ceticismo saudável”;c) não se dá a atenção necessária ao papel de indivíduos na modelação e transmissão dos dados;d) não há base para afirmar que a igreja primitiva não fazia distinção entre o Jesus terreno e o Senhor ressurreto;e) a comparação dos evangelhos com a literatura rabíbinica é anacrônica; f) nem sempre a transmissão oral tende a aumentar o material; g) deixa de levar em conta as testemunhas oculares, as quais tinham condições de contestar qualquer “relato impróprio”; h) subestimam a capacidade dos judeus do século I uma transmissão oral fidedigna. 14

3. Fontes Escritas (Crítica das Fontes)3.1. IntroduçãoA crítica das fontes dedica-se à investigação dessa etapa escrita na produção dos evangelhos. Procura saber quais foram as fontes (se é que houve) que os evangelistas empregaram na compilação de seus evangelhos.Aqui é estabelecido, propriamente dito, o “problema sinótico”, quando então se começa a comparar um evangelho com o outro e notar suas semelhanças e diferenças. A partir de então, busca-se a solução para o problema. Carson resume a grande quantidade de pesquisa que tenta dar uma resposta a esta questão em quatro opções principais:1. Utilizou-se, de forma independente, um evangelho original escrito em hebraico ou aramaico – um “proto-evangelho”. (G. E. Lessing – 1771; Eichhorn e C. C. Torrey –1933 com algumas modificações)2. Houve uma dependência de um sumário oral relativamente fixo da vida de Cristo. (J. G. Herder; J.K. L. Gieseler –1818 com algumas modificações).3. Uma dependência comum de diversos fragmentos de tradição evangélica que foram gradualmente crescendo até que foram incorporados nos evangelhos sinóticos. (F. Schleiermacher)4. A última é a teoria da interdependência, a mais aceita atualmente. Defende que dois dos evangelistas utilizaram um ou mais evangelhos para elaborarem o seu. Os defensores dessa

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hipótese, dizem que só o empréstimo literário final pode explicar o grau de semelhança entre os evangelhos sinóticos.Embora Mateus e Marcos freqüentemente estejam juntos em oposição a Lucas na ordem dos acontecimentos, e embora Lucas e Marcos freqüentemente estejam juntos em oposição a Mateus, quase nunca Mateus e Lucas estão juntos em oposição a Marcos. 15

Mc é sempre apoiado por um dos dois quando há discordância. Desta forma, Marcos é a única fonte fidedigna, as outras são conjecturas (HIPÓTESES). Carson, dos dez esquemas, selecionou três dos mais significativos que têm recebido apoio na história do estudo em questão.1. Proposta Agostiniana. Mateus foi o primeiro evangelho escrito. Marcos fez uso de Mateus e Lucas usou Marcos e Mateus. Teoria difundida até o séc.XIX, a partir daí outras propostas surgem e esta fica em descrédito. Carson nos aponta uma notável exceção que defende ainda hoje essa teoria: B. C. Butle.2. Hipótese dos “Dois Evangelhos”. Mateus foi o primeiro e Lucas o segundo Evangelho. Marcos dependeu tanto de Mateus quanto de Lucas. Contrasta com a hipótese das duas fontes. O pai desta hipótese é J. J. Griesbach – 1764. Na atualidade, alguns eruditos modernos tem renovado essa hipótese (William Farmer; Hans-Hebert Stoldt e Arthur J. Bellinzoni).3. Hipótese das “Duas Fontes”. Defende que duas fontes Marcos e “Q” (uma coleção perdida das declarações de Jesus), foram utilizadas independentemente por Mateus e Lucas. A primazia de Marcos foi levantada pela primeira vez em 1830 por Karl Lachmann e C. G. Wilke. Foi completada por C. H. Weisse em 1838. H. J. Holtzmann deu expressão clássica a essa hipótese em 1863.Finalmente, numa obra que é um divisor de águas na crítica das fontes, The Four Gospels: A Study of Origins de B. H. Streeter, defendeu a existência de duas outras fontes além de Marcos e Q: “M” fonte peculiar a Mateus e “L”, fonte peculiar a Lucas – “hipótese das quatro fontes”. Abaixo um quadro, embora não igual ao de Streeter, tem a sua contribuição:

Carson nos diz que quando devidamente entendida, a teoria das duas fontes continuaa ser a melhor explicação geral para os dados.

3.2. Primazia de MarcosEmbora sejam fortes os argumentos em favor da primazia de Mateus 17, principalmente considerando o testemunho de Papias, que viveu no século II, não podemos falar o mesmo da primazia de Lucas. Sendo assim, a principal alternativa à primazia de Mateus é a de Marcos. Hoje um grande número de eruditos defendem a primazia de 16 Veja uma lista detalhada do material exclusivo de Marcos, Mateus e Lucas em H. Wayne House, O Novo Testamento em Quadros, 89, 89 e 90 respectivamente.Marcos. Styler nos diz que “epois de um século ou mais de discussão, os especialistas estão

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aceitando como conclusão quase axiomática que Marcos é o mais antigo dos três Evangelhos Sinóticos e que foi usado por Mateus e Lucas como fonte. Essa conclusão tem sido considerada como ´o único resultado absolutamente seguro´ do estudo do problema sinótico.” 18 Abaixo relacionamos seus principais argumentos.1. A Brevidade de Marcos. Não é por ser o mais curto que é o mais antigo, mas sim pela sua brevidade quando comparada a sua íntima relação com Lucas e especialmente com Mateus. Mais de 97% das palavras de Marcos encontram paralelo em Mateus; mais de 88%, em Lucas.2. As correspondências de palavras entre os evangelhos. Mateus e Marcos freqüentemente concordam entre si, como também acontece entre Marcos e Lucas, mas só raramente Mateus e Lucas concordam um com o outro, conforme já foi demonstrado anteriormente. Se Marcos não for o primeiro, é mais difícil explicar o fenômeno.3. A ordem dos acontecimentos. Mateus e Lucas não concordam entre si em oposição a Marcos. Esse fenômeno foi assinalado por Lachmann, o qual sustentou que essa situação era mais bem explicada caso Marcos fosse o primeiro evangelho.4. O estilo desajeitado e mais primitivo de Marcos. O estilo rude e desajeitado segue o padrão da crítica textual. Outro fato são as expressões em aramaico que aparecem em maior número em Marcos quando comparado com Mateus e Lucas, que as traduziram para o seu público.5. A teologia primitiva de Marcos. Em Marcos encontramos um número bem maior de declarações teologicamente mais difíceis do que em Mateus e Lucas, o que sugere sua primitividade (segue aqui o mesmo padrão da crítica textual).

3.3. A Fonte “Q” 19

Schleiermacher foi o primeiro a propor a existência de uma coletânea de declarações de Jesus como uma das fontes dos evangelhos. Alguns críticos acham que Papias refere-se a esse documento em sua famosa declaração sobre os logia. A razão para a hipótese “Q” se legitima pelo fato de existirem aproximadamente 250 versículos comuns a Mateus e Lucas e que não se encontram em Marcos.Carson nos apresenta ainda três argumentos em favor de “Q”:a) alguns dizem haver uma correspondência na seqüência desse material comum a Mateus e Lucas, embora não seja totalmente clara;b) existem “parelhos” (histórias que aparecem mais de uma vez em um único evangelho) em Mateus e Lucas, o que levanta a possibilidade da existência de uma fonte comum além de Marcos; c) Em Mateus e Lucas vemos uma diferente colocação dos dados de “Q” em contextos diferentes, o que dá a entender que Mateus e Lucas fizeram uso independente de uma fonte comum.

3.4. O Proto-evangelho 20

É a hipótese de que cada evangelho se serviu de um evangelho anterior. O pressuposto é que esses proto-evangelhos seriam uma tentativa para explicar as mudanças que se encontram em Mateus e Lucas da fonte marcana. A hipótese é fraca, pois não leva em conta as influências das testemunhas oculares, as tradições orais e os próprios objetivos teológicos dos evangelistas (Crítica da Redação).O Proto-Mateus parece encontrar seu maior apoio no testemunho de Papias. Mas não podemos afirmar que Papais se referia a um evangelho. A hipótese se complica diante do fato de supostamente ter sido, originalmente, escrita em aramaico (Proto-Mateus), depois traduzida para o grego. O evangelho de Mateus não nos dá essa evidência. Mais difícil ainda é pensarmos que o Mateus grego utilizou o Marcos grego.O Proto-Lucas recebe evidências em seu próprio evangelho. Além disso encontramos uma maior quantidade de informação em relação a Mateus e Marcos, uma tendência em “seguir seu próprio caminho” em relação ao material compartilhado de Mateus e Marcos e o fato de Lucas agregar o material de Marcos em blocos ao invés de espalhá-lo ao longo de seu evangelho.Concluindo, Carson nos diz que a hipótese da duas fontes é a que ainda oferece a melhor explicação global para o relacionamento entre os evangelhos sinóticos, no entanto, devemos tratar essa hipótese mais como uma teoria funcional do que como uma conclusão concreta.

4. Crítica da Forma4.1. CaracterizaçãoA Crítica da Forma, também chamada de História da Forma (Formgeschichte) 21, é uma ferramenta hermenêutica (uma forma de se interpretar) aplicada mais estritamente aos Evangelhos. Zimmermann assim a caracteriza: “é o método da história das formas cujo

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sistema trata de explicar a origem dos Evangelhos e de determinar seu grau de historicidade, mediante a análise das ´formas´ (ou gêneros) literários dos Evangelhos, e a evolução dos mesmos, espelho e fruto do ambiente social e religioso.” 22 Sua intenção é levar o estudante ao mundo que se esconde atrás dos Evangelhos como hoje os temos. 23

4.2. História e MétodoA história da Crítica da Forma “nasce de uma insatisfação produzida pela crítica literária pura. [...] Começa perguntando pelas ´formas´ literárias (e pré-literárias) em sua evolução histórica” 24. Indo um pouco mais além, assim situa Bittencourt o nascedouro dessa escola: “Die formgschichtliche Schule, ou a escola denominada História da Forma, é o produto natural da insatisfação a que chegaram os estudos da Crítica Literária, Crítica das Fontes e Crítica Histórica dos Evangelhos no período que imediatamente precedeu à Segunda Guerra Mundial.” 25

Zimmermann nos diz que primeiramente esse método foi aplicado no campo do Antigo Testamento, graças às investigações de H. Gunkel.” 26 Depois veio J. C. Herder que aplicou o método à pré-história dos Evangelhos e F. Overbeck, que segundo Kümmel, antecipou as idéias fundamentais da investigação da história das formas do cristianismo.” 27

Para Zimmermann, foram “dois filólogos, P. Wendland [1912] e E. Norden [1913], os que, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, propuseram princípios e modos práticos de investigação das formas. Ainda que as primeira obras de ´história das formas´ tenham aparecido na Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial.” 28

Em 1919 temos K. L. Schimdt que em sua obra “O Marco da História de Jesus” nos chama a atenção para as tradições (cenas e ditos particulares) que existiam por detrás das narrativas dos Evangelhos. 29

Mas foi M. Dibelius (1919), quase ao mesmo tempo que Schimdt, em sua obra “A História das Formas do Evangelho”, que deu nome ao novo ramo de investigação. 30

Devido ao pressuposto dessa escola, notamos que a crítica da forma quase nenhuma atenção dá ao redator, o qual com prazer é caracterizado simplesmente como um “coletor”, e pouca coisa é atribuída a ele como alguém que realmente participou da composição de seu trabalho. 31 Para tanto, Marxsen cita o grande representante dessa escola, Martin Dibelius:O entendimento literário dos sinóticos, começa com o reconhecimento de que eles são coleções de material. Os compositores são em uma parte mínima, escritores. Eles são principalmente coletores, veículos da tradição, editores. 32 Em contra-partida, para Marxsen, um crítico da redação, não tem como ler os Evangelhos sem levar em conta um indivíduo, uma personalidade autorial que possui um objetivo definido com seu trabalho. 33 Para Dibelius, os evangelistas simplesmente editaram esse material, já previamente trabalhado e com sua forma e caráter já previamente estabelecidos. Para Marxsen, essa visão anti-individualista dos evangelhos é algo impossível. 34

Em 1921 aparece um grande vulto da crítica da forma, Ruldof Bultmann. “Os resultados de sua bem minuciosa investigação foram publicados num volumoso livro intitulado Die Geschichte der Synoptischen Tradition (“História da Tradição Sinótica”)” 35.Para Bultmann o que contava não era a pessoa de Jesus, e sim a sua pregação. A pregação de Jesus (kerigma) era a forma como podíamos chegar a um evangelho original.Devemos levar em conta que para Bultmann essa pregação só podia ser reconstituída a partir da tradição da igreja primitiva. Esse é o ponto inicial da crítica, pois a partir daí, buscar-se-á a forma que originou tal pregação; para isso Bultmann recorre a tradição da igreja primitiva, que antecede os relatos históricos que encontramos nos evangelhos sinóticos 36. Por isso Bultmann nos diz que é “a partir do kerigma da comunidade primitiva, por tanto, [que] começa a reflexão teológica, [que] começa a teologia do NT [propriamente dita].” 37 Esse método de investigação é chamado crítico-histórico-formal. 38 Sérias críticas tem sido feitas à crítica da forma e a Bultmann 39. Uma das principais é que o seu “radicalismo crítico e o exagerado ascetismo com respeito a autenticidade histórica e da tradição sobre Jesus, é o que tem feito com que, principalmente a história das formas, tenha caído em descrédito”. 40

Em relação a aplicação desse método aos evangelhos já temos trabalhado esse ponto na pergunta 4.

5. Crítica da Redação5.1. CaracterizaçãoA Crítica da Redação, ou melhor História da Redação (Redaktionsgeschichte) 41, surge como uma disciplina que se ocupa com a MOTIVAÇÃO TEOLÓGICA de UM AUTOR. Procura analisar como a obra do autor está apresentada, organizada e publicada em uma determinada coleção.

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Verifica ainda as modificações feitas pelo autor, comparando sua obra com o material tradicional.A disciplina busca a ênfase teológica de cada um dos evangelhos como produto de um autor criativo, focalizando sua atenção não simplesmente em pequenas unidades, como faz a Crítica da Forma, mas vendo o Evangelho como um todo, pois vê o autor da obra como um TEÓLOGO, um editor ou redator final do Evangelho.Assim, quem define a forma do Evangelho não é a Igreja (Crítica da Forma) e sim o próprio autor. O autor aqui é visto, não simplesmente como um coletor de material ou mesmo veículo da tradição como pensava Martin Dibelius, e sim como um autor que tece sua própria teologia.Enquanto que a Crítica da Forma está preocupada com a transmissão oral, a Crítica da Redação está preocupada com o autor. Para a Crítica da Redação o autor do evangelho foi mais do que um compilador ou simplesmente uma “arranjador” de material. Quando o autor escreveu ele trabalhou o texto e as fontes que tinha de tal forma a atingir um objetivo e traçar “uma teologia”. Com esta escola, os comentários que surgiram a partir dessa perspectiva, vinham adrede com o título de “A Teologia de Marcos” (....), de Mt, de Lc, etc... O autor passou a ser visto como um teólogo e não simplesmente como um compilador ou arranjador de material.

5.2. História 42 e Método 43

Para Marxsen, a História da Redação não é meramente uma continuação da história da forma. 44 Isso faz sentido, porque, embora a História da Redação, tenha surgido como escola depois da Segunda Guerra Mundial 45, o problema já era tratado por outros pensadores como Papias sobre Marcos e Mateus, o Cânon Muratoriano, a Harmonia dos Evangelhos de Taciano, a obra de Agostinho De consensu Evangelistarum, e a exposição de Jerônimo sobre cada evangelista. 46

Para Zimmermann, “a investigação sobre a história da redação, no sentido estrito do termo, começa com os trabalho de H. Conzelmann” (Die Mitte der Zeit: Studien zur Theologie des Lukas, Tubigen, 1964) 47. Mas, antecedendo a obra de Conzelmann, em 1956, em alemão, a obra de Marxsen (Der Ebangelist Markus) já circulava, e sua tradução em inglês (Mark The Evangelist: Studies on the Redaction History of The Gospel) em 1969. Quanto ao método, Egger assim sintetiza: "Em particular [a crítica da redação tenta] estabelecer de que modo o texto adquiriu o seu aspecto definitivo, qual era o material à disposição do redator, o ponto de vista que o guiou na escolha, reelaboração e sistematização; que elementos acrescenta pessoalmente, a que grupos de leitores se dirige, que meios de condução do leitor utiliza e, mais em geral, por quais fatores é influenciado na redação." 48

A partir desse método, a redação final é vista como uma “nova codificação” de textos criados pela tradição considerada como fonte de informação. Essa nova codificação é condicionada por fatores tais como: intenção, situação da comunidade e ambiente. Desta forma, vemos que o redator é mais que um compilador como pensava Dibelius. Aqui o redator é um compilador, escritor, teólogo e “evangelista”: recolhe e seleciona o material necessário, o reelabora do ponto de vista estilístico e temático, cuida de organizá-lo e distribuí-lo; em determinados casos o integra com acréscimos mais ou menos extensos. Este trabalho complexo cria um novo texto, que é um conjunto unitário. Trechos inicialmente independentes vêm unir-se num novo contexto, adquirindo um sentido ampliado. 49

5.3. A Composição (Crítica da Redação)Como já vimos acima, aqui o foco de atenção maior passa do texto propriamente dito para o autor. A crítica da redação não se preocupa tanto com os dados, e sim com o redator. Sua tarefa é descrever os objetivos teológicos dos evangelistas ao analisar a maneira como empregam suas fontes. Reconhece os evangelistas como autores, e como tais, suas criatividades e propósitos moldaram a tradição numa unidade literária teológica própria. Desta forma, vemos que o trabalho dos evangelistas não foi simplesmente reunir tradições e fontes e então costurá-las lado a lado.Segundo Carson 50, esse método pode ser dividido em cinco elementos básicos: 1. A Crítica da Redação faz distinção entre tradição e redação. A tradição engloba todos os dados e a redação a forma como os autores trabalharam esses dados (fontes). Isso se complica quando partimos para Marcos, pois suas fontes são pressuposicionais.2. A atividade redacional ou editorial dos evangelistas: a) Ao incluir ou excluir dados de fontes comuns, notamos os interesses particulares de cada autor (ex: Mt 5-7 e Lc 6.10-49); b) a disposição como cada autor, de forma particular, coloca os dados das fontes em seus evangelhos revelam um objetivo e interesse próprio (ex: Mt 8.18, 23-27; 28-34; 9.18-26 em relação a Mc e Lc); c) a fim de se ter uma seqüência em seus relatos, os autores “costuram”

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ou fazem transições entre um dado e outro revelando suas preocupações particulares (ex: Mt 7.28; 19.1 e 11.1; 13.53; 26.1); d) o acréscimo de dados revela uma preocupação do autor (ex: Lc 6.12-19 e Mc 3.7-18); e) de igual forma temos a omissão de dados (ex: Mt 26.57-66; Mc 14.53-64 e Lc 22.54ss); f) e as frases alteradas (ex: Mt 5.3; Lc 6.2).3. Essas mudanças refletem a preocupação teológica de cada autor em particular.4. A particularidade de cada autor nos possibilita estabelecer um contexto específico de seus leitores.5. Por fim, temos a característica literária de cada autor (Crítica da Composição), o que ainda é alvo de debates.Essa escola teve sua força na década de 50. Seus grandes reprensentantes são: William Wrede, Hans Conzelmann, Willi Marxsen e Günther Bornkamm. Carson nos diz que dificilmente um estudo sério dos evangelhos acontece sem considerável utilização da crítica da redação, mas ao mesmo tempo, reconhece que essa ferramenta não põe um ponto final no assunto.Carson faz cinco críticas negativas:a) É difícil separar tradição de redação, o processo é muito subjetivo;b) a modificações que um evangelista faz não tem apenas o objetivo teológico, pode ser estilístico ou mesmo histórico também; 50 Carson , Introdução ao Novo Testamento, desenvolve esse assunto nas páginas 52 a 57.c) se as modificações implicam em uma teologia particular do evangelista, vamos ter várias teologias e não apenas uma;d) é necessário cautela ao reconstruir o contexto dos leitores, pois a base ainda é subjetiva;e) por fim, o fato de que essa ferramenta ataca a confiabilidade histórica dos evangelhos, visto que seus autores não tinham nenhuma preocupação com a história (essa é uma herança da crítica da forma), visto que a preocupação dos evangelistas era teológica e não histórica.Em relação a esse último ítem, Carson contra-argumenta dizendo que não é justa essa crítica, pois a preocupação teológica do evangelista não anula a história e o fato de terem deixado de preservar as ipsissima verba Jesu (as palavras textuais de Jesus) não significa que adulterararam a ipissima vox Jesu) 51. Para Carson, uma vez executada de modo adequado, a crítica da redação promete ser de ajuda real na interpretação dos evangelhos. Sendo assim, Carson nos mostra três pontos positivos: a) ao contrário da crítica da forma e crítica das fontes (que concentram-se na pré-história, por concentrar-se na etapa final do evangelho (sua redação), a crítica da redação oferece uma ajuda imediata ao intérprete e teólogo; b) mais do que preocupação histórica, tinham também objetivos teológicos que visavam seu público leitor imediato, aplicando assim a história por eles narrada; e c) a crítica da redação nos possibilita vermos a riqueza de quatro evangelhos nos apresentando em ângulos diferentes um retrato perfeito de Jesus.

1 M. Gourgues & E. Charpentier, Introdução aos Evangelhos, em J. Auneau...[et al], Evangelhos sinóticos eAtos dos Apóstolos (São Paulo: Ed. Paulinas, 1985), 44-48.2 M. Gourgues & E. Charpentier, Introdução aos Evangelhos, em J. Auneau...[et al], Evangelhos sinóticos eAtos dos Apóstolos (São Paulo: Ed. Paulinas, 1985), 44-48.3 João E. Martins Terra, Jesus de Nazaré nos Evangelhos Sinóticos (São Paulo: Loyola, 1977), 37.4 Ibid., 36.5 sunopsis (sinopisis) = ver em conjunto – “evangelhos sinóticos” assim chamados pela primeira vez por J. J.Griesbach, no séc. XVIII. Griesbach escolheu a palavra devido ao alto grau de semelhanças entre Mateus,Marcos e Lucas em suas apresentações do Ministério de Jesus – em D. A. Carson, Introdução ao NovoTestamento (São Paulo: Vida Nova, 1997), 19.6 D. A. Carson, Introdução ao Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 1997), 19.7 Ibid., 19.8 Temos um lista interessante preparada por Carson, Introdução ao Novo Testamento, 30, onde ele nos apresenta os textos afins em colunas paralelas destacando suas diferenças.9 D. A. Carson, Introdução ao Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 1997), 29.10 Seguimos aqui a estrutura apresentada por D. A. Carson, Introdução ao Novo Testamento, 21-65.11 Carson., Introdução ao Novo Testamento, 21. Os destaques são do editor desta monografia.12 Ibid., 21.13 Ibid., 22.14 Carson, Introdução ao Novo Testamento, 27, citando Rainer Riesner (Jesus als Lehrer) diz: que “é inegável a importância da memorização na sociedade judaica do século 1, e temos m tivos para pensar que isso proporciona uma base suficiente para a transmissão oral cuidadosa e exata dos dados dos evangelhos.”15 Osmundo Afonso Miranda, Estudos Introdutórios nos Evangelhos Sinóticos (Casa Editora Presbiteriana, 1989), 45-6.17 William R. Farmer, Jesus and the Gospel (Philadelphia: Fortress Press, 1982).18 G. M. Styler, A Prioridade de Marcos em C. F. D. Moule, As Origens do Novo Testamento (São Paulo: Paulinas, 1979), 252. Styler, nesse interessante excurso, trata do assunto das páginas 252 a 265. Em seu artigo, ao defender a tese da primitividade de Marcos, combate principalmente a tese de Dom B. C. Butler, The Originality of St Matthew que ataca não só a primitividade de Marcos, bem como a hipótese “Q”.

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Page 9: O problema Sinótico

19 Sobre o documento “Q” e seu conteúdo, veja B. P. Bittencourt, A Forma dos Evangelhos E a Problemática dos Sinóticos (São Paulo: Imprensa Metodista, 1969), 146-152.20 Sobre esse assunto veja Bittencourt, A Forma dos Evangelhos, 153 a 163.21 B. P. Bittencourt, A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinóticos (São Paulo: Imprensa Metodista, 1969), 19.22 Heinrich Zimmermann, Los Métodos Histórico-Críticos em El Nuevo Testamento (Madrid: La Editorial Catolica S.A., 1969), 139.23 Bittencourt, A Forma dos Evangelhos, 19.24 Zimmermann, Los Métodos Histórico-Críticos, 132.25 Bittencourt, A Forma dos Evangelhos, 24.26 Zimmermann, Los Métodos Histórico-Críticos, 132.27 Ibid., 133.28 Ibid., 134.29 Ibid., 135.30 Ibid., 135.31 Willi Marxsen, Mark the Evangelist: Studies on the Redaction History of the Gospel (Nashville: AbingdonPress, 1969), 15.32 Martin Dibelius, From Tradition To Gospel (New York: Charles Scribner´s Sons, 1935), 3, citado por WilliMarxsen, Mark The Evangelist, 15.33 Willi Marxsen, Mark the Evangelist, 18.34 Ibid., 19.35 Herman N. Ridderbos, Bultmann (Recife: Série Pensadores Modernos, 1966), 14.36 Bultmann não inclui o evangelho de João.37 Rudof Bultmann, Teologia del Nuevo Testamento (Salamanca: Ediciones Sigueme, 1977), 41.38 Ridderbos, Bultmann, 14.39 Para uma boa crítica a Bultmann, a partir de uma perspectiva reformada temos livro de Hermann N. Ridderbos, Bultmann (Série Pensadores, Recife, 1966).40 Zimmermann, Los Métodos Históricos-Críticos, 137.41 Normam Perrin, What Is Redaction Criticism? (Philadelphia: Fortress Press, 1989), 1.42 Para uma história pormenorizada dessa escola veja Willi Marxsen, Mark The Evangelist, 15-29; Heinrich Zimmermann, Los Métodos Histórico-Críticos Em El Nuevo Testamento, 234-242.43 Para uma análise da aplicação do método aos evangelhos veja: Willi Marxsen, Mark The Evangelist; Ralph Martin, Mark Evangelist and Theologian; Norman Perrin, What Is Redaction Criticism? – Perrin aplica o método ao Evangelho de Marcos; W. Trilling em sua dissertação: El verdadero Israel. Estudios para la teologia del Evangelio de Mateo (o comentário dessa última obra se encontra no livro de H. Zimmermann, Los Métodos Históricos-Críticos, 239ss).44 Willi Marxsen, Mark The Evangelist, 21.45 Zimmermann, Los Métodos Histórico-Críticos, 234.46 Ibid., 234-5.47 Ibid., 236.48 Willhelm Egger, Metodoloiga do Novo Testamento: Introdução aos métodos lingüísticos e históricocríticos (São Paulo: Loyola, 1994), 179.49 Ibid., 180-1.51 Sobre as palavras textuais e a mensagem de Jesus, pode-se consultar J. Jeremias, Teologia do NovoTestamento: a pregação de Jesus (São Paulo: Ed. Paulinas, 1977).

www.icegob.com.brmarcossinotic1.pdf

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