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1 X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] O PUNHO, DE BERNARDO SANTARENO, EM MEIO À REVOLUÇÃO DOS CRAVOS Luciane dos Santos (Doutoranda – UEL/PR) RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar momentos de veracidade e autenticidade histórica portuguesa, permeados junto à última peça escrita por Bernardo Santareno, O Punho (1980). Tal obra apresenta como tema principal a reforma agrária no Alentejo em meio à Revolução de 25 de abril de 1974. Grandes mudanças ocorreram nesta fase da história portuguesa: muitas classes de trabalhadores, entre eles camponeses, decidiram lutar pela reforma agrária e por condições de vida mais justas. Consequentemente, unidos aos trabalhadores estavam os partidos que ajudavam na revolução, sendo eles O Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PD). Assim, para tanto, tal pesquisa foi elaborada basicamente com dados bibliográficos tanto da história quanto da literatura. Logo, a mesma apresentará, através da fala de alguns personagens, a presença da realidade histórica na peça em questão. PALAVRAS-CHAVE: Revolução dos Cravos; O Punho; Bernardo Santareno. O punho, de Bernardo Santareno, em meio à Revolução dos Cravos No presente trabalho foram elencados alguns dos principais fatos políticos ocorridos durante a ditadura salazarista e Portugal. No entanto, focaremos aqui principalmente a reforma agrária em meio à Revolução dos Cravos de 25 de abril. Tais fatos permeiam toda a peça O Punho, de Bernardo Santareno. O Punho traz como tema principal a reforma agrária no Alentejo, e o primeiro momento histórico encontrado comprovando esse acontecimento está no início do primeiro quadro, quando Maria do Sacramento conversa com sua sogra Bernarda e revela o tempo cronológico em que se passa a história: “Maria do Sacramento: [...] O tempo é outro. Em Lisboa, anda a guerra do 25 de

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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2179-4871

www.assis.unesp.br/sel

[email protected]

O PUNHO, DE BERNARDO SANTARENO, EM MEIO À REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

Luciane dos Santos (Doutoranda – UEL/PR)

RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar momentos de veracidade e autenticidade histórica portuguesa, permeados junto à última peça escrita por Bernardo Santareno, O Punho (1980). Tal obra apresenta como tema principal a reforma agrária no Alentejo em meio à Revolução de 25 de abril de 1974. Grandes mudanças ocorreram nesta fase da história portuguesa: muitas classes de trabalhadores, entre eles camponeses, decidiram lutar pela reforma agrária e por condições de vida mais justas. Consequentemente, unidos aos trabalhadores estavam os partidos que ajudavam na revolução, sendo eles O Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PD). Assim, para tanto, tal pesquisa foi elaborada basicamente com dados bibliográficos tanto da história quanto da literatura. Logo, a mesma apresentará, através da fala de alguns personagens, a presença da realidade histórica na peça em questão.

PALAVRAS-CHAVE: Revolução dos Cravos; O Punho; Bernardo Santareno.

O punho, de Bernardo Santareno, em meio à Revolução dos Cravos

No presente trabalho foram elencados alguns dos principais fatos políticos ocorridos

durante a ditadura salazarista e Portugal. No entanto, focaremos aqui principalmente a reforma

agrária em meio à Revolução dos Cravos de 25 de abril. Tais fatos permeiam toda a peça O Punho,

de Bernardo Santareno.

O Punho traz como tema principal a reforma agrária no Alentejo, e o primeiro momento

histórico encontrado comprovando esse acontecimento está no início do primeiro quadro, quando

Maria do Sacramento conversa com sua sogra Bernarda e revela o tempo cronológico em que se

passa a história: “Maria do Sacramento: [...] O tempo é outro. Em Lisboa, anda a guerra do 25 de

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Abril. E, pra esse Alentejo além, os trabalhadores estão a tomar conta das terras e a correr com os

donos...!” (SANTARENO, 1986, p. 276).

Logo, o ano é 1974 (Revolução dos Cravos), e grandes mudanças ocorreram nesta fase

da história portuguesa. Tivemos um período em que muitas classes de trabalhadores, entre eles os

camponeses, decidiram lutar pela reforma agrária e por condições de vida mais justas. Isso porque

nessa época, entre a população agrária, essa reforma era um dos principais objetivos a serem

alcançados por todos que buscavam um Portugal mais democrático e mais justo.

Consequentemente, também unidos aos trabalhadores, havia os partidos políticos que ajudavam na

Revolução, sendo eles o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PS).

Assim, na peça O Punho, Santareno também é fiel à história oficial de Portugal,

mostrando-a no pensamento de algumas personagens. Um exemplo é Bernarda, sogra doente de

Maria do Sacramento, pessoa humilde, que trabalhou a vida toda no campo, nas terras de D.

Mafalda, e que permanece segura aos dizeres convincentes da antiga patroa (D. Mafalda). Temos

aqui o opressor em constante domínio do oprimido. Bernarda, por este comportamento, representa

perante a Revolução de 25 de abril a classe oprimida e leiga quanto aos acontecimentos atuais,

achando a mudança que muitos buscavam “coisa de baderneiros e ladrões” que não tinham mais o

que fazer a não ser implantar a desordem no país. Bernarda, em um diálogo com Maria do

Sacramento, conforma-se:

Bernarda: Era pobre. Teve destino de pobre. Sempre assim foi e há de ser. Maria do Sacramento (ameaça): O povo não pensa assim... Bernarda: E o que é que tu tens a ver com o que pensa e faz o povo? Não é o povo que te dá de comer. É ela, a Senhora. O que havia de ser da gente sem ela? (A choramingar) Praqui, duas mulheres sozinhas... (SANTARENO, 1986, p. 277-278).

Este pensamento (dos oprimidos) foi claramente imposto pelo modo fascista do governo de

Salazar aos mais “fracos”, apelando, quando necessário, à Igreja Católica, para mostrar que Deus

sempre quis assim, ou seja, uns nasciam ricos e outros pobres; o que tinham a fazer era somente

aceitar a situação. Durante quase toda a peça Bernarda expressará sentimentos e opiniões que irão

contra o pensamento e a luta do povo que queria a revolução, tanto que ficou paralisada do lado

direito de seu corpo (devido a um derrame), como será mostrado mais adiante.

Maria do Sacramento, ao contrário da sogra, não prega contra os movimentos que estão

acontecendo em 25 de Abril, mas também se mantém neutra ante à situação da reforma até certo

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ponto da história. O que faz Maria do Sacramento não ser “da esquerda” são Bernarda e o suposto

marido desaparecido, pois tem como obrigação cuidar da sogra que ficou doente e sozinha.

Também a figura de D. Mafalda a influencia. Ouve constantemente desta última palavras que a

confortam, pois estão em nome de “Deus”; consequentemente, não aderem ao movimento da

reforma agrária.

Vejamos a seguinte passagem quando a camponesa conversa com João Saramago pela

primeira vez, referindo-se à luta pelas terras: “Maria do Sacramento: Não fala. Deu-lhe um ar e ficou

muda e morta do lado direito.” (p. 331); e mais adiante: “João Saramago: Não acreditas na reforma

agrária... Maria do Sacramento: Eu não sei nada disso.” (p. 331). Então, não está lutando com os

camponeses por ser leiga e estar cega perante os dizeres cristãos da patroa. Mas fechar os olhos é

fácil; o difícil é ir contra o coração, porque é como se este denunciasse dentro de Maria do

Sacramento que “as coisas” não estavam certas em sua vida e era necessária uma decisão.

Outro exemplo é o do pensamento opressor com que nesta fala D. Mafalda está referindo-

se às suas terras: “São minhas por direito humano e divino. E ninguém mas roubará.” (p. 296).

Então, foi Deus quem foi generoso com ela e a fez nascer já rica, sendo este o pensamento de

quem detém o poder, e esse é claramente mostrado durante a ditadura na própria figura de Salazar

(antigo seminarista): reconhecer a importância da religião para seu governo, pois esta lhe servirá de

base para manter a ordem e o cumprimento dos “bons costumes” de toda a população portuguesa;

sem esquecer que a intenção é para ambos os lados: classes sociais baixa e alta.

Bernardo Santareno aproveitou-se da religiosidade (e de como esta era imposta na época)

para permear a peça e mostrar como influenciou o pensamento, neste caso o das personagens. Ela

é encontrada já no início da rubrica do primeiro quadro, quando é descrita a morada das duas

senhoras (Bernarda e Maria do Sacramento) e um dos ornamentos de decoração, uma cruz de

guerra: “um retrato de José do Sacramento, vestido de soldado e, abaixo dele, uma condecoração –

a cruz de guerra. Bernarda, muito velha e vestida com trapos pretos, está ajoelhada diante do retrato

e passa as contas do terço [...]” (p. 273).

A fé cristã é representada pela cruz e pelo terço num lar muito humilde, como mostram as

características descritas anteriormente. Esta fé misturada à esperança é o que ainda restava para o

povo sofrido e maltratado pela ditadura portuguesa. Quando muitas coisas vão mal, as pessoas têm

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o costume de se “agarrar” às suas crenças, e, neste caso, o que ainda trazia esperança às pessoas

era a fé no Cristo Católico.

O próprio nome da protagonista e de seu filho mostra a tradição católica, pois o vocábulo

“sacramento”1, perante as autoridades cristãs, refere-se aos sete atos intitulados pela Igreja para

purificar a alma: batismo, eucaristia, crisma, penitência, ordem, matrimônio e extrema unção. José

(filho de Maria do Sacramento) já purificou sua alma, morrendo em guerra pela nação; e Maria do

Sacramento, se permanecer ao lado de D. Mafalda na luta pela posse de terras, também poderá

purificar a sua. No entanto, no desfecho, não é isso que acontece, pois Maria do Sacramento, ao

mudar de posição (passa a pensar como os agrários), é presa ao matar o marido da patroa, mesmo

sendo em sua legítima defesa. D. Mafalda, inconformada com a prisão de Maria do Sacramento,

declara: “Queria que vivêssemos todos em paz, cada qual com o que lhe é devido no seu lugar. Não

é possível isso?!” (p. 371). Para o opressor, é obrigação do oprimido entender que seu lugar está

fora do alcance da mesma posição social, ou seja, para seu “Deus”, as diferenças existem e devem

ser comumente aceitas, pois uns nascem para mandar e outros para serem mandados.

Maria do Sacramento tem um filho que foi morto na guerra. Este é constantemente elevado

como herói, tanto que em uma das passagens da peça é comparado com o próprio Cristo, que

morreu na cruz para pagar por nossos pecados:

Maria do Sacramento: [...] Que ninguém tenha pena de mim! (numa corrida, vai buscar a Cruz de Guerra, mostrando-a ao povo.) Quem se pode orgulhar de ter uma igual? O meu filho ganhou-a, pagou-a com a vida. Nosso Senhor escolheu-o para salvar Portugal. Toda a gente o disse lá em Lisboa: chefes, ministros e bispos. [...] Onde está aí uma Mãe que tenha parido um filho como o meu? Nenhuma. Não têm que me lamentar, lamentem os vossos filhos que vivem e engordam e fazem outros filhos e morrem sem mudar uma palha do mundo. Eu dei o meu filho a sacrifício pra salvar os vossos, tal como Nossa Senhora deu Jesus Cristo à Cruz pra salvar os homens todos... Esta riqueza não há dinheiro que a pagues. E vocês bem sabem. Por isto, por esta medalha, pela memória do meu filho, é que eu vivo. E sinto-me rica e feliz e acompanhada (SANTARENO, 1986, p. 280 e 281, grifo nosso).

Como lemos na citação anterior, a substituição do filho morto na guerra é feita pela cruz de

guerra. A mãe supre a ausência do filho conformando-se com o fato de que ele deve ser

considerado digno como Cristo, que deu a vida para salvar outras vidas. No entanto, o pensamento

de Maria do Sacramento não será este durante toda a peça, pois, instigada pelos trabalhadores que 1 LUTF. Pedro. Minidicionário. Ática, 1997.

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lutam pela terra e por rever seus direitos, não acredita mais nesse pensamento de salvação que era

constantemente instigado pela patroa (D. Mafalda). É o que mostra esta fala entre João Saramago e

Zé Rovisca, agrários que lutam pela reforma e tentam convencer Maria do Sacramento a lutar com

eles, os camponeses. Mas Maria do Sacramento está “cega” por acreditar nas palavras da patroa,

que também tem um filho, mas não o mandou para a guerra:

Maria do Sacramento: (tocada na ferida a sofrer) [...] Mas eu sei que D. Mafalda gostava do meu filho, tenho a certeza não me engano. E isto que me prende agarrada a ela. [...] Eu vi-a chorar, com saudades do meu Zé, eu vi-a rezar por alma dele ajoelhada à minha beira, eu via-a entesar-se de orgulho quando me deram aquela medalha, a Cruz de guerra... O meu filho é um herói! Às vezes, também duvido, não acredito, desconfio dela... e, nesses momentos, era capaz de a matar, tenho-lhe um ódio de mil anos, queria morder-lhe o coração! Mas depois falo com D. Mafalda e ela vence-me, convence-me, faz-me sentir ruim, seu que ela é verdadeira, que tem razão. Ela sabe que meu filho era bom e que o dela não presta. O meu filho é um herói! Zé Rovisca: Mas o seu esta morto e o dela vivo. [...] Maria do Sacramento: Calem-se, por mor de Deus! Cada palavra que vocês dizem, cada facada no meu peito... Tenham pena de mim! Eu preciso acreditar na D. Mafalda, porque se esta crença me falta... falta-me o chão debaixo dos pés! (p. 338, grifo nosso)

Como percebemos no trecho transcrito, é menos penoso acreditar na patroa, pois esta

última a convence de que seu filho é um herói assim como Jesus Cristo, que entregou sua vida por

outras pessoas. Neste caso, a religiosidade aparece como papel de conformismo, fazendo com que

Maria do Sacramento não quisesse enxergar a verdade: se fosse para salvar a nação, por que D.

Mafalda não mandara seu filho Guilherme para a guerra? Porque este papel não pertencia aos filhos

da elite, mas sim, aos proletários.

Partindo do que estamos comentando, filhos que partem para a guerra, temos outro

acontecimento que caracteriza alguns fatos verdadeiramente ocorridos e ligados ao povo lusitano: o

da emigração. O filho de Maria do Sacramento, José do Sacramento, sai do país por uma questão

bastante relacionada à história de Portugal: a guerra do Ultramar; ou ainda a guerra imposta pelo

governo para não perder as suas colônias, principalmente as conquistadas na África. O diálogo que

segue é de Bernarda e Maria do Sacramento, comentando a afeição de D. Mafalda por Zé do

Sacramento:

Maria do Sacramento: Gostava dizem que sim. Bernarda: Atão tu não viste como ela chorou? Como ela o quis velar a noite toda, quando... Maria do Sacramento (a soluçar rígida): Quando mo mandaram de África feito em bocados. Bernarda: Não aconteceu só com o teu filho... Maria do Sacramento: Aconteceu com muitos. Mas eu só tinha aquele.

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Bernarda: Era a guerra... Maria do Sacramento: Tão longe essa guerra... (SANTARENO, 1986, p. 276)

A angústia e o sofrimento envolvem a personagem Maria do Sacramento em toda a

história. Ela vive inconformada e angustiada com a partida do filho que foi para a guerra defender as

colônias portuguesas, mesmo esse tendo morrido honrando a pátria, ato que Guilherme, filho de D.

Mafalda, jamais pensara em fazer ou jamais fora incentivado pela família a cumprir. Lembremos que

esse último fazia parte de uma aristocracia dominadora, mas que não se integrava aos que lutavam

em busca de melhorias, porque nesse tipo de ação – lutar em favor da pátria – quem sempre “agiu”

foi a classe oprimida:

Por outro lado, esse Portugal depauperado oprimido passou a depender vitalmente de suas colônias na África, num momento histórico em que o colonialismo entrava irremediavelmente em declínio. Assim, a guerra colonial, travada em desespero de causa, interessava aos poderosos da metrópole, mas quem ia morrer nas selvas africanas eram os filhos dos humildes, que tinham tudo a perder e nada a ganhar com a empresa. (EDITORA TRÊS, 1974, p. 11)

Destarte, jamais um filho de latifundiário deixaria a sua confortável casa para lutar em favor

das melhorias de seu país. D. Mafalda, que tem Guilherme “seguro” ao seu lado, acaba por

menosprezar as atitudes do rapaz para mostrar palavras que, a seu ver, levariam certo conforto a

Maria do Sacramento:

D. Mafalda: Há muitas maneiras de uma mãe perder os filhos. Olha o meu Guilherme... Passam-se meses e meses que não o vejo. Ninguém o arranca de Lisboa. Desistiu do curso, não casa, não assenta... só gasta dinheiro. É um pateta alegre... Maria do Sacramento: Daqui a um bocado tem-no aí, nos seus braços... Vivo! (SANTARENO, 1986, p. 284)

O consolo da patroa é insistir em que José do Sacramento é um herói, comparado ao seu

filho Guilherme; mas Maria do Sacramento sempre reclama que ao menos D. Mafalda tem o filho

vivo; o da camponesa, ao contrário, jamais voltará para seus braços. Não obstante, na peça, a figura

dessa mãe angustiada é mostrada com importância por ter “cedido” seu filho à guerra, assim como o

autor expõe nesse trecho da peça:

Maria do Sacramento: [...] O meu filho é um herói! Deu a vida por nós todos, pelo nosso país. Ninguém nestas vilas e aldeias é mãe dum herói. Eu sou. Eu sou mãe do morto e ela, a D. Mafalda, é a dona da mãe do herói morto. (Com lágrimas em fúria) Que ninguém tenha pena de mim! [...] Veio na televisão e nos jornais todos... Onde está aí uma mãe que tenha parido um filho como o meu? [...] (SANTARENO, 1986, p. 280).

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Logo, como aconteceu na história da censura de Portugal durante o período ditatorial, era

exposto à imprensa somente o que seria de interesse das classes dominadoras; neste caso,

homenagear a figura dos que partiram e não mais voltaram:

Bernarda: Não há glória maior, Maria do Sacramento! Puseram o retrato do nosso Zé em todos os jornais, lembras-te? E até o teu lá vinha... Maria do Sacramento: Não me esqueci de nada. Tenho tudo arrecadado, ali debaixo do colchão. No jornal, vinha eu, vinha a D. Mafalda... Bernarda: São bondades atenções da Senhora... (SANTARENO, 1986, p. 277)

Por isso, seria de grande pertinência estampar nos meios de comunicação da época o

brilhantismo dos homens que morreram em lutas a favor do país. Nas entrelinhas, seria um “cala-a-

boca” suave e ameno para confortar as famílias que perderam seus entes queridos; ou seja, os mais

leigos, como Maria do Sacramento, mesmo ainda angustiados, tentavam se conformar, muitas vezes

buscando como apoio a crença religiosa e a condecoração feita pelo governo aos que não voltavam

da guerra, como reconhecimento pelo brilhantismo desses jovens.

A morte de seu filho e de muitos outros que partiram para a guerra conseguiu mudar algo?

José do Sacramento se tornou herói de quê, realmente? Para que nação? A governada pela classe

opressora, a qual não manda seus filhos para lutar na guerra? Para um país politicamente de

direita? Todas essas indagações perpassam os pensamentos da agrária de maneira amargurada,

mesmo que de forma involuntária, até que no final da peça consegue libertar-se da angústia de ter o

filho morto, ao tomar o partido dos companheiros agrários, como mostraremos mais à frente.

Maria do Sacramento não sofreu somente com a partida do filho; anteriormente já havia

perdido marido, que fora tentar melhores condições de vida na França, conforme conversam

Bernarda e a nora:

Maria do Sacramento: Desde que teu filho me deixou. Bernarda: Não te deixou, emigrou pra França pra não morrer de fome aqui...! Maria do Sacramento: Deixou-me com um filho pequeno pra criar. Bernarda: Ninguém lhe dava um dia de jorna aqui...! Maria do Sacramento: Foi ela. Tomou-o de ponta. Bernarda: Não foi a D. Mafalda. Foi o marido. Parece que brigaram... O nosso Manel era bravo, tu bem sabes! Mas depois, ela tomou conta de ti, paga-te todos os dias... Maria do Sacramento: Menos que os outros patrões. E enquanto pra aí, mesmo nas terras deles, já todos trabalham as oito horas, eu continuo na lei antiga – sol a sol... (SANTARENO, 1986, p. 275)

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Aproximadamente entre os anos de 1929 e 1932, o PCP (Partido Comunista Português),

em meio a várias lutas clandestinas ocorridas com a ajuda e incentivo da “massa” (operária e

camponesa), buscou melhorias com relação às jornadas de trabalho e ao número de vagas de

emprego, direitos de qualquer cidadão infelizmente não atendidos pelas legislações de muitos

países, incluindo Portugal:

A partir de 1930, e durante alguns anos, a acção reivindicativa dos sindicatos e do movimento operário centrou-se, significativamente, à volta da luta contra o desemprego. [...] Reclamar dos poderes constituídos a introdução da jornada de 8 horas para todas as indústrias ou ramos em que se empreguem assalariados: trabalhadores rurais, industriais, agrícolas, culinários [...] (AZEVEDO, 1988, p. 82).

No fragmento, estamos nos referindo ao ano de 1930; porém a história de O Punho se

passa em 1974, quando estava acontecendo a Revolução dos Cravos em Lisboa; ou seja, as

classes empregatícias somente conseguiram melhores jornadas de trabalho após o 25 de Abril, e

ainda somente em algumas regiões. Na obra, com as herdades de D. Mafalda, por exemplo, isso

ainda não havia ocorrido. Isso foi claramente percebido em toda a peça, pela própria figura

autoritária e ditatorial da patroa perante os funcionários, propondo-lhes aumento salarial para que

voltassem a trabalhar em suas terras somente após a reforma agrária, já que essas haviam sido

bem cuidadas pelos agrários quando estavam em responsabilidade destes.

Com relação ao desemprego, temos a figura do esposo da protagonista agrária, Manel,

que emigra do país para conseguir condições de emprego em outra região européia, neste caso a

França. Esta partida do marido é mais um motivo de angústia e tristeza na vida de Maria do

Sacramento.

Sempre nos momentos de amargura demonstrada pela camponesa a figura de direita de

D. Mafalda aparece: “O que é que tu tens contra mim?! Não te acudi sempre nos piores momentos

da tua vida? Não te garanto o sustento, a ti e a tua sogra? Não te ajudei a criar teu filho...?”

(SANTARENO, 1986, p. 292). A figura da patroa parece representar na peça a do próprio ditador

Salazar, mostrando o fascismo dentro da história, resumido aqui pelo poder autoritário, com

convincentes razões e convicções de que a seu ver tudo o que faz é correto e solidário. Vejamos o

exemplo, quando D. Mafalda fala ao personagem João Saramago, um dos agrários, logo após o fim

da reforma agrária:

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D. Mafalda: Deixa-te de fantasias, velho. A verdade é que eu recuperei as minhas terras. Falta só uma migalha e mesmo esta ser-me-á restituída no prazo de um mês. Tu conheces-me bem e sabes que eu não largo. Também é verdade que tu e os outros se quiserem trabalhar nesta região terão de voltar para mim. Não tem outra saída. [...] Chamei-os aqui hoje para lhes dizer que, apesar da vossa traição, estou pronta a recebê-los e dar-lhes os cargos e tarefas que dantes tinham... João Saramago: Digo-lhe que não, Senhora Mafalda. Fico muito agradecido, mas digo que não [...] (SANTARENO, 1986, p. 362).

Mostrou-se evidente na peça que a maioria dos camponeses, assim como João Saramago,

não aceitaram a proposta da latifundiária, seguindo para outras cooperativas nas quais ainda era

forte a reforma agrária; e é esse importante fato histórico que permeia toda a peça, que

enunciaremos agora.

Assim como ocorreu após a Revolução dos Cravos, uma das primeiras localidades que

conseguiu estabelecer a reforma agrária foi a Região Sul, consequentemente, também, o Alentejo.

Na peça, a reforma acontece do meio para o final do terceiro quadro, quando a sede da fazenda é

atacada e uma das janelas é estilhaçada com uma pedra: “Uma pedra é arremessada da rua,

estilhaça estrondosamente os vidros da janela e vem cair aos pés de D. Mafalda. Levantam-se todos

num grito. Medo e perplexidade” (SANTARENO, 1986, p. 314). Nesse momento, o diálogo entre a

família de D. Mafalda intensifica-se devido ao susto do ataque dos camponeses, quando na

conversa com seu esposo, Dr. Gastão, é percebido, na fala da protagonista (latifundiária), um

importante fator que também é parte histórica da política portuguesa: a PIDE (Polícia Internacional

de Defesa do Estado) e, implicitamente, Tarrafal:

D. Mafalda: Pois avisaste. Bastava que um homem te fizesse frente, ou por ser mais altivo, ou por ser mais inteligente, ou estar informado... ia logo parar à tua lista dos comunistas. Lista que tu, escrupulosamente, mandavas para o PIDE. Passados dois ou três dias, vinham buscar o infeliz de madrugada e lá ficava meses e anos nas prisões de Salazar... D. Gastão: Foi para te defender, mulher, a ti, aos nossos filhos e aos nossos bens! (SANTARENO, 1986, p. 317)

Tarrafal, como ficou dito em um outro capítulo deste artigo, era uma prisão na África, para

a qual eram enviados muitos presos. Poucos suportaram os maus-tratos vividos nesse inferno, que

poderia ser comparado a um campo de concentração, e, neste caso da citação anterior, seriam as

prisões a que foram mandados os presos, principalmente os políticos.

Continuando a nos referirmos à figura de D.Mafalda dentro da peça, se esta representa a

figura de Salazar, seu esposo (D. Gastão) seria a da Polícia Internacional de Defesa do Estado,

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órgão que servia para ajudar a manter a ordem no Estado Português, no caso de nossa peça, nas

terras da latifundiária. Isso porque, em vários trechos da obra fica explícito que quem tem totais

poderes sobre as terras é D. Mafalda, a dona de tudo, como nesta conversa com o marido (Gastão):

D. Mafalda: [...] “Tudo isto – terras, casas, montes, currais e homens – é meu, foi-me deixado pelos

meus pais. Durante séculos, a minha família soube defender-se dos piores ladrões, dos

comerciantes gananciosos, dos chulos legalizados pelo casamento”( SANTARENO, 1986, p. 317)

D. Gastão delegava à PIDE o que fazer com alguns de seus empregados que não

aceitavam as normas impostas por ele e por D. Mafalda. Alegava serem comunistas os que não

cumpriam com seus deveres. Inclusive existe na peça um trecho em que o autor descreve a

latifundiária como se fosse um soldado: “D. Mafalda acabou de se vestir: calças, blusa e botas.

Diante do espelho que a reflete em corpo inteiro, contempla sua imagem. Naturalmente fina, altiva e

indomável, um chicote na mão direita tensa de energia. Está pronta para o combate.”

(SANTARENO, 1986, p. 229). É como se Santareno, de maneira mais explícita, mostrasse para o

leitor a figura de “direita” politicamente representada na peça pela latifundiária. Outra citação se faz

importante apresentar: “Durante o canto, ruído atropelado de subir escadas, vozes, gritos. Na sala,

todos se colocam na defensiva: D. Mafalda à frente, altiva, muito direita e, um pouco atrás, Gastão,

Guilherme e Sophia, expectadores tensos” (SANTARENO, 1986, p. 317, grifo nosso).

Como o próprio trecho apresenta, à frente, parecendo estar de punho erguido para lutar,

vinha a figura de D. Mafalda, cuja expressão “muito direita” pode ser também entendida no sentido

conotativo representando a direita política, neste caso, Salazar. Um pouco atrás dela Dr. Gastão, ou

seja, a PIDE, era o apoio do governo ditatorial salazarista, e como meros expectadores, os filhos.

Esses típicos burgueses serão analisados mais à frente.

Outro fato importante que pôde ser percebido e refletido na história acontece no quinto

quadro, quando Bernarda sofre derrame e fica impossibilitada de conversar: “Maria do Sacramento:

Não fala. Deu-lhe um ar e ficou muda e morta do lado direito.” (SANTARENO, 1986, p. 331).

Metaforicamente, o lado direito é ligado politicamente à força aristocrata, representada aqui por D.

Mafalda, como nos referimos antes, a quem, nos primeiros quadros, Bernarda sempre defendia o

que agora de alguma maneira não pode mais fazer, pois se calou. Nessa parte da história, acontece

um longo diálogo entre Maria do Sacramento e João Saramago, cujo assunto diz respeito às

vantagens de se fazer a reforma agrária, pois ninguém seria patrão de ninguém, porque esta figura

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não existiria; todos trabalhariam unidos por uma mesma causa: mais justiça e melhores condições

para quem realmente trabalha com a terra: os camponeses. Logo, Saramago acaba por convencer

Maria do Sacramento a unir-se a eles. A fala deste é decisiva quando ele toca no “ponto fraco” de

Maria do Sacramento, ou seja, a morte do filho:

João Saramago: Ela sacrificou o teu filho aos interesses dela e do marido, dos latifundiários e de todos os grandes capitalistas. Sacrificou. Porque os ricos como ela é que queriam as colônias, eles que chuparam as riquezas que lá havia, eles que fizeram essa guerra maldita pra conservarem o seu dinheiro, o seu poder! [...] O que é que agente, o povo, lucrava com as colônias da África? [...] O que o teu filho e outros pobres rapazes como ele tinham a ver com aquilo? (SANTARENO, 1986, p. 339).

Nessa altura da peça, a protagonista camponesa começa a entender tudo aquilo que seu

coração denunciava desde o início da história, quando ela, envolvida pela eloquência da patroa, que

tentava fazê-la sentir-se consolada pela morte do filho em luta, não conseguia organizar seus

pensamentos e posicionar-se em definitivo em um lado das duas classes.

Até o Movimento das Forças Armadas (MFA) é lembrado pelos camponeses: “Zé Rovisca:

[...] Temos as forças armadas e o governador civil com a gente. Há alguns traidores, mas vozes de

burro não chegam ao céu!” (SANTARENO, 1986, p. 342). É sabido que sem o MFA seria um tanto

difícil a Revolução de 25 de Abril acontecer. O movimento revolucionário partiu de dentro do

movimento das forças do governo, por parte daqueles que não estavam contentes com o estado de

decadência econômica em que se encontrava Portugal; porque mesmo com a morte de Salazar

Marcelo Caetano assumira o poder, mantendo o mesmo governo ditatorial, com ausência de

liberdade e abusos políticos até sua queda, em 1974.

Com o advento da Revolução de 25 de Abril, os governantes de direita que detinham o

poder político em suas mãos foram enviados a outros países, lugar em que permaneceram em

exílio. Muitos outros políticos se refugiaram por conta própria, e um lugar bastante promissor era o

Brasil. Na peça, temos Zé Rovisca referindo-se ao assunto em uma de suas falas, ao comentar os

amigos e a pessoa do Dr. Gastão: “Zé Rovista (a rir): Mas não pode. Os amigos dele ou estão na

gaiola ou fugiram para o Brasil. Eu até me admira como ele não foi ainda preso... É capaz de

escapar, o carrasco!” (SANTARENO, 1986, p. 343).

Mas o regime democrático português não conseguiu permanecer muito tempo no poder

tomando decisões cabíveis para uma melhora do país, isso por pressão constante de outras frentes

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políticas, neste caso, as mais conservadoras. O período entre 1974 e 1976 foi uma incansável

“briga” entre a política de direita e a de esquerda. Assim, logo a reforma agrária começou a ser

desfeita, ou seja, os donos das terras, a partir de novas leis que lhes davam apoio, começaram

então a retomá-las. Isso ocorre no quinto quadro da peça, quando existe um salto de três anos. Este

tempo cronológico é percebido pela idade de Guilherme, que fazia vinte e seis anos no início da obra

e agora está a completar vinte e nove:

Dr. Gastão: Hoje é um dia feliz para a nossa família. Digo feliz por três razões principais: primeiro porque tu, Guilherme, comemoras vinte e nove anos. Segundo porque tu, Sophia, nos anunciaste a data de teu casamento. Finalmente porque tu, Mafalda, acabaste de receber, em teu nome próprio, a maior e melhor das três reservas pedidas e concedidas à nossa família pelo Ministério da Agricultura e Pescas. (SANTARENO, 1986, p. 347).

Mais uma vez a história permeia as linhas da peça O Punho, de Santareno: a queda da

reforma agrária ocorrida logo após a Revolução dos Cravos em 1974 começa a cair por volta de três

anos após o assentamento. Muitos latifundiários tiveram suas herdades devolvidas, sendo desfeitas

as cooperativas implantadas nessas terras pela reforma agrária, as quais davam emprego a muita

gente. Quando a propriedade das terras estava nas mãos dos agrários, estas começaram a ser mais

bem cultivadas, como é mostrado na peça O Punho, representada pela latifundiária D. Mafalda:

D. Mafalda: Eu mandei-os chamar. Já aí estão. Quero falar com eles, quero que voltem para mim. Tu viste o que eles fizeram destas terras, em tão pouco tempo? O que semearam e o que colheram? A gana com que se deram ao trabalho? O modo como souberam organizar-se? Lavraram com alegria, sem chicote e sem fome. E tudo rendia dez vezes mais! Esta é que é a verdade. Há muitas horas em que eu sinto pena de não estar com eles na mesma luta, do lado deles... Mas não posso. (SANTARENO, 1986, p. 357)

A intenção de D. Mafalda nesse momento é contratar esses mesmos lavradores para que

a força dedicada à terra seja tão boa quanto antes da reforma. No entanto, o lucro que será gerado

permanecerá nas mãos de apenas uma figura: a do patrão, e não de todo o conjunto das pessoas

que realmente trabalharam e uniram esforços para cultivar o solo que gera frutos.

Finalmente, no último quadro, presenciamos com a leitura da obra a queda definitiva da

esquerda (Maria do Sacramento), que pode ser comprovada com a fala da figura de direita: “D.

Mafalda: Eu disse aos advogados, aos jornalistas, a toda gente... e direi aos juízes, daqui a pouco

no julgamento, que tu mataste meu marido em legítima defesa. No tempo em que governava a

esquerda, serias absolvida. Agora não.” (SANTARENO, 1986, p. 369 - grifo nosso). Logo, será difícil

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a absolvição da ré, devido ao sistema que se estabelece no poder, ou seja, o de direita. Ela

menciona no trecho que avisará aos jornais que a latifundiária cometeu o crime em legítima defesa,

e mais uma vez a direita torna-se o poder centralizador da mídia. Isso será colocado nos anúncios

que forem convenientes à classe opressora, ou seja, aproveitar-se da tal situação e julgar o oprimido

como revolucionário.

Dr. Gastão morre pelas mãos de Maria do Sacramento e quem ainda detém o poder de

possuir as terras é D. Mafalda. Partindo das alusões feitas no decorrer desse capítulo a cada um

desses personagens, teríamos: a PIDE após o movimento liderado pela esquerda (Revolução dos

Cravos) é extinta, assim como outras mudanças ocorridas na legislação do país. Portanto, na

história real, quem começa a retomar o poder é a direita, assim como na peça de Santareno.

Finalmente, podemos assegurar que esta obra reafirma a constante característica de

Santareno: ter o povo como personagem principal de suas peças. As figuras das protagonistas

mostram isso claramente, por estarmos nos referindo aos latifundiários e camponeses como um

todo, cujas personagens, D. Mafalda e Maria do Sacramento, só estariam representando estas duas

classes sociais e os constantes problemas enfrentados por elas.

O que aconteceu na história de vida dessas duas personagens ocorreu também com

infinitas outras famílias que verdadeiramente vivenciaram a Revolução de 25 de Abril de 1974. A luta

por condições de vida mais justas; a perda de seus filhos em guerra na África; a apropriação e

depois desapropriação das terras durante a reforma agrária; o poder que tinha a PIDE de massacrar

os valores de seus entes queridos; a hipocrisia da religiosidade; a luta para manter-se no poder etc.

Todos esses acontecimentos foram vividos por pessoas sobreviventes a tantas discórdias

econômicas e políticas que permearam a realidade entre a ditadura salazarista e a Revolução dos

Cravos.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Cândido. A crise da bolsa que mudou Portugal. Sintra – Portugal: Publicações Europa América, 1988.

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EDITORA TRÊS. Biblioteca de História: Grandes personagens de todos os tempos – Salazar. São Paulo: 1974.

SANTARENO, Bernardo. O Punho. In: Obras Completas. Organização, posfácio e notas de Luís Francisco Rebello. Lisboa: Caminho, 1986, vol. III.

SARAIVA, António Lopes. História da Literatura Portuguesa. Coleção Obras de José António Saraiva, 11. ed. Lisboa: Europa América, 1972.

VASQUES, Eugênia. 25 de Abril e A Revolução dos Cravos. In: Camões Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Lisboa: Instituto Camões; nº 05, abril a junho de 1999.