O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se...

13
Evolução A Natureza da Ciência 1 Entender como a ciência funciona permite-nos distinguir facilmente aquilo que não é ciência. Além disso, para entender a evolução biológica, ou qualquer outra ciência, é essencial começar com a natureza da ciência. Acesse o link no ambiente virtual para conhecer o material de referência desenvolvi- do pela Universidade de Berkeley, USA, que será usado muitas vezes nesta disciplina. O que é ciência? Ciência é uma maneira particular de entender o mundo natu- ral. Ela expande a curiosidade intrínseca com a qual nascemos e nos permite conectar o passado com o presente, como acon- tece com as sequoias (Figura 1). A ciência é baseada na premissa de que nossos sentidos e as extensões desses sentidos, pelo uso de aparelhos, podem for- necer-nos informações precisas sobre o Universo. A Ciência segue “regras” muito específicas e seus resultados são sempre sujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia - a criatividade e a imaginação (quando adicionadas de uma boa quantidade de lógica). A ciência faz três perguntas básicas 1. O QUE É? O astronauta recolhendo rochas na Lua, o físico nuclear bombardeando átomos, o bió- logo marinho descrevendo uma espécie recém-descoberta, o paleontólogo escavando estratos promissores, todos estão procurando saber “O que é?” Fig. 1 Sequoias

Transcript of O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se...

Page 1: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

Evolução

A Natureza da Ciência1

Entender como a ciência funciona permite-nos distinguir facilmente aquilo que não é ciência. Além disso, para entender a evolução biológica, ou qualquer outra ciência, é essencial começar com a natureza da ciência.

Acesse o link no ambiente virtual para conhecer o material de referência desenvolvi-do pela Universidade de Berkeley, USA, que será usado muitas vezes nesta disciplina.

O que é ciência?Ciência é uma maneira particular de entender o mundo natu-

ral. Ela expande a curiosidade intrínseca com a qual nascemos e nos permite conectar o passado com o presente, como acon-tece com as sequoias (Figura 1).

A ciência é baseada na premissa de que nossos sentidos e as extensões desses sentidos, pelo uso de aparelhos, podem for-necer-nos informações precisas sobre o Universo. A Ciência segue “regras” muito específicas e seus resultados são sempre sujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia - a criatividade e a imaginação (quando adicionadas de uma boa quantidade de lógica).

A ciência faz três perguntas básicas

1. O que é?O astronauta recolhendo rochas na Lua, o físico nuclear bombardeando átomos, o bió-

logo marinho descrevendo uma espécie recém-descoberta, o paleontólogo escavando estratos promissores, todos estão procurando saber “O que é?”

Fig. 1 Sequoias

Page 2: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

9Tema 1 A Natureza da Ciência

2. COmO funCiOna?Um geólogo comparando os efeitos do tempo em rochas

lunáticas com os efeitos do tempo em rochas terrestres, o físico nuclear observando o comportamento de partículas, o biólogo marinho observando as baleias nadando e o pale-ontólogo estudando a locomoção de um extinto dinossauro: “Como funciona?”

3. COmO ChegOu a ser istO?Cada um desses cientistas tenta reconstruir as histórias de

seus objetos de estudo. Quer sejam esses objetos rochas, partículas elementares, organismos marinhos ou fósseis, os cientistas estão perguntando: “Como chegou a ser isto?”

A Ciência funciona de formas específicasO propósito da ciência é aprender sobre o nosso universo.

A beleza da ciência emana da liberdade para explorar e ima-ginar. Entretanto, para maximizar a possibilidade de que no final consigamos acertar, a ciência segue orientações razoá-veis. É importante manter em mente certos fundamentos:

∙ A Ciência baseia-se em evidências do mundo natural e essas evidências são examinadas e interpretadas pela lógica.

∙ A flexibilidade criativa é essencial ao pensamento cien-tífico; entretanto, a ciência segue um processo guiado por certos parâmetros.

∙ A Ciência é incorporada à cultura de seu tempo.Entender como a ciência funciona permite-nos distinguir ciência do que não é ciência.

Ciência tem princípiosA ciência procura explicar o mundo natural e suas explicações são

testadas utilizando evidências do próprio mundo natural. Pássaros e lagartos existem no mundo natural e, portanto, são abrangidos na esfera de ação da ciência.

É divertido ler sobre elfos e gnomos ou até colocá-los como estátuas em nossos jardins, mas eles não habitam o mundo natural, o que significa que não são apropriados para estudos científicos. A base de qualquer entendimento científico é a informação retirada de observa-ções da natureza.

A ciência supõe que podemos aprender sobre o mundo natural jun-tando evidências percebidas pelos nossos sentidos e suas extensões. Uma flor ou uma rocha pode ser diretamente observada sem auxílio de aparelhos. Mas, usando tecnologia, nós podemos expandir os senti-dos humanos para observar fenômenos invisíveis, como eletricidade e campos magnéticos, e objetos, como bactérias e galáxias longínquas.

Fig. 2 Medindo T. Rex para investigar locomoção

Fig. 3 Cientistas

Fig. 4 Pássaro e lagarto

Fig. 5 Elfos e gnomos não são objetos científicos

Page 3: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO10

Sonhos, aparições e alucinações, por outro lado, podem parecer reais, mas não derivam e tampouco são extensões dos nossos sentidos. O teste final de qualquer compreensão conceitual só existe quando apoiado em materiais e observações reais. Sem evidência só é possível especular.

Ciência é um processo

Ideias científicas são desenvolvidas através do raciocínioInferências são conclusões lógicas baseadas em fatos observáveis. Muito do que sabe-

mos de estudos científicos é baseado em inferências de informações, sem importar se o objeto de estudo é uma estrela ou um átomo. Ninguém jamais viu o interior de um átomo; ainda assim, nós sabemos, por inferência, o que há lá. Átomos foram desmontados e seus componentes, determinados. A história da vida na Terra foi, da mesma forma, inferida através de múltiplas linhas de evidência.

Afirmações científicas baseiam-se em testar explicações contra observações do mundo natural e rejeitar aquelas que falharem no teste

Explicações científicas são avaliadas usando evidências do mundo natural. As evidências podem vir de várias fontes: um controlado experimento laboratorial, um estudo de anato-mia ou gravações de radiação vindas do espaço, para não citar mais. Explicações que não batem com as evidências são descartadas ou modificadas e testadas novamente.

Fig. 6 Átomo. Ninguém jamais viu o interior de um átomo mas nós sabemos o que há lá.

Fig. 7 Eras históricasNinguém viveu ao longo da história, mas sabemos que ela ocorreu.

Page 4: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

11Tema 1 A Natureza da Ciência

Afirmações científicas são sujeitas à revisão externa e reprodução

Revisão externa por especialistas é parte integral de empreendimentos científicos genu-ínos e acontece continuamente em todas as áreas da ciência. O processo de revisão inclui exames das informações e da coerência de outros cientistas. Ela tenta identificar explica-ções alternativas e reproduzir observações e experimentos.

No mercado das ideias, a explicação mais simples tem vantagem. Esse princípio é conhecido como parcimônia.

Considere essas observações: ∙ Uma observação mais aprofundada de caracóis, nautiloides, lulas, polvos e sépia

revela a similaridade básica do formato do corpo de cada um (veja abaixo). ∙ A concha de um nautilus e de seus parentes extintos, as ammonites, é similar à

concha de um caracol. ∙ Os tentáculos de um polvo, quando examinados cuidadosamente, podem ser vistos

como sendo um pé modificado de caracol. ∙ O estômago de todos os membros desse grupo tem a mesma disposição de partes.

Uma possível explicação é a de que esses animais adquiri-ram, independentemente, órgãos equivalentes através de uma considerável série de coincidências, mas a explicação mais provável é a de que esses animais herdaram órgãos similares através de ancestralidade comum. Isso é parcimônia.

Fig. 9 Polvo. Ancestralidade comum é a explicação parcimoniosa para as similaridades entre esse polvo e seus parentes. Imagem cortesia de Gustav Pauley.

Fig. 8 Caracol e lula

Page 5: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO12

Não existe “O” método científicoSe você for a feiras de ciência ou ler revistas científicas, pode ter a impressão de que

ciência não é nada mais que a sequência: “perguntas – hipóteses – procedimentos – infor-mações - conclusões”.

Mas essa é raramente a maneira como os cientistas trabalham. Grande parte do pensa-mento científico, seja ele feito enquanto caminha, no banho, no laboratório ou enquanto se escava um fóssil, envolve contínuas observações, perguntas, múltiplas hipóteses e ain-da mais observações. Ela dificilmente se conclui e nunca se “prova”.

Juntar toda a ciência num mesmo pacote “O método científico”, com seu estereótipo de um cientista com jaleco branco e frascos borbu-lhantes, deturpa muito o que os cientistas passam grande parte do seu tempo fazendo. Especialmente aqueles que estão envolvidos em ciên-cia histórica trabalham de maneira bastante diferente, onde perguntar, investigar e criar hipóteses podem ocorrer em qualquer ordem.

Teorias são essenciais para o pensamento científicoTeorias são explicações generalizadas que esclarecem algum aspecto da natureza, são

baseadas em evidências, permitem que cientistas façam predições válidas e são testadas de todas as formas. Teorias são defendidas, modificadas ou substituídas quando novas evidências aparecem. Teorias dão aos cientistas quadros dentro dos quais possam traba-lhar. Importantes teorias científicas, como a teoria celular, teoria da gravidade, teoria da

Fig 11 Estereótipo científico

Fig. 10 Cientistas em trabalho de campo escavando um fóssil. Imagem de trabalho de campo científico cor-tesia de David Smith, UCMP.

Page 6: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

13Tema 1 A Natureza da Ciência

evolução e teoria das partículas são todas grandes ideias dentro das quais cientistas testam hipóteses específicas.

A definição científica de “teoria” não pode ser confundida com a maneira como o termo é comumente utilizado, significando uma suposição ou um pressentimento. Em ciência, uma teoria significa muito mais e é muito bem fundamentada. A “Teoria da Evolução” é uma teoria embasada, internamente consistente e muito testada a explicação de como decorreu a história da vida na Terra – não um palpite. Entender o papel da teoria na ciên-cia é fundamental para cientistas e vital para os cidadãos bem informados.

Fig. 12 Definições de teoria

Características da ciência

Conclusões em ciência são confiáveis, apesar de provisórias

Ciência é sempre um trabalho em andamento e suas conclusões são sempre provisórias. Mas, assim como “teoria”, a palavra “provisório” tem um significado especial quando inserida no contexto científico. Conclusões científicas não são provisórias no sentido de serem temporárias até alguém aparecer com a resposta certa. Conclusões científicas têm seu conteúdo objetivo e sua racionalização bem fundamentada, e são provisórias apenas no sentido de que toda ideia está aberta à análise e teste. Em ciência, a efemeridade de ideias como a natureza dos átomos, células, estrelas ou a história da Terra mostra o anseio dos cientistas de modificar suas ideias conforme surjam novas evidências.

Page 7: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO14

Ciência não é democráticaIdeias científicas estão sujeitas à análise

de qualquer um, seja de longe ou de per-to, mas nunca há votação. Se a questão das placas tectônicas tivesse sido decidida democraticamente quando foi apresenta-da pela primeira vez no início do século XX, nós não teríamos, hoje, nenhuma explicação para grande parte da superfí-cie terrestre. Ideias científicas são aceitas ou rejeitadas com base em evidências.

Ciência não é dogmáticaNada na indústria ou na literatura científica necessita de fé. Pedir a alguém que aceite

ideias puramente por fé, mesmo quando essas ideias são apresentadas por especialistas, não é científico. Enquanto na ciência é necessário fazer algumas suposições, como a ideia de que temos de confiar em nossos sentidos, explicações e conclusões são aceitas somen-te quando são bem fundamentadas e continuam a resistir à análise científica.

Ciência não pode tomar decisões morais ou estéticas

Cientistas podem deduzir as relações entre plantas floríferas a partir de sua anatomia, DNA e fósseis, mas eles não podem cientificamente dizer que uma rosa é mais bonita que uma margarida. Sendo humanos, cientistas fazem julgamentos morais e estéticos, assim como todo cidadão do planeta, mas essas decisões não são parte da ciência.

Ciência existe em um contexto cultural

A ciência não é sempre uma ascensão direta em direção à verdade.

Apesar dos meticulosos esforços daqueles que a praticam, a ciência às vezes acontece aos trancos e barrancos. Em alguns casos, as ideias científicas que dominaram uma época em particular foram, mais tarde, reconhecidas como imprecisas e incompletas.

Fig. 13 Ciência é baseada em evidências, não fatos

Fig. 14 Flores

Fig. 15 Modelo universal de Esferas cristalinas concêntricas

Page 8: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

15Tema 1 A Natureza da Ciência

∙ Antes de Galileu desafiar o sistema, o geocentrismo era a regra. O modelo do Uni-verso Geocêntrico, representado à direita, persistiu por séculos até que, finalmente, as pessoas começaram a aceitar que a Terra não é o centro do Universo.

∙ Especiação foi primeiramente descrita como um processo gradual, mas, recente-mente, ficou claro que, sob algumas condições, a especiação pode ocorrer de forma relativamente rápida.

∙ As ideias de Alfred Wegener sobre deriva continental não foram levadas a sério até que mecanismos viáveis para o movimento dos continentes começassem a ser reconhecidos.

A ciência corrige a si mesmaÀs vezes, as pessoas cometem erros. Ocasionalmente, cientistas são varridos numa cor-

rente de ideias que os leva a enganos. Mas erros, equívocos e enganos são corrigidos pela própria comunidade científica. Algumas vezes, as correções levam anos, décadas ou até séculos. Uma melhor compreensão pode decorrer de novas tecnologias ou mudanças de perspectiva, mas cedo ou tarde uma maior aproximação da verdade aparece. O fato de que hipóteses antigas caem por terra enquanto novas as substituem não significa que a ciência seja inválida como maneira de se reunir conhecimento. Plasticidade de pensa-mento é a essência do processo científico.

Por exemplo, nos último 100 anos, os livros de texto inicialmente agrupavam todos os seres vivos em 2 reinos até chegarem, mais recentemente, a retratar as conexões da vida como 3 domínios.

Fig. 16 Diferentes propostas de agrupamento dos seres vivos

Page 9: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO16

A ciência é um empreendimento humano Todas as fragilidades humanas estão presentes entre os cientistas. Isso inclui:

∙ Apaixonar-se por sua própria hipótese e tornar-se tão apegado a ela a ponto de se recusar a considerar informações novas ou conflitantes. O episódio da fusão a frio em 1990, que implicava a obtenção de energia ilimitada a partir da fusão do hidro-

gênio a baixas temperaturas, deveria servir de aviso para aqueles que querem se tornar heróis científicos instantâneos. ∙ PreconceitosUm século atrás, as pessoas visualizavam

o ancestral humano com pernas curvadas, clava nas mãos, mas com matéria cinza sufi-ciente para construir ferramentas e controlar o fogo. Desenhos de “homens das cavernas” continuam a preservar esse engano. Contu-do, descobertas das últimas décadas, como o Australopithecus afarensis, mostram que mesmo ancestrais humanos muito antigos ficavam eretos, tinham pés e pernas bem parecidos com os nossos, mas tinham cére-bros apenas um pouco maior que o de um chimpanzé. A ciência, cedo ou tarde, supe-ra preconceitos e mal entendidos que são devidos a influências culturais e preconceitos pessoais. Esse é um dos poderes do empre-endimento científico.

Como a teoria da evolução foi formulada?Embora associada frequentemente ao nome de Charles Darwin, a teoria da

evolução atual é muito diferente daquela imaginada por Darwin. Além disso, pensamentos a respeito da natureza e da origem das coisas em geral, e dos

seres vivos em particular, vêm sendo formulados desde a Antiguidade. Há muito tempo se conhecem, por exemplo, os fósseis, restos pre-

servados de vida antiga. Marcas de animais incrustados em rochas eram conhecidas pelos povos das antigas civilizações, como a grega e a romana. Elas eram, entretanto, interpretadas como restos de bata-lhas nas quais os deuses e animais mitológicos teriam participado.

O filósofo grego Demócrito (~460 - ~360 A.C.) concluiu que “tudo na Natureza é fruto do acaso e da necessidade”. Em uma interpretação atual poderíamos dizer que tal frase condiz com o princípio da seleção natural, mas Demócrito se referia à totalidade da matéria.

Fig. 17 “Homem da caverna” Encurvado e Australopithecus afarensis Ereto

Fig. 18 Demócrito

~460 - ~360 A.C.Demócrito

Page 10: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

17Tema 1 A Natureza da Ciência

Platão (427-343 A.C.), um dos filósofos gregos mais influentes, enxergava a variação que existe entre os indivíduos de cada uma das espécies como desvios imperfeitos de um tipo ideal, que existia somente no mundo das ideias. Esse tipo de pensamento sistema-tizado por Platão serve como base para o pensamento tipológico, ou seja, de que as espécies biológicas poderiam ser representadas por um exemplar que refletiria aquele que seria o “mais perfeito” entre os indivíduos da espécie considerada.

Aristóteles (384-322 A.C.), também um filósofo grego bastante conhecido, foi discípulo de Platão e propôs um sistema de classi-ficação dos seres vivos baseado na sua complexidade. Aristóteles, baseado em suas próprias investigações em animais que aparente-mente não tinham aparelhos reprodutivos, concluiu sobre a possibi-lidade da geração espontânea de organismos vivos. Lucrécio (~99-55 A.C), poeta e pensador romano, escreveu sobre a natureza das coisas e propôs uma origem para os seres vivos que se assemelhava às ideias de Demócrito, em que tudo seria resultado de uma série muito grande de eventos de combinações entre as coisas.

Durante a Idade Média, especialmente sob a forte influência do pensamento judaico-cristão, já que o Império Romano adotara o cristianismo desde meados do século III, as ideias sobre o surgi-mento das coisas ficou restrito àquilo que havia sido descrito nos livros bíblicos. Pensamentos destoantes disso chegaram a ser seve-ramente punidos pela Santa Inquisição, movimento religioso que buscava extirpar quaisquer heresias contrárias ao ensinamento das escrituras. A Santa Inquisição exerceu seu poder na Europa desde o século XII até o século XVI.

O Renascimento, movimento intelectual que surgira na Europa, com forte presença na Itália, teve seu auge no século XV e contribuiu para o fim do obscurantismo intelectual então vigente. O próprio Leo-nardo da Vinci (1452-1519), grande artista e cientista italiano, nome importante do Renascimento, escreveu sobre alternativas às interpre-tações bíblicas que invocavam o Dilúvio bíblico para a presença de organismos fósseis marinhos encontrados no alto de montanhas.

Fora da Europa, durante a Idade Média, a Ciência experimentou um enorme desenvolvimento no Oriente Médio, em especial nos países sob influência da religião muçulmana. Al Jahiz (~776-~868), um intelectual nascido em Basra, atual Iraque, escreveu uma gran-de obra sobre Zoologia: “A vida dos animais”. Nessa obra, Al Jahiz chega a descrever a luta pela sobrevivência, ou seja, a constatação de que nem todos os organismos conseguem sobreviver até se reproduzir. A luta pela sobrevivência foi um dos pilares que Darwin usou para a sua formulação da evolução por seleção natural, embora desconhecesse o trabalho de Al Jahiz.

A ideia de que, além da criação especial, os organismos eram gerados espontaneamente era aceita disseminadamente. Durante toda a Idade Média, “receitas” para fazer aparecer ratos, insetos e outros animais eram propagadas e aceitas sem problemas, fazendo parte do senso comum. Pouco a pouco essas idéias começaram a ser questionadas. Francesco Redi

Fig. 19 Platão

Fig. 20 Aristóteles

427-343 A.C.Platão

384-322 A.C.Aristóteles

Fig. 21 Leonardo Da Vinci

1452-1519Da Vinci

Page 11: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO18

(1626-1697), um médico e naturalista italiano, tornou-se conhecido pelos seus experimentos que demonstraram, inequivocamente, que as larvas de insetos somente se desenvolveriam com a presença de ovos depositados pelas fêmeas da mesma espécie. Lazzaro Spallanzani (1729-1799), padre e professor italiano, também questionou, através de experimentação a ideia do aparecimento espontâneo de micróbios. A teoria da geração espontânea somente foi completamente refutada em meados do século XIX, com a contribuição de Louis Pasteur (1822-1895), o famoso químico francês considerado o fundador da Microbiologia moderna.

A ideia de evolução dos seres vivos foi imaginada por alguns pensadores da Europa durante o século XVIII. Pierre Louis Moreau de Malpertuis (1698-1759) conjecturou, antes de Lamarck, sobre a herança de caracteres adquiridos. George Louis Leclerc, intitulado Conde de Buffon (1701-1788), escreveu uma grande obra, chamada “Histoire Naturelle” e também teve algumas ideias evolucionistas com base na enorme semelhança entre os esqueletos humanos e os dos grandes macacos do Velho Mundo. Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin, escreveu em seu livro “Zoonomia”, de 1794, sobre a possibilidade de haver evolução dos seres vivos, mas sem chegar a propor qualquer mecanismo que a explicasse. Mas quem deu grande impulso à ideia de evolução dos seres vivos foi um discípulo de Buffon, Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), portador do título nobiliárquico “Cavalheiro de Lamarck”, nome pelo qual ficou conhecido. Lamarck, além de aceitar a ideia de evolução, propôs mecanismos para que ela procedesse. Além das leis de uso e desuso e da herança de caracteres adquiridos, Lamarck propunha que haveria a lei da tendência intrínseca de aumento de complexi-dade nos organismos e também a lei do movimento de fluidos corpóreos. Tais leis foram baseadas na observação do desenvolvimento embrionário dos organismos multicelulares e na observação de mudanças de formas de organismos como, por exemplo, os moluscos.

Fig. 22 Francesco Redi Fig. 23 Lazzaro Spallanzani Fig. 24 Louis Pasteur

1626-1697F. Redi

1729-1799L. Spallanzani

1822-1895L. Pasteur

Fig. 25 Conde de Buffon Fig. 26 Erasmus Darwin Fig. 27 Lamarck

1701-1788Conde de Buffon

1731-1802E. Darwin

1744-1829Lamarck

Page 12: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

19Tema 1 A Natureza da Ciência

A teoria da evolução por seleção natural foi elaborada independentemente por dois naturalistas ingleses: Alfred Russell Wallace (1823-1913) e Charles Robert Darwin (1809-1882). Alguns aspectos da vida desses dois naturalistas chamam a atenção: além de ingle-ses, ambos percorreram os mares e fizeram coletas em arquipélagos e leram os livros de Thomas Malthus (1766-1834) e de Charles Lyell (1797-1875). Enquanto Darwin era contratado para fazer a viagem em uma missão oficial da marinha inglesa, no navio HMS Beagle, Wallace fazia coletas de exemplares de seres vivos para comercializá-las junto a museus de história natural.

Um dos princípios utilizados por Darwin e Wallace na formulação da teoria da evolu-ção por seleção natural é o princípio da hereditariedade. Para que haja seleção natural, é fundamental que os organismos trasmitam para seus descendentes as características que propiciam maior vantagem no ambiente em que vivem. Fazia parte do senso comum da época, assim como é hoje, que os filhos se parecessem com os pais, compartilhando características em comum. Na época de Darwin, não havia uma teoria da hereditariedade que fosse amplamente aceita. Darwin usou a teoria dos pangenes, segundo a qual a infor-mação sobre as características dos indivíduos seria carregada para os gametas por fatores que existiriam em cada um dos órgãos.

Cerca de quinze anos depois da publicação conjunta da ideia de seleção natural por Darwin e Wallace, o monge austríaco Gregor Mendel publicou a sua teoria da here-ditariedade, formulada de acordo com os experimentos que realizou com cruzamento entre linhagens de ervilhas. O artigo publicado por Mendel em 1866 somente teve a repercussão merecida muito tempo depois, em 1900, quando outros cientistas reconhe-ceram que a teoria de Mendel era muito mais abrangente do que foi imaginado pelo próprio Mendel. Mas, ao contrário do que possa parecer, a incorporação da herança mendeliana na teoria da evolução não foi imediata. Darwin enfatizava que a ação da seleção natural era feita em cima de diferenças muito pequenas entre indivíduos, quase imperceptíveis, enquanto os caracteres estudados por Mendel e por outros geneticistas tratavam de variações bem mais perceptíveis que as preconizadas por Darwin como matéria--prima da seleção natural. Somente na década de 1920 as contribuições dos geneticistas de população, especialmente com o trabalho de Ronald A. Fisher, mostraram que mesmo os caracteres com variação contínua, tais como peso, altura etc. são também regidos pela herança mendeliana, particulada. A Genética, durante as décadas de 1930 e 1940, passou a ser incorporada à teoria da evolução, que ficou conhecida como “teoria

Fig. 28 Alfred Russell Wallace Fig. 29 Charles Robert Darwin Fig. 30 Thomas Malthus Fig. 31 Charles Lyell

1823-1913A. Wallace

1809-1882C. Darwin

1797-1875C. Lyell

1766-1834T. Malthus

Fig. 32 Ronald Alymer Fisher

1890-1962R. Fisher

Page 13: O que é ciência? - midia.atp.usp.br · PDF filesujeitos a testes e, se necessário, a revisões. Mesmo com tais restrições, a ciência não exclui - às vezes até se beneficia

RedeFor

evOluçãO20

sintética da evolução”, pois foi proposta uma síntese dos conhecimentos recém-adquiri-dos da Genética e de outras áreas dentro da perspectiva darwiniana. Contribuíram para essa síntese cientistas como Ronald Alymer Fisher (1890-1962), Sewall Wright (1889-1998) e John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964), que montaram todo o arcabouço teórico da evolução com o desenvolvimento da disciplina atualmente conhecida como “Genética de Populações”. Além do desenvolvimento teórico, outros pesquisadores demonstraram a factibilidade dos processos evolutivos através de experimentos, como Theodosius Dobzhanksy (1900-1975), por observações de campo, assim como Ernst Mayr (1904-2005), e também por observações detalhadas do registro paleontológico, feitas por George Gaylord Simpson (1902-1984).

A Genética experimentou avanços espetaculares a respeito dos mecanismos da here-ditariedade durante todo o século XX. Atualmente, são conhecidos em profundidade muitos dos mecanismos da hereditariedade, tais como as bases químicas, estruturais e funcionais de ácidos nucleicos, genes e cromossomos. Grandes avanços também foram feitos na comparação do material genético de organismos diferentes.

Envio de Arquivo atividade Optativa 1 – linha dO tempO

O professor deverá construir uma linha do tempo, em que, ao longo de uma linha vertical, graduada em séculos, serão colocadas linhas correspondentes às durações das vidas dos pesquisadores mencionados no texto à esquerda da linha do tempo. Além disso, os pro-fessores deverão pesquisar as obras mais importantes de cada um dos cientistas ou pensa-dores mencionados e colocar os nomes dessas obras bem como suas datas de publicação.

Vídeo atividade Optativa 2 Assista ao vídeo O Início da Vida e reflita sobre o tema.

Fig. 33 Sewall Wright Fig. 34 Theodosius Dobzhansky Fig. 35 Ernst Mayr Fig. 36 George Gaylord Simpson

Atividades

1889-1998S. Wright

1889-1998S. Wright

1892-1964J. Haldane

1892-1964J. Haldane