O Que é Cenografia - Pamela Howard

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Resumo do livro o que é cenografia, útil para quem já leu a obra e quer relembrar alguns pontos importantes, ou mesmo para quem não conhece a obra e quer entender o que a autora fala sobre o assunto.

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    "O QUE CENOGRAFIA?" OU "O Que H Em Um Nome."

    Anotaes de Pamela Howard1 para uma conferncia no USITT,em 21 de maro de 2001, em Long

    Beach, Califrnia. (traduo: Fausto Viana)

    Alguns anos atrs, eu fui convidada para trabalhar com um diretor jovem e

    talentoso para fazer o design de Rei Henrique IV Partes I e II que seriam

    apresentados em um espetculo maratona. Estas duas peas que revelam o

    Estado da nao mostram em vinte e nove cenas alternadas os ingleses

    endividados, falidos pelas expensas da guerra, a morte do velho Rei Henrique IV e a

    ascenso do Jovem Prncipe Hal, que atravs do seu prprio despertar poltico e

    moral se transforma na nova esperana da Inglaterra - Rei Henrique V.

    Ocasionalmente a arte a vida colidem, e o momento parecia precisamente

    correto para a montagem destas peas. O Reino Unido estava entrando em um

    momento de mudana poltica, emergindo de um perodo de dezoito anos de regras

    dos Conservadores em prol de um grupo jovem e ambicioso de polticos que se

    chamavam de New Labour. Havia uma nova liberdade no ar, e ns fantasiamos que

    as prticas restritivas, distines de classes, negatividade e filistinismo cultural dos

    anos passados iriam mudar. Talvez houvesse atitudes novas e mais flexveis em

    relao raa, gnero, idade e talvez as hierarquias tradicionais que se replicavam

    em padres comportamentais repetitivos de gerao em gerao finalmente fossem

    mudar.

    O teatro tem o poder de mostrar a atualidade dos dias atuais, atravs da

    metfora da histria, e ns estvamos intoxicados pela relevncia destas velhas

    peas teatrais. O diretor, o diretor assistente e eu concordamos em abordar a tarefa

    sem ideias pr-concebidas- comear de um quadro branco. Ns decidimos passar

    trs dias longe, simplesmente lendo e entendendo o texto, e fizemos reserva em um

    bed and breakfast ingls, mobiliado apropriadamente com reprodues de moblia

    elisabetana e um coleo de gatos de porcelana.

    1 O texto est inserido na obra: HOWARD, Pamela. What is scenography? Reino Unido: Routledge, 2002.

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    Nesta paisagem buclica interiorana ns lemos em voz alta uns para os

    outros, trocando de papis e perguntando uns aos outros o que tinha sido dito por

    quem e para quem. Enquanto lamos, eu comecei a fazer notas visuais, no

    desenhos, para clarear quem tinha entrado em cena, e quando, e como o poder

    dramtico muda de um grupo para outro. Nossos erros de interpretao de leitura

    ficaram claros atravs dos desenhos que concretizaram as palavras. Eu desenhava

    o momento em que acabava de ler, colocando as figuras em um espao vazio e

    ainda desconhecido. Os desenhos se transformaram em um storyboard. Os

    objetos comearam a se sugerir para fazer a histria mais clara e verossmil.- uma

    cadeira, uma rvore, uma vela, uma cama. Ns trabalhamos rpida e intensamente,

    cobrindo as vinte e nove cenas nestes trs dias. No final deste retiro, cada um partiu

    em seu caminho, certos que ns sabamos a diferena entre Warwick, Worcester e

    Westmoreland.

    De volta ao meu estdio, eu coloquei todas as minhas anotaes

    desenhadas em sequncia na minha mesa de desenho. A imagem invocada pelas

    palavras do rei que abrem a pea estava flutuando frente aos meus olhos: As

    fauces ressecadas deste solo/ No mais os tingiro como o sangue dos prprios

    filhos. Eu pensei na terra vermelha das montanhas de Shropshire, batalhas

    antigas, e a rede de canais que como veias e artrias so profundos, incises

    vermelhas que cortam o campo. O sangue das crianas seria invisvel em contraste

    com a terra. Eu comecei a adicionar blocos simples de cores fortes e imediatamente

    agrupei as figuras contra este vermelho terra, as cores me lembrando do mundo do

    sculo 14 de Massacio, que tinha sido objeto de uma colaborao prvia com o

    Bread and Puppet dos EUA.

    Ns tnhamos criado uma produo baseada nos afrescos de Massacio que

    podem ser vistos na capela Brancacci em Florena. Ele foi o primeiro pintor realista

    social, e retratou jovens homens italianos desafiando oficiais, coletores de impostos

    e cidado mais velhos. A frustrao deles e a sua represso ficam evidentes pela

    expresso facial e postura, que ns capturamos no formato de mscaras e figuras

    exageradas que desenhamos, fizemos e usamos nas apresentaes. Este

    cruzamento visual foi a chave para liberar o nosso prprio entendimento destas

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    peas.

    Em Rei Henrique IV Parte II, Shakespeare reflete, atravs de Warwick: H

    uma histria na vida de todos os homens. Eu comecei a estudar em profundidade

    as personagens e inventar suas histrias, para conhec-los como pessoas. Eu fui

    ficando cada vez mais fluente para descrever o espao cenograficamente,

    trabalhando a partir do ator para fora. Juntos, o diretor e eu ( porque o trabalho era

    unido e indivisvel) criamos mais de cinquenta desenhos, mapeando como

    controladores de vo a expanso e contrao das cenas, atravs do movimento dos

    atores que fez o espao falar.

    Desta forma, o cenrio do palco estava escrito, e tudo estava em harmonia.

    Ento, em um encontro pr-produo, eu disse bem solta e de forma casual: Ah,

    sim, por falar nisso, desta vez me deem o crdito no programa como cengrafa, no

    como designer porque cengrafa descreve de forma mais precisa a maneira com

    que eu trabalho. Houve um silncio profundo. Todos se olharam de forma

    desconfortvel. Eu fiquei surpresa. Esta questo era polmica? Eu me perguntei

    qual era o problema. O que aconteceria, disse o gerente geral, se todos

    quisessem ser chamados de cengrafos?- ns simplesmente no seramos

    capazes de lidar com isso... Eu tenho certeza de que no vai haver espao no

    programa, disse o gerente de marketing, e no podemos acrescentar mais

    pginas- nosso oramento j est apertado como o programa j est. O diretor

    tcnico pensou que era como se o cengrafo estivesse trabalhando muito com o

    diretor, e no faria os desenhos tcnicos apropriadamente. O diretor, meu amigo e

    colega, estava um pouco desconcertado e embaraado, como se tivesse cado em

    uma armadilha. Ele achava que cengrafo no soava ingls, talvez francs ou

    alemo, e implicava uma folie de grandeur. E ento, algum, o diretor de

    educao, perguntou: Mas o que cenografia? De repente eu percebi como um

    nome importante.

    Cenografia descreve um abordagem holstica para se fazer teatro de uma

    perspectiva visual. Deriva do grego sceno-grafika, e traduzido de forma direta A

    escritura do espao cnico- lcriture scnique. uma palavra teatral internacional.

    No estenografia ou sexografia, ou um erro de escrita. Como a palavra fica cada

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    vez mais familiar em pases onde no esteve em uso corrente, ganhou

    interpretaes locais. Ao mesmo tempo, a cenografia e os cengrafos esto

    seguindo um caminho diferente dos designers de teatro (hoje j bastante

    confundidos com aqueles que fazem design de teatros) e esto por vezes

    atravessando as linhas de demarcao entre direo e design, tornando-se

    criadores conjuntos da mise en scne.

    A aceitao da palavra cenografia ou cengrafo no mais do que uma

    atitude mental. Comea por inclu-la no programa e nos materiais impressos para

    que se torne uma descrio normal e precisa de uma atividade. Fora de vista

    sempre quer dizer fora do pensamento.

    Ser chamado de cengrafo significa mais do que decorar um fundo para que

    atores atuem na frente. Demanda paridade entre criadores, que tm

    individualmente papis individuais, responsabilidades e talentos. O pr-requisito

    para seguir adiante neste novo sculo do fazer teatral comea com todas as

    diferentes disciplinas envolvidas em criar uma produo que tenha melhor

    entendimento dos processos e conquistas de cada um. Eu uma vez ouvi um diretor

    tcnico bem conhecido murmurando enquanto andava por um corredor que Se no

    fosse pelos atores, e pelo diretor, e os designers, eu poderia colocar este

    espetculo para deslanchar sem nenhum problema... Aqueles dias certamente

    acabaram.

    O cengrafo tambm tem que trabalhar com mais esforo para entender as

    necessidades dos atores, que so, no final das contas, o primeiro elemento visual

    com que se tem que trabalhar. O que os atores vestem tanto um significante do

    enredo ou histria, como uma extenso da pintura em cima do palco. Os atores so

    a cenografia, e, portanto separar cenrios de figurinos , em termos

    cenogrficos, uma contradio. No entanto, para que os cengrafos sejam parte da

    mise en scne tem que haver uma estrutura que permita que eles estejam nos

    ensaios como parceiros dos diretores, para que e mente visual e a mente literria

    possam trabalhar juntos. O cengrafo precisa ser parte desse processo, e entender

    as performances dos atores e como esculpi-las no espao. Os atores so os

    portadores da histria, e so bravos, delicados e vulnerveis e sempre precisam de

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    ajuda para se verem como seres tridimensionais no espao grfico. Atravs de

    desenhos e maquetes, eles podem ser lembrados de como a cena vista pelos

    espectadores. Porm, mesmo que a maquete seja bem mostrada, explicada no

    comeo dos ensaios, ela vai ser esquecida rapidamente. Quantas vezes vimos um

    mapa de cenografia bem desenhado no cho, com atores recebendo marcas para

    passar pelas paredes, ignorar as portas, e colocar cadeiras onde h escadas. O fato

    que o processo de ensaios fluido e muda sempre, mas o sistema usualmente

    exige decises avanadas e preciso. Muitas vezes, quando uma produo sai da

    sala de ensaio para o ensaio tcnico no palco, os dois conceitos no batem mais, e

    um exerccio grande para controlar as limitaes do dano tem que acontecer para

    que se atinja o que quase que um compromisso assumido.

    A emergncia visvel do cengrafo no um capricho obstinado sonhado por

    algum designer de teatro frustrado que sente que no foi devidamente reconhecido,

    ou que est cansado de ser tratado de forma ignbil e humilhante por seus colegas.

    O crescimento do cengrafo como algum que pode aceitar responsabilidades

    extras na criao de uma produo nasce de uma preocupao verdadeira com o

    estado de arte, e o clima poltico e econmico em que vivemos e trabalhamos.

    Em todos os pases ouve-se a mesma velha histria. Falta de dinheiro,

    financiamento inadequado, disputa entre os criadores teatrais, existncias

    marginalizadas, subsdios usados para a manuteno dos prdios, artistas

    aceitando o papel de patrocinadores annimos ao trabalhar por nada ou por um

    salrio de misria, s para poderem fazer seu trabalho. A ironia que h verbas

    disponveis para fazer quase tudo que tenha a ver com teatro que no seja criar o

    seu trabalho. Conferncias, exibies, encontros internacionais, criao de bancos

    de dados e pesquisas de emprego abundam. Buscar financiamento, e preencher

    formulrios e relatrios se tornou uma atividade que consome o tempo todo.

    possvel at mesmo conseguir verba para ir a cursos que ensinam como conseguir

    verbas. Logo vai acontecer em Praga uma Quadrienal que mostre tudo que no

    aconteceu nos ltimos quatro anos. Quase todos os encontros, palestras ou

    discusses sobre teatro acabam por no falar de arte, mas sim na angstia da

    evidente falta de dinheiro, e o aparente entendimento limitado dos filisteus que

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    seguram os cordes da bolsa de dinheiro, independente do governo que esteja no

    poder.

    O fazer teatral, s vezes melhor, s vezes pior, reproduz amplamente hbitos

    e prticas existentes. O fazer teatral grande ou pequeno est sempre em um estado

    crnico de passar de uma crise para outra, sem lucros financeiros, com os artistas

    sentindo que suas vozes poucas vezes so ouvidas e nunca escutadas, enquanto

    os deuses dos dias modernos Dinheiro, Marketing e Gerenciamento- no

    objetivam suspender oramentos inadequados.

    O cengrafo, olhando para esta situao e sendo o mais visvel gastador do

    dinheiro, pode se sentir completamente restrito ou, se tiver a chance, ficar

    completamente liberado. O que sugere que se deve repensar o papel convencional

    do design como uma arte aplicada buscando firmar uma individualidade visual

    para rivalizar com o conceito do diretor e a performance do ator. O objetivo do

    cengrafo deveria ser redescobrir como fazer teatro que use os recursos

    disponveis para ter melhores efeitos artsticos e financeiros, e eles precisam ter

    autoridade para isso.

    Normalmente a produo decidida pelo diretor, e ento o elenco escalado

    para os papis apropriados. As razes para escolher fazer uma determinada

    produo so com frequncia incompreensveis. Muito frequentemente uma

    produo grande concebida sem que se tenha os meios para realiz-la. Um

    oramento delineado como um relato das possveis entradas de dinheiro, mas no

    com as necessidades ou demandas do trabalho. O designer, portanto,

    transforma-se em um controlador de danos, e considera parte de seu trabalho

    encontrar solues para problemas impossveis.

    Os artistas de teatro esto comeando a perceber que este estado de crise

    contnua no uma crise de maneira alguma, e muitos- particularmente cengrafos,

    artistas visuais do teatro- sentem fora para pegar os problemas com as prprias

    mos. O exemplo das intersees entre pintura e arte da performance tem

    encorajado artistas das artes visuais a investigarem novos trabalhos, fortalecendo

    aquele frgil receptculo chamado teatro. No est alm da fronteira das

    possibilidades ver cengrafos assumindo um papel mais visvel na no planejamento

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    de programas e polticas, e propondo diretores que eles acham interessantes ou

    com quem querem trabalhar. uma mudana pequena, mas significativa de nfase.

    Participar na mudana, para tentar melhorar as condies de trabalho e,

    portanto, a qualidade do trabalho, demanda colocar a prpria casa em ordem

    primeiro. Ns, os cengrafos, podemos dizer honestamente que conspiramos com

    as estruturas que inibem nossa atividade, usando isso como desculpa por no ter

    atingido alguma coisa- Eu no posso ser to criativo como desejava, porque o

    ateli de costura quer todos os desenhos trs meses antes de o elenco ser

    escolhido - por exemplo. Quando ns no pudermos mais sair e comprar comida

    pronta, ns ainda vamos lembrar como se faz uma comida caseira deliciosa pela

    metade do preo? Qualquer mulher que tenha administrado uma casa, criado filhos

    e teve um trabalho de perodo integral sabe tanto fazer boas comidas de qualidade

    com oramento reduzido como se adaptar circunstncias sem comprometer

    princpios em que acredita fortemente. Os cengrafos sabem inventar, criar e

    manipular- serem conselheiros, polticos, lderes, artistas e ainda serem cozinheiros

    criativos. A combinao de mulheres e cengrafos alquimia.

    Eu no inventei a cenografia. No uma nova religio e nem mesmo uma

    nova ideia. Acontece que eu s comecei a usar e a falar o nome e outros fizeram o

    mesmo. E para surpresa de todos o mundo no acabou- a terceira guerra mundial

    no comeou. A vida segue exatamente como antes. Mas h uma diferena. Os

    cengrafos, mesmo que seu interesse principal seja com luz, atores, espao ou

    cenrio, se tornaram mais visveis e tm uma nova voz. Eles so ouvidos, e as

    pessoas realmente usam a palavra, abertamente e com e cada vez menos

    hesitao. Ns surgimos- nos tornamos visveis, e com isso aceitamos ativamente

    as responsabilidades da mudana que vem com a nova descrio. Ns agra

    podemos dizer, como as pessoas antes se identificavam com um grupo, Eu sou

    cengrafo. Os limites internacionais esto desaparecendo, enquanto grupos

    individuais desenvolvem identidades mais claras. Se o teatro espelha a vida, ento

    a marcao restrita entre as disciplinas teatrais, arquitetura, luz, direo, escrita,

    esto agora se mesclando, em um tipo diferente de encenao em que o cengrafo

    um dos jogadores principais.

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    Os princpios da cenografia so os princpios da arte. O pintor do sculo 17

    Jean-Simon Chardin desafiou o status quo da Academia Francesa ao reafirmar

    sua crena na arte como uma comunicadora. Ele rejeitava as pinturas grandes e

    puramente narrativas em prol de dirigir a ateno do espectador para ver algo

    familiar de forma nova- selecionado pelos olhos do artista. Uma xcara de ch, uma

    jarra com damascos, uma colher de prata ele faz o ordinrio parecer

    extraordinrio. Os objetos e as figuras se transformam, como no teatro,

    emblemticos, carregadores do mito, potencializados pela luz e pelo escuro, e

    adicionando valor ao espao vazio. Todos os elementos da cenografia esto

    contidos em espaos geomtricos colocados dentro de uma moldura convencional.

    Chardin um professor para as artes de teatro, para que, como disse o pintor Mark

    Rothko 250 anos depois, Ao simplificar o presente, ele reinventa o futuro. Isso a

    cenografia.