o Que é Dialética - Leandro Konder
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Leandro Konder
O QUE DIALTICA
25 edio
editora brasiliense
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NDICE Origens da Dialtica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
O Trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20
A Alienao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29
A Totalidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
A Contradio e a Mediao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
A Fluidificao dos Conceitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50
As Leis da Dialtica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
o. Sujeito e a Histria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
o. Indivduo e a Sociedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Semente de Drages. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83
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A dialtica, como lgica viva da ao, no pode aparecer a uma
razo contemplativa. (...) No curso da ao, o indivduo descobre a dialtica como transparncia racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer
dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem.
Sartre, Crtica da Razo Dialtica.
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ORIGENS DA DIALTICA
Dialtica era, na Grcia antiga, a arte do dilogo. Aos
poucos, passou a ser a arte de, no dilogo, demonstrar uma tese
por meio de uma argumentao capaz de definir e distinguir
claramente os conceitos envolvidos na discusso.
Aristteles considerava Znon de Ela (aprox. 490-430
a.C.) o fundador da dialtica. Outros consideram Scrates (469-
399 a.C.). Numa discusso sobre a funo da filosofia (que
estava sendo caracterizada como uma atividade intil), Scrates
desafiou os generais Lachs e Ncias a definirem o que era a
bravura e o poltico Calicls a definir o que era a poltica e a
justia, para demonstrar a eles que s a filosofia por meio da
dialtica podia lhes proporcionar os instrumentos
indispensveis para entenderem a essncia daquilo que faziam,
das atividades profissionais a que se dedicavam.
Na acepo moderna, entretanto, dialtica significa outra
coisa: o modo de pensarmos as contradies da realidade, o
modo de compreendermos a realidade como essencialmente
contraditria e em permanente transformao.
No sentido moderno da palavra, o pensador dialtico
mais radical da Grcia antiga foi, sem dvida, Herclito de
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Efeso (aprox. 540-480 a.C.). Nos fragmentos deixados por
Herclito, pode-se ler que tudo existe em constante mudana,
que o conflito o pai e o rei de todas as coisas. L-se tambm
que vida ou morte, sono ou viglia, juventude ou velhice so
realidades que se transformam umas nas outras. O fragmento n
91, em especial, tornou-se famoso: nele se l que um homem
no toma banho duas vezes no mesmo rio. Por qu? Porque da
segunda vez no ser o mesmo homem e nem estar se
banhando no mesmo rio (ambos tero mudado).
Os gregos acharam essa concepo de Herclito muito
abstrata, muito unilateral. Chamaram o filsofo de Herclito, o
Obscuro. Havia certa perplexidade em relao ao problema do
movimento, da mudana. O que que explicava que os seres se
transformassem, que eles deixassem de ser aquilo que eram e
passassem a ser algo que antes no eram? Herclito respondia a.
essa pergunta de maneira muito perturbadora, negando a
existncia de qualquer estabilidade no ser. Os gregos preferiram
a resposta que era dada por um outro pensador da mesma poca:
Parmnides.
Parmnides ensinava que a essncia profunda do ser era
imutvel e dizia que o movimento (a mudana) era um
fenmeno de superfcie.
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Essa linha de pensamento que podemos chamar de
metafsica acabou prevalecendo sobre a dialtica de
Herclito.
A meta fsica no impediu que se desenvolvesse o
conhecimento cientfico dos aspectos mais estveis da realidade
(embora dificultasse bastante o aprofundamento do
conhecimento cientfico dos aspectos mais dinmicos e mais
instveis da realidade).
De maneira geral, independentemente das intenes dos
filsofos, a concepo metafsica prevaleceu, ao longo da
histria, porque correspondia, nas sociedades divididas em
classes, aos interesses das classes dominantes, sempre
preocupadas em organizar duradouramente o que j est
funcionando, sempre interessadas em amarrar bem tanto os
valores e conceitos como as instituies existentes, para impedir
que os homens cedam tentao de querer mudar o regime
social vigente.
A concepo dialtica foi reprimida, historicamente: foi
empurrada para posies secundrias, condenada a exercer uma
influncia limitada.
A metafsica se tornou hegemnica. Mas a dialtica no
desapareceu. Para sobreviver, precisou renunciar s suas
expresses mais drsticas, precisou conciliar com a metafsica,
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porm conseguiu manter espaos significativos nas idias de
diversos filsofos de enorme importncia.
Aristteles, por exemplo, um pensador nascido mais de
um sculo depois da morte de Herclito, reintroduziu princpios
dialticos em explicaes dominadas pelo modo de pensar
metafsico.
Embora menos radical do que Herclito, Aristteles
(384-322 a.C.) foi um pensador de horizontes mais amplos que
o seu antecessor; e a ele que se deve, em boa parte, a
sobrevivncia da dialtica.
Aristteles observou que ns damos o mesmo nome de
movimento a processos muito diferentes, que vo desde o mero
deslocamento mecnico de um corpo no espao, desde o mero
aumento quantitativo de alguma coisa, at a modificao
qualitativa de um ser ou o nascimento de um ser novo. Para
explicar cada movimento, a gente precisa verificar qual a
natureza dele. .
Segundo Aristteles, todas as coisas possuem
determinadas potencialidades; os movimentos das coisas so
potencialidades que esto se atualizando, isto , so
possibilidades que esto se transformando em realidades
efetivas. Com seus conceitos de ato e potncia, Aristteles
conseguiu impedir que o movimento fosse considerado apenas
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uma iluso desprezvel, um aspecto superficial da realidade;
graas a ele, os filsofos no abandonaram completamente o
estudo do lado dinmico e mutvel do real.
Nas sociedades feudais, entretanto, durante os sculos da
Idade Mdia, a dialtica sofreu novas derrotas e ficou bastante
enfraquecida. No regime feudal, a vida social era estratificada,
as pessoas cresciam, viviam e morriam fazendo as mesmas
coisas, pertencendo classe social em que tinham nascido;
quase no aconteciam alteraes significativas. A ideologia
dominante a ideologia das classes dominantes era
monoplio da Igreja, elaborada dentro dos mosteiros por padres
que levavam uma vida muito parada. Por isso, a dialtica foi
sendo cada vez mais expulsa da filosofia. A prpria palavra
dialtica se tornou uma espcie de sinnimo de lgica (ou ento
passou a ser empregada, em alguns casos, com o significado
pejorativo de lgica das aparncias).
No regime de cidade-Estado, da Grcia antiga, embora
houvesse estratificao social, havia uma ampla circulao tanto
de mercadorias como de idias: o comrcio e a discusso sobre
os problemas de interesse coletivo faziam parte da vida dos
cidados. No regime feudal, a vida nas cidades sofreu um
esvaziamento; e no campo havia pouco comrcio e poucas
oportunidades para discutir organizadamente. O nmero dos
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cidados que debatiam era reduzido e as idias debatidas
ficaram meio desligadas da vida prtica.
A dialtica ficou sufocada. Para sobreviver, ela precisou
lutar para assegurar filosofia um espao prprio, que no
ficasse diretamente dominado pelo imperialismo da teologia
(ideologia dominante, na poca). Um dos idelogos mais
famosos do Sculo XI, Petrus Damianus (1007-1072), dizia que,
para o ser humano, a nica coisa importante era a salvao da
sua alma; que a maneira mais segura de salvar a alma era se
tornar monge; e que um monge no precisava de filosofia. O
rabe Averres e o francs Abelardo procuraram, por caminhos
muito diferentes, defender o espao da filosofia, sem desafiar a
teologia. Averres (1126-1198), apoiando-se em Aristteles,
afirmou que a verso filosfica da Verdade no precisava
coincidir, de maneira imediata e total, com sua verso teolgica.
E Abelardo (1079-1142) conseguiu discutir longamente sobre as
relaes entre as categorias universais e as coisas singulares em
termos de pura lgica, -mostrando assim, na prtica, que
existiam problemas importantes cuja abordagem no precisava
da teologia. No Sculo XIV, a vida comeou a se modificar, o
comrcio se desenvolveu e sacudiu os hbitos da sociedade
feudal. Os filsofos refletem isso.
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Guilherme de Occam (aprox. 1285-1349) tpico da
nova situao que estava surgindo; sua vida bem mais
movimentada que a da maioria dos filsofos medievais: ele
estudou na Inglaterra (em Oxford), viveu na Frana (em
Avignon), andou s turras com o Papa, fugiu para Pisa (na
Itlia) e acabou morrendo em Munique (na Alemanha). Occam
sustentava que, exatamente porque Deus todo-poderoso e
porque a vontade de Deus no pode ter limites, tudo no mundo
contingente, tudo poderia ser diferente do que (se Deus
quisesse); por isso, a teologia (que tratava de Deus) no devia
interferir segundo Occam no estudo das coisas
contingentes do mundo emprico.
A chamada revoluo comercial, esboada no Sculo
XIV, deflagrou-se no Sculo XV e suas conseqncias
marcaram profundamente o Sculo XVI. Foi a poca do
Renascimento e da descoberta da Amrica. As artes e as
cincias se insurgiram contra os hbitos mentais da Idade
Mdia: mostraram que o universo era muito maior e mais
complicado do que os idelogos medievais pensavam; e
mostraram que o ser humano era potencialmente muito mais
livre do que eles imaginavam.
O movimento voltou a se impor reflexo e ao debate,
tornou-se outra vez um tema fundamental. O astrnomo polons
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Nicolau Coprnico (1473-1543) descobriu que Ptolomeu tinha-
se enganado, que a Terra nem era imvel nem era o centro do
universo, que ela girava em torno do Sol. Galileu (1564-1642) e
Descartes (1596-1650) descobriram que a condio natural dos
corpos era o movimento e no o estado de repouso.
A maneira de conceber o ser humano tambm sofreu
importantes alteraes. Pico de la Mirandola (1463-1494)
sustentou que o fato de o homem ser inacabado e, portanto,
poder evoluir lhe conferia uma dignidade especial e lhe dava at
certa vantagem em comparao com os deuses e anjos (que so
eternos, perfeitos e por isso no mudam). E Giordano Bruno
(1548-1600) exaltou o homo faber, quer dizer, o homem capaz
de dominar as foras naturais e de modificar criadoramente o
mundo.
Com o Renascimento, a dialtica pde sair dos
subterrneos em que tinha sido obrigada a viver durante vrios
sculos: deixou o seu refgio e veio luz do dia. Conquistou
posies que conseguiu manter nos sculos seguintes. O carter
instvel, dinmico e contraditrio da condio humana foi
corajosamente reconhecido por um pensador mstico e
conservador, como Pascal (1623-1654). Outro filsofo
conservador, o italiano Giambattista Vico (1680-1744), tambm
ajudou a dialtica a se fortalecer. Vico achava que o homem no
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podia conhecer a natureza, que tinha sido feita por Deus e s por
Deus podia ser efetivamente conhecida; mas sustentava que o
homem podia conhecer sua prpria histria, j que a realidade
histrica obra humana, criada por ns. Essa formulao
constituiu um poderoso estmulo busca de um mtodo
adequado correta compreenso da realidade histrica (quer
dizer, elaborao do mtodo dialtico).
Elementos de dialtica se encontram no pensamento de
diversos filsofos do Sculo XVII, como Leibniz (1646-1716),
Spinoza (1632-1677), Hobbes (1588-1679) e Pierre Bayle
(1647-1706).
Elementos de dialtica se achavam j, tambm, nas
reflexes do inquieto Montaigne (1533-1592), no Sculo XVI.
Montaigne dizia, por exemplo:
Todas as coisas esto sujeitas a passar de uma mudana
a outra; a razo, buscando nelas uma subsistncia real, s pode
frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, j que tudo
ou est comeando a ser e absolutamente ainda no ou
ento j est comeando a morrer antes de ter sido (Essais, 11,
12). Mas tanto Montaigne como os pensadores do Sculo XVII
viviam e pensavam, de certo modo, numa situao de
isolamento em relao dinmica social, em relao aos
movimentos polticos da poca. Os contatos que eles mantinham
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eram com personalidades e no com organizaes ou tendncias
que pudessem refletir alguma coisa do que se passava nas bases
da sociedade. Por isso, a viso que tinham da histria isto ,
do processo transformador da condio humana e das estruturas
sociais ou era gratuitamente otimista, superficial, ou ento
assumia um tom melanclico, um contedo conservador
negativista.
S na segunda metade do Sculo XVIII que a situao
dos filsofos comeou a mudar. O amadurecimento do processo
histrico que desembocou na Revoluo Francesa criou
condies que permitiram aos filsofos uma compreenso mais
concreta da dinmica das transformaes sociais. O movimento
que refletiu esse processo de preparao da Revoluo Francesa
no plano das idias se chamou Iluminismo. Os filsofos
iluministas acompanharam; de perto as reivindicaes plebias,
as articulaes da burocracia, as manifestaes polticas nas
ruas, a rpida mudana nos costumes; perceberam que o que
restava do mundo feudal devia desaparecer e pretenderam
contribuir para que o mundo novo, que estava surgindo, fosse
um mundo racional.
Em sua maioria, os iluministas se contentaram com uma
viso mais ou menos simplificada do processo de transformao
social que viam realizar-se e apoiavam: no procuraram refletir
-
aprofundadamente sobre suas contradies internas. Por isso,
no trouxeram grandes Contribuies para o avano da dialtica.
H, porm, uma exceo; maior dos filsofos iluministas
tambm o autor de uma obra rica em observaes de grande
interesse para a concepo dialtica do mundo: Denis Diderot
(1713-1784).
Diderot compreendeu que o indivduo era condicionado
por um movimento mais amplo, pelas mudanas da sociedade
em que vivia. Sou como sou escreveu ele porque foi
preciso que eu me tornasse assim. Se mudarem o todo,
necessariamente eu tambm serei modificado. E acrescentou:
O todo est sempre mudando.
No Sonho de DAlembert, imaginou que DAlembert,
seu amigo, sonhando dizia coisas tais como:
Todos os seres circulam uns nos outros. Tudo um
fluxo perptuo. O que um ser? A soma de um certo nmero de
tendncias. E a vida? A vida uma sucesso de aes e reaes.
Nascer, viver e passar mudar de formas. D Alembert ficou
chocado com a loucura que Diderot tinha escrito e o texto,
redigido em 1769, acabou s sendo publicado em 1830.
No Suplemento Viagem de Bougainville, publicado em
1796, Diderot aconselhava seus leitores: Examinem todas as
instituies polticas, civis e religiosas; ou muito me engano ou
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vocs vero nelas o gnero humano subjugado, a cada sculo
mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes, E
recomendava: Desconfiem de quem quer impor a ordem.
Uma das obras mais famosas de Diderot O Sobrinho de
Rameau, que relata uma conversa entre o filsofo e um jovem
vigarista, sobrinho de um msico clebre: Diderot se coloca,
habilmente, numa posio moderada, mas coloca na boca do seu
interlocutor uma argumentao brilhante, uma defesa altamente
perturbadora da vigarice, de modo que a moral vigente fica
bastante abalada em seus fundamentos, no fim do dilogo.
Diderot assume os elementos conservadores que sabe existirem
no seu pensamento, mas permite ao jovem vigarista que
desenvolva seus pontos de vista com extraordinria
desenvoltura; o resultado um confronto fascinante, que Hegel
e Marx consideraram um primor de dialtica.
Ao lado de Diderot, quem deu a maior contribuio
dialtica na segunda metade do Sculo XVIII foi Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778).
Ao contrrio dos iluministas, Rousseau no tinha
confiana na razo humana: preferia confiar mais fia natureza.
Segundo ele, os homens nasciam livres, a natureza lhes dava a
vida com liberdade, mas a organizao da sociedade lhes tolhia
o exerccio da liberdade natural. O problema com que Rousseau
-
se defrontava, ento, era o de assegurar bases para um contrato
social que permitisse aos indivduos terem na vida social uma
liberdade capaz de compensar o sacrifcio da liberdade com que
nasceram.
Observando a estrutura da sociedade do seu tempo e suas
contradies, Rousseau concluiu que os conflitos de interesses
entre os indivduos tinham-se tornado exagerados, que a
propriedade estava muito mal distribuda, o poder estava
concentrado em poucas mos, as pessoas estavam escravizadas
ao egosmo delas. Rousseau considerava necessria uma
democratizao da vida social; para ele, as comunidades
efetivamente democrticas no poderiam basear-se em critrios
formais, puramente quantitativos (a vontade de todos):
precisariam apoiar-se numa vontade geral criada por um
movimento de convergncia que levaria os indivduos a
superarem a estreiteza do egosmo deles, que os levaria a se
reconhecerem concretamente uns nos outros e a adotarem uma
perspectiva universal (verdadeiramente livre) no
encaminhamento de solues para seus problemas.
Os caminhos que deveriam ser seguidos para que os
homens chegassem a essa convergncia, a essa
universalidade, exigiriam a remoo de muitos obstculos.
Rousseau sabia que as mudanas sociais profundas, realizadas
-
por sujeitos coletivos, no costumam ser tranqilas; sabia que as
transformaes necessrias por ele apontadas deveriam ser um
tanto tumultuadas. Mas achava que um pouco de agitao
retempera as almas; e o que faz avanar a humanidade menos
a paz do que a liberdade. Embora divergisse de Diderot em
vrias coisas, ele concordava num ponto cru dai: nenhum dos
dois se deixava intimidar pela ideologia da ordem, de
contedo nitidamente conservador.
Por isso se entende que no Sculo XX um conservador
radical Maurice Barres tenha escrito que Diderot e
Rousseau (duas foras de desordem) so responsveis por
muitos dos . males que nos afligem.
-
O TRABALHO
No final do Sculo XVIII e no comeo do Sculo XIX,
os conflitos polticos j no eram mais abafados nos corredores
dos palcios e estouravam nas ruas. As lutas que precederam e
desencadearam a Revoluo Francesa envolveram muita gente,
entraram na vida de milhes de pessoas; as guerras napolenicas
tambm mobilizaram as massas populares e os homens do povo
foram obrigados a pensar sobre questes polticas que antes
eram discutidas apenas por uma elite reduzida, mas que naquele
perodo estavam invadindo a esfera da vida cotidiana de quase
todo mundo.
Essa situao se refletiu na filosofia. Se refletiu at na
filosofia que se elaborava na longnqua cidade de Knigsberg,
na Prssia oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica
na Unio Sovitica), onde nasceu, viveu, escreveu e morreu
aquele que provavelmente o maior dos pensadores metafsicos
modernos: Imanuel Kant (1724-1804). Pessoalmente, Kant
viveu na mais rigorosa rotina; at seus passeios tinham hora
marcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filsofo
acertavam seus relgios quando ele saa de casa, s 15h30m,
para dar uma volta). sua volta, porm, as rotinas estavam
sendo quebradas, a histria da Europa estava pondo a nu muitas
-
contradies e Kant no pde deixar de pensar sobre a
contradio, em geral. Kant percebeu que a conscincia humana
no se limita a registrar passivamente impresses provenientes
do mundo exterior, que ela sempre a conscincia de um ser
que interfere ativamente na realidade; e observou que isso
complicava extraordinariamente o processo do conhecimento
humano. Sustentou, ento, que todas as filosofias at ento
vinham sendo ingnuas ou dogmticas, pois tentavam
interpretar o que era a realidade antes de ter resolvido uma
questo prvia: o que o conhecimento?
O centro da filosofia, para Kant, no podia deixar de ser
a reflexo sobre a questo do conhecimento, a questo da exata
natureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua
ateno naquilo que ele chamou de razo pura, o filsofo se
convenceu, ento, de que na prpria razo pura (anterior
experincia) existiam certas contradies as antinomias
que nunca poderiam ser expulsas do pensamento humano por
nenhuma lgica.
Outro filsofo alemo, de uma gerao posterior,
demonstrou que a contradio no era apenas uma dimenso
essencial na conscincia do sujeito do conhecimento, conforme
Kant tinha concludo; era um princpio bsico que no podia ser
suprimido nem da conscincia do sujeito nem da realidade
-
objetiva. Esse novo pensador, que se chamava Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831), sustentava que a questo central
da filosofia era a questo do ser, mesmo, e no a do
conhecimento. Contra Kant, ele argumentou: se eu pergunto o
que o conhecimento, j na palavra est em jogo uma certa
concepo de ser; a questo do conhecimento, daquilo que o
conhecimento , s pode ser concretamente discutida a partir da
questo do ser. .
Hegel concordava com Kant num ponto essencial: no
reconhecimento de que o sujeito humano essencialmente ativo
e est sempre interferindo na realidade. Na poca da Revoluo
Francesa, entusiasmado com a tomada da Bastilha pelo povo e
com a derrubada de instituies antiqssimas (que pareciam
eternas), Hegel ento com 19 anos plantou uma rvore
da liberdade em Tbingen, onde morava, em homenagem
Frana.
Naquele momento, o poder humano de intervir na
realidade lhe pareceu quase ilimitado; o sujeito humano lhe
pareceu quase onipotente.
Logo, porm, a vida se encarregou de jogar gua fria no
entusiasmo do filsofo. A Revoluo Francesa atravessou uma
fase de terror, com a guilhotina cortando inmeras cabeas, e
depois veio a ser controlada por Napoleo Bonaparte (mas o
-
prprio Napoleo foi derrotado e a Europa se viu dominada pela
poltica ultraconservadora da Santa Aliana). Alm disso, a
Alemanha, pas onde o pensador vivia, era to atrasada que nem
sequer tinha conseguido alcanar a sua unidade como nao
estava dividida em governos regionais, cada um mais
reacionrio que o outro. Hegel descobriu, ento, com amargura,
que o homem transforma ativamente a realidade, mas quem
impe o ritmo e as condies dessa transformao ao sujeito ,
em ltima anlise, a realidade objetiva.
Para avaliar de maneira realista as possibilidades do
sujeito humano, Hegel procurou estudar seus movimentos no
plano objetivo - das atividades polticas e econmicas.
Dedicou-se leitura e ao exame dos escritos de Adam Smith e
dos tericos da economia poltica inglesa clssica.
Lukcs mostrou, em seu livro sobre O Jovem Hegel, que
na base do pensamento de Hegel est no s uma reflexo
aprofundada sobre a Revoluo Francesa como tambm uma
reflexo radical sobre a chamada revoluo industrial, que vinha
se realizando na Inglaterra. Hegel percebe que o trabalho a
mola que impulsiona o desenvolvimento humano; no trabalho
que o homem se produz a si mesmo; o trabalho o ncleo a
partir do qual podem ser compreendidas as formas complicadas
da atividade criadora do sujeito humano. No trabalho se acha
-
tanto a resistncia do objeto (que nunca pode ser ignorada)
como o poder do sujeito, a capacidade que o sujeito tem de
encaminhar, com habilidade e persistncia, uma superao dessa
resistncia.
Foi com o trabalho que o ser humano desgrudou um
pouco da natureza e pde, pela primeira vez, contrapor-se como
sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se no fosse o trabalho,
no existiria a relao sujeito-objeto.
O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir
alm da pura natureza A natureza, como tal, no cria nada de
propriamente humano, observa o filsofo sovitico Evald
Ilinkov. O homem no deixa de ser um animal, de pertencer
natureza; porm j no pertence inteiramente a ela. Os animais
agem apenas em funo das necessidades imediatas e se guiam
pelos instintos (que so foras naturais); o ser humano, contudo,
capaz de antecipar na sua cabea os resultados das suas aes,
capaz de escolher os caminhos que vai seguir para tentar
alcanar suas finalidades.
A natureza dita o comportamento aos animais; o homem,
no entanto, conquistou certa autonomia diante dela. O trabalho
permitiu ao homem dominar algumas das energias da natureza;
permitiu-lhe como escreveu o brasileiro Jos Arthur
Giannotti ter parte da natureza sua disposio.
-
O trabalho conceito-chave para ns compreendermos o
que a superao dialtica. Para expressar a sua concepo da
superao dialtica, Hegel usou a palavra alem aufheben, um
verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem trs
sentidos diferentes. O primeiro sentido o de negar, anular,
cancelar (como ocorre, por exemplo, quando a gente suspende
um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante
suspenso das aulas e no pode comparecer escola durante
algum tempo). O segundo sentido o de erguer alguma coisa e
mant-la erguida para proteg-la (como a gente v, por exemplo,
num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto
onde morou h muitos anos e diz que ele foi preservado porque
ficou intacto, suspenso no ar). E o terceiro sentido o de
elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para
um plano superior, suspender o nvel.
Pois bem: Hegel emprega a palavra com os trs sentidos
diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superao dialtica
simultaneamente a negao de uma determinada realidade, a
conservao de algo de essencial que existe nessa realidade
negada e a elevao dela a um nvel superior.
Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se
observamos o que acontece no trabalho: a matria-prima
negada (quer dizer, destruda em sua forma natural), mas ao
-
mesmo tempo conservada (quer dizer, aproveitada) e
assume uma forma nova, modificada, correspondente aos
objetivos humanos (quer dizer, elevada em seu valor). o
que se v, por exemplo, no uso do trigo para o fabrico do po: o
trigo triturado, transformado em pasta, porm no desaparece
de todo, passa a fazer parte do po, que vai ao forno e depois
de assado se torna humanamente comestvel.
Boa parte da obscuridade de Hegel resultava do fato de
ele ser idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade
material lgica de um princpio que ele chamava de Idia
Absoluta; como essa Idia Absoluta era um princpio
inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade material
eram, freqentemente, descritos pelo filsofo de maneira
bastante vaga.
No caminho aberto por Hegel, entretanto, surgiu outro
pensador alemo, Karl Marx (1818-1883), materialista, que
superou dialeticamente as posies de seu mestre. Marx
escreveu que em Hegel a dialtica estava, por assim dizer, de
cabea para baixo; decidiu, ento, coloc-la sobre seus prprios
ps.
Marx teve uma vida muito atribulada: ligou-se bem cedo
ao movimento operrio e socialista, lutou na poltica do lado dos
trabalhadores, viveu na pobreza e passou a maior parte de sua
-
vida no exlio (na Inglaterra). A solidariedade ativa que o ligou
aos trabalhadores contribuiu, certamente, para que ele tivesse do
trabalho uma compreenso diferente daquela que tinha sido
exposta pelo velho Hegel, cuja existncia transcorrera quase
toda entre as quatro paredes da biblioteca e da sala de aulas.
Marx concordou plenamente com a observao de Hegel
de que o trabalho era a mola que impulsionava o
desenvolvimento humano, porm criticou a unilateral idade da
concepo hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava
importncia demais ao trabalho intelectual e no enxergava a
significao do trabalho fsico, material. O nico trabalho que
Hegel conhece e reconhece observou Marx em 1844 o
trabalho abstrato do esprito. Essa concepo abstrata do
trabalho levava Hegel a fixar sua ateno exclusivamente na
criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as
deformaes a que ele era submetido em sua realizao
material, social.
Por isso Hegel no foi capaz de analisar seriamente os
problemas ligados alienao do trabalho nas sociedades
divididas em classes sociais (especialmente na sociedade
capitalista).
-
A ALIENAO
O trabalho admite Marx a atividade pela qual o
homem domina as foras naturais, humaniza a natureza; a
atividade pela qual o homem se cria a si mesmo. Como, ento, o
trabalho de condio natural para a realizao do homem
chegou a tornar-se o seu algoz?
Como ele chegou a se transformar em uma atividade
que sofrimento, uma fora que impotncia, uma procriao
que castrao?
Uma primeira causa dessa deformao monstruosa se
encontra na diviso social do trabalho, na apropriao privada
das fontes de produo, no aparecimento das classes sociais.
Alguns homens passaram a dispor de meios para explorar o
trabalho dos outros; passaram a impor aos trabalhadores
condies de trabalho que no eram livremente assumidas por
estes. Introduziu-se, assim, um novo tipo de contradio no
interior da comunidade humana, no interior do gnero humano.
A partir da diviso social do trabalho, a humanidade
passava a ter uma dificuldade bem maior para pensar os seus
prprios problemas e para encar-los de um ngulo mais
amplamente universal: mesmo quando eram sinceros, os
indivduos se deixavam influenciar pelo ponto de vista dos
-
exploradores do trabalho alheio, pela perspectiva parcial
inevitvel das classes sociais (conforme a caracterizao da
ideologia por Lucien Goldmann).
Diviso do trabalho e propriedade privada escreveu
Marx so termos idnticos: um diz em relao explorao
do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em relao
ao produto da explorao do trabalho escravo. As condies
criadas pela diviso do trabalho e pela propriedade privada
introduziram um estranhamento entre o trabalhador e o
trabalho, na medida em que o produto do trabalho, antes mesmo
de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que no o
trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu trabalho, o
ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas
prprias criaes, o ser humano se sente ameaado por elas; em
lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opresses.
O vigor e a coerncia da argumentao de Marx foram
reconhecidos mesmo por escritores que no concordam com o
ponto de vista dele. O padre Henri Chambre, por exemplo,
admitiu que, partindo da concepo do homem como um ser que
se cria atravs do trabalho, no se pode negar validade crtica
de Marx propriedade privada: Se o homem fosse apenas
atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o
cerca, certo que toda apropriao privada seria fonte de
-
violncia e dominao do homem sobre o homem para um
cristo, como Chambre, a idia de que o homem se faz a si
mesmo e humaniza o mundo pelo trabalho sacrifica a espiritual
idade do ser humano e o rebaixa condio animal, alm de ser
uma manifestao de auto-suficincia, um pecado de orgulho.
Mas os marxistas tm boas razes para replicar que, na medida
em que rejeitam a dialtica, os cristos se privam de um
instrumento eficientssimo na anlise dos problemas humanos,
perdem boas possibilidades de agir com eficcia no plano
poltico e acabam desperdiando energias na retrica dos bons
conselhos, na pregao moralista e em projetos ingnuos
(idealistas) de reforma dos costumes e das mentalidades.
Os marxistas acham que a nica maneira de superar a
diviso da sociedade em classes e dar incio a um processo de
desalienao do trabalho levarem conta realidade da luta
de classes para promover a revoluo socialista.
Marx no inventou a luta de classes: limitou-se a
reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqncias
da sua existncia. Antes de Marx, diversos autores j tinham
enxergado a questo. James Madison, ex-Presidente dos Estados
Unidos, por exemplo, escreveu, em 1787: Proprietrios e no
proprietrios sempre formaram interesses diversos dentro da
sociedade. Marx, porm, foi mais longe do que Madison; com
-
a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895), Marx reexaminou a
histria social da humanidade e concluiu, em 1848, no
Manifesto Comunista, que toda a histria transcorrida at ento
tinha sido uma histria de 14tas de classes.
As lutas de classes assumem formas extraordinariamente
variadas: s vezes so fceis de ser reconhecidas, so mais ou
menos diretas; s vezes, contudo, elas se tornam extremamente
complexas e no cabem em interpretaes simplistas. Nas
sociedades capitalistas, as lutas de classes tendem a assumir
formas polticas cada vez mais complicadas.
Examinando o modo de produo capitalista, em seu
livro O Capital, Marx notou que com ele se criou uma situao
poltica nova, sem precedentes, na histria das lutas de classes.
O capitalismo como aquele aprendiz de feiticeiro que colocou
em movimento foras que em seguida escaparam ao seu
controle: com o capitalismo, desenvolveu-se notavelmente a
tecnologia, as foras produtivas tiveram um crescimento
excepcional e o capitalismo vem tendo dificuldades cada vez
maiores para aproveit-las. A competio desenfreada dos
capitalistas uns com os outros, em torno da busca do maior
lucro, acarreta um grave desperdcio de recursos. Na
competio, os empresrios mais poderosos vo impondo a lei
deles, os mais fracos vo sendo sacrificados e acabam
-
prevalecendo os monoplios. Por outro lado, para poder
explor-los, o capital rene os operrios em suas indstrias, mas
essa massa trabalhadora aglomerada se organiza, toma
conscincia de sua fora, passa a reivindicar com maior firmeza
as coisas que lhe convm, at poder liderar uma revoluo social
e criar uma organizao socialista para a sociedade.
A socializao do trabalho e a centralizao de seus
recursos materiais escreve Marx chegam a um ponto no
qual no cabem mais no envoltrio capitalista.
Nunca tinha sido criada na histria da humanidade, antes
do capitalismo, uma situao como essa: pela primeira vez
existe uma classe social o proletariado moderno que no
lidera um movimento destinado a substituir um modo de
produo baseado numa -forma de propriedade privada por
outro modo de produo baseado em outra forma de propriedade
privada. Pela primeira vez os anseios e ideais igualitrios,
coletivistas, socialistas, comunistas, dispem de um portador
material capaz de coloc-los em prtica, atravs de uma
prolongada luta poltica. A superao da diviso social do
trabalho deixou de ser um sonho: passou a ser um programa que
em princpio pode ser executado.
E essa , na anlise de Marx, a segunda causa da
deformao que ele viu na situao do trabalho (que, em vez de
-
servir para o ser humano realizar-se, servia para alien-lo). Se a
primeira causa da anomalia era antiga a propriedade
privada, a existncia das classes sociais , a segunda, mais
recente, estava no agravamento da explorao do trabalho sob o
capitalismo. O mercado capitalista vive em permanente
expanso, o capital tende a ocupar todos os espaos que possam
lhe proporcionar lucros. E as leis do mercado vo dominando a
sociedade inteira: todos os valores humanos autnticos vo
sendo destrudos pelo dinheiro, tudo vira mercadoria, tudo pode
ser comercializado, todas as coisas podem ser vendidas ou
compradas por um determinado preo. A fora de trabalho do
ser humano claro no podia deixar de ser arrastada nessa
onda; ela tambm se transforma em mercadoria e seu preo
passa a sofrer as presses e flutuaes do mercado.
Os trabalhadores, alm de viverem sob a ameaa da
perda do emprego, so obrigados a se organizar e a lutar para
defender seus salrios; e o fato de tomarem conscincia de que
j existe uma alternativa socialista e de que a organizao da
produo poderia ser diferente um fato que s pode agravar o
mal-estar que sentem no trabalho.
O agravamento da alienao do trabalho sob o
capitalismo, contudo, no afeta apenas os operrios; os
capitalistas tambm so atingidos. A mesma busca desenfreada
-
do lucro que leva o capitalista a explorar o trabalho do operrio
leva-o tambm a procurar tirar vantagem de suas relaes
competitivas com os outros capitalistas. Por isso, o mercado,
que funciona em proveito da burguesia como classe, sempre
uma realidade. incerta, inquietante, e s vezes ameaadora, para
os burgueses individualmente considerados.
Mesmo quando desenvolve tcnicas cada vez mais
aperfeioadas para controlar o funcionamento de suas empresas
e as operaes de seus negcios, a burguesia carece da
capacidade de continuar a controlar a sociedade como um todo.
Como classe, na atual etapa histrica, ela no consegue elevar
seu ponto de vista a uma perspectiva totalizante.
-
A TOTALIDADE
Para a dialtica marxista, o conhecimento totalizante e
a atividade humana, em geral, um processo de totalizao, que
nunca alcana uma etapa definitiva e acabada. Mas o que quer
dizer exatamente isso? O que significa totalizante?
E o que significa totalizao? Vamos trocar a coisa em
midos.
Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar
parte de um todo. Em cada ao empreendida, o ser humano se
defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso,
para encaminhar uma soluo para os problemas, o ser humano
precisa ter uma certa viso de conjunto deles: a partir da viso
do conjunto que a gente pode avaliar a dimenso de cada
elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando
escreveu: A verdade o todo. Se no enxergarmos o todo,
podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada
(transformando-a em mentira), prejudicando a nossa
compreenso de uma verdade mais geral.
Exemplo disso: algum observa que o capitalista X um
homem generoso, progressista, sinceramente preocupado com
seus operrios. Essa observao pode ser correta. No entanto,
necessrio entend-la dentro de seus limites, para no perdermos
-
de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para pretender
invalidar outra observao mais abrangente: a de que o sistema
capitalista, por sua prpria essncia, impele os capitalistas em
geral, quaisquer que sejam as qualidades humanas deles, a
extrarem mais-valia do trabalho de seus operrios.
A viso de conjunto ressalve-se sempre
provisria e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele
se refere. A realidade sempre mais rica do que o conhecimento
que a gente tem dela. H sempre algo que escapa s nossas
snteses; isso, porm, no nos dispensa do esforo de elaborar
snteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A
sntese a viso de conjunto que permite ao homem descobrir a
estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa
situao dada. E essa estrutura significativa que a viso de
conjunto proporciona que chamada de totalidade.
A totalidade mais do que a soma das partes que a
constituem. No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem
entrosadas produzem mais do que a soma das produes
individuais de cada uma delas, isoladamente considerada. Na
maneira de se articularem e de constiturem uma totalidade, os
elementos individuais assumem caractersticas que no teriam,
caso permanecessem fora do conjunto.
-
H totalidades mais abrangentes e totalidades menos
abrangentes: as menos abrangentes, claro, fazem parte das
outras. A maior ou menor abrangncia de uma totalidade
depende do nvel de generalizao do pensamento e dos
objetivos concretos dos homens em cada situao dada. Se eu
estou empenhado em analisar as questes polticas que esto
sendo vividas pelo meu pas, o nvel de totalizao que me
necessrio o da viso de conjunto da sociedade brasileira, da
sua economia, da sua histria, das suas contradies atuais. Se,
porm, eu quiser aprofundar a minha anlise e quiser entender a
situao do Brasil no quadro mundial, vou precisar de um nvel
de totalizao mais abrangente: vou precisar de uma viso de
conjunto do capitalismo, da sua gnese, da sua evoluo, dos
seus impasses no mundo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha
anlise a um plano filosfico, precisarei ter, ento, uma viso de
conjunto da histria da humanidade, quer dizer, tia dinmica
realidade humana como um todo (nvel mximo de abrangncia
da totalizao dialtica).
evidente que, na prtica, a vida coloca diante de mim
problemas que eu tenho de resolver, em geral, sem necessidade
de recorrer a cada passo a consideraes de filosofia da histria
(isto , ao nvel de totalizao mais abrangente). De certo modo,
contudo, mesmo no dia-a-dia, ns estamos sempre,
-
implicitamente, totalizando; estamos sempre trabalhando com
totalidades de maior ou menor abrangncia.
Para trabalhar dialeticamente com o conceito de
totalidade, muito importante sabermos qual o nvel de
totalizao exigido pelo conjunto de problemas com que
estamos nos defrontando; e muito importante, tambm, nunca
esquecermos que a totalidade apenas um momento de um
processo de totalizao (que, conforme j advertimos, nunca
alcana uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialtica
maneira de pensar elaborada em funo da necessidade de
reconhecermos a constante emergncia do novo na realidade
humana negar-se-ia a si mesma, caso cristalizasse ou
coagulasse suas snteses, recusando-se a rev-las, mesmo em
face de situaes modificadas.
A modificao do todo s se realiza, de fato, aps um
acmulo de mudanas nas partes que o compem. Processam-se
alteraes setoriais, quantitativas, at que se alcana um
ponto crtico que assinala a transformao qualitativa da
totalidade. a lei dialtica da transformao da quantidade em
qualidade. Voltaremos a falar dessa lei. Por enquanto, o que
devemos sublinhar que a modificao do todo mais
complicada que a modificao de cada um dos elementos que o
integram. E devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade tem
-
sua maneira diferente de mudar; as condies da mudana
estariam dependendo do carter da totalidade e do processo
especfico do qual ela um momento. Vejamos um exemplo.
Observemos a sociedade brasileira. Podemos analis-la em trs
nveis distintos. Num primeiro nvel, podemos estudar seu
regime jurdico-poltico, suas leis, suas instituies, seu sistema
administrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nvel,
podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a histria
da sociedade brasileira, a relao existente entre sua vida
poltica, seus problemas sociais e sua economia; podemos
encar-la como formao scio-econmica. E, finalmente, num
terceiro nvel, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa
ateno no modo de produo que se acha na base da formao
scio-econmica existente. Na prtica, no possvel separar
inteiramente as questes que se apresentam num desses nveis
das questes que se manifestam nos outros dois; afinal,
concretamente, elas so elementos de uma mesma realidade
global, que a sociedade brasileira. No entanto, focalizada no
plano de cada uma das diversas totalizaes mencionadas, essa
realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a
compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais
realista nossa atividade tendente a transform-la.
-
Em 1964, quando foi deposto o Presidente Joo Goulart,
e em 1968, quando foi editado o AI-5, o Brasil sofreu uma
importante modificao (em dois episdios): mudou o seu
regime jurdico-poltico. Era necessrio reconhecer a mudana
qualitativa dessa totalidade, para extrair todas as conseqncias
que se impunham, no plano estratgico (e no ficar se iludindo
com a idia de que tinha ocorrido uma mera quartelada cujos
efeitos seriam passageiros). Ao mesmo tempo, porm, era
preciso observar que, como formao scio-econmica, o Brasil
no sofrera nenhuma alterao significativa em 1964.ou em
1968. A formao scio-econmica, como totalidade, no muda
no mesmo ritmo que o regime jurdico-poltico.
Ao longo destas ltimas dcadas, num ritmo bem mais
lento que o do regime jurdico-poltico, a nossa formao scio-
econmica est-se modificando; em certos aspectos, com o
crescimento econmico, com o avano da industrializao, com
a modernizao conservadora (promovida de cima para
baixo), a nossa formao scio-econmica j mudou bastante
e assumiu, inclusive, caractersticas qualitativamente novas. O
que se passa, entretanto, com o modo de produo capitalista, no
Brasil? Ele apresenta sinais de que est na iminncia de sofrer
alguma alterao qualitativa? Est na iminncia de ser
modificado como totalidade? Em vo, os revolucionrios
-
impacientes, acicatados pela pressa pequeno-burguesa, cansam-
se na busca de indcios de que a grande crise do modo de
produo capitalista no Brasil est prxima; tudo indica que esse
modo de produo continua bastante forte.
Temos, ento, trs totalidades, elaboradas em trs nveis
diversos, exprimindo trs processos diferentes de totalizao e
nos revelando trs aspectos distintos (todos trs
importantssimos) da mesma realidade brasileira.
-
A CONTRADIO E A MEDIAO
A esta altura da nossa exposio, o leitor pode indagar:
como que eu posso ter certeza de que estou trabalhando com a
totalidade correta, de que estou fazendo a totalizao adequada
situao em que me encontro? A nica resposta possvel a esta
pergunta se arrisca a ser decepcionante: no h, no plano
puramente terico, soluo para o problema. A teoria
necessria e nos ajuda muito, mas por si s no fornece os
critrios suficientes para ns estarmos seguros de agir com
acerto. Nenhuma teoria pode ser to boa a ponto de nos evitar
erros. A gente depende, em ltima anlise, da prtica
especialmente da prtica social para verificar o maior ou
menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as
totalizaes).
A teoria nos ajuda, fornecendo importantes indicaes.
Em relao totalidade, por exemplo, a teoria dialtica
recomenda que ns prestemos ateno ao recheio de cada
sntese, quer dizer, s contradies e mediaes concretas que a
sntese encerra.
Na investigao cientfica da realidade, a gente comea
trabalhando com conceitos que so, ainda, snteses muito
abstratas. Marx d o exemplo da populao. A populao um
-
todo, mas o conceito de populao permanece vago se ns no
conhecemos as classes de que a populao se compe. S
podemos conhecer concretamente as classes, entretanto, se
estudarmos os elementos sobre os quais elas se apiam, na
existncia delas, tais corno o trabalho assalariado, o capital, etc.
Tais elementos, por sua vez, supem o comrcio, a diviso do
trabalho, os preos, etc. Se comeo pela populao, portanto,
tenho uma representao catica do conjunto; depois, atravs de
uma determinao mais precisa, por meio de anlises, chego a
conceitos cada vez mais simples. Alcanado tal ponto, fao a
viagem de volta e retorno populao. Dessa vez, contudo, no
terei sob os olhos um amlgama catico e sim uma totalidade
rica em determinaes, em relaes complexas. Esse texto de
Marx de grande interesse para ns. O ponto de partida
observemos no um conceito rudimentar: uma expresso
que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A
anlise, portanto, s pode ser orientada com base em uma
sntese (mesmo precria) anterior. Uma certa compreenso do
todo precede a prpria possibilidade de aprofundar o
conhecimento das partes.
Mas o texto ainda diz mais: por anlise, eu decomponho
e recomponho o conhecimento indicado na expresso que me
serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais
-
complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do
mais simples ao mais complexo (j concreto), a expresso
populao passa a ter um contedo bem determinado. O
concreto, portanto, o resultado de um trabalho. 0 concreto
insiste Marx concreto porque a sntese de vrias
determinaes diferentes, unidade na diversidade. A
concepo de Marx, segundo a qual o conhecimento no um
ato e sim um processo, desenvolveu-se em polmica contra a
concepo irracionalista. Os irracionalistas consideram a
intuio um instrumento privilegiado do conhecimento humano;
para eles, o que sacado intuitivamente j possui valor de
verdade, de modo que no existe nenhum motivo para ns
trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a
impresso genrica obtida no ponto de partida j nos basta. O
irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente
esforo de ir alm da aparncia, em busca da essncia dos
fenmenos.
E as totalidades dos irracionalistas permanecem um
tanto vazias, no tm um recheio definido. A dialtica muito
mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as
totalidades em que a realidade est efetivamente articulada (em
vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a
realidade), o pensamento dialtico obrigado a um paciente
-
trabalho: obrigado a identificar, com esforo, gradualmente, as
contradies concretas e as mediaes especficas que
constituem o tecido de cada totalidade, que do vida a cada
totalidade.
A dialtica observa Carlos Nelson Coutinho
no pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes
abstradas do todo. Ela pensa tanto as contradies entre as
partes (a diferena entre elas: a que faz de uma obra de arte algo
distinto de um panfleto poltico) como a unio entre elas (o que
leva a arte e a poltica a se relacionarem no seio da sociedade
enquanto totalidade). Os irracionalistas, implicitamente,
dispensam-nos desse esforo. Quem achar que j saciou
intuitivamente o todo no precisar examinar cuidadosamente as
partes. Mas tambm no ter uma compreenso clara das
conexes e conflitos internos e ficar com uma totalidade um
tanto nebulosa.
J Hegel criticava a concepo irracionalista que seu ex-
amigo Schelling adotara da totalidade (do absoluto), dizendo
que se tratava de uma noite na qual todas as vacas eram pardas.
Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e
interminvel) descobrimento da realidade se aprofunde quer
dizer: para ns podermos ir alm das aparncias e penetrar na
essncia dos fenmenos precisamos realizar operaes de
-
sntese e de anlise que esclaream no s a dimenso imediata
como tambm e, sobretudo, a dimenso mediata delas.
A experincia nos ensina que em todos os objetos com
os quais lidamos existe uma dimenso imediata (que ns
percebemos imediatamente) e existe uma dimenso mediata
(que a gente vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos
poucos). Vejamos, por exemplo, este livrinho sobre a dialtica
que est nas mos do leitor: uma realidade imediata, palpvel,
legvel; um conjunto de folhas impressas com smbolos grficos.
Mas no s isso. Se o leitor parar um pouco para pensar sobre
ele, verificar que o fato de p livro estar em suas mos passa por
uma srie de mediaes, um fato que est mediatizado por
outros fatos e por diversas aes humanas.
A mediao mais prxima a ser reconstituda a do
deslocamento do livro: como foi que ele veio parar nas mos do
leitor? O leitor comprou-o numa livraria? Recebeu-o de
presente? Est lendo o volume numa biblioteca? H tambm
uma mediao subjetiva: qual foi o motivo que levou o leitor a
se interessar pelo livrinho? Por que este livro e no outro?
Quando e como o leitor passou a ter a impresso ou a convico
de que o assunto do livro era digno de ateno e valia a pena l-
lo? Quais foram as experincias pessoais e os condicionamentos
culturais que o levaram a isso?
-
Somente levando em conta essas (e outras) mediaes
que poderemos avaliar corretamente toda a significao do fato
de o livro estar, agora, neste imediato momento, nas mos do
leitor.
As mediaes, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre
outro elemento insuprimvel da realidade: as contradies. H
muita confuso em torno da palavra contradio. Desde que
Hegel exps pela primeira vez os fundamentos do mtodo
dialtico, uma das principais objees formuladas contra ele
uma objeo at hoje repetida a de que o conceito de
contradio usado pelos dialticos estaria errado.
Durante sculos, a hegemonia do pensamento metafsico
nos acostumou a reconhecermos somente um tipo de
contradio: a contradio lgica. A lgica, como toda cincia,
ocupa-se da realidade apenas em um determinado nvel; para
alcanar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de
uma parte da realidade.
As leis da lgica so certamente vlidas, no campo
delas; e nesse campo de validade a contradio a
manifestao de um defeito no raciocnio. Existem, porm,
dimenses da realidade humana que no se esgotam na
disciplina das leis lgicas. Existem aspectos da realidade
humana que no podem ser compreendidos isoladamente: se
-
queremos comear a entend-los, precisamos observar a
conexo ntima que existe entre eles e aquilo que eles no so.
Henri Lefebvre escreveu, com razo: No podemos dizer ao
mesmo tempo que determinado objeto redondo e quadrado.
Mas devemos dizer que o mais s se define com o menos, que a
dvida s se define pelo emprstimo.
As conexes ntimas que existem entre realidades
diferentes criam unidades contraditrias. Em tais unidades, a
contradio essencial: no um mero defeito do raciocnio.
Num sentido amplo, filosfico, que no se confunde com o
sentido que a lgica confere ao termo, a contradio
reconhecida pela dialtica como princpio bsico do movimento
pelo qual os seres existem. A dialtica no se contrape lgica,
mas vai alm da lgica, desbravando um espao que a lgica
no consegue ocupar.
Para desbravar esse novo espao, a dialtica modifica os
instrumentos conceituais de que dispe: passa a trabalhar,
freqentemente, com determinaes reflexivas e procura
promover uma fluidificao dos conceitos. No se assuste
com essas expresses, leitor; vamos explic-las no prximo
captulo.
-
A FLUIDIFICAO DOS CONCEITOS
Marx pretendia escrever um livro, explicando sua
concepo da dialtica. Chegou a anunciar o projeto, em
dezembro de 1875, numa carta a Joseph Dietzgen. Mas os
trabalhos de preparao e redao de O Capital no lhe
deixaram tempo para isso.
O Capital contm muitos elementos preciosos para ns
estudarmos como Marx entendia e aplicava a dialtica. H,
inclusive, estudos importantes sobre a dialtica no Capital:
podemos lembrar, por exemplo, os estudos dos soviticos
Rudin, Rosental e Ilinkov, do polons Rosdolsky, do tcheco
Zeleny e do sueco Helmut Reichelt.
Por mais importantes que sejam, contudo, esses estudos
so interpretaes polmicas, que no podem substituir a
exposio da dialtica como mtodo, anunciada em 1875 a
Dietzgen e jamais escrita. compreensvel, portanto, que at
hoje existam muitas discusses sobre a dialtica de Marx. Quais
so, precisamente, suas caractersticas essenciais? Quais so,
precisamente, suas relaes com a dialtica de Hegel? Alguns
pontos foram devidamente esclarecidos pelo prprio Marx,
quando ele falou de diferenas fundamentais entre seu mtodo e
o de Hegel, decorrentes do fato de Hegel ser idealista e ele ser
-
materialista. Hegel descrevia o processo global da realidade
da seguinte maneira: a Idia Absoluta assumiu a imperfeio (a
instabilidade) da matria, desdobrou-se em uma srie de
movimentos que a explicitavam e realizavam, para, afinal, com
a trajetria ascensional do ser humano, iniciar enriquecida
seu retorno a si mesma. Essa descrio que claramente
idealista supe o conhecimento do ponto de partida e do
ponto de chegada do movimento da realidade. Quer dizer: a
descrio do processo da realidade como uma totalidade
fechada, redonda. Marx, como materialista, no podia aceitar
essa descrio: para ele, o processo da realidade s podia ser
encarado como uma totalidade aberta, quer dizer, atravs de
esquemas que no pretendessem reduzir a infinita riqueza da
realidade ao conhecimento.
Para dar conta do movimento infinitamente rico pelo
qual a realidade est sempre assumindo formas novas, os
conceitos com os quais o nosso conhecimento trabalha precisam
aprender a ser fluidos. Hegel, com a dialtica dele,lanou as
bases para a fluidificao dos conceitos; em Hegel, no
entanto, a fluidificao ficava limitada pelo carter
excessivamente abstrato do quadro global (totalidade) da
histria humana. Isso se v, por exemplo, no uso do conceito de
natureza humana: em Hegel, o ser humano que promovia o
-
movimento da histria era uma abstrata autoconscincia,
ligada tal da Idia Absoluta, praticamente desvinculada dos
problemas que afetam o corpo dos homens, de modo que a
natureza humana, tal como Hegel a entendia, era idealizada,
tinha muito pouco de natureza e por isso lhe faltava uma
dimenso histrica mais concreta. Marx, por sua vez, conseguiu
fluidificar muito mais radicalmente o conceito de natureza
humana. Para Marx, o homem tinha um corpo, uma dimenso
concretamente natural, e por isso a natureza humana se
modificava materialmente, na sua atividade fsica sobre o
mundo: ao atuar sobre a natureza exterior, o homem modifica,
ao mesmo tempo, sua prpria natureza. O movimento
autotransformador da natureza humana, para Marx, no um
movimento espiritual (como em Hegel) e sim um movimento
material, que abrange a modificao no s das formas de
trabalho e organizao prtica de vida, mas tambm dos
prprios rgos dos sentidos: o olho humano passou ver coisas
que no enxergava antes, o ouvido humano foi educado pela
msica para ouvir coisas que no escutava antes, etc. A
formao dos cinco sentidos escreveu Marx trabalho de
toda a histria passada. A natureza humana, por conseguinte,
conforme o conceito que Marx tem dela, s existe na histria,
num processo global de transformao, que abarca todos os seus
-
aspectos. E a histria, em seu conjunto, no outra coisa seno
uma transformao contnua da natureza humana (conforme se
l na Misria da Filosofia).
A essa altura da nossa explicao do conceito marxista
de natureza humana, entretanto, uma pergunta se impe: se a
natureza humana se transforma globalmente e de modo contnuo
ao longo da histria, por que continuar a empregar o conceito de
natureza humana? Como ele poderia corresponder a algo de
constante, capaz de justific-lo? Como poderia haver algo em
comum entre ns, homens do Sculo XX, e, por exemplo, os
gregos do Sculo V antes de Cristo?
Marx no reconhece a existncia de nenhum aspecto da
realidade humana situado acima da histria ou fora dela; mas
admite que determinados aspectos da realidade humana
perduram na histria.
Exatamente porque o movimento da histria marcado
por superaes dialticas, em todas as grandes mudanas h
uma negao, mas ao mesmo tempo uma preservao (e uma
elevao a nvel superior) daquilo que tinha sido estabelecido
antes. Mudana e permanncia so categorias reflexivas, isto ,
uma no pode ser pensada sem a outra. Assim como no
podemos ter uma viso correta de nenhum aspecto estvel da
realidade humana se no soubermos situ-lo dentro do processo
-
geral de transformao a que ele pertence (dentro da totalidade
dinmica de que ele faz parte), tambm no podemos avaliar
nenhuma mudana concreta se no a reconhecermos como
mudana de um ser (quer dizer, de uma realidade articulada e
provida de certa capacidade de durar).
Marx no era Herclito, o Obscuro. Ele sabia que,
quando um homem se banha duas vezes num determinado rio,
inegvel que a segunda vez o homem ter mudado, o rio
tambm ter sofrido alteraes, mas apesar das modificaes o
homem ser o mesmo homem (e no um outro indivduo
qualquer) e o rio ser o mesmo rio (e no um outro rio
qualquer). Por isso, Marx empregou o conceito de natureza
humana.
Para Marx, a fluidificao dialtica dos conceitos no
tinha nada a ver com o relativismo e no podia, em nenhum
momento, ser confundida com ele. Num escrito de 1857, Marx
lembrou o caso da arte grega do Sculo V a.C. que refletia as
condies sociais de Atenas, naquele momento, e no entanto
continuava a ter algo a dizer a seres humanos que viviam em
outros pases, em outros tempos, com outro nvel de
desenvolvimento das foras produtivas, outras relaes de
produo, vinte e quatro sculos mais tarde. O exemplo da
epopia e da tragdia dos antigos gregos mostrava que a
-
dimenso histrica de certas criaes humanas no as impede de
perdurar e nem as reduz a uma eficcia momentnea, limitada.
A mesma vitalidade demonstrada pela arte grega, alis, pode ser
encontrada em certas idias e observaes de Aristteles, em
alguns dos conceitos criados por ele: as criaes mais
significativas do esprito humano e da atividade prtica do
homem se incorporam ao processo da histria da humanidade e
so capazes, por assim dizer, de continuar vivas (mudam as
condies histricas, muda a nossa maneira de avali-las, mas
so elas e no outras criaes do passado que permanecem
presentes no nosso horizonte).
Em certo sentido, por conseguinte, podemos dizer que
nessas criaes excepcionalmente bem-sucedidas dos seres
humanos h alguma coisa de verdade absoluta; por isso, o
desenvolvimento posterior do conhecimento humano no deixa
que elas caiam no esquecimento (porque precisa delas).
Nenhuma dessas criaes pode ser adequadamente
compreendida e assimilada pelas pocas que vieram depois
delas sem um exame das condies especficas em que cada
obra foi elaborada; cada uma delas possui uma ligao essencial
com o momento da sua gnese; mas, na maneira de expressarem
o momento histrico em que nasceram, elas conseguem
acrescentar algo ao processo histrico como um todo.
-
A fluidificao dos conceitos destinados a tratar dos
dois lados dessa realidade s pode ocorrer atravs da
determinao reflexiva: os conceitos funcionam como pares
inseparveis.
Por isso a dialtica no pode admitir contraposies
metafsicas, tais como mudana/permanncia, ou
absoluto/relativo, ou finito/infinito, ou singular/universal, etc.
Para a dialtica, tais conceitos so como cara e coroa: duas
faces da mesma moeda.
-
AS LEIS DA DIALTICA
Nos ltimos anos de vida de Marx, enquanto ele se
esforava para tentar acabar de escrever O Capital, seu amigo
Engels redigiu diversas anotaes sobre questes que nos
interessam, relativas dialtica. Marx apoiou Engels nas
observaes que este desenvolvia. (e que continuou a
desenvolver aps a morte do autor do Capital).
A grande preocupao de Engels era defender o carter
materialista da dialtica, tal como Marx e ele a concebiam. Era
preciso evitar que a dialtica da histria humana fosse analisada
como se no tivesse absolutamente nada a ver com a natureza,
como se o homem no tivesse uma dimenso irredutivelmente
natural e no tivesse comeado sua trajetria na natureza. Uma
certa dialtica na natureza (ou pelo menos uma pr-dialtica)
era, para Marx e para Engels, uma condio prvia para que
pudesse existir a dialtica humana.
Engels concentrou, ento, sua ateno no exame dos
princpios daquilo que ele chamou de dialtica da natureza e
chegou concluso de que as leis gerais da dialtica (comuns
tanto histria humana como natureza) podiam ser reduzidas,
no essencial, a trs:
-
1) lei da passagem da quantidade qual idade (e vive-
versa);
2) lei da interpenetrao dos contrrios;
3) lei da negao da negao.
A primeira lei se refere ao fato de que, ao mudarem, as
coisas no mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de
transformao por meio do qual elas existem passa por perodos
lentos (nos quais se sucedem pequenas alteraes quantitativas)
e por perodos de acelerao (que precipitam alteraes
qualitativas, isto , saltos, modificaes radicais), Engels d o
exemplo da gua que vai esquentando, vai esquentando, at
alcanar cem graus centgrados e ferver, quando se precipita a
sua passagem do estado lquido ao estado gasoso.
A segunda lei aquela que nos lembra que tudo tem a
ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaam e,
em diferentes nveis, dependem uns dos outros, de modo que as
coisas no podem ser compreendidas isoladamente, uma por
uma, sem levarmos em conta a conexo que cada uma delas
mantm com coisas diferentes. Conforme as conexes (quer
dizer, conforme o contexto em que ela esteja situada), prevalece,
na coisa, um lado ou o outro da sua realidade (que
intrinsecamente contraditria). Os dois lados se opem e, no
-
entanto, constituem uma unidade (e por isso esta lei j foi
tambm chamada de unidade e luta dos contrrios).
A terceira lei d conta do fato de que o movimento geral
da realidade faz sentido, quer dizer, no absurdo, no se esgota
em contradies irracionais, ininteligveis, nem se perde na
eterna repetio do conflito entre teses e antteses, entre
afirmaes e negaes. A afirmao engendra necessariamente a
sua negao, porm a negao no prevalece como tal: tanto a
afirmao como a negao so superadas e o que acaba por
prevalecer uma sntese, a negao da negao.
Essas leis j se achavam em Hegel; Engels procurou
resgat-las do idealismo hegeliano e dar-lhes um sentido
claramente materialista. Expondo, simplificadamente, algumas
das noes bsicas da dialtica, Engels teve um imenso xito e
exerceu uma influncia notvel no pensamento de vrias
geraes de operrios conscientes e militantes socialistas. A
polmica de Engels contra Dhring se tornou um marco na
histria das idias do movimento operrio.
A experincia que foi sendo adquirida pelo movimento
socialista ao longo do Sculo XX mostrou que as formulaes
de Engels embora brilhantes e didticas possuem certas
limitaes.
-
As leis da dialtica no se deixam reduzir a trs e essa
reduo, tal como Engels a realizou, tem algo de arbitrrio. Os
princpios da dialtica se prestam mal a qualquer codificao.
Um cdigo, por definio, articula as leis, fixa as leis em artigos
(artigo primeiro... artigo segundo... etc.). Como poderiam,
porm, ser fixadas em artigos as leis de uma filosofia da
mudana, de uma concepo do mundo segundo a qual existe
sempre alguma coisa de novo sob o sol?
Outra limitao: os exemplos usados por Engels para
esclarecer o funcionamento das leis da dialtica eram todos
extrados das cincias da natureza.
Por qu? Porque nas cincias exatas dizia ele as
quantidades podem ser medidas e a demonstrao pode se tornar
mais convincente. Esse procedimento, entretanto, acabou sendo
aproveitado por tendncias polticas e ideolgicas que, no
interior do movimento socialista, sabotaram o aprofundamento
da dialtica (por exemplo, as tendncias das quais Stlin foi o
representante mais poderoso). Falaremos, mais adiante, dos
problemas que vieram a se manifestar, ao longo do Sculo XX,
na histria da dialtica. Por ora, vamos nos limitar, aqui, a
lembrar que a dialtica parte do reconhecimento do fato de que
o processo de auto-criao do homem introduziu na realidade
uma dimenso nova, cujos problemas exigem um enfoque
-
tambm novo. O terreno em que a dialtica pode demonstrar
decisivamente aquilo de que capaz no o terreno da anlise
dos fenmenos quantificveis da natureza e sim o da histria
humana, p da transformao da sociedade.
Evidentemente, o que acaba de ser dito a respeito das
limitaes das formulaes de Engels sobre as leis da dialtica
no significa que as referidas leis sejam falsas e devam ser
esquecidas; significa apenas que elas devem ser utilizadas com
as devidas precaues. Engels era um pensador dialtico de
grandes mritos. Em sua obra existem elementos que podemos
invocar em favor da advertncia que fizemos, quanto profunda
diferena que existe entre a dialtica na natureza e a dialtica na
histria humana.
No Anti-Dhring, por exemplo, Engels d um caso de
passagem da quantidade qualidade ocorrido na histria (um
caso observado por Napoleo Bonaparte). Napoleo analisou as
lutas entre a cavalaria francesa, bem organizada e disciplinada, e
a cavalaria dos mamelucos (que eram hbeis cavaleiros,
dispunham de excelentes cavalos, mas eram indisciplinados). E
tinha dito: Dois mamelucos derrotavam seguramente trs
franceses; cem mamelucos enfrentavam, em igualdade de
condies, cem franceses; 300 franceses venciam 300
-
mamelucos; e mil franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500
mamelucos.
Esse exemplo de enorme utilidade para ns. Se o
compararmos ao exemplo da gua que ferve aos 100 graus e
passa do estado lquido ao gasoso, perceberemos que ambos so
casos de passagem da quantidade qualidade, porm so
fenmenos de natureza muito diferente. No caso da gua, temos
um fenmeno fsico, que no depende da vontade humana. No
caso do confronto das duas cavalarias, temos um processo que
depende da organizao, isto , depende de fatores subjetivos,
de decises e escolhas. Um processo que comporta alternativas
e depende de iniciativas.
-
O SUJEITO E A HISTRIA
Depois da morte de Marx (em 1883) e de Engels (em
1895), o desenvolvimento do pensamento dialtico no se
interrompeu e prosseguiu seu acidentado caminho. No final do
sculo passado, o socialista alemo Eduard Bernstein (1850 -
1932) passou a criticar os escritos de Marx, sustentando que o
capitalismo estava mais forte do que nunca, que as previses do
Manifesto Comunista (de 1848) tinham falhado, de modo que
era preciso submeter a uma rigorosa reviso os princpios que
Marx tinha defendido. E a dialtica, segundo o revisionista
Bernstein, era o elemento prfido na doutrina marxista, o
obstculo que impede qualquer apreciao lgica das coisas.
Bernstein preconizou, ento, um abandono da dialtica, da
herana hegeliana do marxismo, e um retorno a Kant.
Na ocasio, as posies de Bernstein foram criticadas e
recusadas pela direo do principal partido socialista do comeo
do nosso sculo: o Partido Social-Democrtico Alemo. As
posies que venceram no debate foram as de Karl Kautsky
(1854-1938). Mas Kautsky tambm no era um autntico
dialtico: ele confundia a dialtica com o evolucionismo e s
vezes se mostrava muito mais um discpulo de Darwin do que
-
um discpulo de Marx (e tendia a considerar a histria da
humanidade uma mera parte da histria global da natureza).
A primeira gerao de tericos socialistas que veio depois
da gerao de Marx e Engels no conseguiu assimilar a
dialtica. O prprio genro de Marx, o cubano Paul Lafargue
(1842-1911), publicou um livro intitulado O Determinismo
Econmico de Karl Marx, que contribuiu para o fortalecimento,
na conscincia dos socialistas, de uma verso antidialtica da
concepo materialista da histria.
Nas duas primeiras dcadas do Sculo XX, difundiu-se
entre os socialistas a idia falsa de que, segundo Marx, os
fatores econmicos provocavam, de maneira mais ou menos
automtica, a evoluo da sociedade (sem que os homens
sujeitos do efetivo movimento da histria tivessem um espao
significativo para tomarem suas iniciativas). Essa concepo
facilitava a infiltrao de tendncias polticas oportunistas no
movimento socialista: quem no enxerga nada que dependa da
sua ao tende facilmente a instalar-se na passividade (tende a
contemplar a histria, em vez de faz-la). Houve
revolucionrios que reagiram contra a deformao da concepo
marxista da histria.
Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Lnin (1870-1924) se
destacaram na revalorizao da dialtica. Invocando uma frase
-
de Engels no Anti-Dhring, Rosa sustentou que a histria
mundial se achava em face de um dilema: ou o socialismo
vencia ou o imperialismo arrastaria a humanidade (corno na
Roma antiga) decadncia, destruio, barbrie. possvel
que os termos do dilema tenham sido exagerados por Rosa, por
influncia da situao, do momento em que ela escrevia (Rosa
estava presa, em 1915, e a primeira guerra mundial tinha
comeado). De qualquer maneira, o dilema ajudou os militantes
socialistas a compreenderem que a concepo marxista
(dialtica) da histria no assegurava nenhum resultado
preestabelecido.
Lnin, por seu lado, desde 1902, no livro Que Fazer?,
empenhou-se apaixonadamente, no plano da teoria poltica, em
abrir espaos para a iniciativa do sujeito revolucionrio (e
especialmente para a iniciativa da vanguarda do proletariado).
Em seus estudos da obra de Hegel, em 1914, Lnin atribuiu
imensa importncia herana hegeliana do marxismo e advertiu
que, sem assimilar plenamente os ensinamentos contidos na
Lgica de Hegel, nenhum marxista poderia entender
inteiramente O Capital de Marx.
Os estudos da obra de Hegel e as reflexes sobre o
mtodo dialtico foram de grande valia para Lnin em sua
anlise do imperialismo e na elaborao. estratgica que o levou
-
a liderar a tomada do poder na Rssia, em 1917, pelos
bolchevistas. O novo poder sovitico despertou entusiasmo em
crculos revolucionrios e progressistas do mundo inteiro: era
uma demonstrao prtica das possibilidades concretas que
estavam ao alcance do sujeito humano disposto a transformar o
mundo.
Importantes marxistas dos anos vinte e trinta encontraram
nas idias de Lnin e sobretudo em suas realizaes prticas
elementos que os impulsionaram em seus esforos para levar
adiante o desenvolvimento da dialtica. Esboou-se um
vigoroso movimento terico que pretendia superar
definitivamente as deformaes antidialticas a que tinham sido
submetidas certas concepes de Marx no comeo do nosso
sculo. As tentativas de confundir o marxismo com o
materialismo vulgar ou com o determinismo econmico
foram inteligentemente criticadas. .
O hngaro Georg Lukcs (1885-1971) advertiu: No a
predominncia dos motivos econmicos na explicao da
histria que distingue decisivamente o marxismo da cincia
burguesa: o ponto de vista da totalidade. Somente o ponto de
vista da totalidade, segundo Lukcs, permite dialtica
enxergar, por trs da aparncia das coisas, os processos e
inter-relaes de que se compe a realidade. Somente o ponto de
-
vista da totalidade permite que se veja no real um jorrar
ininterrupto de novidade qualitativa.
O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o
marxismo como um historicismo absoluto, Para ele, o
fatalismo determinista pode se tornar uma fora de resistncia
moral, pode ajudar o revolucionrio a perseverar na luta, pode
ajudar a organizao revolucionria a manter a sua coeso
interna, nos perodos marcados por uma sucesso de graves
derrotas. Nesse sentido, Gramsci se dispe at a fazer-lhe um
elogio fnebre, reconhecendo a funo histrica do
determinismo, porm enterrando-o com todas as honras, pois
se o determinismo persistir dificultar sempre o
desenvolvimento do esprito crtico e da criatividade entre os
revolucionrios.
O materialismo histrico de Marx e Engels constatativo
e no normativo: ele reconhece que, nas condies de
insuficiente desenvolvimento das foras produtivas humanas e
de diviso da sociedade em classes, a economia tem imposto,
em ltima anlise, opes estreitas aos homens que fazem a
histria. Isso no significa que a economia seja o sujeito da
histria, que a economia vai dominar eternamente os
movimentos do sujeito humano. Ao contrrio: a dialtica aponta
na direo de uma libertao mais efetiva do ser humano em
-
relao ao cerceamento de condies econmicas ainda
desumanas.
O alemo Walter Benjamin (1892 -1940), alis, lembrou
que a histria, tal como ela veio se desenrolando at o presente,
est impregnada de violncia, de opresso, de barbrie; e
exatamente por isso que a tarefa do terico do materialismo
histrico no pode ser pensar uma espcie de prolongamento
natural dessa histria, no pode ser promover a continuidade
daquilo que essa histria produziu, limitando-se a transmitir
seus produtos de mo em mo. Um esprito dialtico escreveu
Benjamin, atravs de uma sugestiva imagem insiste em
escovar a histria a contrapelo.
Infelizmente, os esforos de Lukcs, Gramsci, Walter
Benjamin e vrios outros intelectuais marxistas dos anos vinte e
trinta foram contrariados por uma tendncia antidialtica que
avanou muito no interior do movimento comunista aps a
morte de Lnin, em 1924. O principal representante dessa
tendncia antidialtica foi Josef Stlin (1879-1953), que
assumiu a direo do PC da URSS e do Estado sovitico e
exerceu uma enorme influncia sobre o movimento comunista
mundial.
Stlin era um poltico de grande talento, mas desprezava a
teoria, no a levava a srio: instrumentalizava O trabalho
-
terico, com esprito pragmtico, cnico. Em Marx, Engels e
Lnin, a prtica exigia um reexame da teoria e a teoria servia
para criticar a prtica em profundidade, servia para questionar e
corrigir a prtica. Em Stlin, isso mudou: a teoria perdeu sua
capacidade de criticar a prtica e o trabalho terico ficou
reduzido a uma justificao permanente de todas as medidas
prticas decididas pela direo do partido comunista.
Stlin considerava Hegel uma expresso sociolgica do
atraso da Alemanha na poca da Revoluo Francesa e de
Napoleo. Ao contrrio de Lnin, que estudava Hegel, Stlin
tinha uma antipatia imensa pelo patrimnio da herana
hegeliana. Em seu raciocnio, Stlin ignorava freqentemente as
mediaes, cuja importncia tinha sido sublinhada tanto por
Hegel como por Marx. Stlin pensava da seguinte maneira:
Znoviev, Kamenev, Trtsky, Bukhrin e outros tm opinies
erradas a respeito, de questes importantes; expondo suas
opinies, defendendo-as, eles produzem efeitos daninhos,
objetivamente to nocivos como os efeitos que seriam
provocados pela ao de sabotadores, espies, agentes contra-
revolucionrios e traidores; portanto, objetivamente, eles so
sabotadores, espies, traidores, agentes inimigos e precisam
ser objetivamente tratados como tais. Nas coisas que Stlin dizia
ou escrevia apareciam, volta e meia, o advrbio objetivamente
-
e o adjetivo objetivo (ou objetiva), precisamente porque ele
no encarava dialeticamente a questo do papel da
subjetividade: na histria e tendia a identificar (de modo
positivista) subjetivo com arbitrrio e. objetivo com
cientfico. Para se ter uma idia de como esse modo de pensar
e de agir era diferente do de Lnin, basta lembrarmos que
Znoviev, Kamenev, Trtsky e Bukhrin divergiram de Lnin
em questes importantssimas e nem por isso Lnin os liquidou.
Tal como Engels, Stlin tinha talento para as
simplificaes didticas; faltava-lhe, entretanto, a slida base
cultural e terica de Engels. Stlin retomou de Engels o
esquema das trs leis da dialtica, mas corrigiu-o. Em seu
trabalho Sobre Q Materialismo Dialtico e o Materialismo
Histrico (1938), Stlin sustentou que o mtodo dialtico no
possua propriamente trs leis gerais e sim quatro traos
fundamentais, que eram: 1) a conexo universal e
interdependncia dos fenmenos; 2) o movimento, a
transformao e o desenvolvimento; 3) a passagem de um
estado qualitativo a outro; e 4) a luta dos contrrios como fonte
interna do desenvolvimento. Para Stlin, a expresso negao
da negao, usada por Engels, era muito hegeliana, muito
abstrata: no correspondia claramente a um processo que se
realizava sempre do simples ao complexo, do inferior ao
-
superior. No bastava que a sntese (a negao da negao)
fosse qualitativamente distinta tanto da afirmao (tese) como
da negao (anttese): ela devia assumir um contedo
nitidamente positivo, para poder ser aproveitada
propagandisticamente, na luta poltica. Nos esquemas de Stlin
era assim mesmo: as categorias da reflexo, do estudo e da
investigao cientfica deveriam estar sempre preparadas para
ser postas a servio da propaganda.
A deformao antidialtica do marxismo, caracterstica
dos tempos de Stlin, influiu poderosamente na educao
ideolgica de pelo menos duas geraes de comunistas, no
mundo inteiro.
Essa influncia est longe de ter sido suficientemente
analisada em suas origens e suprimida em suas conseqncias.
Nikita Khruschov, quando era secretrio-geral do PC da URSS,
denunciou, em 1956, o sistema do culto personalidade e as
graves violaes da legalidade socialista, mas no contribuiu
em nada para a elaborao de uma interpretao marxista das
causas e da exata natureza dos fenmenos que abordava. Os
mtodos de Stlin foram condenados em termos ticos e
passaram a ser combatidos em termos polticos pragmticos.
Como, porm, eles se baseiam numa crassa subestimao da
teoria, nunca podero ser efetivamente superados enquanto no
-
for plenamente recuperada a seriedade do trabalho terico; e
essa seriedade s estar comprovada no dia em que as
deformaes impostas dialtica marxista no perodo de Stlin
tiverem sido submetidas a uma anlise cientfica e filosfica, a
uma investigao historiogrfica profunda e convincente.
-
O INDIVDUO E A SOCIEDADE
As deformaes que se desenvolveram na poca de
Stlin no constituem a nica fonte de modos de pensar
antidialticos que se difundem entre os marxistas. Num mundo
to dividido como este em que ns vivemos, a mera adeso aos
princpios tericos do marxismo nunca pode, evidentemente,
funcionar como vacina, imunizando as pessoas contra os males
decorrentes de concepes estreitas, unilaterais,
preconceituosas. O gnero humano est excessivamente
fragmentado, muito difcil compreend-lo como totalidade
concreta (e muito difcil tom-lo como base para uma
abordagem verdadeiramente universal de certos problemas
humanos gerais): os marxistas da mesma forma que os
representantes de outras correntes de pensamento acabam,
assim, muitas vezes, misturando interesses nacionais ou
convenincias particulares com a universalidade do autntico
ponto de vista marxista. O ingresso do movimento comunista
mundial em uma nova fase, na qual se tornou impossvel a
manuteno da unidade monoltica dos tempos da Internacional.
Comunista (1919-1943), tornou igualmente muito difcil para os
marxistas apoiarem-se numa compreenso do movimento
-
comunista como totalidade concreta para resolverem todos os
seus problemas tericos.
Mesmo os indivduos mais empenhados na luta pela
.transformao da sociedade se confundem, com freqncia,
quando falta coeso unidade deles. A falta de coeso diminui,
para eles, as possibilidades de fazerem histria de modo
consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se