O que é dialética - Leandro Konder

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KONDER, Leandro. O que é dialética. 28. ed. 12. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2011. 87 p.

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Leandro Konder

O QUE ÉDIALÉTICA

editora brasiliense

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Copyright © by Lea ndro Konder, 1981Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,

reproduzida por m eios mecânicos ou outros quaisquersem auto rização prévia do editor.

Primeira edição, 198128- edição, 1998

12a reimpressão, 2011

Diretora editorial:  Da nd a Prado  Cleide Almeida

Coordenação editorial: A li ce Ko ba va sh i 

Coordenação de produção:  Ro se li Sa id  Projeto gráfico e editoração:  Di git ex to Se rv iços Gr áfi co s Capa: 123 (antigo 27) Artystas Gráficos  

Revisão:  D ieg o Ro dr ig ues e Ny dia L íc ia Gh ila rdi

Dados Internacionais de Cata logação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Konder, LeandroO que é dialética / Leandro Kon der. —

São Paulo : Brasiliense, 2008. —(ColeçãoPrimeiros Passos : 23)

6a reimpr. da 28. ed. de 1981.ISBN 978-85-11 -01023-7

1. Dialética 2. M aterialismo dialético

I. Título. 11. Série.08-08779 CDD-146.32

índices para catálogo sistemático:1. Dialética materialista : Filosofia 146.32

editora e livraria brasilienseRua Mourato Coelho , 111 - Pinheiros

CEP 05417-010 - São Paulo - SPwww.editorabrasiliense.com.br

S u m á r i o

I - O r i g e n s   d a D i a l é t i c a .............................................................7

I I - O TR A B A L H O .................................................................................... 19

III  - A A L IE N A Ç Ã O .....................................................................................29IV  - A T O T A L ID A D E .....................................................................................35V - A C O N TR A D IÇ Ã O E A M E D I A Ç Ã O .....................................41

VI - A “ f l u i d i f i c a ç ã o ” d o s c o n c e i t o s ...........................49VII  - A s l e i s d a d i a l é t i c a ......................................................... 55V I I I - O S U J EI TO E A H I S T Ó R IA ...................................................61

IX.- O i n d i v í d u o   e   a   s o c i e d a d e ............................................7 2

X - S e m e n t e  d e  d r a g õ e s .............................................................81

S o b r e  o  a u t o r ....................................................................................8 7

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Para Cris, Marcela e Caito

“A dialética, como lógica viva da ação, não pode aparecer a uma razão contemplativa. (...) No curso da ação, o indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto  ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem."

Sartre, Crítica da razão da dialética

O r i g e n s  d a  d ia l é t i c a

Dialética era, na Grécia antiga, a arte do diálogo.Aos poucos, p assou a ser a art e de, no diálogo, dem onstrar uma tes e por meio de uma argumentação capaz dedefinir e distinguir claram ente os con ceitos envolvidosna discussão.

Aristóteles consideravaZênon de Eleia (aprox. 490--430 a.C.) o fundador da dialética. Outros consideramser Sócrates o primeiro (469-399 a.C.). Numa discussãosobre a função da filosofia (que estava sendo caracteriza da como uma atividade inútil), Sócrates desafiou os generais Lachés e Nícias a definirem o que era a bravura eo político Caliclés a definir o que era a política e a justiça,para demonstrar a eles que só a filosofia - por meio dadialética - podia lhes proporcionar os instrumen tos indispensáveis para entenderem a essência daquilo que faziame das atividades profissionais a que se dedicavam.

Na acepção moderna, entretanto, dialética significa ou tra coisa: é o modo de pens armo s as contradições

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da realidade, o modo de compreendermos a realidadecomo essencialmente contraditória e em permanentetransformação.

No sentido moderno da palavra, o pensador dialético mais radical da Grécia antiga foi, sem dúvida, H e-ráclito de Efeso (aprox. 540-480 a.C.). N os fragmentosdeixados por Heráclito, pode-se ler que tud o existe emcon stan te m udança, qu e o conflito é o pai e o rei de todas as coisas. Lê-se tamb ém que vida ou mo rte, sono ou

vigília, juventude ou velhice são realidades que se transformam umas nas outras. O fragmento ne 91, em especial, tornou-se famoso: nele se lê que um homem nãotom a banho duas vezes no m esmo rio. Por quê? Porqueda segunda vez não será o mesmo homem e nem estaráse banhando no mesmo rio (ambos terão mud ado).

Os gregos acharam essa concepção de Heráclitomuito abstrata, muito unilateral. Chamaram o filósofo de Heráclito, o Obscuro. Havia certa perplexidadeem relação ao problema do movimento, da mudança.O que é que explicava que os seres se transformassem,que eles deixassem de ser aquilo que eram e passassema ser algo que antes não eram? Heráclito respondia a

essa pergunta de maneira muito perturbadora, negando a existência de qualque r estabilidade no ser. O s gregos preferiram a resposta que era dada por um outropensador da mesm a época: Parmênides.

Parmênides ensinava que a essência profunda doser era imutável e dizia que o movimento (a mudança)era um fenômeno de superfície. Essa linha de pensa-

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mento - que podemos chamar de metafísica - acabouprevalecendo sobre a dialética de H eráclito.

A metafísica não impediu que se desenvolvesseo conhecimento científico dos aspectos mais estáveisda realidade (embora dificultasse bastante o aprofundamento do conhecimento científico dos aspectos maisdinâmicos e mais instáveis da realidade).

De maneira geral, indep endentem ente das intenções dos filósofos, a conce pção metafísica prevaleceu,

ao longo da história, porque correspondia, nas sociedades divididas em classes, aos interesses das classesdominantes, sempre preocupadas em organizar duradouram ente o que já está funcionando, sempre interessadas em “amarrar” bem tanto os valores e conceitoscomo as instituições existentes, para impedir que oshomens cedam à tentação de querer mudar o regimesocial vigente.

A co ncepç ão dialética foi reprimida historicamente: foi empurrada para posições secundárias, condenada a exercer uma influência limitada. A metafísica setornou hegemônica. Mas a dialética não desapareceu.Para sobreviver, precisou renunciar às suas e xpressões

mais drásticas, precisou conciliar com a metafísica, porém conseguiu m ante r espaço s significativos nas ideiasde diversos filósofos de e norm e im portância.

Aristóteles, por exemplo, um pensador nascidomais de um século depois da morte de Heráclito, rein-troduziu princípios dialéticos em explicações dominadas pelo modo de pensar metafísico. Embora menos

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radical do que Heráclito, A ristóteles (38 4-322 a.C .) foium pensador de horizontes mais amplos que o seu antecessor; e é a ele que se deve, em boa parte, a sobrevivência da dialética.

Aristóteles observou que nós damos o mesmonome de movimento a processos muito diferentes, quevão desde o mero deslocamen to mecânico de um corpono espaço, desde o mero aum ento q uantitativo de alguma coisa, até a modificação qualitativa de um ser ou o

nascimento de um ser novo. Para explicar cada movimento, precisamos verificar qual é a natu reza dele.Segundo Aristóteles, todas as coisas possuem

determinadas potencialidades; os movimentos das coisas são potencialidades que estão se atualizando, isto é,são possibilidades que estão se transformando em realidades efetivas. Com seus conceitos de ato e potência, Aristóteles conseguiu impedir que o movimento fosseconsiderado apenas uma ilusão desprezível, um aspecto superficial da realidade; graças a ele, os filósofos nãoabandonaram completam ente o estudo do lado dinâmico e mutável do real.

Nas sociedades feudais, entretanto, durante osséculos da Idade Média, a dialética sofreu novas derrota se ficou bastan te enfraquecida. No regime feudal, a vidasocial era estratificada, as pessoas cresciam, viviam emorriam fazendo as mesmas coisas, perten cend o à classe social em que tinham nascido; quase não aconteciamalterações significativas. A ideologia dom inante - a ideologia das classes dominantes - era monopólio da Igreja,

elaborada dentro dos mosteiros por padres que levavamuma vida muito parada. Por isso, a dialética foi sendocada v ez mais expulsa da filosofia. A própria palavra dia-lética se tornou uma espécie de sinônimo de lógica (ouentão passou a ser empregada, em alguns casos, com osignificado pejorativo de “lógica das aparênc ias”).

No regime de cidade-Estado, da Grécia antiga,embora houvesse estratificação social, havia uma ampla circulação tanto de mercadorias como de ideias: o

comércio e a discussão sobre os problemas de intere ssecoletivo faziam p arte da vida dos cidadãos. N o regimefeudal, a vida nas cidades sofreu um esvaziamento; eno campo havia pouco comércio e poucas o portunidades para discutir organizadamente. O número dos cidadãos que debatiam era reduzido e as ideias discutidasficaram um ta nto desligadas da vida prática.

A dialética ficou sufocada. Para sobreviver, elaprecisou lutar para a ssegurar à filosofia um e spaço próprio, que não ficasse diretamente dominado pelo imperialismo da teologia (ideologia dominante, na época).Um dos ideólogos mais famosos do século XI, PetrusDamianus (1007-1072), dizia que, para o ser humano,a única coisa importante era a salvação da sua alma;que a maneira mais segura de salvar a alma era se tornar mo nge; e que um monge não precisava de filosofia.O árabe Averróis e o francês Abelardo procuraram,por caminhos muito diferentes, defender o espaço dafilosofia, sem desafiar a teologia. Averróis (1126-1198),apoiando-se em Aristóteles, afirmou que a versão filo

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sófica da Verdade não precisava coincidir, de maneiraimediata e total, com sua versão teológica. Abelardo(1079-1142) conseguiu discutir longamente sobre as relações entre as categorias universais e as coisas singulares em termos de pura lógica, mostrando assim, naprática, que existiam problemas importantes cuja abordagem não precisava da teologia.

No século XIV, a vida começou a se modificar, ocomércio se desenvolveu e sacudiu os hábitos da sociedade feudal. Os filósofos refletem isso. Guilherme deOccam (aprox. 1285-1349) é típico da nova situaçãoque es tava surgindo; sua vida é bem mais movim entadaque a da maioria dos filósofos medievais: ele estudou naInglaterra (em Oxford), viveu na França (em Avignon),andou às turras com o papa, fugiu para Pisa (na Itália) eacabou morrendo em Munique (na Alemanha). Occamsustentava que, exatamente porque Deus é todo-pode-roso e porque a vontade de Deus não pode ter limites,tudo n o mundo é contingente, tudo poderia ser diferente do que é (se Deus quisesse); por isso, a teologia (quetrata va de Deus) não devia interferir —segundo Occam —

no estu do das coisas contingentes do mun do empírico.A chamada “revolução comercial”, esboçada noséculo XIV deflagrou-se no século XV e suas consequências marcaram profundam ente o século XVI. Foi a épocado Renascimento e da descob erta da América. As artese as ciências se insurgiram contra os hábitos mentais daIdade Média: mostraram que o universo era mu ito maior

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e mais complicado do que os ideólogos medievais pensavam; e mostraram que o ser humano era potencialmente muito mais livre do que eles imaginavam.

O movimento voltou a se impor à reflexão e aodebate, tornou-se outra vez um tema fundamental. Oastrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)descobriu que P tolomeu tinha se enganado, que a Terranem era imóvel nem era o centro do universo, que elagirava em torno do Sol. Galileu (1564-1642) e Descar

tes (1596-1650) descobriram que acon dição natural doscorpos era o movimento e não o estado de repouso.A maneira de conceber o ser humano também

sofreu importantes alterações. Pico delia Mirando-la (1463-1494) sustentou que o fato de o homem ser“inacabad o” e po rtan to p oder evoluir, lhe conferia umadignidade especial e lhe dava até certa vantagem emcomparação com os deuses e anjos (que são eternos,perfeitos e por isso não mudam). Giordano Bruno(1548-1600) exaltou o homo faber, quer dizer, o homemcapaz de dom inar as forças naturais e de modificar criadoram ente o mundo.

Com o Renascimento, a dialética pôde sair dossubterrâneos em que tinha sido obrigada a viver durante vários séculos: deixou o seu refúgio e veio à luz dodia. Conquistou posições que conseguiu manter nosséculos seguintes. O caráter instável, dinâmico e contraditório da condição hum ana foi corajosamente reconhecido por um pensador místico e conservador, comoPascal (1623-1654). Outro filósofo conservador, o ita

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liano Giambattista Vico (1680-1744), também ajudoua dialética a se fortalecer. Vico achava que o homemnão podia conhecer a n atureza, que tinha sido feita porDeus e só por Deus podia ser efetivamente conhecida; mas sustentava que o homem podia conhecer suaprópria história, já que a realidade histórica é obra humana, é criada por nós. Essa formulação constituiu umpoderoso estímulo à busca de um método adequado àco rreta com preensã o da realidade histórica (quer dizer,

à elaboração do método dialético).Elementos de dialética se encontram no pensamento de diversos filósofos do século XVII, como Lei-bniz (1646-1716), Spinoza (1632-1677), Hobbes (1588--1679) e Pierre Bayle (1647-1706). Elementos de dialética se achavam já, tam bém , nas reflexões do inquieto Montaigne (1533-1592), no século XVI. Montaig-ne dizia, por exemplo: “Todas as coisas estão sujeitasa passar de uma mudança a outra; a razão, buscandonelas uma subsistência real, só pode frustrar-se, poisnada pode apreender de permanente, já que tudo ouestá com eçando a ser e absolutamente ainda não é - ouentão já está começando a morrer antes de ter sido”

(,Essais, II, 12). Mas tanto Montaigne como os pensadores do século XVII viviam e pensavam, de certo modo,numa situação de isolamento em relação à dinâmica social, em relação aos m ovimentos políticos da época. Oscontatos que eles mantinham eram com personalidadese não com organizações ou tendências que pudessemrefletir alguma coisa do que se passava nas bases da so

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ciedade. Por isso, a visão que tinham d a história - istoé, do processo transformador da condição humana edas estrutu ras sociais - ou era gratuitam ente otimistasuperficial, ou en tão assumia um to m melancólico, umconteúd o conservador negativista.

Só na segunda metade do século XVIII é que asituação dos filósofos começ ou a mudar. O amadurecimento do processo histórico que desembocou na Revolução Francesa criou condições que permitiram aos filó

sofos uma compreensão mais concreta da dinâmica datransform ações sociais. O movimento que refletiu esseprocesso de prepa ração da Revolução Francesa no planodas ideias se chamou iluminismo. Os filósofos iluministaacompanharam de perto as reivindicações plebeias, aarticulações da burocracia, as manifestações políticanas ruas, a rápida mudança nos costumes; perceberamque o que restava do mundo feudal devia desaparecee pretenderam contribuir para que o mundo novo, queestava surgindo, fosse um m undo racional.

Em sua maioria, os iluministas se contentaramcom um a visão mais ou m enos simplificada do processode transformação social que viam realizar-se e apoia

vam: não procuraram refletir aprofundadamente sobrsuas contradições internas. Por isso, não trouxeramgrandes contribuições para o avanço da dialética. Háporém, uma exceção; o maior dos filósofos iluministaé també m o autor de uma obra rica em observações degrande interesse para a concepção dialética do mundoDenis Diderot (1713-1784).

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Diderot compreendeu que o indivíduo era condicionado por um movimento mais amplo, pelas mudanças da sociedade em que vivia. “Sou como sou” -escreveu ele - “porque foi preciso que eu me tornasseassim. Se mudarem o todo, necessariamente eu também serei modificado.” E acrescentou: “O todo estásempre mudando”. No Sonho de D ’Alembert, imaginouque D’Alembert, seu amigo, sonhando dizia coisas, taiscomo: “Todos os seres circulam uns nos outros. Tudo

é um fluxo perpétuo. O que é um ser? A soma de umcerto número de tendências. E a vida? A vida é umasucessão de ações e reações. Nascer, viver e passar émudar de formas”. D’Alembert ficou chocado com a“loucura” que D iderot tinha escrito e o texto , redigidoem 1769, acabou só sendo publicado em 1830.

No Suplemento a viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot aconselhava seus leitores: “Examinem todas as instituições políticas, civis e religiosas;ou muito me engano ou vocês verão nelas o gênerohumano subjugado, a cada século mais submetido ao

 jugo de um punhado de meliantes” . E recomendava :“Desconfiem de quem quer impor a ordem” .

Uma das obras mais famosas de Diderot é Osobrinho de Rameau, que relata uma conversa entre ofilósofo e um jovem vigarista, sobrinho de um músicocélebre. Diderot se coloca, habilmente, numa posiçãomoderada, mas coloca na boca do seu interlocutoruma argumentação brilhante, uma defesa altamentepertu rba dora da vigarice, de mo do que a moral vigente

fica bastante abalada em seus fundamentos, no fim dodiálogo. Diderot assume os elementos conservadoresque sabe existirem no seu pensamento, mas permiteao jovem vigarista que desenvolva seus pontos de vista com extraordinária desenvoltura; o resultado é umconfronto fascinante, que Hegel e Marx consideraramum primor de dialética.

Ao lado de Diderot, quem d eu a maior contribuição à dialética na segunda metade do século XVIII foi

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ao contrário dosiluministas, Rousseau não tinha confiança na razão humana: preferia confiar mais na natureza. Segundo ele,os homens nasciam livres, a natureza lhes dava a vidacom liberdade, mas a organização da sociedade lhes tolhia o exercício da liberdade natural. O problema comque Rousseau se defrontava, então, era o de assegurarbases para um contrato social que permitisse aos indivíduos tere m na vida social um a liberdade capaz de co mpensar o sacrifício da liberdade com q ue nasce ram.

Observando a estrutura da sociedade do seutempo e suas contradições, Rousseau concluiu que osconflitos de interesses entre os indivíduos tinham se

tornado exagerados, que a propriedade estava muitomal distribuída, o poder estava concentrado em poucas mãos, as pessoas estavam escravizadas ao egoísmodelas. Rousseau considerava necessária uma democratização da vida social; para ele, as comunidades efetivam ente democráticas não poderiam basear-se em critérios formais, puramente quantitativos (a vontade de

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todos): precisariam apoiar-se num a vontade geral criadapor um movim ento de convergência que levaria os indivíduos a superarem a estreiteza do egoísmo deles, queos levaria a se reconhecerem concretamente uns nosoutros e a adotarem uma perspectiva universal (verdadeiram ente livre) no encamin ham ento de soluções paraseus problemas.

Os caminhos que deveriam ser seguidos para queos homens chegassem a essa “convergência”, a essa

“universalidade”, exigiriam a remoção de muitos obstáculos. Rousseau sabia que as mudanças sociais profundas, realizadas por sujeitos coletivos, não costum amser tranquilas; sabia que as transfo rma ções necessáriaspor ele apontadas deveriam ser um tanto tumultuadas.Mas achava que “um pouco de agitação retempera asalmas; e o que faz avançar a humanidade é menos apaz do que a liberdade” . Embora divergisse de Diderotem várias coisas, ele concordava num ponto crucial:nenhum dos dois se deixava intimidar pela “ideologia daordem ”, de conteúdo nitidamente conservador.

Por isso, se entende que no século XX um con

servador radical - Maurice Barres - tenha escrito queDiderot e Rousseau (duas “forças de desordem”) sãoresponsáveis por m uitos dos males que nos afligem.

O TRABALHO

No final do século XVIII e no começo do séculoXIX, os conflitos políticos já não eram mais abafadosnos corredores dos palácios e estouravam nas ruas. Aslutas que precederam e desencadearam a RevoluçãoFrancesa envolveram m uita gente, entraram na vida demilhões de pessoas; as guerras napoleônicas tambémmobilizaram as massas pop ulares e os homens do povoforam obrigados a pensar sobre questões políticas queantes eram discutidas apenas por uma elite reduzida,mas que naquele período estavam invadindo a esfera da

vida cotidiana de quase todo mundo.Essa situação se refletiu na filosofia. Se refletiuaté na filosofia que se elabor ava na longínqua cidade deKönigsberg, na Prússia oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica na atual Rússia), onde nasceu,viveu, escreveu e morreu aquele que provavelmente é o maior dos pensadores metafísicos modernos:

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Immanuel Kant (1724-1804). Pessoalm ente, Kant viveuna mais rigorosa rotina; até seus passeios tinham horamarcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filósofo acertavam seus relógios quando ele saía de casa,às 15h30, par a dar uma volta). Ao seu redor, porém , asrotinas estavam sendo quebradas, a história da Europa estava pondo a nu muitas contradições e Kant nãopôde deixar de pensa r sobre a contradição, em geral.

Kant percebeu que a consciência hum ana não selimita a registrar passivamente impressões provenientes do mundo exterior, que ela é sempre a consciência de um ser que interfere ativamente na realidade;e observou que isso complicava extraordinariamenteo processo do conhecimento humano. Sustentou quetodas as filosofias até então vinham sendo ingênuas oudogmáticas, pois tentavam interpretar o que e ra a realidade antes de t er resolvido uma que stão prévia: o queé o conhecimento?

O centr o da filosofia, para Kant, não podia deixarde ser a reflexão sobre a qu estão do conhecimento, a

questão da exata n atureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua atenção naquilo que ele chamou de “razão pura”, o filósofo se convenceu, então,de que n a própria “razão pur a” (anterior à experiência)existiam certas contradições - as “antinomias” - quenunca poderiam ser expulsas do pensamento humanopor nen hum a lógica.

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Outro filósofo alemão, de uma geração posterior, demonstrou que a contradição não era apenasuma dimensão essencial na consciência do sujeito doconhecimento, conforme Kant tinha concluído; eraum princípio básico que não podia ser suprimido nemda consciência do sujeito nem da realidade objetiva.Esse novo pensador, que se chamava Georg WilhelmFriedrich Hegel (1770-1831), susten tava q ue a q uestãocentral d a filosofia era a qu estão do ser, mesmo, e nãoa do conhecime nto. Con tra Kant, ele argum entou: Seeu pergunto o que é o conhecimento, já na palavra é estáem jogo uma ce rta concepção de ser; a q uestão do conhecimento, daquilo que o conhecimento é, só pode serconcretamente discutida a partir da questão do ser”.

Hegel concordava com Kant num ponto essencial: no reconhecimento de que o sujeito humano é essencialmente ativo e está sempre interferindo na realidade. Na época da Revolução Francesa, entusiasmadocom a tom ada da Bastilha pelo povo e com a derruba dade instituições antiquíssimas (que pareciam eternas),Hegel - então com 19 anos - plantou uma “árvore da li

berdade” emTübingen, onde morava, em homenagemà França. Naquele momento, o poder humano de intervir na realidade lhe pareceu quase ilimitado; o sujeitohumano lhe pareceu quase onipotente.

Logo, porém, a vida se encarregou de jogar águafria no entusiasmo do filósofo. A Revolução Francesaatravessou uma fase de terror, com a guilhotina cor

tando inúmeras cabeças, e depois veio a ser controla-da por Napoleão Bonaparte (mas o próprio Napoleãofoi derrotado e a Europa se viu dominada pela política ultraconservadora da Santa Aliança). Além disso, aAlema nha, país onde o pensado r vivia, era tã o atras adaque nem sequer tinha conseguido alcançar a sua unidade co mo nação: estava dividida em governos regionaiscada um mais reacionário que o outro. Hegel descobriu, então, com amargura, que o homem transformaativamente a realidade, mas quem impõe o ritmo e ascondições dessa transformação ao sujeito é, em últimaanálise, a realidade objetiva.

Para avaliar de man eira realista as possibilidades dosujeito humano, Hegel procurou e studar seus movimentos no plano objetivo —das atividades políticas e econômicas. Dedicou-se à leitura e ao exame dos escritos deAdam Smith e dos teóricos da economia política inglesaclássica. Lukács mostrou, em seu livro sobre O  jovem

 Hegel, que na base do pensamen to de Hegel está não sóuma reflexão aprofundada sobre a Revolução Francesa,como tam bém uma reflexão radical sobre a cham ada re-

volução industrial, que vinha se realizando na Inglaterra.Hegel percebe que o trabalho é a mola que impulsiona odesenvolvimento humano; é no trabalho que o homemse produz a si mesmo; o trabalho é o núcleo a partir doqual podem ser compreendidas as formas complicadasda atividade criadora do sujeito humano. No trabalho seencontra tanto a resistência do objeto (que nunca pode

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ser ignorada) como o poder do sujeito, a capacidade queo sujeito tem de encaminhar, com habilidade e persistência, um a superação dessa resistência.

Foi com o trabalho que o ser humano “desgrudou” um pouco da natureza e pôde, pela primeira vez,contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se não fosse o trabalho, não existiria a relaçãosujeito-objeto.

O trabalho criou para o homem a possibilidadede ir além da pura natureza. “A natureza, como tal,não cria nada de p ropriamente humano”, observa o filósofo soviético Evald Iliênkov. O homem não deixa deser um animal, de p erten cer à natureza; porém, já nãopertence inteiramente a ela. Os animais agem apenasem fun ção das necessid ades imediatas e se guiam pelosinstintos (que são forças naturais); o ser humano, contudo, é capaz de antecipar na sua cabeça os resultadosdas suas ações, é capaz de escolher os caminhos quevai seguir para tentar alcançar suas finalidades. A natureza dita o comportamento aos animais; o homem,no entanto, conquistou certa autonomia diante dela.

O trabalho permitiu ao homem dominar algumas dasenergias da natureza; permitiu-lhe, como escreveu obrasileiro José A rthur Giannotti, ter “parte da natu rezaà sua disposição”.

O trabalho é o conceito-chave para nóscompreendermos o que é a superação dialética. Paraexpressar a sua concepção da superação dialética, H e

gel usou a palavra alemã aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem três sentidosdiferentes. O primeiro sentido é o de negar, anularcancelar (como ocorre, por exemplo, quando suspendemos um passeio por causa do mau tempo, ou quandoum estudante é suspenso das aulas e não pode comparecer à escola durante algum tempo). O segundosentido é o de erguer alguma coisa e mantê-la erguidapara protegê-la (como a gente vê, por exemplo, numpoema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala doquarto onde morou há muitos anos e diz que ele fopreservado porque ficou “intacto, suspenso no ar”). Eo terceiro sentido é o de elevar a qualidade, promovea passagem de alguma coisa para um plano superior,suspender o nível. Pois bem: Hegel emprega a palavracom os três sentidos diferentes ao mesmo tempo. Paraele, a superação dialética é simultaneamente a negaçãode um a determ inada realidade, a conservação de algode essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior.

Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se

observamos o que acontece no trabalho: a matéria--prima é “negada” (quer dizer, é destruída em sua formanatural), mas ao mesmo tem po é “conserv ada” (quer dizer, é aproveitada) e assum e um a forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer dizeré “elevada” em seu valor). E o que se vê, por exemplo,no uso do trigo para o fabrico do pão: o trigo é triturado,

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transformado em pasta, porém não desaparece de todo,passa a fazer parte do pão, que vai ao forno e - depoisde assado - se torna hum aname nte comestível.

Boa parte da obscuridade de Hegel resultava dofato de ele ser idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade material à lógica de um princípio queele chamava de Ideia Absoluta; como essa Ideia Absoluta era um princípio inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade material eram, frequentemente,descritos pelo filósofo de man eira ba stan te vaga.No caminho aber to por Hegel, entretan to, surgiuoutro pensador alemão, Karl Marx (1818-1883), materialista, que superou - dialeticamente - as posições deseu mestre. Marx escreveu que em Hegel a dialéticaestava, por assim dizer, de cabeça para baixo; decidiu,então, colocá-la sobre seus próprios pés.

Marx teve uma vida muito atribulada: ligou-sebem cedo ao m ovimen to operário e socialista, lutou napolítica ao lado dos trabalhadores, viveu na pobreza epassou a maior pa rte d e sua vida no exílio (na Inglaterra) . A solidariedade ativa que o ligou aos trab alhadore s

contribuiu, certam ente, para que ele tivesse do traba-lho uma compreensão diferente daquela que tinha sidoexposta pelo velho Hegel, cuja existência transcorreraquase toda entre as quatro paredes da biblioteca e dasala de aula.

Marx concordou plenamente com a observaçãode Hege l de que o traba lho era a m ola que impulsionava

o desenvolvimento humano, porém criticou a unilateralidade da concepção hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importância demais ao trabalhointelectual e não enxergava a significação do trabalhofísico, material. “O único trabalho que Hegel conhece recon hece ” - observou Marx em 1844 - “é o trabalhoabstrato do espírito.” Essa concepção abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua atenção exclusivamentena criatividade do trabalho, ignorando o lado negativodele, as deformações a que ele era submetido em surealização material, social. Por isso Hegel não foi capazde analisar seriamen te os problemas ligados à alienaçãodo trabalho nas sociedades divididas em classes sociai(especialmente na sociedade capitalista).

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A ALIENAÇÃO

O trabalho - admite Marx - é a atividade pelaqual o homem domina as forças naturais, humaniza anatureza; é a atividade pela qual o homem se cria a simesmo. Como, então, o trabalho - de condição naturalpara a realização do homem - chegou a tornar-se o seualgoz? Com o ele chegou a se transform ar em “um a atividade que é sofrimento, uma força que é impotência,uma procriação que é castração ”?

Uma primeira causa dessa deformação m onstruosa se encontra na divisão social do trabalho, na apropriação privada das fontes de produção, no aparecimentodas classes sociais. Alguns homens passaram a dispor demeios para explorar o trabalho dos outros; passaram aimpor aos trabalhadores condições de trabalho que nãoeram livremente assumidas por estes. Introduziu-se, assim, um novo tipo de contradição no interior da comu nidade humana, no interior do gênero humano.

A partir da divisão social do trabalho, a hum anidade passava a te r um a dificuldade bem maior para pen sar

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os seus próprios problemas e para encará-los de um ângulo mais amplamente universal: mesmo quando eramsinceros, os indivíduos se deixavam influenciar pelo pontode vista dos exploradores do trabalho alheio, pela “perspectiva parcial inevitável” das classes sociais (conforme acaracterização da ideologia por Lucien Goldm ann).

“Divisão do trabalho e propriedade privada ” - escreveu Marx - “são termos idênticos: um diz em relação à exploração do trabalho escravo a mesma coisa

que o outro diz em relação ao produto da exploraçãodo trabalho escravo.” As condições criadas pela divisãodo trabalho e pela propriedade privada introduziramum “estranh am ento” entre o trabalhador e o trabalho,uma vez que o produto do trabalho, antes mesmo de otrabalho se realizar, pertence a outra pessoa que nãoo trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seutrabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas próprias criações, o ser humano sesen te ame açado por elas; em lugar de libertar-se, acabaenrolado em novas opressões.

O vigor e a coerência da argumentação de Marxforam reconhecidos mesmo por escritores que nãoconcordam com o ponto de vista dele. O padre HenriChambre, por exemplo, admitiu que, partindo da concepção do homem como um ser que se cria através dotrabalho, não se pode negar validade à crítica de Marxà propriedade privada: “Se o homem fosse apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundoque o cerca, é certo que toda apropriação privada se

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ria fonte de violência e dominação do homem sobre ohomem”. Para um cristão, como Chambre, a ideia deque o homem se faz a si mesmo e humaniza o mundopelo trabalho, sacrifica a espiritualidade do ser humanoe o rebaixa à condição animal, além de ser uma manifestação de autossuficiência, um pecado de orgulho.Mas os marxistas têm boas razões para replicar que,na medida em que rejeitam a dialética, os cristãos seprivam de um instrum ento eficientíssimo na análise dos

problemas hum anos, perdem boas possibilidades de agircom eficácia no plano político e acabam desperdiçandoenergias na retórica dos bons conselhos, na pregaçãomoralista e em projetos ingênuos (“idealistas”) de reforma dos costumes e das “mentalidades”.

Os marxistas acham que a única maneira de superar a divisão da sociedade em classes e dar início aum processo de “desalienação” do trabalho é levar emconta a realidade da luta de classes para promover arevolução socialista. Marx não inventou a luta de classes: limitou-se a reco nhec er que ela existia e procurouextrair as consequências da sua existência. Antes deMarx, diversos autores já tinham enxergado a questão.Jam es Madison, ex-presiden te dos Estados Unidos, porexemplo, escreveu, em 1787: “Proprietários e não proprietários sempre formaram interesses diversos dentroda sociedade”. Marx, porém, foi mais longe do queMadison; com a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895),Marx reexaminou a história social da humanidade econcluiu, em 1848, no  Manifesto comunista, que toda

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a história transcorrida até então tinha sido uma históriade lutas de classes.

As lutas de classes assumem formas extraordinariam ente variadas: às vezes são fáceis de ser reconhecidas, são mais ou me nos diretas; às vezes, contudo , elasse tornam extremamente complexas e não cabem eminterpretações simplistas. Nas sociedades capitalistas,as lutas de classes tendem a assumir formas políticascada v ez mais complicadas.

Examinando o m odo de produ ção capitalista, emseu livro O capital, Marx notou que com ele se criouuma situação política nova, sem precedentes, na história das lutas de classes. O capitalismo é como aqueleaprendiz de feiticeiro que colocou em movimento forças que em seguida escaparam ao seu controle: como capitalismo, desenvolveu-se notavelmente a tecnologia, as forças produtivas tiveram um crescimento excepcional e o capitalismo vem tendo dificuldades cadavez maiores para aproveitá-las. A competição desenfreada dos capitalistas uns com os outros, em torno dabusc a do maior lucro, a car reta um grave desperdício derecursos. Na competição, os empresários mais poderosos vão impondo a lei deles, os mais fracos vão sendosacrificados e acabam prevalecendo os monopólios. Poroutro lado, para poder explorá-los, o capital reúne osoperários em suas indústrias, mas essa massa trabalhadora aglomerada se organiza, toma consciência de suaforça, passa a reivindicar com maior firmeza as coisasque lhe convêm, até p oder liderar um a revolução social

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e criar uma organização socialista para a sociedade. “Asocialização do trabalho e a centralização de seus recursos m ateriais” - escreve Marx - "chegam a um ponto no qual não c abem mais no envoltório capitalista.”

Nu nca tinha sido criada na história da humanidade, ante s do capitalismo, um a situação como essa: pelaprimeira vez existe uma classe social —o proletariadomoderno - que não lidera um movimento destinado asubstituir um modo de produção baseado num a forma

de propriedade privada por outro modo de produçãobaseado em outra forma de propriedade privada. Pelaprimeira ve z os anseios e ideais igualitários, coletivistas,socialistas, comunistas, dispõem de um portador material capaz de colocá-los em prática, através de umaprolongada luta política. A superação da divisão socialdo trabalho deixou de ser um sonho: passou a ser umprograma que - em princípio - pode ser executado.

E essa é, na análise de Marx, a segunda causa dadeformação que ele viu na situação do trabalho (que,em vez de servir para o ser humano realizar-se, serviapara aliená-lo). Se a primeira causa da “anomalia” eraantiga —a propriedade privada, a existência das classessociais -, a segunda, mais recente, estava no agravamento da exploração do trabalho sob o capitalismo. Omercado capitalista vive em permanente expansão, ocapital tende a ocupar todos os espaços que possam lheproporcionar lucros. E as leis do mercado vão dominando a sociedade inteira: tod os os valores humanos a utê nticos vão sendo destruídos pelo dinheiro, tudo vira mer

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cadoria, tudo pode ser comercializado, todas as coisaspodem ser vendidas ou compradas por um determinadopreço. A força de trabalho do ser humano - é claro - nãopodia deixar de ser arrastada nessa onda; ela tambémse transforma em mercadoria e seu preço passa a sofreras pressões e flutuações do mercado. Os trabalhadores,além de viverem sob a ameaça da perda do emprego,são obrigados a se organizar e a lutar para defend er seussalários; e o fato d e tom arem consciência de que já existe uma alternativa socialista e de que a organização daprodução poderia ser diferente é um fato que só podeagravar o mal-estar que sentem no trabalho.

O agravamento da alienação do trabalho sob ocapitalismo, contudo, não afeta apenas os operários;os capitalistas também são atingidos. A mesma buscadesenfreada do lucro, que leva o capitalista a exploraro trabalho do operário, leva-o também a procurar tirarvantag em de suas relações —compe titivas —com os outros capitalistas. Por isso, o mercado, que funciona emproveito da burguesia como classe, é sem pre um a realidade incerta, inquietante, e às vezes ameaçadora, paraos burgueses individualmente considerados.

Mesmo quando desenvolve técnicas cada vezmais aperfeiçoadas para controlar o funcionamento desuas empresas e as operações de seus negócios, a burguesia carece da capacidade de continuar a controlar asociedade como um todo. Como classe, na atual etapahistórica, ela não consegue elevar seu ponto de vista auma perspectiva totalizante.

A TOTALIDADE

Para a dialética marxista, o con hecim ento é totalizartte e a atividade humana, em geral, é um processode totalização, que nunca alcança uma etapa definitivae acabada. Mas o que quer dizer exatamente isso? Oque significa totalizantel E o que significa totalização?Vamos troca r a coisa em miúdos.

Qualquer objeto que o homem possa perceber oucriar é parte de um todo. Em cada ação empreendida, oser humano se defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encam inhar um a soluçãopara os problemas, o ser humano precisa ter uma certavisão de conjunto deles: é a partir da visão do conjuntoque podemos avaliar a dimensão de cada elemento doquadro. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: “Averdade é o todo”. Se não enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma v erdade limitada (transfo rmando -a em m entira), prejudicando a nossacompreensão de uma verdade mais geral.

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Exemplo disso: alguém observ a que o capitalista Xé um homem generoso, progressista, sincerame nte preocupado com seus operários. Essa observação pode sercorreta. No entanto, é necessário entendê-la dentro deseus limites, para não perdermos de vista o fato de queela nunca pode ser usa da para pre tende r invalidar outraobservação mais abrangente: a de que o sistema capitalista, por sua própria essência, impele os capitalistas emgeral, quaisquer que sejam as qualidades hum anas deles,

a extraírem mais-valia do trabalho de seus operários.A visão de conjunto - ressalve-se - é sempre provisória e nun ca pode pre tender esgotar a realidade a queele se refere. A realidade é sempre mais rica do que oconhecimento que tem os dela. Há sempre algo que escapa às nossas sínteses; isso, porém, não nos dispensado esforço de elaborar sínteses, se quisermos entendermelhor a nossa realidade. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estru tura significativa da realidade com que se defronta, nu ma situaçãodada. E é essa estrutura significativa - que a visão deconjunto proporciona - que é chamada de totalidade.

A totalidade é mais do que a soma das partesque a constituem. No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem entrosadas produzem mais do que a somadas produções individuais de cada uma delas, isoladam ente considerada. N a maneira de se articularem e deconstituírem uma totalidade, os elementos individuaisassumem características que não teriam, caso permanecessem fora do conjunto.

Há totalidades mais abrangentes e totalidadesmenos abrangentes: as menos abrangentes, é claro, fazem parte das outras. A maior ou menor abrangênciade um a totalidade dep ende do nível de generalização dopensamento dos objetivos concretos dos homens emcada situação dada. Se eu estou empenhado em analisar as questões políticas que estão sendo vividas pelomeu país, o nível de totalização que me é necessário éo da visão de conjunto da sociedade brasileira, da suaeconomia, da sua história, das suas contradições atuais. Se, porém, eu quiser aprofundar a minha análise equiser entender a situação do Brasil no quadro mundial,vou precisar de um nível de totalização mais abrangente: vou precisar de uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus impassesno mu ndo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha análisea um plano filosófico, precisarei ter, então, um a visão deconjunto d a história da humanidade, quer dizer, d a dinâmica da realidade hum ana com o um to do (nível máximode abrangên cia da totalização dialética).

E evidente que, n a prática, a vida coloca diante de

mim problemas que eu te nh o de resolver, em geral, semnecessidade de recorrer a cada passo a consideraçõesde filosofia da história (isto é, ao nível de totalizaçãomais abrangente). De certo modo, contudo, mesm o nodia a dia, nós estamos sempre, implicitamente, totalizando; estamos sempre trabalhando com totalidadesde maior ou menor abrangência.

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Para trabalhar diaieticamente com o conceito detotalidade, é muito importante sabermos qual é o nívelde totalizaçã o exigido pelo conjunto de problemas comque estamos nos defrontando; e é muito importante,também , nunca esquec ermos que a totalidade é apenasum momento de um processo de totalização (que, conforme já advertimos, nunca alcança um a eta pa definitiva e acabada). Afinal, a dialética - mane ira de pensarelaborada em função da necessidade de reconhecermos

a co nstante emergência do novo na realidade hum ana —negar-se-ia a si mesm a, caso cristalizasse ou coagulassesuas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em facede situações m odificadas.

A modificação do todo só se realiza, de fato, apósum acúmulo de mudanças nas partes que o compõem.Processam-se alterações setoriais, quantitativas, atéque se alcança um ponto crítico que assinala a transformação qualitativa da totalidade. E a lei dialética datransformação da quantidade em qualidade. Voltaremosa falar dessa lei. Por enquan to, o que d evemo s sublinharé que a modificação do todo é mais complicada que amodificação de cada um dos elemen tos que o integram.E devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade temsua maneira diferente de mudar; as condições da mudança variam depend endo do ca ráter da totalidade e doprocesso específico do qual ela é um m omen to.

Vejamos um exemplo. Observemos a sociedadebrasileira. Podemos analisá-la em três níveis distintos.Num primeiro nível, podemos estudar seu regime ju

rídico-político, suas leis, suas instituições, seu sistemaadministrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nível, podemos mergulhar mais fundo e procurarexaminar a história da sociedade brasileira, a relaçãoexiste nte e ntre sua vida política, seus problem as sociaise sua economia; podemos encará-la como formação socioeconômica. E, finalmente, num terceiro nível, maisgeral e mais abstrato, podemos fixar nossa atenção nomodo de produção que se acha na base da formação so-cioeconômica existente.Na prática, não é possível separar inteiramente as questões que se apresentam num desses níveisdas questões que se manifestam nos outros dois; afinal, concretamente, elas são elementos de uma mesma realidade global, que é a sociedade brasileira. Noentanto, focalizada no plano de cada uma das diversastotalizaçõ es mencionadas, e ssa realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais realistanossa atividade tende nte a transformá-la.

Em 1964, quando foi deposto o presidente João

Goulart, e em 1968, quando foi decretado o AI-5, oBrasil sofreu uma importante modificação (em doisepisódios): mudou o seu regime jurídico-político. Eranecessário reconhecer a mudança qualitativa dessa totalidade, para extrair todas as consequências que seimpunham, no plano estratégic o (e não ficar se iludindocom a ideia de que tinha ocorrido uma mera “quartelada” cujos efeitos seriam passageiros). Ao mesmo tem-

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po, porém, era preciso observar que, como formaçãosocioeconômica, o Brasil não sofrera nenhuma alteração significativa em 1964 ou em 1968. A formação socioeconômica, como totalidade, não muda no mesmoritmo que o regime jurídico-político.

Ao longo destas últimas décadas, num ritmo bemmais lento que o do regime jurídico-político, a nossa formação socioeconômica está se modificando; em certosaspectos, com o crescimento econômico, com o avanço da industrialização, com a modernização conservadora (promovida de “cima” para “baixo”), a nossa formação socioeconômica já mudou bastante e assumiu,inclusive, características qualitativamente novas. O quese passa, entretanto , com o modo de produção capitalista no Brasil? Ele apresenta sinais de que está na iminência de sofrer alguma alteração qualitativa? Está naiminência de ser modificado como totalidade? Em vão,os revolucionários impacientes, acicatados pela pressapequeno-burguesa, cansam-se na busca de indícios deque a “grande crise” do modo de produção capitalistano Brasil está próxima; tudo indica que esse modo deprodução continua bastan te forte.Temos, então, três totalidades, elaboradas emtrês níveis diversos, exprimindo três processos d iferentes de totalização e nos revelando três aspectos distintos (todos os três importantíssimos) da mesma realidade brasileira.

A CONTRADIÇÃO E A MEDIAÇÃO

A esta altura da nossa exposição, o leitor podeindagar: como é que eu posso ter a certe za de que estou trabalhando com a totalidade correta, de que estoufazendo a totalização adequada à situação em que meencontro? A única resposta possível a esta pergunta searrisca a ser decepcionan te: não há, no plano puram ente teórico, solução para o problema. A teoria é necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece oscritérios suficientes para esta rmo s seguros de agir comacerto. Nenhuma teoria pode ser tão boa a ponto de

nos evitar erros. A gente depende, em última análise,da prática - especialmente da prática social - para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho comos conceitos (e com as totalizações).

A teoria nos ajuda fornecendo importantes indicações. Em relação à totalidade, por exemplo, a teoriadialética recomenda que prestemos atenção ao “re-

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cheio” de cada síntese, quer dizer, às contradições emediações concretas que a síntese encerra.

Na investigação científica da realidade, começamos trabalhando com conceitos que são, ainda, sínteses muito abstratas. M arx dá o exemplo da população. A população é um todo, mas o conceito de populaçãoperm anece vago se não conh ecemos as classes de quea população se compõe. Só podemos conhecer con-cretamente as classes, entretanto, se estudarmos oselementos sobre os quais elas se apoiam, na existência delas, tais como o trabalho assalariado, o capitaletc. Tais elementos, por sua vez, supõem o comércio,a divisão do trabalho, os preços etc. “Se começo pelapopulação, portanto, tenho uma representação caótica do conjunto; depois, através de um a determinaçãomais precisa, por meio de análises, chego a conceitoscad a vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorn o à população. Dessa vez, contu do, não terei sob os olhos um amálgama caótico e simuma totalidade rica em determinações, em relaçõescomplexas.” Esse texto de M arx é de grande interesse

para nós. O ponto de partida - observemos - não éum conceito rudimentar: é uma expressão que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada.A análise, portanto, só pode ser orientada com baseem um a síntese (mesmo precária) anterior. Um a certacompreensão do todo precede a própria possibilidadede aprofundar o conhecimento das partes.

Mas o texto ainda diz mais: por análise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado naexpressão que me serviu de ponto de partida. No fim,realizada a viagem do mais complexo (ainda abstrato)ao mais simples e feito o retorno do mais simples aomais complexo (já concreto), a expressão  população passa a ter um conteúdo bem determinado. O concreto, portanto, é o resultado de um trabalho. “O concreto”

- insiste Marx - “é concreto porque é a síntese de váriasdeterminações diferentes, é unidade na diversidade.”A concepção de Marx, segundo a qual o conhe

cimento não é um ato e sim um processo, desenvolveu--se em polêmica contra a concepção irracionalista. Osirracionalistas consideram a intuição um instrumentoprivilegiado do conhec imento humano; para eles, o queé “sacado” intuitivamente já possui valor de verdade,de modo que não existe nenhum motivo para nós trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: aimpressão genérica obtida no ponto de partida já nosbasta. O irracionalismo desestimula o ser humano arealizar o paciente esforço de ir além da aparência, embusca da essência dos fenômenos. E as “totalidades”dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, nãotêm um “recheio” definido.

A dialética é muito mais exigente do que o irracionalismo. Para recon hece r as totalidades em qu e a realidade está efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a realidade),

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o pensam ento dialético é obrigado a um paciente trab alho: é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de cada totalidade, quedão “vida” a cad a totalidade.

“A dialética” - observa Carlos Nelson Coutinho- “não pensa o todo negando as partes, nem pensa aspartes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contra

dições entre as partes (a diferença entre elas: o quefaz de uma obra de arte algo distinto de um panfletopolítico) como a união entre elas (o que leva a arte ea política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).”

Os irracionalistas, implicitamente, dispensam--nos d esse esforço. Q uem achar que já “sac ou” intuiti-rvãm ente o todo não precisará examinar cuidadosamente as partes. Mas também não terá uma compreensãoclara das conexões e conflitos internos e ficará comuma totalidade um tan to nebulosa.

Já Hegel criticava a concep ção irracionalista queseu ex-amigo Schelling adotara da totalidade (do absoluto), dizendo que se tratava de uma noite na qualtodas as vacas eram pardas.

Para que o nosso conhecimento avance e o nossolaborioso (e interminável) descobrimento da realidadese aprofunde - quer dizer: para podermos ir além dasaparências e pen etrar na essência dos fenômenos - precisamos realizar operações de síntese e de análise que

esclareçam não só a dimensão imediata como tambéme sobretudo, a dimensão mediata delas.

A experiência nos ensina que em todos os ob je to s com os quais lidamos existe um a dimensão imediata (que nós percebemos imediatamente) e existeuma dimensão mediata (que a gente vai descobrindoconstruindo ou reconstruindo aos poucos). Vejamospor exemplo, este livrinho sobre a dialética que está

nas m ãos do leitor: é um a realidade imediata, palpávellegível; um conjunto de folhas impressas com símbolos gráficos. Mas não é só isso. Se o leitor parar umpouco para pensar sobre ele, verificará que o fato deo livro estar em suas mãos passa por uma série de me-diações, é um fato que está mediatizado por outros fatos e por diversas ações humanas. A mediação maispróxima a ser reconstituída é a do deslocamento dolivro: como foi que ele veio parar nas mãos do leitor? Oleitor comprou-o numa livraria? Recebeu-o de presente? Está lendo o volume num a biblioteca? H á tamb émuma mediação subjetiva: qual foi o motivo que levouo leitor a se interessar pelo livrinho? Por que este livroe não outro? Quando e como o leitor passou a ter aimpressão ou a convicção de q ue o assun to do livro eradigno de atenção e valia a pena lê-lo? Quais foram asexperiências pessoais e os condicionamentos culturaisque o levaram a isso?

Som ente levando em co nta essas (e outras) mediações é que poderemos avaliar corretamente toda a

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significação do fato de o livro estar, agora, neste imediato mom ento, nas mãos do leitor.

As mediações, entretanto, obrigam-nos a refletirsobre ou tro e leme nto insuprimível da realidade: as con-tradições. Há muita confusão em torn o da palavra con-tradição. Desde que Hegel expôs pela primeira vez osfundamentos do método dialético, uma das principaisobjeções formuladas contra ele - uma objeção até hoje

repetida - é a de que o conceito de contradição usadopelos dialéticos estaria errado.Durante séculos, a hegemonia do pensamento

metafísico nos acostumou a reconhecermos somenteum tipo de contradição: a contrad ição lógica. A lógica,como toda ciência, ocupa-se da realidade apenas emum determinado nível; para alcançar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de uma  parte darealidade. As leis da lógica são certamente válidas, nocampo delas; e - nesse campo de validade - a contradição é a m anifestação de um d efeito no raciocínio.

Existem, porém, dimensões da realidade humana

que não se esgotam na disciplina das leis lógicas. Existem aspectos da realidade humana que não podem sercompreendidos isoladamente: se queremos começar aentendê-los, precisamos obse rvar a conexão íntima queexiste entre eles e aquilo que eles não são. Henri Lefebvre escreveu, com razão: “Não podemos dizer ao mesmo tempo que determinado objeto é redondo e é qua

drado. Mas devem os dizer que o mais só se define com menos, que a dívida só se define pelo empréstimo".

As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em taiunidades, a contradição é essencial: não é um merdefeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosóficoque não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradição é reconh ecida pela dialéticcomo princípio básico do movimento pelo qual os sereexistem. A dialética não se con trapõe à lógica, m as vaalém da lógica, desbravando um espaço que a lógicnão consegue ocupar.

Para desbravar esse novo espaço, a dialética modifica os instrum entos co nceituais de que dispõe: passa trabalhar, frequentemente, com determinações refle

 xivas e procura promover uma “fluidifi cação dos conceitos”. Não se assuste com essas expressões, leitorvamos explicá-las no próximo capítulo.

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A “ f l u id i f i c a ç ã o ” d o s  c o n c e i t o s

Marx pretend ia escrev er um livro, explicando suconcepção da dialética. Chegou a anunciar o projetoem dezembro de 1875, numa carta a Joseph DietzgenMas os trabalhos de preparação e redação de O capitanão lhe deixaram tem po para isso.

O capital contém muitos elementos preciosopara estudarm os com o Marx entendia e aplicava a dialética. H á, inclusive, estudo s im portante s sobre a dialética n’0 capital, podem os lembrar, por exemplo, os estudos dos soviéticos Rudin, Rosental e Iliênkov, do po

lonês Rosdolsky, do tcheco Zeleny e do sueco HelmuReichelt. Por mais importantes que sejam, contudoesses estudos são interpretações polêmicas, que nãopodem substituir a exposição da dialética como mé todo, anunciada em 1875 a Dietzgen e jamais escrita. Écompreensível, portanto, que até hoje existam muitadiscussões sobre a dialética de Marx. Quais são, pre

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cisamente, suas características essenciais? Quais são,precisamente, suas relações com a dialética de Hegel?Alguns pontos foram devidamente esclarecidos pelopróprio Marx, quando ele falou de diferenças fundamentais entre seu método e o de Hegel, decorrentesdo fato de Hegel ser idealista e ele ser materialista. H egel descrevia o processo global da realidade d a seguintemaneira: a Ideia Absoluta assumiu a imperfeição (a instabilidade) da matéria, desdobrou-se em uma série demovim entos que a explicitavam e realizavam, para, afinal, com a trajetó ria ascensional do ser humano , iniciar- enriquecida - seu retorno a si mesma. Essa descrição—que é claram ente idealista —supõe o co nhec imen to doponto de partida e do ponto de chegada do movimento da realidade. Quer dizer: é a descrição do processoda realidade como uma totalidade fechada, “redonda”.Marx, como materialista, não podia aceitar ess a descrição: para ele, o processo da realidade só podia ser encarado como uma totalidade aberta, quer dizer, atravésde esquemas que não pretendessem “reduzir” a infinitariqueza da realidade ao conhecimento.

Para dar conta do movimento infinitamente ricopelo qual a realidade está sem pre assumindo formas no vas, os conceitos com os quais o nosso conhecimentotraba lha precisam aprend er a ser “fluidos”. Hegel, coma dialética dele, lançou as bases para a “fluidificação”dos conceitos; em Hegel, no entanto, a “fluidificação”ficava limitada pelo caráte r excessivam ente abs trato do

quadro global (totalidade) da história humana. Isso sevê, por exemplo, no uso do conceito de natureza hu-mana : em Hegel, o ser humano que promovia o movimento da história era uma abstrata “autoconsciência”,ligada à tal da Ideia Absoluta, praticamente desvinculada dos problemas que afetam o corpo dos homens, demodo que a “natureza hum ana” , tal como Hegel a entendia, era idealizada, tinha muito pouco de “na ture za”

e por isso lhe faltava uma dimensão histórica mais con creta. Marx, por sua vez, conseguiu “fluidificar” muito mais radicalmente o conceito de natureza humana. Para Marx, o homem tinha um corpo, uma dimensãoconc retam ente “natural”, e por isso &natureza huma-na se modificava materialm ente, na sua atividade físicasobre o mundo: “ao atuar sobre a natureza exterior, ohomem modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. O movimento autotransformador da natureza humana, para Marx, não é um movimento espiritual(como em Hegel) e sim um movimento material, queabrange a modificação não só das formas de trabalho eorganização prática de vida, mas também dos própriosórgãos dos sentidos: o olho human o passou a v er coisasque não enx ergava antes, o ouvido humano foi educadopela música para ouvir coisas que não escutava antesetc. “A formação dos cinco sentidos” - escreveu M arx -“é trabalho de toda a história passada.”

A natureza humana, por conseguinte, conforme oconceito q ue M arx tem dela, só existe na história, num

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processo global de transformação, que abarca todos osseus aspectos. E a história, em seu conjunto, “não é outra coisa senão uma transform ação contínua da nature za humana” (conforme se lê na Miséria da filosofia).

A essa altura da nossa explicação do conceitomarxista de natureza humana, entretanto, uma pergunta se impõe: se a natureza humana se transformaglobalmente e de modo contínuo ao longo da história,

por que continuar a empregar o conceito de naturezahumana? Como ele poderia corresponder a algo deconstante, capaz de justificá-lo? Como poderia haveralgo em comum entre nós, homens do século XX, e,por exemplo, os gregos do século V antes de Cristo?

Marx não reconhece a existência de nenhum aspecto da realidade humana situado acima da história ou

 fora dela; mas admite que determinados aspectos darealidade humana perduram na história. Exatamenteporque o movimento da história é marcado por superações dialéticas, em todas as grandes mudanças há umanegação mas, ao mesmo tempo, uma preservação (euma elevação em nível superior) daquilo que tinha sidoestabelecido antes. Mudan ça e permanência são catego-rias reflexivas, isto é, uma não pode ser pensada sem aoutra. Assim como não podemos ter uma visão corretade nenhum aspecto estável da realidade humana se nãosoubermos situá-lo dentro do processo geral de transformação a que ele perten ce (dentro da totalidade dinâmica de que ele faz pa rte ), também não pod emos avaliar

nenhuma mudança concreta se não a reconhecermoscomo mudança de um ser  (quer dizer, de uma realidadearticulada e provida de c erta capacidade de du rar).

Marx não era Heráclito, o Obscuro. Ele sabiaque, quando um homem se banha duas vezes num determ inado rio, é inegável que da segunda vez o homemter á mudado, o rio também ter á sofrido alterações, masapesar das modificações o homem será o mesmo ho

mem (e não um outro indivíduo qualquer) e o rio seráo mesmo rio (e não um outro rio qualquer). Por isso,Marx empregou o conceito de natureza humana.

Para Marx, a “fiuidificação” dialética dos conceitos não tinha nada a ver com o “relativismo” e nãopodia, em nenhum momento, ser confundida com ele.Num escrito de 1857, M arx lembrou o caso da arte g rega do século V a.C . q ue refletia as condições sociais deAtenas, naquele momento, e no entanto continuava ater algo a dizer a seres humanos que viviam em outrospaíses, em ou tros tempos, com ou tro nível de desenvolvimento das forças produtivas, outras relações de produção, vinte e quatro séculos mais tarde. O exemplo daepopeia e da tragédia dos antigos gregos mostrava quea dimensão histórica de certas criações humanas nãoas impede de perdurar e nem as reduz a uma eficáciamomentânea, limitada. A mesma vitalidade demonstrada pela arte grega, aliás, pode ser encontrada emcertas ideias e observações de Aristóteles, em algunsdos conceitos criados por ele: as criações mais signi

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ficativas do espírito humano e da atividade prática dohomem se incorporam ao processo da história da humanidade e são capazes, por assim dizer, de continuar“vivas” (mudam as condições históricas, muda a nossa maneira de avaliá-las, mas são elas - e não o utrascriações do passado - que permanecem presentes nonosso horizonte). Em certo sentido, por conseguinte,podemos dizer que nessas criações excepcionalmente

bem-sucedidas dos seres hum anos há alguma coisa deverda de absoluta; po r isso, o desenvolvimen to posteriordo conhecimento humano não deixa que elas caiam noesquecimento (porque precisa delas). Nenhuma dessascriações pode ser adequadamente compreendida e assimilada pelas épocas que vieram depois delas sem umexame das condições específicas em que cada obra foielaborada; cada uma delas possui uma ligação essencial com o momento da sua gênese; mas, n a maneira deexpressarem o momento histórico em que nasceram,elas conseguem acrescentar algo ao processo históricocomo um todo. A “fluidificação” dos conceitos destinados a tratar dos dois lados dessa realidade só podeocorrer através da determinação reflexiva: os conceitosfuncionam como pares inseparáveis. Por isso, a dialética não pode admitir contraposições metafísicas, taiscomo mudança/permanência, ou absoluto/relativo, ou f i -nito/infinito, ou singular/universal, etc. Para a dialética,tais conceitos são com o “cara ” e “coroa ”: duas faces damesma moeda.

As LEIS DA DIALÉTICA

Nos últimos anos de vida de Marx, enquantoele se esforçava para tentar acabar de escrever O ca-

 pital, seu amigo Engels redigiu diversas anotações sobre questões que nos interessam, relativas à dialética.Marx apoiou Engels nas observações que este desenvolvia (e que continuou a desenvolver após a morte doautor d ’O capital).

A grande preocupação de Engels era defender ocaráter materialista da dialética, tal como Marx e ele aconcebiam. Era preciso evitar que a dialética da históriahumana fosse analisada como se não tivesse absoluta-mente nada a ver com a natureza, como se o homemnão tivesse uma dimensão irredutivelmente natural enão tivesse começado sua trajetória na natureza. Umacerta dialética na natureza (ou pelo menos uma pré--dialética) era, p ara Marx e p ara Engels, um a condiçãoprévia para que pudesse existir a dialética humana.

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Engels concentrou, então, sua atenção no examedos princípios daquilo que ele chamou de “dialética dana tur ez a” e chegou à conclusão de que as leis gerais dadialética (comuns tan to à história hum ana como à natureza) podiam ser reduzidas, no essencial, a três:

1) lei da passagem da quantidade à qualidade (evice-versa);

2) lei da interpen etraçã o dos contrários;3) lei da negação da negação.A primeira lei se refere ao fato de que, ao mudarem, as coisas não mudam sempre no mesmo ritmo; o

processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedempequenas alterações quantitativas) e por períodos deaceleraçã o (que precipitam alteraç ões qualitativas, istoé, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o exemploda água que vai esquentando, até alcançar cem grauscentígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do es tado líquido ao estado gasoso.

A segunda lei é aquela que nos lembra que tudotem a ver com tudo, os diversos aspectos da realidade

se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem unsdos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmosem conta a conexão que cada uma delas mantém comcoisas diferentes. Conforme as conexões (quer dizer,conforme o contexto em que ela esteja situada), prevalece, na coisa, um lado ou o outro da sua realidade

(que é intrinsecamen te contraditória). Os dois lados sopõem e, no entanto, constituem uma unidade (e poisso essa lei já foi também chamada de unidade e lutados contrários).

A terceira lei dá conta do fato de que o m ovimento geral da realidade fa z sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na e tern a repetição do conflito

entre teses e antíteses, entre afirmações e negaçõesA afirmação engendra necessariam ente a sua negaçãoporém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acabapor prevalecer é uma síntese, é a negação da negação.

Essas leis já se achavam em Hegel; Engels procurou resgatá-las do idealismo hegeliano e dar-lhesum sentido claramente materialista. Expondo, simpli-ficadamente, algumas das noções básicas da dialética,Engels teve um imenso êxito e exerceu uma influêncianotável no pensamento de várias gerações de operáriosconscien tes e militantes socialistas. A polêmica de E ngels con tra Dühring se torn ou um marco na história dasideias do mov imento operário.A experiência que foi sendo adquirida pelo movime nto socialista ao longo do século XX mo strou que asformulações de Engels - embora brilhantes e didáticas- possuem certas limitações.

As leis da dialética não se deixam reduzir a trêse essa redução, tal como Engels a realizou, tem algo

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de arbitrário. O s princípios da dialética se pr estam mala qualquer codificação. Um código, por definição, articula as leis, fixa as leis em artigos (artigo primeiro, artigo segundo etc.). Como poderiam, porém, ser fixadasem artigos as leis de u ma filosofia da mudanç a, de umaconcepção do mundo segundo a qual existe sempre algum a coisa de novo sob o sol?

Outra limitação: os exemplos usados por Engels

para esclarecer o funcionamento das leis da dialéticaeram todos extraídos das ciências da natureza. Porquê? Porque nas ciências exatas - dizia ele - as quantidades podem ser medidas e a demonstração pode setorna r mais convincente. Esse procedimento, e ntreta nto, acabou sendo aproveitado por tendências políticase ideológicas que, no interior do movimento socialista,sabotaram o aprofundamento da dialética (por exemplo, as tendências das quais Stálin foi o representantemais poderoso). Falaremos, mais adiante, dos problemas qu e vieram a se manifestar, ao longo do século XX,na história da dialética. Por ora, vam os nos limitar, aqui,

a lembrar que a dialética parte do recon hecimento dofato de que o processo de autocriação do homem introduziu na realidade uma dimensão nova, cujos problemas exigem um enfoque também novo. O terreno emque a dialética pode demonstrar decisivamente aquilode que é capaz não é o terreno da análise dos fenômenos quantificáveis da natureza e sim o da história humana, o da transformação da sociedade.

Evidentemente, o que acaba de ser dito a respeito das limitações das formulações de Engels sobras leis da dialética não significa que as referidas leis se

 jam falsas e devam ser esquecidas; significa apenas quelas devem ser utilizadas com as devidas precauçõesEngels era um pensador dialético de grandes méritosEm sua obra existem elementos que podemos invocaem favor da advertência q ue fizemos, q uanto à profunda diferença que existe entre a dialética na natu reza e dialética na história human a.No  AntiDühring, por exemplo, Engels dá umcaso de passagem da quantidade à qualidade ocorridona história (um caso observ ado por Napo leão Bonaparte). Napoleão analisou as lutas entre a cavalaria francesa, bem organizada e disciplinada, e a cavalaria domam elucos (que eram hábeis cavaleiros, dispunham deexcelentes cavalos, mas eram indisciplinados). E tinhdito: “Dois mamelucos derrotavam seguramente trêfranceses; cem mamelucos enfrentavam, em igualdade de condições, cem franceses; trezentos francesevenciam trezentos mamelucos; e mil franceses derrotavam, inevitavelmente, 1500 mamelucos”.Esse exemplo é de enorm e utilidade para nós. Seo compararmo s ao exemplo da água que ferve aos cemgraus e passa do estado líquido ao gasoso, perceberemos que ambos são casos de passagem da quantidadeà qualidade, porém são fenômenos de naturezas muitodiferentes. No caso da água, temos um fenômeno fí

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sico, que não depende da vontade humana. No casodo confronto das duas cavalarias, temos um processoque depende da organização, isto é, depende de fatores subjetivos, de decisões e escolhas. U m processo quecomporta alternativas e depende de iniciativas.

4 f e

m m ^ r n 

O SUJEITO E A HISTÓRIA

Depois da morte de Marx (em 1883) e de Engels(em 1895), o desenvolvimento do p ensam ento dialéticonão se interrompeu e prosseguiu seu acidentado caminho. N o final do século XIX, o socialista alemão EduardBernstein (1850-1932) passou a criticar os escritos deMarx, sustentando que o capitalismo estava mais fortedo que nunca , qu e as previsões do Manifesto comunista (de 1848) tinham falhado, de modo que era preciso submeter a uma rigorosa revisão os princípios que Marxtinha defendido. E a dialética, segundo o revisionista Bernstein, era “o elem ento pérfido na doutrina marxista, o obstáculo que impede qualquer apreciação lógicadas coisas”. Bernstein preconizou, então, um abandono da dialética, da herança hegeliana do marxismo, eum retorno a Kant.

Na ocasião, as posições de Bernstein foram criticadas e recusadas pela direção do principal partido so-

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cialista do começo do século XX: o Partido Social-De-mocrá tico Alemão. As posições que vencera m no deba te foram as de Karl Kautsky (1854-1938). Mas Kautskytambém não era um autêntico dialético: ele confundiaa dialética com o evolucionismo e às veze s se m ostravamuito mais um discípulo de Darwin do que um discípulode M arx (e tendia a considerar a história da humanidadeum a me ra parte da história global da natureza).

A primeira geração de teóricos socialistas queveio depois da geração de Marx e Engels não conseguiu assimilar a dialética. O próprio genro de Marx, ocubano Paul Lafargue (1842-1911), publicou um livrointitulado O determinismo econômico de Karl Marx, quecontribuiu para o fortalecimento, na consciência dossocialistas, de uma versão antidialética da concepçãomaterialista da história.

Nas duas primeiras décadas do século XX, difundiu-se entre os socialistas a ideia - falsa - de que,segundo Marx, os “fatores econômicos” provocavam,de maneira mais ou menos autom ática, a evolução dasociedade (sem que os homens - sujeitos do efetivo

movimento da história - tivessem um espaço significativo para tomarem suas iniciativas). Essa concepçãofacilitava a infiltração de tendên cias políticas oportunis-tas no movimento socialista: quem não enxerga nadaque dep enda da sua aç ão ten de facilmente a instalar-sena passividade (tende a contemplar a história, em vezde fazê-la).

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Kautsky e o evolucionismo. A o fundo, Darwin.

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Houve revolucionários que reagiram contra adeformação da concepção marxista da história. RosaLuxemburgo (1871-1919) e Lênin (1870-1924) se destacaram na revalorização da dialética. Invocando umafrase de Engels no  AntiDühring, Rosa sustentou quea história mundial se achava em face de um dilema: ouo socialismo vencia ou o imperialismo arrastaria a humanidade (como na Roma antiga) à decadência, à des

truição, à barbárie. É possível que os term os do dilematenh am sido exagerados por Rosa, por influência da situação, do momento em que ela escrevia (Rosa estavapresa, em 1915, e a Primeira Guerra Mundial tinha começad o). De qualquer maneira, o dilema ajudou os militantes socialistas a compreenderem que a concepçãomarx ista (dialética) da história não assegurava nen humresultado preestabelecido.

Lênin, por seu lado, desde 1902, no livro Que fa - zer?, empenho u-se apaixonadamente, no plano da teo ria política, em abrir espaços para a iniciativa do sujeito revolucionário (e especialmente para a iniciativa davanguarda do proletariado). Em seus estudos da obrade Hegel, em 1914, Lênin atribuiu imensa importância àheran ça hegeliana do marxismo e adve rtiu que, sem assimilar plenamente os ensinamentos contidos na Lógica de Hegel, nenhum marxista poderia entender inteiramente O capital de Marx.

Os estudos da ob ra de Hegel e as reflexões sobreo m étodo dialético foram de grande valia para Lênin em

sua análise do imperialismo e na elaboração estratégica que o levou a liderar a tomada do poder na Rússia,em 1917, pelos bolchevistas. O novo poder soviéticodespertou entusiasmo em círculos revolucionários eprogressistas do mundo inteiro: era uma demonstração  prática das  possibilidades concretas que estavamao alcance do sujeito humano disposto a transformaro mundo.

Importantes marxistas dos anos 1920 e 1930 encontr aram nas ideias de Lênin e sobretudo em suas realizações práticas, elementos que os impulsionaram emseus esforços para levar adiante o desenvolvimento dadialética. Esboçou-se um vigoroso movimento teóricoque pretendia superar definitivamente as deformaçõesantidialéticas a que tinham sido submetidas certas concepções de Marx no começo do nosso século. As tentativas de confundir o marxismo com o “materialismovulgar” ou com o “determinismo eco nôm ico” foram inteligentemente criticadas.

O húngaro Georg Lukács (1885-1971) advertiu:

“Não é a predominância dos motivos econômicos naexplicação da história que distingue decisivamente omarxismo da ciência burguesa: é o ponto de vista datotalidade”. Somente o ponto de vista da totalidade,segundo Lukács, permite à dialética enxergar, por trásda aparência das “coisas”, os  processos e interrelaçõesde que se compõ e a realidade. S om ente o pon to de vis-

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ta da totalidade permite que se veja no real um “jorrarininterrupto de novidade qualitativa”.

O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o marxismo como um “historicismo absoluto”.Para ele, o fatalismo determinista pode se tornar umaforça de resistênc ia moral, pode ajudar o revolucionárioa perseverar na luta, pode ajudar a organização revolucionária a manter a sua coesão interna nos períodos

marcados por uma sucessão de graves derrotas. Nessesentido, Gramsci se dispõe até a fazer-lhe um “elogiofúnebre”, reconhecendo a função histórica do determinismo, porém “enterrando -o com tod as as honras” ,pois se o determinismo persistir dificultará sempre odesenvolvimento do espírito crítico e da criatividadeentr e os revolucionários.

O materialismo histórico de Marx e Engels éconstatativo e não normativo: ele reconhece que, nascondições de insuficiente desenvolvimento das forçasprodutivas hum anas e de divisão da sociedade em classes, a economia tem imposto, em última análise, opções

estreita s aos hom ens que fazem a história. Isso não significa que a economia seja o sujeito da história, que aeconomia vai dominar eternam ente os m ovimentos dosujeito humano. Ao contrário: a dialética aponta na direção de uma libertação mais efetiva do ser humanoem relação ao cerceamento de condições econômicasainda desumanas.

   A  g .

   K  e  y  s   t  o  n  e

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Georg Lukács

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O alemão Walter Benjamin (1892-1940), aliás,lembrou que a história, tal como ela veio se desenrolando até o presente, está impregnada de violência, deopressão, de barbárie; e é exatam ente p or isso que a tarefa do teórico do materialismo histórico não pode serpensar uma espécie de prolongamento “natural” dessahistória, não pode ser promover a continuidade daquilo que essa história produziu, limitando-se a transm itir

seus produtos de mão em mão. Um espírito dialético -escreveu Benjamin, através de uma sugestiva imagem—insiste em “escovar a história a contrapelo”.

Infelizmente, os esforços de Lukács, Gramsci,Walter Benjamin e vários outros intelectuais marxistas dos anos 1920 e 1930 foram contrariados por umatendência antidialética que avançou muito no interiordo movimento comunista após a morte de Lênin, em1924. O principal representante dessa tendência antidialética foi Josef Stálin (1879-1953), que assumiu a direção do PC da URSS e do Estado soviético e exerceuuma enorme influência sobre o movimento comunista

mundial.Stálin era um político de grande talento, mas desprezava a teoria, não a levava a sério: instru men talizava o trabalho teórico, com espírito pragmático, cínico.Em M arx, Engels e Lênin, a prática exigia um ree xam eda teoria e a teoria servia para criticar a prática em profundidade, servia para questionar e corrigir a prática.Em Stálin, isso mudou: a teoria perdeu sua capacidade

de criticar a prática e o trabalho teórico ficou reduzido a uma justificação permanente de todas as medidaspráticas decididas pela direção do pa rtido com unista.

Stálin considerava Hegel uma expressão “sociológica” do atraso da Alemanha na época da RevoluçãoFrancesa e de Napoleão. Ao contrário de Lênin, queestuda va Hegel, Stálin tinha uma antipatia imensa pelopatrimônio da herança hegeliana. Em seu raciocínio,

Stálin ignorava frequentemente as mediações, cuja importância tinha sido sublinhada tanto por Hegel comopor Marx. Stálin pensava da seguinte maneira: Zinoviev, Kamenev, Trótsky, Bukhárin e outro s têm opiniões“erradas” a respeito de questões importantes; expondosuas opiniões, defend endo-as, eles produzem efeitos daninhos, objetivamente tão nocivos como os efeitos queseriam provocados pela ação de sabotadores, espiões,agentes contrarrevolucionários e traidores; portanto,objetivamente, eles são sabotadores, espiões, traidores,agentes inimigos - e precisam ser objetivamente tratados como tais. Nas coisas que Stálin dizia ou escrevia

apareciam, volta e meia, o advérbio “objetivamente”e o adjetivo “objetivo” (ou “objetiva”), precisamenteporque ele não encarava dialeticamente a questão dopapel da subjetividade na história e tendia a identificar(de modo positivista) “subjetivo” com “arbitrário” e“objetivo” com “científico”. Para se ter uma ideia decomo esse modo de pensar e de agir era diferente dode Lênin, basta lembrarmos que Zinoviev, Kamenev,

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Trótsky e Bukhárin divergiram de Lênin em questõesimportantíssimas e nem por isso Lênin os liquidou.

Tal como Engels, Stálin tinha talento para assimplificações didáticas; faltava-lhe, entretanto, a sólida base cultural e teórica de Engels. Stálin retomoude Engels o esquema das “três leis” da dialética, mas“corrigiu-o”. Em seu trabalh o Sobre o materialismo dia-lético e o materialismo histórico (1938), Stálin susten

tou que o método dialético não possuía propriamentetrês leis gerais e sim “quatro traç os fun dam entais ”, queeram: 1) a conexão universal e a interdepend ência dosfenômenos; 2) o movimento, a transformação e o desenvolvimento; 3) a passagem de um estad o qualitativoa outro; 4) a luta dos contrários como fonte interna dodesenvolvimento. Para Stálin, a expressão negação danegação”, usada por Engels, era muito hegeliana, muito abstrata: não correspondia claramente a um processo que se realizava sempre “do simples ao complexo,do inferior ao superior”. Não bastava que a síntese (a“negação da negação”) fosse qualitativamente distinta

tanto da afirmação (tese) como da negação (antítese):ela devia assumir um conteúdo nitidamente positivo,para poder ser aproveitada propagandisticamente naluta política. N os esqu ema s de Stálin era assim mesmo:as categorias da reflexão, do estudo e da investigaçãocientífica deveriam estar sempre preparadas para serpostas a serviço da propaganda.

A deformação antidialética do marxismo, característica dos tempos de Stálin, influiu poderosamentena educação ideológica de pelo menos duas geraçõesde comunistas, no mundo inteiro. Essa influência estálonge de ter sido suficientemen te analisada em suas origens e suprimida em suas consequências. Nikita Khrus-chov, quando era secretário-geral do PC da URSS,denunciou, em 1956, o sistema do “culto à personalidade” e as “graves violações da legalidade socialista”,mas não contribuiu em n ada para a elaboração de umainterpretação marxista das causas e da exata naturezados fenômenos que abordava. Os métodos de Stálinforam condenados em termos éticos e passaram a sercombatidos em termos políticos pragmáticos. Como,porém, eles se baseiam numa crassa subestimação dateoria, n unca poderão ser efetivamen te superados enquanto não for plenamente recuperada a seriedade dotrabalho teórico; e essa seriedade só estará comprovada no dia em que as deformações impostas à dialéticamarxista no período de Stálin tiverem sido submetidasa uma análise científica e filosófica, a uma investigação

historiográfica profunda e convincente.

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As deformações que se desenvolveram na épocade Stálin não constituem a única fonte de modos depensar antidialéticos que se difundem entre os marxistas. N um mundo tão dividido como este em que vivemos, a mera adesão aos princípios teóricos do marxismo nunca pode, evidentemente, funcionar como vacina, imunizando as pessoas contra os males decorre ntesde concepções estreitas, unilaterais, preconceituosas.

O gênero humano está excessivamente fragmentado,é m uito difícil com preendê-lo como totalidade concreta(e é muito difícil tomá-lo como base para uma abordagem verdadeiramente universal de certos problemashumanos gerais): os marxistas - da mesm a forma queos representantes de outras correntes de pensamento- acabam, assim, muitas vezes, misturando interessesnacionais ou conveniências particulares com a universa

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lidade do autêntico ponto de vista marxista. O ingressodo movimento comunista mundial em uma nova fase,na qual se tornou impossível a manutenção da unidade monolítica dos tempos da Internacional Comunista (1919-1943), tornou igualmente muito difícil para osmarxistas apoiarem-se numa compreensão do movimento comunista como totalidade concreta para resolverem todos os seus problemas teóricos.

Mesmo os indivíduos mais empenhados na lutapela transformação da sociedade se confundem, comfrequência, quando falta coesão à unidade deles. A falta de coesão diminui, para eles, as possibilidades de fa -

 zerem história de mo do con sciente . Diminui as possibilidades de se organizarem e de se reconhecerem na açãoda comunidade organizada a que se integraram.

O indivíduo isolado, normalmente, não pode fazer história: suas forças são muito limitadas. Por isso, oproblema d a organização capaz de levá-lo a multiplicarsuas energias e ganhar eficácia é um problema crucialpara todo revolucionário. E preciso que a organização

não se to rne opac a para o indivíduo, que ele não se sinta perdido dentro dela; é preciso que ela não o reduzaa uma situação de impotência contemplativa ou a umativismo cego. Se não, o indivíduo fica impossibilitado deatuar revolucionariamente e se s ente alienado na atividade coletiva. A o rganização deixa de ser o lugar ondesuas forças se multiplicam e passa a ser um lugar onde

elas são neutralizadas ou instrumentalizadas por outrforças, orientadas em função de outros objetivos.

(Lembremos a frase de Sartre colocada comepígrafe no começo deste livrinho: “A dialética, comlógica viva da ação, não pode aparecer a uma razãcontemplativa. [...] No curso da ação, o indivíduo decobre a dialética como tran sparên cia racional enquanele a faz, e como necessidad e absoluta enq uan to ela l

escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outroa fazem” .)Para um marxista contemporâneo - mesmo qu

seja posta de lado a questão da herança stalinista -extremamente difícil enxergar uma “transparência rcional” de sua própria ação no conflito entre a Chine a União Soviética, na invasão da Tcheco-Eslováqupelas tropas do Pacto de Varsóvia, na invasão do Cambodja pelo Vietnã, n a invasão do Vietnã pela China etQu alque r que seja o seu ponto de vista pessoal, ele é lvado a ter a impressão de que os acontecimentos estãse precipitando fora do alcance do seu p oder de intervneles como indivíduo.

Por isso, se compreende que um marxista comLouis Althusser tenh a chegado a se convence r de quehistória é um processo sem finaiidade(s) e sem sujeito (isto é, um processo mais ou menos automático, cujomovimentos são determinados por estruturas nas quanão existe, concretamente, espaço para as iniciativdo sujeito humano. Essa concepção - ressalvada a h

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nestidade subjetiva do filósofo francês - reflete umaimpotência em face da necessidade de pensarmos dia-leticamente as coisas que existem à nossa volta. Se ahistória ainda está sendo feita, em medida inaceitável,pelos outros, então o problema está em passarmos afazê-la mais decisivamente nós mesmos. E, se as formasde organização criadas para isso estão funcionando deman eira insatisfatória, o problem a está em ativá-las ou

em mudá-las, conferindo-lhes a eficácia que deveriamter. Althusser preocupou-se sinceramente, ao longo demuitos anos, com essas questões; mas sua concepçãoda história, que é uma concepção antidialética, não oajudou a encaminhar nenhuma solução para elas.

O processo de superação do capitalismo pelo socialismo tem assumido formas bem mais complexas doque M arx ou Engels poderiam imaginar. Provavelmente, tais formas ainda vão se tornar mais complicadasneste novo século. E o encaminhamento de soluçõesdialéticas eficazes para os problemas dessa superaçãovai depender de opções ainda não realizadas, de caminhos imprevisíveis.

Quaisquer que sejam os caminhos que venhama ser trilhados, entretanto, os indivíduos precisarão seempenhar em elevar o seu nível da consciência crítica,para poderem participar mais efetiva e co nscientemen te do movimento de transformação da sociedade; e paraisso precisarão assimilar melhor e aprofundar o pensamento dialético. Os indivíduos, evidentemente, não

existem à margem da sociedade. O próprio RobinsCrusoé, antes de poder sobreviver isolado na sua ilhprecisou formar-se no convívio organizado com outrpessoas: teve de se socializar, aprendendo uma série coisas imprescindíveis à sua capacidade de subsistir, szinho. Um a criança, a té pa ra nascer, p recisa de um e de uma mãe; e, se for abandonada e ninguém cuiddela, morre. O indivíduo, então, como dizia Marx, é

ser social; e é tão intrinsecamente social que somenao longo da sua história em sociedade é que o homedepois de muitos séculos, chegou a se individualizarque, nas comunidades mais primitivas, os indivídunão contavam e existiam exclusivamente em função coletividade a que pertenciam ).

Mas a vida social, nos tempos atuais, já prsupõe a existência de indivíduos que alcançaram urazoável grau de autonomia. Algumas comunidadalienadas ainda conseguem, em determinadas circuntâncias, absorver e diluir grande número de indivídu(fanatizados) no interior delas; mas já avançou ba state n as pessoas a consciência de que cada um a delas teresponsabilidades em relação às outras (e à sociedaem geral), porém possui igualmente responsabilidadem relação a si mesma.

A experiência vem ensinando a um núm ero cavez maior de indivíduos que há problemas que dpendem da pessoa e somente dela e cuja solução npode ser transferida para nenhuma organização soci

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Como escreveu o marxista tcheco Karel Kosik em sua Dialética do concreto: “Cada indivíduo - pessoalmentee sem que ninguém possa substituí-lo - tem de formaruma cultura e viver a sua vida”.

Essa compreensão que os indivíduos estão adquirindo cada vez mais concretamente do seu valorintrínseco não enfraquece neles o reconhecimento danecessidade de se associarem, mas cria importantes

exigências, novas, quanto ao caráter das associações.Por um lado, há um número crescente de indivíduos com maior riqueza e complexidade interior; eesses indivíduos experimentam uma necessidade maisimperiosa de superar seus limites como indivíduos, umanecessidade mais imperiosa de se completarem em alguma forma de existência comunitária, que os aproximeuns dos outros (sem prejuízo da individualidade deles).Por outro lado, a “racionalização” utilitária do capitalismo e o espírito exageradamente competitivo estimulado pelo mercado agravam muito as contradições entreos homens, diminuem a importância das velhas formastradicionais de comunidade (família, vizinhança antiga),criam situações de solidão, desenvolvem frustrações,espalham m uita agressividade e insegurança.

A falta de um a com preensão dialética desses problemas e a avidez dos indivíduos pela comunidade (porformas de convivência mais profundas) levam as pessoas, com frequência, a aderirem, apaixonadamente,a sucedâneos de formas de existência autenticamente

comu nitárias (quer dizer, levam-nas a se integrarem e pseudocomunidades, em caricaturas de comunidadesE o que acontece, por exemplo, com algumas pessoque passam a militar fanatica me nte em organizações tipo fascista, que se tornam propagandistas em tempintegral de seitas religiosas “salvacionistas”, que vira“formigas” num “formigueiro” qualquer. E é tambéum fenômeno que se manifesta, com gravidade be

menor, no caso de certo s grupos de jovens que se irmnam na “curtição” de uma mesma diversão ou de ummoda passageira intensamente vivida.

A falta da dialética e o anseio pela comunidadcombinados, podem igualmente influir - e com frquência influem mesmo - no comportamento dos rvolucionários. Antes de poder transformar a sociedadna qual nasceu e atua, o revolucionário é em b oa parformado por ela, de modo que seria ingenuidade spor que ele possa permanecer completamente imunaos seus venenos. Muitas, muitíssimas vezes, as ideirevolucionárias se combinam, na mesma pessoa, cosentimentos bastante reacionários e com preconcetos surpreendentemente conservadores. Por isso, nãsão raros os casos de revolucionários que tendem transformar a organização em que desenvolvem suatividades políticas num a espécie de ídolo sagrado, qunão pode ser submetido a críticas profundas e qdeve m erece r todos os sacrifícios. Essa atitude, alienda, causa graves prejuízos tanto aos indivíduos com

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à organização: os revolucionários que “fetichizam” aorganização em que atuam deixam de contribuir paraque ela se renove e acabam facilitando o agravamentode suas deformações. N a medida em que não aprofundam suficientemente nem o espírito crítico nem a lutapermanente pela democratização de todas as relaçõeshumanas, esses indivíduos mostram ser, em última análise, m aus revolucionários.

"ME W 

S e m e n t e  d e d r a g õ e s

Uma das características essenciais da dialética o espírito crítico e autocrítico. Assim como examinamconsta ntem ente o mundo em que atuam, os dialéticodevem esta r sempre dispostos a rever as interpretaçõeem qu e se baseiam para atuar.

Qu and o a filha de M arx pediu ao pai para respo nder a um questionário organizado por ela e lhe perguntou qual era o lema que ele preferia, Marx respondeu“Duvidar de tudo” .

Para homens engajados num com bate perman ente, como os marxistas, é difícil colocar em prática esslema. Com frequência se manifesta entre os marxistauma ten dênc ia que os leva a substituir a análise concreta das situações concretas por um conjunto de fórmulaespeculativas, por um esquema geral no qual as coisasão enquadradas forçadamente, precipitadamente. Ess

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tendê ncia se ma nifestava já em Hegel, que e ra idealista,e continuou a se m anifestar entre os marxistas.

Na m edida em que se deixam influenciar pela ten dência mencionada acima, os revolucionários passama querer transformar o mundo sem se preocuparemsuficientemente com a transformação deles mesmos.Com isso, perdem muito da capacidade autocrítica enão conseguem se renovar tanto quanto é necessário.

Diversos críticos, hostis à dialética, têm aproveitado essas deficiências para sustentar que o pensamento dialético despreza o rigor da análise e se prestaa “acrobacias” intelectuais. José Guilherme Merquiorainda foi mais longe e chamou a dialética de “dama decostumes fáceis”. Os defensores da dialética não podem se limitar a explicar para o Merquior o verdadeiroalcance dos princípios de Hegel e de Marx; precisamsaber aplicar esses princípios de maneira consequente,a uma realidade que - conforme reconhecemos - estásempre mudando.

A dialética não dá “boa consciência” a ninguém.Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que estáacontecen do no presente; ele questiona o presente emnome do futuro, o que está sendo em nome do que“ainda não é” (Ernst Bloch). Um espírito agudamentedialético como o poeta Bertolt Brecht disse uma vez:“O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar

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 Marx e o “duvidar de tudo

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tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade damudança e da impossibilidade de escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses cons tituídos e os depen dentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.

A dialética intranquiliza os comodistas, assustaos preconceituosos, perturba desagradavelmente ospragmáticos ou utilitários. Para os que assumem , co ns

ciente ou inconscientemente, um a posição de compromisso com o modo de produç ão capitalista, a dialética é“subversiva”, porque de m ons tra que o capitalismo estásendo su perado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos de ultraesquerda, a dialética é umelemento complicador utilizado por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias irracionalistas, des mas cara o voluntarismo e exige que as mediações do real sejam respeitad as pela ação revolucionária.Para os tecnocratas, que m anipulam o com portame ntohum ano (mesmo em n ome do socialismo), a dialética éa teim osa rebelião daquilo que eles chamam de “fatoresimponderáveis”: o resultado da insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.É verdade que, em muitos casos, o que tem sidoapresentado como dialética não tem passado de merainstrumentalização de algumas ideias de Hegel ou deMarx, mal assimiladas e ainda mais mal utilizadas. Masa reação potencialmente mais eficaz contra essa deformação é a que provém da autêntica dialética, que está

sempre alerta para enfrentar as imposturas cometidasem seu nome, com o espírito rebelde qu e lhe é peculiar.

A dialética - observa o filósofo brasileiro G erdBornheim - “é fundamentalmente contestadora”.Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar oconservadorismo dos conservadores como para sacudir o con servadorismo dos próprios revolucionários. O

método dialético não se presta para criar cachorrinhosamestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos As-trada, “semente de dragões”.

Os dragões semeados pela dialética vão assustarmuita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto,mas não são baderneiros inconsequentes; a presençadeles na consciência das pessoas é necessária para quenão seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobreFeuerbach:

“Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformálo.”

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S o b r e  o  a u t o r

Leandro Konder, nascido em Petrópolis, em1936, tem doutorado em filosofia pela UFRJ (1987), éprofessor de filosofia da educação na PUC-Rio e autor de mais de vinte livros, entre os quais o romance

 Bartolomeu e os ensaios O futuro da filosofia da práxisFlora Tristan, A poesia de Brecht e a história e Fourier, osocialismo do prazer.

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A trajetória da dialética - de sua origem,na Grécia antiga, quando era a arte do diálogoe da discussão, até hoje. Um modo de pensarque, ao privilegiar as contradições darealidade, permite que o sujeito secom preenda com o agente e colaborador doprocesso de transformação constante atravésdo qual todas as coisas existem.Heráclito, Diderot, Rousseau, Hegel, Marx,Lukács, Gramsci e Walter Benjamin sãoalguns dos pensadores que você vaiencontrar neste livro.

Áreas de interesse: Filosofia, Política

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PRIMEIROS«PASSO S*/ 23

editora brasiliense

ISBN.978-85-11-01023-7