O Que é Um Dispositivo - Agamben

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O que é um dispositivo? 1 Agamben, propõe pensar o conceito de “dispositivo”, e para isso usa o termo da estratégia de pensamento de Foucault. Este, que usa o termo dispositivo para se referir àquilo que ele chamou de governabilidade ou governo dos homens. Agamben, resume os significados que Foucault deu ao termo dispositivo em três significados: 1) como um conjunto heterogéneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas políticas, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. 2) o dispositivo tem  sempre uma função concreta e inscreve-se sempre numa relação de poder. 3) como tal, resulta de um cruzamento de relações de poder e de relações de saber. 2. O autor faz então uma genealogia do termo, e encontra na sua origem o termo positivité, este que teria sido usado por Foucault, e que este terá ido buscar a uma das suas grandes fontes do seu pensamento, o filósofo Hyppolite. E este que também não foi o criador do termo, mas sim Hegel. Então o termo dispositivo terá origem no termo positivité hegeliano. Hyppolite escreve uma obra intitulada “  A positividade e a  religião cristã”, onde defende que os conceitos de destino e positividade são os conceitos-chave do pensamento de Hegel. O termo positividade surge da oposição entre  religião natural  e  religião positiva. A religião natural surge da imediata relação da razão humana com o divino, i.e., uma relação que conserva o carater abstrato dessa relação, poderíamos dizer, que é uma relação platónica. A religião positiva (ou histórica) compreende o conjunto de crenças, de regras e dos ritos que numa determinada sociedade e num determinado momento histórico são impostos aos indivíduos pelo exterior . Hyppolite cita Hegel, e este diz que a religião positiva: “implica  sentimentos que vêm impressos nas almas por meio de coerção e comportamentos que são o resultado de uma relação de comando e de obediência e que são cumpridos sem um interesse direto.

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O que um dispositivo?

1Agamben, prope pensar o conceito de dispositivo, e para isso usa o termo da estratgia de pensamento de Foucault. Este, que usa o termo dispositivo para se referir quilo que ele chamou de governabilidade ou governo dos homens. Agamben, resume os significados que Foucault deu ao termo dispositivo em trs significados: 1) como um conjunto heterogneo, lingustico e no-lingustico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo ttulo: discursos, instituies, edifcios, leis, medidas polticas, proposies filosficas, etc. O dispositivo em si mesmo a rede que se estabelece entre esses elementos. 2) o dispositivo tem sempre uma funo concreta e inscreve-se sempre numa relao de poder. 3) como tal, resulta de um cruzamento de relaes de poder e de relaes de saber. 2.O autor faz ento uma genealogia do termo, e encontra na sua origem o termo positivit, este que teria sido usado por Foucault, e que este ter ido buscar a uma das suas grandes fontes do seu pensamento, o filsofo Hyppolite. E este que tambm no foi o criador do termo, mas sim Hegel. Ento o termo dispositivo ter origem no termo positivit hegeliano. Hyppolite escreve uma obra intitulada A positividade e a religio crist, onde defende que os conceitos de destino e positividade so os conceitos-chave do pensamento de Hegel. O termo positividade surge da oposio entre religio natural e religio positiva. A religio natural surge da imediata relao da razo humana com o divino, i.e., uma relao que conserva o carater abstrato dessa relao, poderamos dizer, que uma relao platnica. A religio positiva (ou histrica) compreende o conjunto de crenas, de regras e dos ritos que numa determinada sociedade e num determinado momento histrico so impostos aos indivduos pelo exterior.Hyppolite cita Hegel, e este diz que a religio positiva: implica sentimentos que vm impressos nas almas por meio de coero e comportamentos que so o resultado de uma relao de comando e de obedincia e que so cumpridos sem um interesse direto. Positividade, pode ento ser definida como, o elemento histrico, com toda a sua carga de regras, ritos, instituies impostos aos indivduos por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer, interiorizada nos sistemas de crenas e dos sentimentos.Surge ento um problema: a relao entre os indivduos enquanto seres viventes e o elemento histrico, conjunto de instituies, de processos de subjetivao (termo que ser explicado mais tarde) e das regras em que se concretizam as relaes de poder.Foucault no quer reconciliar os dois elementos como Hegel, nem quer enfatizar o conflito entre esses elementos. Quer, sobretudo, investigar os modos concretos em que as positividades (ou dispositivos) agem nas relaes, nos mecanismos e nos jogos de poder.

3.

O termo dispositivo toma o lugar da positividade, e vem ocupar o lugar daqueles que Foucault define criticamente como os universais.Os dispositivos so precisamente na estratgia de F. toma o lugar dos universais e no simplesmente esta ou aquela medida de segurana, ou tecnologia de poder, nem mesmo uma maioria obtida por abstrao, antes a rede que se estabelece entre estes elementos.Os dicionrios definem o termo dispositivo em trs sentidos:1) O sentido jurdico: a parte de um juzo que contm a deciso separadamente da motivao, i.e., a parte da sentena (ou de uma lei) que decide e dispe.2) O sentido tecnolgico: o modo em que esto dispostas as partes de uma mquina ou de um mecanismo e, por extenso, o prprio mecanismo.3) O significado militar: o conjunto de meios dispostos em conformidade com um plano.

O termo passa a remeter a um conjunto de prticas e mecanismos (lingusticos e no-lingusticos, jurdicos, tcnicos e militares) que tm o objetivo de fazer frente a uma urgncia e de obter um efeito mais ou menos imediato. Mas em qual estratgia de prxis ou de pensamento, em qual contexto histrico teve origem o termo moderno?

4.Agamben diz-nos que nos primeiros sculos da igreja, o termo grego oikonomia desempenhou uma funo fundamental na teologia crist.O termo oikonomia significa em grego administrao da casa, do oikos, e mais geralmente gesto, management.Este no um paradigma epistmico, mas sim uma prxis, uma atividade prtica que deve de quando em quando fazer frente a um problema e a uma situao particular. Mas a questo principal : por que os padres sentiram necessidade de introduzir este termo na teologia? Como se chegou a falar de uma economia divina?Tudo comea com o problema da Trindade crist. Quando comeam a falar de figuras divinas, o Pai, o Filho e o Espirito Santo, houve resistncia dentro da prpria igreja a tal designao, pois existia sempre o perigo eminente da reintroduo do politesmo e do paganismo na f crist. A soluo estava numa oikonomia. O argumento era mais ou menos o seguinte:Deus, quanto ao seu ser e sua substncia certamente uno; mas quanto sua oikonomia, i.e., ao modo em que administra a sua casa e a sua vida e o mundo que criou, trplice. Como um bom pai pode confiar ao seu filho o desenvolvimento de certas funes e de certas tarefas sem por isso perder o poder e a sua unidade, assim Deus confia a Cristo a economia a administrao e o governo da histria dos homens.O termo oikonomia foi assim especializado para significar de modo particular a encarnao do Filho e a economia da redeno e da salvao.

Porm, a fratura que tentaram evitar e remover em Deus sob o plano do ser reaparecer na forma de uma cesura que separa Deus ser e ao, ontologia e prxis.A ao (mas tambm a poltica) no tem nenhum fundamento no ser: esta a esquizofrenia que a doutrina teolgica da oikonomia deixa como herana cultura ocidental.

5.

Qual a traduo deste termo fundamental grego (oikonomia) nos escritos dos padres latinos? Dispositio. Este vem para assumir em si toda a carga semntica da oikonomia teolgica.

O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade sem nenhum fundamento no ser. Por isso, os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivao, i.e., devem produzir um sujeito. Comum a referncia a uma oikonomia, conjunto de prxis, de saberes, de medidas, de instituies cujo objetivo gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supe til os gestos e os pensamentos dos homens.

6.Para Agamben, altura de deixar de lado os autores em que se apoiou para prosseguir com a sua ideia de dispositivo.Os existentes esto divididos em duas grandes classes: os seres viventes (ou substncias) e os dispositivos em que estes esto incessantemente capturados. De um lado a ontologia das criaturas, do outro a oikonomia dos dispositivos que procuram gui-las para o bem.

Agamben define dispositivo, como qualquer coisa que tenha de algum modo capacidade de capturar, orientar, determinar, intercetar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes. (No so somente prises, manicmios, o Panptico, as escolas, a confisso, as fbricas, as disciplinas, medidas jurdicas, etc, cuja conexo com o poder de certa forma evidente, mas tambm a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegao, os computadores, os telemveis e a prpria linguagem, que o mais antigo dos dispositivos.Entre o vivente e os dispositivos surge um terceiro, os sujeitos.O que o sujeito? Sujeito aquilo que resulta da relao e por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.Um mesmo indivduo, uma mesma substncia, pode ser o lugar dos mltiplos processos de subjetivao: o usurio de telemveis, o navegador na internet, o escritor de contos, o apaixonado por tangoAos nossos dias corresponde um ilimitado crescimento dos dispositivos e uma igual disseminada proliferao de processos de subjetivao. Isso pode produzir a impresso de que a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistncia, mas trata-se, para ser preciso, no de um cancelamento ou superao, mas de uma disseminao que leva ao extremo o aspeto de mascaramento que sempre acompanhou toda a identidade pessoal.

7.

A fase do desenvolvimento do capitalismo uma gigantesca acumulao e proliferao de dispositivos.Como fazer frente a esta situao? Qual a estratgia a adotar no nosso quotidiano corpo a corpo com os dispositivos?O fato que, segundo toda a evidncia, os dispositivos no so um acidente em que os homens caram por acaso, mas tm a sua raiz no mesmo processo de hominizao que tornou humanos os animais que classificamos sob rubrica de homo sapiens. O evento que produziu o humano constitui, com efeito, para o vivente algo como uma ciso que reproduz de algum modo a ciso que a oikonomia havia introduzido em Deus entre ser e ao. Esta ciso separa o vivente de si mesmo e da relao imediata com o seu ambiente, isto , com aquilo que Uexkuhl e depois Heidegger chamam o crculo receptor-desinibidor. Quebrando ou interrompendo essa relao, produzem-se para o vivente o tdio isto , a capacidade de suspender a relao imediata com os desinibidores e o Aberto, isto , a possibilidade de conhecer o ente enquanto ente, de construir um mundo. Com estas possibilidades surge tambm a possibilidade dos dispositivos que povoam o Aberto com instrumentos, objetos, gadgets, bugigangas e tecnologias de todo o tipo.