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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO ALÉCIO GAMA DOS REIS Feira de Santana – BA 2012 O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ (1943-1985)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO

O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS

MEMÓRIAS DO SERTÃO DE IRECÊ (1943-1985)

ALÉCIO GAMA DOS REIS

Feira de Santana – BA 2012

O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS

MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ (1943-1985)

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ALÉCIO GAMA DOS REIS

O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS

MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ

(1943-1985)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA (BA)

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado em História da Universidade

Estadual de Feira de Santana (BA), como

requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre.

Orientadora: Profª Drª Elizete da Silva.

Feira de Santana - BA 2012

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TERMO DE APROVAÇÃO

O QUE FARPA O BOI FARPA O HOMEM: CAMPO DAS

MEMÓRIAS DOS VAQUEIROS DO SERTÃO DE IRECÊ

(1943-1985)

ALÉCIO GAMA DOS REIS

Data da Aprovação: ______/______/______

Banca Examinadora:

_______________________________________________________________ Profº Drº Clóvis Frederico Ramaiana Mores Oliveira

_______________________________________________________________ Profª Drª Elizete da Silva

_______________________________________________________________

Profª Drª Márcia de Melo Martins Kuyumjian

Feira de Santana 2012

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Ficha Catalográfica - Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS

Reis, Alécio Gama dos R298q O que farpa o boi farpa o homem: das memórias dos vaqueiros do campo

sertão de Irecê (1943 – 1985) / Alécio Gama dos Reis. – Feira de Santana, 2012. 363 f. : il.

Orientadora: Elizete da Silva

Dissertação (Mestrado em História)– Universidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em História, 2012.

1. Vaqueiros - Memórias. 2. Sertão de Irecê. 3. História do Bahia. 4. Memória coletiva. 5. Modernidade. I. Silva, Elizete da. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Departamento de Ciências Humanas e Filosofia. IV. Título.

CDU: 981(814.22)

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Aos vaqueiros do Sertão de Irecê, que me permitiram

entrar em suas casas, ouvir suas histórias, dormir nas

malhadas de suas lembranças; assistir a arte de sobreviver

e entender muito mais sobre mim mesmo.

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Quem foi vaqueiro que vê outro vaqueiro aboiar

fica lembrando dos "tempo" que vivia a vaquejar

sofre igual quem ama alguém e vê com outro, passar

Mestre Costa bom vaqueiro

no sertão do Maranhão muntado no seu cavalo

num cachorro um barbatão e com carreira e meia

não jogasse ele no chão

Hoje em vez de peitoral traz no peito uma paixão

de não poder vaquejar nem vestir o seu gibão passa boi passa boiada

pisa no seu coração

Mestre Costa na fazenda hoje só abre cancela mocidade deixou ele

ele também deixou ela a veice montou nele

e ele desmontou da sela

Bom Vaqueiro (Fagner/João do Vale)

Se eu tiver morreno e tem [tiver] uma licença, e eu puder me levantar eu... vocês pensa que eu tô dento de casa, eu tô deitado lá no curral! Manheço morto no curral! Porque arranjei a vida, cumê, foi trabaiano com gado! José Estevão dos Santos, vaqueiro, 67 anos, popular Zé dos Morrinhos. Jussara,Ba, 2012

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho resume o esforço de dois anos e meio de estrada. Muitos foram os que ajudaram a edificá-lo e que, aqui, ainda que correndo o risco de passear pelas ondas do esquecimento, merecem ser lembrados. Em primeiro lugar agradeço aos trabalhadores vaqueiros que em mim depositaram a confiança da realização dessa tarefa, me concederam suas memórias e o compartilhamento de suas vivências: Véi Herme, Gilson Vaqueiro, Francisquinho do Véi Otílio, Almir Vaqueiro, Zé dos Morrinhos, Jairo Fininho, Juarez, Samuel, Luiz Vaqueiro, Guilhermino, Sinó, Zizinho, Reinaldo de Zé Pedro, Reinaldo de Lôro, Roxinho Vaqueiro, Viana Vaqueiro, Licuri. Suas palavras representam aqui todos os trabalhadores atingidos pelo cruel processo de modernização capitalista do campo. Agradeço à minha família pela confiança inabalável nos meus intentos. D. Maria, minha mãe, mulher batalhadora, acompanhou minuciosamente todas as etapas desse trabalho e todas as angústias vividas, obrigado pelo amor incondicional. À Kátia, minha irmã, pela sólida fé, pelos abraços nos momentos difíceis. À Seu Aurindo, meu pai, pelo amor, o cuidado, por ter me chamado atenção para o mundo dos vaqueiros e muitas vezes me acompanhado nas estradas barrentas do sertão em nossa “motoca 99”. À meus sobrinhos Mailane Gabriela, Ibson e Clícia, pelos momentos de distração que me possibilitaram alegrias durante o pedregoso trajeto. Espero que esse trabalho lhes seja útil nos seus futuros caminhos. À Rinaldo Pereira, meu cunhado, pela amizade e por me permitir fazer da sua casa um pouso constante. Ao meu irmão Zan, pela ajuda na confecção do banco de fotos. Devo grande agradecimento à professora Drª Elizete da Silva, que aceitou o desafio de compartilhar comigo essa jornada. Obrigado pela atenção, pelas cobranças, pela amizade e companheirismo. Agradeço ainda ao professor Drº Clóvis Ramaiana, pelo acompanhamento, pelas prosas sertanejas e pela correção dos textos e a professora Drª Edil Silva Costa, pela participação no Exame de Qualificação, pelas críticas e elogios. Outros amigos ainda devem aqui ser lembrados e agradecidos. Exelby e Suzana, pela amizade eterna, por se desafiarem a viver um pedacinho do meu sertão, das minhas indagações. Claudiano, por compartilhar da fé em uma sociedade mais justa, pela militância diária em nome da educação e das questões agrárias. São esses amigos exemplos de inquietude e a muito lhes devo por nossas conversas e nossos desafios em entender a injusta realidade social. Agradeço ainda a Rosely Vieira (Lili), que assistiu e compartilhou comigo momentos bons e ruins desde o início dessa caminhada que hora repousa. Obrigado pelo carinho e pelos incentivos! Diógenes Sena, o “Papá”, obrigado meu irmão, pelo exemplo de força, pelos conselhos, pelas cervejas. Elizangela Ferreira, uma sertaneja das franjas do mar, obrigado pelo apoio, pelos braços sempre abertos a me receber. À Tarcíso Maia, o “Tatá”, sua força de vontade é um exemplo pra mim, e a Pedro Silvestre, o torcedor incansável do Bahia, grande

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amigo. À Manuela Muniz, por ter me apoiado na elaboração do projeto, pelas conversas livres. À Eliseu Couto e Flávio Ribeiro, que dividiram comigo o sonho do imortal “Maracujá do Mato”. Saudades! Meus grandes compadres, obrigado pelo ombro amigo sempre disponível. À Silvana, minha comadre, pela torcida silenciosa e pelo apoio na hora tão cansativa das transcrições. À Juliana Novaes, pela serenidade, pela paciência em ouvir minhas dores, por me ajudar também com as transcrições. Agradeço ainda a Paulo Xavier, que por tantas vezes me retirou de casa para jogarmos sinuca. Nossa diversão sempre me fez respirar melhor. À Gabriel Simões, George Rocha, Ademária Dourado, Charlene Brito e Wilton Francisco, pelas palavras de incentivo. A Adriana Oliveira pela concessão de fotos. À James Wilker, que tolerou com muita paciência minhas ausências em nossas lutas artísticas. À professora Nacelice Freitas, cujos conselhos acalentaram momentos de grande dúvida, me ajudando a trilhar caminhos mais seguros. À Silvério Gama, pelo empréstimo de documentos sem os quais haveria nesse trabalho grandes lacunas. À Drica e Reinam, por terem me recebido em suas casas e me ajudado na composição do quadro de entrevistados. À Edivaldo Cunha pela amizade e apoio desinteressado na busca por novos documentos. Aos professores Elói Barreto e Jaques Depelchin, por me desafiarem a acreditar na humanização dos homens. Aos funcionários do Programa de Pós Graduação em História Mestrado, especialmente, Julival, sempre prestativo. Aos professores e colegas do curso que me agraciaram com momentos de debates e refinamento dos dizeres necessários ao ofício. Cabem referências de agradecimento ainda aos companheiros e companheiras da Escola Tenente Wilson Marques Moitinho, em Irecê, pela força e pelas rodas de violão, especialmente a Paulo pela compreensão diante das minhas dificuldades finais do trabalho; Joyce, Júnior e Arlene, por me fazerem sentir-me querido no espaço de tantas lutas árduas. Agradeço ainda a algumas instituições: FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia -, pela concessão da bolsa que me permitiu dedicação integral ao trabalho durante a maior parte do tempo. À SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia -, na figura de seus funcionários, sempre atenciosos. À unidade regional da EBDA – Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola -, em Irecê, na pessoa do senhor Raimundo Rocha, por me permitir acesso o à biblioteca e arquivos. À Câmara Municipal de Irecê, especialmente ao funcionário Afonso, que me disponibilizou sua sala de trabalho para consulta de documentos. À Residência Universitária da UEFS, que me abrigou os sonhos e me empurrou até aqui. Por fim, agradeço àqueles que já trilham os caminhos da eternidade: Evériton Martins, o “Tinho”, por ter me mostrado, ainda em nossa infância, o sangue que da terra emergia no momento em que mais um trecho de caatinga ia ao chão sob as grossas correntes de um trator. Essa lembrança é um dos motivos desse trabalho. À professora Ely Estrela, pelas análises acuradas e críticas no Exame de Qualificação. Nossos projetos foram interrompidos com sua súbita ida. Ao professor Rogério Fátima, pela lição de vida que nos deixou, humana e profissional. Ao senhor Felisberto, o primeiro dos vaqueiros com quem tive o prazer de conversar, ainda que informalmente. Saudades eternas de todos! Peço desculpas aos que aqui não foram citados, mas que, com seus exemplos, doação de textos e empréstimo de livros, colaboraram com essa tarefa. Agradeço a todos! Esse

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trabalho não foi uma pesquisa, foi uma experiência de vida embalada nas cordas de um violão chamado Zé.

RESUMO

Sobre o Platô Norte da Chapada Diamantina desenvolveu-se, entre meados do século XIX e a década de 1970, uma dimensão sócio-espacial e histórica baseada no costume: o Sertão de Irecê. Neste espaço-tempo, predominaram as relações de produção e as relações sociais de produção de base poliagropecuária, voltadas para o aprovisionamento, baseadas especialmente no valor de uso e nas necessidades cotidianas de suas populações, na apropriação e transformação direta dos recursos da natureza, no uso comum da terra, nas relações sociais e simbólicas de base comunitária, familiar e de compadrio, na reprodução geracional e imemorial dos valores, juízos, normas e fronteiras sociais dos grupos. As iniciativas de modernização rural vigentes no Brasil do pós-guerra, instalaram sobre o Sertão de Irecê uma “região econômica” organizada pelo capital, pautada na dinâmica de um pólo agromercantil de alta produtividade e voltada para o abastecimento do mercado interno. Esse processo deslegitimou, restringiu, e até mesmo eliminou, modos populares costumeiros de trabalho, sociabilidade e uso/propriedade da terra das comunidades do Sertão de Irecê, inviabilizando a reconstrução dos seus elementos simbólicos e identitários. As mudanças por ele impostas atingiram de forma intensa a tradicional prática da pecuária à solta e as relações de trabalho dos vaqueiros, a partir da extinção das áreas de campo, da mercantilização das terras, do cercamento e da expansão das relações assalariadas. Esses trabalhadores vivenciaram o avanço do projeto de modernização rural como um conflito e buscaram, a partir de diversas estratégias, manterem-se ativos em suas funções como forma de produzir sentido para o existir presente. A memória coletiva dos vaqueiros do Sertão de Irecê, apresenta-se hoje como um dos principais meios de rompimento do silenciamento ao qual foram submetidos.

Palavras-chave: Vaqueiro; Campo; Sertão de Irecê; Região Econômica de Planejamento;

Modernidade; Memória Coletiva

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ABSTRACT

In the North Plateau of Chapada Diamantine developed between the 19th century and the decade of 1970, a social-spatial and historical dimension based on habits: in the backwoods of Irecê. At that space-time context overcrowded the relations of production and the social relations of production of varied crop and animal husbandry basis, focused on procurement, which were mainly based on value of use and daily necessities of people, appropriation and direct changes of natural sources, the common use of the land, social and symbolic relations of community basis, relative and godparenthood, immemorial and generative reproduction of values, judgments, rules and social limits of groups. The initiatives of rural modernization established in the post-war Brazil, implanted in the backwoods of Irecê an “economical region” organized by the capital, based on the dynamic of an agricultural and commercial centre of high production which was intended to supply the internal market. This process deprived of legitimization, restricted, and even excluded, popular and usual manners of work, sociability and communities usage/ownership of the land in the backwoods of Irecê, making impracticable the reconstruction of their symbolical and identity elements. The changes imposed affected in an intense manner the traditional practice of animal husbandry in non-bordered land and the work relations of the cow keeper, due to the extinction of field areas, the commerce of lands, fencing, and the growth of employment relationship. These workers experienced the advance of the rural modernization project as a conflict and attempted, making use of a variety of strategies, to maintain themselves in their active functions as a way of producing a sense for the present existence. The collective memory of cow keepers in the backwoods of Irecê, is nowadays presented as one of the main manners of breaking the silence they had been submitted.

Key-words: Cow keeper. Field. Backwoods of Irecê. Planning Economical Region. Collective memory.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Localização do Platô Norte da Chapada Diamantina e áreas próximas .............. 79

Imagem 2 - Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1889 ..................................................................................................................................... 81

Imagem 3 - Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1940 .................................................................................................................................... 81

Imagem 4 - Divisão político-administrativa atual do Platô Norte da Chapada Diamantina .. 81

Imagem 5 - Localização da atual Região Administrativa de Irecê em relação a Salvador .... 81

Imagem 6 - Figura estampada na capa de um dos informes da SUDENE .......................... 166

Imagem 7 - Distribuição dos recursos do POLONORDESTE pelos estados da região Nordeste (1975/1976) ....................................................................................................... 169

Imagem 8 - Primeiros tratores do Sertão de Irecê, década de 1940 ..................................... 182

Imagem 9 - Produção agrícola das principais culturas da “região agrícola” de Irecê (1950-1956) ................................................................................................................................ 185

Imagem 10 - Asfaltamento da BA-052, Estrada do Feijão ................................................. 198 Imagem 11 - Expansão das áreas agrícolas no Platô Norte Diamantino e proximidades (1975) ............................................................................................................................... 200

Imagem 12 - Carro-de-boi nas ruas de Irecê, 1963 ............................................................ 218

Imagem 13 - Crônica “Jeito de Agricultor” ...................................................................... 243

Imagem 14 - Instalação do Governo do Estado da Bahia em Irecê ................................... 250

Imagem 15 - Governo inicia plantio do feijão em Irecê, 1980 (SECOM). ......................... 251

Imagem 16 - Desfile cívico na cidade de Irecê (1970-1980) .............................................. 252

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Iniciação profissional dos entrevistados ........................................................... 103

Tabela 2 - Perfil dos criadores e rebanhos do Sertão de Irecê ............................................. 109

Tabela 3 - Vaqueiros: associação entre o trato com o gado e a agricultura ........................ 115

Tabela 4 - Área cultivada x número de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970) ................................................................................................................... 190 Tabela 5 - Relação total da Quantidade produzida (t) X Área Cultivada/Colhida (ha) X Valor (Cr$) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968. ................................................................ 196

Tabela 6 - Relação total da Área Cultivada/Colhida (ha) x Quantidade produzida (t) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982) .................................................................................... 201

Tabela 7- Número de estabelecimentos no município de Irecê (1970-1975) ...................... 203

Tabela 8- Dados pluviométricos do período 1975/1978, dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí .............................................................. 204

Tabela 9 - Relação entre os beneficiados com crédito do POLONORDESTE e o total de produtores na região de Irecê, abril/79 a mar/80 ................................................................ 206

Tabela 10 - Acesso dos produtores às linhas de crédito do Projeto Sertanejo “fase preliminar” para o período de 1978/1980 no município de Irecê............................................................ 208

Tabela 11 - Ano da criação dos municípios do Platô Norte Diamantino e áreas próximas, e municípios de origem ........................................................................................................ 219

Tabela 12 - Divisão espaço-populacional nos municípios de Barra do Mendes, Canarana, Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra e Uibaí ....................................... 220

Tabela 13 - Crescimento populacional da cidade de Irecê ................................................. 223

Tabela 14 - Aquisição de empréstimos agrícolas entre os vaqueiros ................................. 244

Tabela 15 - Rebanho bovino total (1964/1981), referente aos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 271

Tabela 16- Número de bovinos por município (1968/1981), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 273

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Área total cultivada no município de Irecê (ha) (1950-1970) .......................... 190

Gráfico 2 - Número total de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970) ............ 191

Gráfico 3 - Quantidade total produzida (t) e área total cultivada/colhida (ha) – feijão, milho, mamona – nos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968 ....................................................................................................... 196

Gráfico 4 – Quantidade total produzida (t) e área total cultivada/colhida (ha) – feijão, milho, mamona – nos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982) ............................................................................................................ 202 Gráfico 5 - Rebanho bovino total (1964/1981) dos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ............................................................................ 272 Gráfico 6 - Número total de bovinos por município (1968/1975), referente à B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí ................................................................ 273 Gráfico 7 - Número de bovinos por município (1968/1980), referente a Irecê e Morro do Chapéu .............................................................................................................................. 274

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LISTA DE FOTOS

Foto 1- Amendoeiras localizadas no centro da cidade de Jussara, usadas pelos vaqueiros para amarrarem seus cavalos ..................................................................................................... 145

Foto 2 - Zadruga, um dos primeiros modelos de tratores agrícolas a chegarem no Sertão de Irecê, ainda na década de 1950. ......................................................................................... 195 Foto 3 - Arame usado para os cercamentos entre 1950-1970 ............................................. 213

Foto 4 - Arame atualmente usado ...................................................................................... 213

Foto 5 - Arado de tração animal, monumento dedicado a agricultura na “Praça do Feijão” em Irecê (outubro de 1971) .................................................................................................... 253 Foto 6-7 - Monumento à agricultura em frente ao Banco do Brasil em Irecê ............... 253-254

Foto 8 - Luiz Vaqueiro ordenha diariamente suas vacas .................................................... 279

Foto 9 - Zizinho alimenta seus animais diariamente no quintal da sua casa ........................ 280

Foto 10-11 - Instrumentos de couro produzidos por Almir Vaqueiro ................................. 282

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................ 16

Capítulo I - O sertão em movimento: relações agrárias, costume e uso comum de terras ... 55 1.1 Sertão: povoamento, relações de produção e circuito mercantil ..................................... 55

1.2 Uso comum no sertão: permanências em frente a lei ...................................................... 68

1.3 Sertão de Irecê: o viver entre o costume e o campo ...................................................... 77

Capítulo II - Campear no espaço do costume ..................................................................... 98

2.1 “O que é bom já nasce (por ser) feito!” ........................................................................... 98 2.2 Mundo laboral: relações de trabalho e saberes no campo ............................................. 105

2.3 Sociabilidades da vaquerama: habilidades, poder simbólico e representação social ...... 132

Capítulo III - Região, nação, sertão: rastros da modernização agrária capitalista no caminho da “grande empresa nacional” .......................................................................................... 152 3.1 Debates sobre o agrário brasileiro e a reversão do Nordeste rural como modelo do planejamento nacional ..................................................................................................... 152

3.2 A modernização conservadora: a face agrária nacional do capital planejado ................ 162

3.3 Modernizando a roça: impactos do capital planejado na dinâmica produtiva dos trabalhadores rurais .......................................................................................................... 173 3.4 “Aquí, govêrno e povo irmanados, plantam a semente do progresso”: mudanças agrárias desfazendo o Sertão de Irecê ............................................................................................ 181

3.5 A urbanidade articulada: Irecê - uma Capital ............................................................... 216

Capítulo IV - Ser vaqueiro na Região ............................................................................... 228 4.1 Região de Irecê: uma “especificidade regional” ............................................................ 228

4.2 A “vocação agrícola”: um chamado da ciência para o “tempo da integração” ............... 235

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4.3 “A mode qui isso tudo qué dizê então, que de agora por diente, pelas terra do sertão, nóis num vai mais campiá”? ...................................................................................................... 257 4.4 O fim de uma região... ................................................................................................. 293

Considerando o dito e o não dito... ..................................................................................... 299 Lista de Fontes e Bibliografia ............................................................................................ 307

Caderno de Fontes e Documentos Complementares ........................................................... 327

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Introdução

Só é possível entender o saber do povo através do compromisso com a sua causa, com a sua luta, com a sua vida, com a sua esperança. Só há objetividade quando há esse envolvimento profundo e intenso, quando há um destino comum. O resto é ilusão, ainda que bem elaborada pelo nosso treino profissional para nos enganarmos a nós mesmos e nos justificarmos diante daqueles a quem oprimimos, fazendo-os objeto de nosso profissionalismo.

(José de Souza Martins) Prefácio de Os Deuses do Povo de Carlos Rodrigues

Brandão Onde fica o vaqueiro, fica também a voz.

(Maria Laura de A. Maurício) Memória de Aboios: História de Vida do Vaqueiro Zé

Preto

os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada.

(PrinsGwyn) A escrita da História

En1: É, nós vamo no mato, lá avistamo o boi, né! Se ele for uma rês mansa que for pra, que dê pra você traquejar montado né, raia com ele aí ele sai viajano [...] e se for um bicho mei ligêro na hora que você raiô, já vê ele... só faz virar os quarto pra você e já sai voano, já sai mermo com tudo que tem! Aí o cavalo...eu também boto o cavalo no que ele puder! [...] Pra derrubar! E puxa, adiante quando o cavalo dá pra derrubar você puxa e derruba, e deles que não cai, como eu tô lhe dizeno, ele bate a carrêra, não agüenta mais corrê, ele vira pra brigar, quando é valente, e quando não é, tem vez que derruba outras vez ele barra, esgota a carrêra e ai pronto, a gente tirava o laço e laçava. E: E se ele vier, e vier correndo pra pegar? [...] En:Ele vai, você vai encostado nele, quando vai impurrado ele, quando ele não agüenta mais ele joga os quarto pra lá e vem pra pegar! Ele vem de cabeça baixa pra pegá, furá o cavalo imbaxo, no peito do cavalo, é na hora que você sustenta o

1 En = Entrevistado; E: Entrevistador (sublinhado).

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cavalo, para o cavalo, e... num tem ôto recurso, é a faca! Ai puxa a faca e bota a faca nele, aí ele vem “taco!” mete-lhe o cangote na faca, que deles da faca entrar é mais de palmo! Palmo! Quando ele recebe aquela agulhada, tem deles que, que arria ainda bate as mão no chão, torna levantar as mão, quando é bruto, vem outra vez2.

A narrativa desenha o fato, o descreve, denuncia sua vontade de ser lembrado, de

ser fixado no que há de mais sólido na mente humana. Muitas vezes retornou o velho vaqueiro

ao campo, de muitos bois “tirou o calor”, porém, houve um dia em que isso não mais foi

possível. Houve um dia em que a cena não mais se repetiu. No lugar da caatinga encontrava-

se agora uma plantação e algumas árvores solitárias imitavam rugas verdes em meio ao plano.

Ao seu redor, uma cerca de arame. Por ali não mais circularam homens encourados, nem bois

fugitivos, nem cavalos em disparadas, foram todos afastados, farpados como a um só

desconhecido. Restou ao homem lembrar. Houve um dia em que o vivido virou lembrança.

Essa dissertação localiza-se na dimensão da História Social do Trabalho, na

interface com a Geografia Humana, a Antropologia, a História Econômica e os estudos sócio-

ambientais. Focamos o domínio das relações agrárias a partir do contato com a memória

coletiva dos trabalhadores rurais, entendida enquanto espaço da história da relação do homem

com o mundo, proporcionada pela a abordagem da História Oral. Nesse espaço buscamos

compreender as experiências vivênciadas pelos vaqueiros do Sertão de Irecê, diante da

expansão das relações capitalistas no Platô Norte Diamantino e áreas vizinhas (1943 e 1985)

que impôs a disciplinarização do uso da terra e a eliminação da prática costumeira da pecuária

à solta, assim como as memórias defendidas por esses trabalhadores atualmente. A presente

pesquisa pauta-se na indissociabilidade entre as dinâmicas sociais e espaciais e no enfoque

sobre o cotidiano, como a dimensão a partir da qual os homens experimentam o mundo.

Parafraseando Francisco de Oliveira, não se narra aqui uma luta de homens contra homens,

mas, um processo histórico, portanto, processo social contraditório, enquanto síntese de todas

as determinações3.

Sertões...

Diversos foram as formas de apropriação e os sentidos atribuídos ao termo sertão no

pensamento social brasileiro. Às vezes, uma categoria espacial, outras, referencial ideológico,

artístico-cultural ou ainda uma representação. Já significou o vasto e desconhecido, mas 2 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme), 71 anos, lavrador e antigo vaqueiro, Vila de Recife/

Jussara, 1º momento, 11 de out/2010. 3 OLIVEIRA, Francisco de Oliveira. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflito de classes. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 127.

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também um recorte afetivo do espaço, foi falado, mas também foi vivido, já foi vazio, mas

também povoado, já foi pobre e farto, remete ao passado, mas se desenha no presente. O

sertão pode simbolizar o semi-árido, mas também já foi úmido, foi improdutivo, mas garantiu

as condições materiais de sobrevivência de muitas populações; foi o oposto do litoral, mas

também já o completou...

Alguns pesquisadores afirmam que o termo sertão origina-se do latim sertum (mata) e

definiria a terra inferior de um país, coberta de vegetação e pouco povoada4. Outros defendem

que o termo origina-se da expressão mediterraneus lócus (que fica no meio de terras) e se

refere às terras do interior da África5. Outros autores ainda destacam que “sertão” ou “certão”

seria originário de serere, sertanum (trançado, entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor,

aquele que sai da fileira e da ordem) e desertanum (lugar desconhecido para onde foi o

desertor)6. No Brasil a expressão sertão firma-se, inicialmente, como categoria do

colonizador. Pero Vaz de Caminha, no final do século XV, informara a D. Manuel sobre a

“descoberta” das novas terras, afirmando que “pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito

grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos, terra que nos

parecia muito extensa”7.

Tomado a princípio como sinônimo de “interior vasto e desconhecido”, o vocábulo

sertão remetia em tempos coloniais a possibilidade de enriquecimento fácil e aos riscos da

natureza. Era o lugar dos animais ferozes, das doenças; o limite da frente colonizadora, o

lugar das minas, da guerra contra o “bárbaro” e o incivilizado. Ronaldo Vainfas afirma que o

termo, nos nossos primeiros séculos, não significava necessariamente áreas áridas, podendo

mesmo se referir a espaços com grande unidade8. Como nos diz Janaína Amado, definindo o

lugar do “outro”, o dominador europeu definia também o seu, o litoral: menor, lugar do

branco, onde os poderes administrativos e religiosos estavam mais próximos, centro

irradiador da civilização9.

Segundo Erivaldo Fagundes Neves, no século XIX o termo “sertão” era associado

tanto às áreas semi-áridas, como às áreas onde se desenvolviam atividades econômicas 4 BUENO, Silveira. Grande dicionário etimológico prosódico da Língua Portuguesa. São Paulo: Edição Saraiva, 1968, vol. 7, 2ª Tiragem, p. 3721. 5 FERREIRA, Antônio Gomes. Dicionário de Português-Latim. Porto: Porto Editora, 1989. 6 AMADO. Janaína. Região, Sertão, Nação. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n. 15, p. 147, 1995 7 A Carta, de Pero Vaz de Caminha. Dominus: São Paulo, 1963. Disponível em: <http//:www.culturabrasil.pro.br/zip/carta.pdf>. Acesso em 15 de jan/2010, p.8. 8 VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 528-529. 9 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação..., p. 148.

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relacionadas à pecuária10. Ricardo de Oliveira destaca que, para as elites que participavam do

debate sobre a essência nacional brasileira, no final desse século, a expressão significava o

“atraso” ou o lugar onde o “descompasso” com a “civilização” era maior11. Foi somente a

partir da publicação d’Os Sertões, em 1902, que o termo sertão passou a ser positivado,

demarcando ao mesmo tempo a decadência da visão européia sobre a História do Brasil.

Para Euclides da Cunha, os “sertões do Norte” eram áridos, isolados geográfica e

socialmente, nele, porém, vivia uma sociedade rude, mestiça luso-indígena original. Uma raça

forte, imutável, retrógrada, mas não degenerada, possuidora de tendências civilizatórias,

embora ainda não as tivesse posto em prática. Como era comum aos intelectuais do fim do

século XIX e início do século XX, o termo “degenerado” remetia a presença de sangue negro.

Afirma o autor:

Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os ante do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de envolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior12

Para Cunha, pois, os “sertões do Norte” era uma terra seca e engarranchada sobre a

qual formou-se uma espécie de oásis étnico e genético essencialmente brasileiro. Segundo

Ricardo Oliveira, Os Sertões fundamentou e consolidou representações e mitos em torno da

existência de um “Brasil profundo”, ainda pouco conhecido, onde a natureza cravou no

homem suas características gerando um tipo sociológico nacional, uma “brasilidade sertaneja”

rude e autêntica13.

No decorrer do século XX, Câmara Cascudo também enfatizou o sertão como

sinônimo das áreas semi-áridas do Brasil, ligadas “ao ciclo do gado” e a “costumes e tradições

antigas”14. Historiadores como Capistrano de Abreu, Oliveira Viana, Nelson Werneck Sodré,

Sérgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo enfocaram o conceito de diversas formas,

sempre apontando para sua importância como categoria essencial para compreensão histórica

10 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural. In: POLITÉIA: História e Sociedade. Vitória da Conquista: Edições UESB, vol. 3, nº 1, 2003, p. 155-156. 11 OLIVEIRA, Ricardo de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPHU- Associação Nacional de História, vol. 22, nº 44, 2002, p. 522. 12 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 10ª Ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2008, p. 117. Sobre a formação da mestiçagem sertaneja e sua relação com o meio ver p. 71-120. 13 OLIVEIRA, R. de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção...., p. 511. 14 CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 5ª Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1984, p. 710.

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da nação brasileira15. O sertão, pois, nascido das afirmações do colonizador e definido como

o vasto desconhecido e incivilizado, passou a significar as áreas nacionais onde havia

marcante presença da atividade pecuária, e no século XX, firmou-se no pensamento social

brasileiro como um espaço de identidade nacional.

As artes em muito contribuíram para a polissemia e para a consolidação de

representações em torno do termo sertão. Enquanto referência artístico-cultural o sertão foi

proclamado desde a poesia romântica do século XIX, passando pela prosa romântica e pela

literatura realista. Destacam-se nesse campo os “romancistas de trinta” a partir de obras como

Vidas Secas, de Graciliano Ramos, O Quinze, de Raquel de Queiroz e A Bagaceira de José

Américo, que afirmaram o sertão e o sertanejo sob o enfoque nos contrastes sociais do

interior semi-árido rural, da seca, do abandono e da migração. Todavia, é com João

Guimarães Rosa que o sertão literário ganha projeção máxima. Sua obra clássica, Grande

Sertão: veredas, foi, e continua sendo, fonte de diversos debates e pesquisas.

O sertão rosenano ultrapassa o espaço geográfico para simbolizar o universo, uma

dimensão psicológica, lugar do bem e do mal, a existência de Deus e do Diabo, como afirma

Riobaldo, protagonista do romance: “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não

seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem [...] O sertão está

em toda a parte”16. Outros campos da arte também deram sua contribuição para polissemia do

termo, como a pintura (Cândido Portinari - Os Retirantes), a música (por exemplo Luiz

Gonzaga ou as “duplas caipiras”), o cinema (Cinema Novo de Glauber Rocha), a poesia,

(Patativa do Assaré), o teatro (as obras de Ariano Sussuna), as novelas e o cordel. Dentro e

fora do Nordeste, o sertão foi (e é) criado e recriado pelas abordagens do humor, da saudade,

da honra, do trabalho ou da tragédia.

O sertão pode ser apresentado ainda como uma invenção imagética ou uma

representação. Durval Muniz de Albuquerque defende que o sertão, tal qual como o

conhecemos hoje, é um produto discursivo do século XX, uma das dimensões componentes

da formação imagético-discursiva da Região Nordeste. Para ele, os diversos discursos

artísticos e intelectuais, dos quais se destacam Os Sertões e os “romancistas de trinta”, ao

denunciarem o abandono das populações nordestinas, a miséria, o coronelismo, o

messianismo, o cangaço ou ao afirmarem o valor da tradição, produziram imagens que

15 AMADO, J. Região, Sertão, Nação..., p. 146. 16 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1.

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compuseram uma forma de dizer o espaço do interior nordestino. Como destaca ainda esse

autor, é no século XX que o sertão deixa de ser o espaço abstrato interior para se tornar um

espaço concreto no interior, específico do Nordeste17.

Valter Guimarães Soares analisou a obra sócio-histórica Fidalgos e Vaqueiros, do

poeta feirense Eurico Alves Boaventura, para compreender a emergência discursiva de um

sertão baiano a partir de meados do século XX. Segundo Soares, a incorporação da Bahia na

região Nordeste e a criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do

Nordeste), em finais dos anos 1950, impulsionou o surgimento no território baiano de obras

que se intitularam sertanejas e que assumiram, de forma variada, certas imagens já

consolidadas sobre outras áreas semi-áridas interioranas do estado18. Para esse autor, Eurico

Alves evoca uma memória de sertão e uma identidade sertaneja como reação às mudanças

que a “modernização urbana” impunha às oligarquias agrárias baianas da qual fazia parte, por

meio de um discurso épico-saudosista que reivindica importância histórica para a sociedade

sertaneja pastoril - “civilização do pastoreio” -, calcada na tradição, na honra, na ordem e no

trabalho; autônoma, que em nada devia à “civilização do açúcar”. O sertão em Eurico Alves

Boaventura, afirma ainda Soares, é, antes de tudo, produto de uma vontade de ser sertão, uma

representação, construção histórica discursiva19. Muniz e Soares aproximam-se tanto em

relação às afinidades teóricas, quanto em relação à preocupação em demonstrar as influências

do lugar social dos sujeitos “discursores” sobre as referências espaciais e imaginárias que

usamos hoje.

Recentemente, Gilmar Arruda, também em busca de uma memória discursiva sobre os

espaços, demonstrou ser o sertão um elemento do presente, ao mesmo tempo uma

espacialidade e uma identidade vivida. Seus estudos demonstram como o processo de

urbanização que reconfigurou o espaço interiorano do Sudeste, também atribuiu ao termo

sertão o sentido de “incivilizado”, passando este a ser utilizado como categoria definidora das

17 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª Ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009, p. 134. 18 A saber: Cascalho (1944) e Além dos Marimbus (1946) de Herbeto Sales; Seara Vermelha de Jorge Amado (1946); O Médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros (1952), Os cabras do coronel (1964), O Reduto (1965) e Remanso da Valentia (1967) de Wilson Lins; Jagunços e heróis (1963) de Walfrido Moraes, Horácio de Matos: sua vida e suas lutas (1956), de Olympio Barbosa; O sertão que eu conheci (1961), de Caludionor Queiroz; O coronel Horácio de Matos (1961), de Américo Chagas, além de Fidalgos e Vaqueiros (1953), de Eurico Alves Boaventura além de uma série de ensaios do mesmo autor abordando o sertão e o sertanejo, publicados na década de 1940. 19 SOARES, Valter Guimarães. Cartografia da Saudade: Eurico Alves e a invenção da Bahia sertaneja. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.

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áreas e dos habitantes do interior. Para Arruda, o estudo das transformações do termo

ultrapassa a compreensão das formas pelas quais foi tratado pelos intelectuais e explica a

própria história das alterações sobre as espacialidades brasileiras20.

Sertão é assim, sertões. Uma das características do termo é a capacidade de aglomerar

sentidos, sem excluir os anteriores. Como nos lembra Janaína Amado, desde os primórdios

coloniais, o vocábulo sertão contém uma “perspectiva dual”. Se para o colonizador o sertão,

era o lugar desconhecido, selvagem, para o seu morador ele representava a liberdade, a

possibilidade da fuga, a esperança de uma vida livre dos grilhões e das perseguições, podia ser

o inferno ou o paraíso a depender de quem o anunciava21.

Diversas dessas perspectivas e sentidos são ainda vigentes e até fundidas. Como

demonstrado, o termo não se refere a uma categoria de uso exclusivo, a sua característica

polissêmica permite que seja utilizado em diversas áreas do Brasil. Contudo, sertão passou a

representar, de forma geral, as áreas de clima semi-árido do País, atualmente identificas como

Polígono das Secas, que engloba parte do Nordeste e o Norte de Minas. Essa fração espacial é

marcada pela baixa pluviosidade anual, pelo bioma caatinga, e, até recentemente, pela

predominância de relações sócio-econômicas de base rural. Na perspectiva social, o sertão do

Brasil corresponde ao espaço onde se concentram os maiores níveis de desigualdade.

Apesar de direcionado, o sertão nunca deixou de ser polissêmico. Mesmo no interior

do Nordeste, convivem: o “sertão vasto e desconhecido” colonial, representado ainda pela

caatinga ressequida, despovoada; o “sertão do gado” do século XIX alardeado e poetizado

pela imagem do vaqueiro e o “sertão da miséria” do século XX, ao qual se associa o cangaço,

o coronelismo, as secas e os movimentos messiânicos.

Quem é o vaqueiro?: discursos e possibilidades

Nossa segunda categoria de trabalho não se apresenta menos complexa. Quem é o

“vaqueiro”? O que realmente permite-nos classificar os sujeitos como “vaqueiros”? O

vaqueiro é o personagem símbolo dos sertões nordestinos, um dos mais falados e cantados

representantes da cultura rural do Brasil. As representações mais correntes pelas quais é

definido, foram elaboradas por memorialistas, literatos e folcloristas ou mesmo, emergem das

20 ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e á memória. Bauru: EDUSC, 2000. 21 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação..., p. 150.

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artes populares cotidianas como cordéis/repentes e está associado às abordagens que

enfocaram o sertão como lugar da pecuária.

No tocante ao campo da historiografia, o vaqueiro é um sujeito silenciado, sobre ele

predomina uma visão generalizante. Durante a maior parte do século XX os historiadores

absorveram de forma acrítica as imagens do vaqueiro produzidas pelas obras literário-

memorialísticas. O paradigma historiográfico economicista totalizador na década de 1960,

atribuiu à pecuária e aos vaqueiros uma perspectiva subalterna no contexto de formação

histórica do Brasil, produzindo um silêncio sobre esses sujeitos que só recentemente tem sido

rompido. Como nos diz Eduardo Magalhães Ribeiro, entre os cientistas sociais a pecuária não

tem passado de uma “praga dos campos brasileiros”, enfatiza-se o seu caráter “extrativo,

latifundiário e predador” e sua pobre função interiorizadora e povoadora, com “magros surtos

de riqueza” e de uma mobilidade fatigante22. Em tudo ela se antagoniza ao mundo farto do

açúcar. Ao vaqueiro restou a genérica definição do “homem que cuida do gado”.

Assim como fizemos anteriormente em relação a categoria sertão, busquemos aqui

um pequeno intinerário discursivo sobre o vaqueiro, que nos indique algumas formas pelas

quais foram e são definidos e nos permita entender os fios e questionar os silêncios que tecem

suas representações. Os primeiros documentos pelos quais temos conhecimento desse sujeito

são os relatórios e anotações de viajantes, cientistas e estrangeiros que estiveram no Brasil nos

séculos XVIII e XIX. O termo “vaqueiro” está contido nas anotações do jesuíta Antonil, dos

naturalistas von Martius e von Spix, do inglês Henry Coster e do engenheiro Teodoro

Sampaio, mas, é o príncipe Wied-Neuwied, quando da sua passagem por Barra da Vereda, na

Bahia, em 1817, que nos dá a descrição mais pormenorizada dos vaqueiros:

Já aqui pude travar conhecimento com os homens encarregados de guardas o gado; são os “vaqueiros” ou “campistas”, como os chamam em Minas Gerais, vestidos de couro de veado da cabeça aos pés. Essa vestimenta parece extravagante à primeira vista, mas é muito adequada pois, esses homens têm muitas vezes de correr atrás do gado, que foge através dos arbustos espinhosos e das “caatingas”, ou então são obrigados a fazer passar o gado por aí, para reuni-lo. A sua vestimenta consta de sete peças feitas de couro de veado: o “chapéu” pequeno e arredondado com abas estreitas, que se alarga e alonga para trás para formar uma pala que abriga o pescoço; o “gibão” ou jaqueta, aberto na frente, por baixo do qual está o “guarda-peito”, largo pedalo de couro que desce até a barriga; as “perneiras” ou calções, por debaixo das quais estão as botas munidas de esporas. [...] O “vaqueiro”, montado num bom cavalo sobre uma sela acolchoada, leva na mão uma longa vara cuja

22 RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Vaqueiros, bois e boiadas – trabalho, negócio e cultura na pecuária do nordeste mineiro. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, vol. 10, abril/1998, p. 135. Disponível em: <http://r1.ufrrj.br/esa/index.php?cA=db&aI=112&vT=da&vA=285>. Acesso em: 20 de mar/2011.

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extremidade é guarnecida por uma ponta de ferro rombuda, com que afasta ou abate os bois furiosos; às vezes leva também um “laço” para pegar os animais mais bravios23.

Acrescenta-nos o observador que os “vaqueiros”, espalhados nas diversas fazendas dos seus

patrões, “vivem separados do mundo, levando uma verdadeira existência de solitários”24.

Quanto ao perfil psicológico desses homens nos diz ainda Wied-Neuwied: quanto aos vaqueiros, homens agrestes, indolentes e exclusivamente ocupados de cuidar de seus animais, nenhum auxílio se pode esperar da parte deles. Só a muito custo se consegue, mediante boa paga, que eles cacem para nós. Afastados de qualquer pretensão ao título de homens instruídos, consideram o estudo da história natural e os trabalhos que a acompanham como uma ocupação tola e pueril25.

Aos olhos do viajante estrangeiro os vaqueiros eram figuras estranhas, ora pitorescas,

ora rudes, que poucas relações buscavam com o mundo externo. O debate que se travou no

final do século XIX em torno das originalidades nacionais, fez emergir novos discursos que

tomaram o vaqueiro como referência. Em O Sertanejo, romance regionalista publicado em

1875, José de Alencar discorreu sobre o interior cearense do Vale do Jaguaribe do século

XVIII, tendo como pano de fundo as paisagens do sertão pecuário, palco do protagonista

Arnaldo, o primeiro vaqueiro da Fazenda Oiticica, de propriedade do capitão-mor Arnaldo

Campelo. Conhecemos melhor o personagem em meio à conversa que trava com seu patrão:

Não sei lidar com os homens; cada um tem seu gênio: o meu é para viver no mato. Tornou o Campelo ainda mais fechado: — Quer dar em bandoleiro, como esses que aí andam ao cosso pelo sertão, acabando o gado das fazendas, à fiúza de matar barbatão, e praticando toda casta de maldades em suas correrias? Arnaldo ergueu a fronte com um assomo de escândalo contra a injuriosa suspeita. — O senhor capitão-mor não pode temer isso de mim. Conhece-me bem. — Conheço, disse o velho fazendeiro, descansando solenemente a larga mão sobre o ombro do rapaz, a título de reparação da injustiça. — Vivo de pouco e Deus me dá de sobra. Não careço do alheio, nem o cobiço. Tão pouco se ligará com bandoleiros quem não pode acostumar-se à gente de melhor avença. Procuro o sertão, e moro nele para estar só. Mas fique vossa senhoria descansado, que se não presto para camarada ou vaqueiro, quando se tratar de o defender e acatar, a si e aos que lhe são caros, pode contar que não tem servidor mais pronto, nem mais devoto. Minha vida lhe pertence, é dispor dela como lhe aprouver26.

23 WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. São Paulo-Rio de Janeiro-Recife-Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940, p.376 <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagem-ao-brasil-nos-anos-de-1815-a-1817/pagina/376>. Acesso em 15 de fev/2012. 24 Idem, Ibidem, loc. cit. 25 Idem, Ibidem, p. 391. 26 ALENCAR, José de. O Sertanejo. Rio de Janeiro: Editora Escala, [s.d.] (Coleção Grandes Mestres da Literatura Brasileira), p. 77 (grifo nosso).

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Arnaldo é um homem servidor, simples, destemido, herdou a profissão do pai, o

vaqueiro Louredo, tem grande conhecimento sobre a natureza e os animais, prefere dormir nas

árvores e andar só, além disso, possui grande respeito por Campelo, seu patrão. Também no

campo literário regionalista o vaqueiro surge personificado no pobre Fabiano, de Vidas Secas.

Em O Quinze, Vicente e Chico Bento, ambos vaqueiros, encarnam duas realidades diversas, o

primeiro cuidando do seu próprio gado e o segundo, sendo expulso da fazenda, torna-se

retirante em uma desastrosa migração à Fortaleza. O vaqueiro é também personagem de

Guimarães Rosa, no conto Entremeio: com o vaqueiro Mariano, publicado em 1969.

É, contudo, com a publicação de Os Sertões que o vaqueiro foi elevado à condição de

tipo social brasileiro. Em Euclides da Cunha a imagem do vaqueiro se confunde com a

imagem da própria sociedade forte, rude e original que vimos linhas acima, pois, como afirma

esta é uma “sociedade rude, libérrima e forte dos vaqueiros”27. “Todo sertanejo é vaqueiro”28,

sintetiza Cunha. Assim o descreve: O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o do guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as “perneiras” de couro curtido ainda muito justas cozidas às pernas subindo até as virilhas, articuladas em “joelheiras” de sola, e resguardados os pés e as mãos pelas “luvas” e “guarda-pés” de pele de veado – é como forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo29.

É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o “campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência30.

Os vaqueiros euclidianos são homens bravos, mestiços luso-indígenas, imutáveis e

desbravadores, produto do sol e da terra, são os responsáveis pelo povoamento do interior,

antípoda do missionário e do minerador que apenas se poram ao sertão para explorar o

silvícola e a riqueza mineral. O vaqueiro é, porém, de aparência fatigada, desengonçado,

abatido e forte, lento como as boiadas, mas ágil na captura da rês fugitiva, fiel a seu patrão,

vivendo nas fazendas uma servidão inconsciente. Sua existência é produto de intercalas

“horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias”, “atravessou a mocidade numa

27 CUNHA, Euclides. Os Sertões.., p. 106. 28 Idem, Ibidem, p. 125. 29 Idem, Ibidem, p. 122-123. 30 Idem, Ibidem, 119-20.

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intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança”. “Compreendeu-se

envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as

energias” 31.

No final da década de 1930, Câmara Cascudo parece retomar algumas observações de

Euclides da Cunha, redesenhando o vaqueiro como um herói cunhado pelo meio e pela função

que exerce. O ciclo do gado determina o individualismo do seu participante. Dá-lhe a noção imediata de independência, de improvisação, de autonomia de livre arbítrio de arrojo pessoal. Fundada a fazenda o vaqueiro antigamente um escravo ficava senhor do gado, da casa, dos cavalos, responsável pelas iniciativas imediatas para defender os animais entregues a sua energia. Movimenta-se livremente nos plainos dos tabuleiros e caatingas, no galope árduo do seu cavalo de fábrica, caçando as reses tresmalhadas ou ariscas32.

Para Cascudo, o vaqueiro é um homem portador de um “individualismo arrogante” e

de uma “autonomia moral”33, que vive “encourado, com sua armadura côr de tijolo, suas

esporas de prateleiras, [e] seu gibão medieval”34 nos livres campos em busca das reses. Este

autor resgata a fidelidade do vaqueiro para com seu patrão defendida por Euclides da Cunha,

afirmando a existência de uma relação harmônica entre esses sujeitos, pois, “na criação do

gado, a lida unificou os homens ricos e pobres [...] Vão os dois, patrão e servo, para a mesma

batalha, lado a lado, ao encontro do mesmo fim, com disposições idênticas, e nas veias a

mesma herança orgulhosa de vaqueiro e de cavalo sem derrotas”35.

É ainda no início do século XX que surgem as primeiras observações propriamente

historiográficas sobre os vaqueiros. Nesse grupo podemos incluir de forma exemplar Urbino

Vianna, Basílio de Magalhães e Capistrano de Abreu. Preocupados em explicar os processos

de ocupação territorial do Brasil, não dedicaram esses autores em suas obras mais que

algumas linhas ao vaqueiro. “Vaqueiro”, destaca Capistrano de Abreu se remetendo ao

“admirável” Roteiro do Maranhão a Goiás, era entre “as gentes da Bahia, Pernambuco,

Ceará”, um título honorífico36.

31 Idem, Ibidem, p. 104-106, 122-124, 125-128. 32 CASCUDO, Luís da Câmara. Tradições Populares da pecuária Nordestina. Pernambuco: ASA, 1985, p. 32 33 Idem. Dicionário do Folclore Brasileiro..., p. 783. 34 Idem.Vaqueiros e Cantadores: folclore poético do Sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [198-], p. 80. 35 Idem. Sociologia da abolição em Mossoró. In: Boletim Bibliográfico. Mossoró, nº 95-100 apud Idem. Dicionário do Folclore Brasileiro..., p. 783. 36 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800). Fundação Biblioteca Nacional – Departamento Nacional do Livro, p. 73. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000062.pdf>. Acessado em 23 de mai/2011.

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O vaqueiro que emerge da obra de Capistrano é, essencialmente, o “homem que cuida

da fazenda e do gado” do seu patrão, que o protege das feras, o homem povoador das áreas

interioranas. Descrito como um homem astuto, nos lembra Arnaldo, prefere dormir no campo,

tende a liberdade. Basílio de Magalhães, em rápida passagem, chega mesmo a reclamar o

esquecimento ao qual estão expostos os trabalhadores do gado, afirmando que o “imerecido

anonimato” dos “audazes vaqueiros” é resultado do fato de que estes não foram “contribuintes

de peso do erário de Portugal!”37.

Na década de 1950, a “sociedade rude dos vaqueiros” afirmada por Euclides no

início do século XX, ecoou novamente, dessa vez entre os intelectuais literatos baianos. Entre

seus adeptos merecem destaque Eurico Alves Boaventura e Wilson Lins. Pertence ao primeiro

o já citado Fidalgos e Vaqueiros. Este, como já pudemos nos referir, foi alvo dos estudos de

Valter Guimarães Soares e tem despertado o interesse de diversos outros pesquisadores. É a

mais relevante obra sobre a pecuária baiana e foi publicado postumamente.

Assim como em Euclides da Cunha, o vaqueiro euriquiano é também um

“bandeirante pastoril”, mestiço superior, com pouquíssimo ou nenhum sangue africano, é o

símbolo de uma sociedade original esquecida no interior do País, trabalhador fiel ao seu

patrão, o verdadeiro desbravador e povoador das caatingas, pois, “saiu o vaqueiro, vestido de

bandeirante, a desbravar o horizonte, a rasgar as serras e a esfarrapar nesgas de mato mais

alto, para caminhos posteriores à cata de mais pasto”. Ainda segundo Eurico Alves, o

vaqueiro tem a necessidade de “explorar novos horizontes”, isso, todavia, não significa que

seja nômade como o índio, não está perdido na caatinga sem pouso, apenas herdou desse a

“acomodação à vida movimentada, o bem estar da solidão”38. Para esse autor a sociedade do

vaqueiro é também harmônica: É absoluta a autoridade do fazendeiro e vive ele na comunhão integral com seu domínio e sua gente. Apesar de fidalgo, não sentia repúdio ao trabalho, sobretudo pelo belo trabalho do vaqueiro. Possivelmente, o fato de não ser escravo o vaqueiro tenha concorrido para animar o dinamismo do homem que se atirou ao pastoreio39.

Emerge da citação um fazendeiro que não só comunga da vida com seus vaqueiros

como também é, ele próprio, um vaqueiro. Como nos mostra Igor Gomes Santos, Eurico

37 MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geográfica do Brasil Colonial. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 153. 38 BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e Vaqueiros. Salvador: UFBA, Centro Editorial e Didático, 1989, p. 125. 39 Idem, Ibidem, p. 103.

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Alves buscou horizontalizar racial e socialmente o vaqueiro e o fidalgo, excluindo (ainda que

sem negar a existência) a influência africana da sociedade sertaneja e enfatizando o gosto pelo

trabalho por parte das elites aristocráticas40.

Assim como Eurico Alves, Wilson Lins também foi integrante da aristocracia

pecuária baiana, tendo desfrutado de grande influência política em meados do século XX e

sendo eleito diversas vezes como deputado. Firmou-se no campo das artes como ensaísta,

romancista e jornalista sendo sua obra de maior peso O Médio São Francisco: uma sociedade

de pastores e guerreiros, um ensaio sócio-histórico sobre o coronelismo e a cultura do sertão

do vale sanfranciscano, produzido a partir de suas lembranças de infância. Embora não tenha

na pecuária e no vaqueiro seu foco narrativo, Lins incorpora as representações sociais

euclidianas do homem forte, rude, corajoso, honrado e fiel a seus patrões para definir o

vaqueiro.

Afirma Lins que no vale sanfranciscano “os covardes nascem mortos”41, ali “todos

eram vaqueiros, todos vestiam o mesmo gibão de couro, moravam as mesmas casas de taipa,

comiam a mesma carne seca com farinha e rapadura”, viviam uma “indigência coletiva”42. Na

sociedade wilsoniana o “caibra vaqueiro” é o “exemplar magnífico de uma raça de curibocas

puros quase sem mescla de sangue africano”43. A “sociedade rude dos vaqueiros” emerge em

Lins também calçada por uma positivação da hierarquia social, da originalidade racial mestiça

curiboca, do mundo rural pastoril e de seus personagens. É importante notarmos, contudo,

que o retorno aos discursos de Euclides da Cunha feito pelos dois autores baianos não visou

mais afirmar a existência de uma originalidade nacional. A proposta foi outra. Buscaram esses

autores afirmar uma importância histórica para a aristocracia pecuária da qual faziam parte em

um momento (meados do século XX) onde as relações de poder e prestígio se voltavam para o

mundo urbano.

Também no campo memorialístico na década de 1950, José Norberto de Macêdo

publicou Fazendas de Gado no Vale do São Francisco. A obra é um relato das observações

do autor sobre o cotidiano nas fazendas de gado do Vale do São Francisco, fundamentadas

sobre as representações euclidianas de sertão e vaqueiro e a defesa da necessidade de 40 SANTOS, Igor Gomes. Eurico Alves Boaventura: uma “democracia mestiça” para uma civilização de “uma classe só”. In: SILVA, Aldo José Moraes (Org.). História, poesia, sertão: explorando a obra de Eurico Alves Boaventura. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. 41 LINS, Wilson. O Médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros. Salvador: Oxumare, 1952, p. 135. 42 Idem, Ibidem, p. 37-38. 43 Idem, Ibidem, p. 16.

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30

incorporação das tecnologias modernas ao mundo pecuário baiano. Para o autor, o Vale do

São Francisco é “antes de tudo” o lugar onde o gado e o homem se “interdependem”. O

vaqueiro de Macêdo é também um desbravador, braço trabalhador e ocupador da terra, calmo,

comedido, aprendeu a falar pouco e observar muito, fiel seguidor da orientação traçada pelo

patrão, vive curvado, tem o estômago chupado, seus braços e mãos são fortes, “são enormes e

grossas como que desajeitadas para os trabalhos suaves e delicados”, “nasceu mesmo para

viver escarranchado numa sela, bamboleando suas pernas longas e magras nos cavalinhos

adelgaçados”. Embora heróis, “não cremos”, destaca ainda o autor, que estes pobres e

humildes trabalhadores possam constituir nem ao menos os arautos de suas necessidades; suas

vozes se perdem e morrem no limiar dos currais e das caatingas”44.

Enquanto os literatos e memorialistas nordestinos resgataram em meados do século

XX o vaqueiro heróico euclidiano, o Cinema Novo de Glauber Rocha os confrontou expondo

Manoel Vaqueiro, um “anti-herói”, homem pobre e resignado, que vive entre as calamidades

das injustiças sociais e da seca45. O emergir da década de 1960 marca ainda a fundamentação

de um novo dizer sobre o vaqueiro no campo historiográfico, a partir da consolidação do

modelo econômico explicativo da gênese histórica brasileira, defendido por Caio Prado,

Fernando Novais e Jobson Arruda.

Focando a importância do grande mercado do açúcar, as relações comerciais

externas e o sistema escravista dentro do contexto mundial de expansão das relações

capitalistas mercantis, esses autores afirmaram ser a pecuária, e consequentemente, os

vaqueiros, fatores secundários na História Brasileira, cuja importância se reduzia à sua

colaboração para com a atividade agroexportadora. Para Caio Prado o vaqueiro era o dirigente

do “estabelecimento” (fazenda), um dos poucos “empregados”, vivia ele “montado o dia

inteiro” sem poder se descuidar do disperso rebanho. Prossegue Prado destacando que as

fazendas mais importantes possuíam dois ou três vaqueiros. Para o autor, a vida nas fazendas

dos sertões, eram marcadas por relações de trabalho “rudimentares” e “primitivas”, por

formas atrasadas de trato com os animais e de condições materiais de vida46.

44 MACEDO, José Norberto de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 1952, p. 48-53. 45 DEUS e o Diabo na Terra do Sol. Direção Glauber Rocha. Produção: Luís Augusto Mendes. Versátil Home Vídeo; Riofilme, 1964, DVD Duplo, Versão Restaurada e Remasterizada (125 min.), Fullscreen, P&B 46 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 36,48,52,55-59,113,118,182-193, passim.

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31

A ênfase na gênese capitalista da História Brasileira levou Prado, em outro texto, a

afirmar, o sistema tradicional de pagamento dos vaqueiros47 como uma forma disfarçada de

assalariamento48. José de Souza Martins, analisando o colonato na região cafeeira, este

também alvo das observações de Prado, realizou crítica ao posicionamento do autor,

destacando que suas afirmações se fundamentavam mais em polarizações políticas

vivenciadas em seu contexto do que em uma real preocupação para com a reconstrução

histórica da realidade49. Como veremos, no tocante ao entendimento das relações e sujeitos de

trabalho envolvidos no mundo da pecuária, só recentemente esse modelo explicativo genérico

passou a ser questionado.

A partir da década de 1980, surgiu uma nova geração de trabalhos memorialísticos

que transitaram pela temática do vaqueiro. Entre os anos de 1985 e 1988 foi produzida e

publicada a coletânea História de Vaqueiros: vivências e mitologias. O projeto foi apoiado

por órgãos estaduais como IPAC (Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural da Bahia) e

coordenado por Washington Queiroz. Em suas viagens os pesquisadores percorreram 37

municípios baianos e reuniram dezenas de entrevistas dos trabalhadores vaqueiros, abordando

os hábitos, cultura material, religiosidade, crenças, festas, mitos e medicação animal. O

resultado desse levantamento foi a publicação de 2 volumes e um catálogo bibliográfico, os

quais, no nosso entender, compõem ainda um dos materiais mais completos no que tange ao

contato com a memória dos vaqueiros baianos. O objetivo do projeto, no entanto, não foi o de

debater ou analisar as narrativas colhidas, mas, apenas registrá-las. Na introdução de um dos

livros ressalta Queiroz: A transformação cada vez maior das zonas de criação de gado solto em zonas de criação de pastagens, com gado marcado a ferro e preso em currais, modifica as atividades do vaqueiro, transformando-o apenas em tangedor, zelador de gado. Com isso, a figura tradicional do vaqueiro deixa de existir ou, pelo menos, começa a ser transmutada, na medida em que não mais enfrenta os obstáculos próprios à criação extensiva do gado. Tais mudanças poderão, rapidamente, levar ao desaparecimento desta personalidade tetracentenária, extinguindo assim suas histórias, sem o devido registro50

47 Era comum os vaqueiros receberem 1 em cada 4 animais nascidos no rebanho sobre o qual se responsabilizava. Esse sistema será melhor abordado no capítulo II. 48 Idem. Contribuição para a análise da questão agrária no Brasil. In: PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 60-65. 49 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª Ed. revisada e ampliada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 28-29. 50 BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Histórias de vaqueiros: vivências e mitologia. Salvador; IPAC, 1987, vol 1, p. 15.

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32

A consolidação da pesquisa acadêmica no Brasil após 1980, impulsionou os

historiadores a reverem as visões macro analíticas economicistas da década de 1960. A

continuidade desse processo tem permitido recentemente o surgimento de pesquisas

historiográficas voltadas para as especificidades dos sertões nordestinos a partir de novos

pressupostos teóricos e metodológicos. Embora parte dessas obras não tome a pecuária e o

vaqueiro como foco de análise, as tramas sócio-econômicas, agrárias, familiares e raciais

descortinadas tem permitido produzir novos questionamentos e compreender mundos

complexos dos quais eram os vaqueiros parte integrante. Nesse grupo podemos incluir, por

exemplo, os trabalhos do pesquisador Erivaldo Fagundes Neves, Luiz Cléber Moraes Freire,

Elisangela Oliveira Ferreira e Maria Aparecida Silva de Sousa. O primeiro, centrado no

campo teórico-metodológico da História Econômica, História Agrária e História Regional,

buscou entender a dinâmica agrária do Alto Sertão da Bahia entre os séculos XVIII e XIX,

apontando para a existência de vaqueiros escravos e para estratégias de acumulação de micro-

patrimônios desses sujeitos, a partir da sua condição cativa51.

Freire, influenciado por Neves, analisou a participação da mão-de-obra escrava em

Feira de Santana entre 1850 e 1888, identificando também entre os documentos oficiais

analisados 10 vaqueiros escravos e 1 curraleiro, categoria de trabalhador ainda pouco

conhecida52. Ainda apontando para a existência dos vaqueiros escravos está a obra Entre

vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no Sertão do São

Francisco, no século XIX53 de Elisangela Oliveira. Maria Aparecida em A Conquista do

Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia, dedica parte de sua

obra para demonstrar a importância da pecuária como fator de ocupação das terras apossadas

pelos colonizadores54. Em todos esses trabalhos emerge uma leitura mais profunda e acurada

sobre a importância do gado como patrimônio familiar, mesmo para os mais despossuídos, e

ferramenta de domínio dos espaços conquistados nos primeiros séculos.

Ainda no campo historiográfico recente e abordando especialmente a dinâmica

pecuária e os seus trabalhadores, podemos citar os estudos de Francisco Carlos Teixeira da

51 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sucessão dominial e escravidão na pecuária do Rio das Rãs. In: Sitientibus. Feira de Santana: UEFS Editora, nº 21, jul/dez 1999, p. 126-127. 52 FREIRE, Luiz Cléber Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana, 1850-1888. Salvador: UFBA, 2007 p. 87-91. 53 FERREIRA, Elisangela Oliveira. Entre vazante, caatingas e serras: Trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco, no século XIX. Salvador: UFBA, 2008 [Tese de Doutorado], p. 25. 54 SOUSA, Maria Aparecida Silva de. A conquista do sertão da ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: UESB, 2001, p. 100-110.

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33

Silva. Esse autor tem nos chamado atenção para a forma “idealizada e impressionista” com

que o vaqueiro tem sido tratado. Refere-se Teixeira da Silva à existência de uma “mitologia

do vaqueiro”, composta por uma visão heroicizada e romantizada do homem vestido em seu

gibão como um “sucedâneo brasileiro do cawboy”.

Para esse autor a historiografia dos anos 1960 usou de forma genérica o termo

“vaqueiro”, definindo-o como todos os que trabalhavam com gado nas fazendas. Esse fato

impediu a percepção das hierarquias existentes dentro da fazenda e subalternas ao vaqueiro

como os camaradas, cabras ou fábricas. De acordo com Teixeira, o vaqueiro dos tempos

imperiais e coloniais era um homem livre, ocupava posto de prestígio dentro das fazendas,

tinha acesso aos seus senhores, o sistema de partilha lhe permitia adquirir terras e por vezes

tornavam-se credores dos próprios fazendeiros. Para ele, o vaqueiro podia ainda criar animais

seus e de vizinhos ao mesmo tempo, recebendo por esse serviço55.

O surgimento dessas novas abordagens sobre o mundo da pecuária e seus sujeitos,

como nos acrescenta ainda Teixeira, só foi possível depois dos estudos de Luíz Mott sobre as

fazendas de gado do Piauí. Segundo ele, Mott desafiou a historiografia tradicional ao enfatizar

a predominância da escravidão nas relações pecuárias do sertão e romper o mito da aptidão

indígena ao caráter livre da pecuária56.

Eduardo Magalhães Ribeiro, em artigo intitulado Vaqueiros, bois e boiadas –

trabalho, negócio e cultura na pecuária do nordeste mineiro, cuja perspetiva analítica se

aproxima dos estudos de Francisco Carlos Teixeira (embora não faça referência aos trabalhos

deste), destaca o vaqueiro como um sujeito imerso em uma rede de relações de trabalho e

comerciais formada por agregados, comerciantes, fazendeiros e boiadeiros. Também para

Ribeiro, o vaqueiro era um trabalhador especializado que recebia um tratamento diferente por

parte dos seus patrões, sendo muitas vezes tolerado mais que os outros empregados. O

vaqueiro, ainda segundo Ribeiro, tinha acesso às casas e essa proximidade era cultivada pelos

próprios fazendeiros como forma de manter o controle sobre o trabalho do seu empregado57.

Tanya Maria Pires Brandão, afirmando ser o vaqueiro o tipo social ideal para análise

da vivência no sertão, uma vez que este incorpora ao mesmo tempo a liberdade do ofício e a

55 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, nº 8, abr/1997, O trabalho: vaqueiros, cabras e escravos. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/oito/francis8.htm>. Acesso em 01 de fev/2011. 56 Idem, Ibidem, loc. cit. 57 RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Vaqueiros, bois e boiadas..., p. 137-144.

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dominação dos fazendeiros, também reconhece sua distinção laboral e define-o como

administrador da fazenda, como integrante da escala de poder, homem de confiança do patrão.

Essa autora chega a se referir a um “posto de vaqueiro”58. Essa visão, contudo, nos parece

encaminhar para um equívoco. Erivaldo Fagundes Neves aponta para a existência de

diferenças entre os vaqueiros e administradores das fazendas. Estes, nem sempre residiam nas

fazendas pelas quais eram responsáveis. Para esse autor, o erro em considerar esses dois

sujeitos como um só emerge das crônicas coloniais, a exemplo da de Antonil. Vaqueiros e

administradores eram, pois, funções diferentes e gozavam de prestígios diferentes59.

O enfoque direto sobre o vaqueiro e suas relações de trabalho no contexto

historiográfico recente, ganha maior fôlego na obra de Joana Medrado Nascimento

denominada “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura política na pecuária

(Geremoabo, 1880-1900). Medrado analisa, a partir de inventários e cartas trocadas entre o

Barão de Geremoabo e seus vaqueiros, as práticas desses trabalhadores, os pontos

conflituosos das relações de trabalho, as estratégias e resistências na disputa por espaços e

prestígio. Para essa pesquisadora, o importante é perceber o ponto de vista dos próprios

vaqueiros sobre as relações de trabalho nas quais se encontravam. Joana Medrado questiona

os mitos da harmonia social e da fidelidade dos trabalhadores a seus patrões, proclamadas

desde o trabalho de Euclides da Cunha. Para ela, ser vaqueiro era um ofício de “valorização

social e prazer pessoal”, o que não deve ser confundido com “adoração ao dono da fazenda”,

uma vez que era justamente a possibilidade de construção de uma autonomia (pessoal e

patrimonial) e independência em relação ao fazendeiro que tornava o trabalho com o gado

uma função almejada60.

Esses novos trabalhos historiográficos, tanto os que abordam de forma indireta como

os que se voltam diretamente para os vaqueiros, fundados em novas abordagens teórico-

metodológicas, propuseram novas leituras sobre os documentos enfatizando os silêncios e as

relações cotidianas dos grupos “comuns”, nesse sentido, o vaqueiro tem emergido como um

sujeito complexo, envolto em diversas relações de trabalho e portador de grande poder

simbólico junto a seus patrões. O vaqueiro livre, luso-indígena, afirmado por literatos e 58 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres; et. al. História: Cultura e Sentimento: Outras Histórias do Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Cuiabá: Ed. da UFMAT, 2008, p. 121-134. 59 NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e Dinâmica Mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2005, p. 222. 60 MEDRADO, Joana. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura política na pecuária (Geremoabo 1880-1900). Campinas, SP: [s. n.], 2008 [Dissertação de Mestrado].

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memorialistas surge agora como homens escravos, negros ou mestiços. Suas relações de

poder são repensadas e a subserviência outrora afirmada, ganha hoje formas de poder de

barganha. O vaqueiro surge em meio a uma teia de relações familiares, de relações de

trabalho, junto com outras categorias de trabalhadores, parece não ser mais o genérico

“homem que cuida do gado”. Estamos aqui bem longe da “subalternidade econômica”

afirmada por Caio Prado e também “servidão inconsciente” e heróica de Euclides da Cunha,

tantas vezes repetidas.

Sabemos, contudo, que a leitura dos textos historiográficos é ainda uma prática

restrita e que muito se tem a descobrir sobre o mundo da pecuária e dos seus trabalhadores.

Pertencem ainda aos literatos, folcloristas e memorialistas as principais representações que

tornam o vaqueiro definível. A força dessas representações pode ser identificada, por

exemplo, no recente artigo publicado de Washington Queiroz, Bahia e Vaqueiros: um débito,

no qual o autor resgata a ação desbravadora do vaqueiro a partir dos discursos de Eurico

Alves Boaventura. Queiroz reafirma os vaqueiros como “bandeirantes”, homens que

possibilitaram o povoamento do sertão, o alargamento das fronteiras, os únicos cuja coragem

transpôs os obstáculos do mundo sertão, formando um “Estado do Sertão”. O vaqueiro de

Queiroz é novamente um rústico, um homem que carrega no rosto os sulcos que são “marca

daquele chão”61.

Como já era notável em História de Vaqueiros, Queiroz está preocupado com a

extinção dos vaqueiros que lidavam com o gado em meio às caatingas devido ao avanço das

relações capitalistas. No citado artigo, o autor afirma existir uma dívida nacional para com o

vaqueiro uma vez que este ainda não recebeu o devido merecimento. Essa dívida recai mais

fortemente sobre a cidade Feira de Santana, núcleo urbano cujas origens estão ligadas ao

comércio de gado e a ação dos vaqueiros. Nesse sentido, Queiroz propõe o reconhecimento

oficial da importância da pecuária e do vaqueiro para a Bahia, através da criação de um

“organismo de referência nacional e internacional” que abarque o patrimônio da “civilização

vaqueira”62. No contornar das linhas do autor, o vaqueiro baiano retorna à condição de herói a

ser reconhecido.

61 QUEIROZ, Washington. Bahia e vaqueiros: um débito. In: R. FACED. Salvador, nº 7, jan/jun. 2010, p.80. Disponível em: <http//:www.portalseer.ufba.br/índex.php/rfaced/article/download/.../3809>. Acesso em: 15 de jun/2011. Queiroz é antropólogo, uma das autoridades de maior destaque no estudo dos vaqueiros e da pecuária na Bahia. 62 Idem, Ibidem, p. 82.

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Estamos aqui diante de um “jogo da memória”. Para os interesses de Queiroz (chamar

a atenção dos órgãos oficiais) se torna inviável apresentar o vaqueiro pelo discurso da nova

historiografia, que o apresenta muitas vezes como um escravo. Recorre esse autor, pois, às

imagens mais sólidas da memória social, retomando o aspecto heróico e brilhante do

vaqueiro. Diante desse fato e do restrito acesso aos textos historiográficos (para não falar do

pequeno número de pesquisas que tem se voltado para a temática em foco) o vaqueiro ainda

persiste como o genérico “homem que cuida do gado”.

Sua imagem continua sendo confundida nos diversos meios de comunicação com

outras categorias de trabalhadores como carreiros, camaradas, tropeiros. Define-se vaqueiro

como todo aquele que usa indumentárias de couro e trabalha com o gado. Sua imagem é ainda

a do homem, rústico e desbravador de Euclides, ou mesmo a de Arnaldo, subserviente e

solitário, ou a do resignado Manoel Vaqueiro. Para isso, muito contribuiu o silêncio imposto

pelas visões historiográficas macro-analíticas de meados do século XX, de onde só agora a

pecuária e o vaqueiro passam a ser retirados para uma “reavaliação” por parte dos

historiadores. Essas novas pesquisas historiográficas tem se pautado exclusivamente no trato

com fontes oficiais como inventários e testamentos do século XVIII e XIX, contudo, um

razoável conjunto de materiais que aborda o vaqueiro está disponível também fora dos

arquivos.

O vaqueiro é mesmo um dos elementos centrais na composição do imaginário popular

dos sertanejos. Os cordéis e repentes criam e recriam suas aventuras e proezas, alimentando as

representações de heroísmo, coragem, pobreza, força, rusticidade e originalidade. Citemos

alguns exemplos: O vaqueiro que montou no touro fantasma e na mula sem cabeça, do poeta

baiano Antônio Alves da Silva e O barbatão Mandigueiro, de Romenick Cruz Sena. No

campo religioso, Carlos Alberto Steil já demonstrou como a figura do vaqueiro e do boi foram

incorporados pelos romeiros do Santuário de Bom Jesus da Lapa (BA), como forma

metafórica atualizada de reproduzir o mito bíblico do “pastor” e do nascimento de Jesus.

Afirmando ter sido um vaqueiro o “descobridor” da gruta durante a perseguição a uma rês, os

romeiros recriam sua relação com o espaço do santuário e estruturam uma tradição oral que ao

mesmo tempo os liga e possibilita o acesso a práticas religiosas nem sempre aceitas pelo clero

católico63.

63 STEIL, Carlos Alberto. O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 153-158.

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O imaginário popular sobre os vaqueiros pode ser alcançado também por meio das

corografias e dos livros de memórias64. Muitos municípios já possuem suas próprias

“histórias”, que podem subsidiar um estudo sobre as formas de registro memorial da pecuária

e de seus trabalhadores e da importância dessas memórias para constituição das identidades

locais, ou mesmo, servir de “pista” para o contato inicial com fatos referentes ao tema. O trato

com esse tipo de fonte, no entanto, apresenta dificuldades devido a dispersão física dos

documentos e a forma sintética com que o tema é geralmente abordado nessas obras. A

literatura também tem contribuído com novos “falares” sobre os vaqueiros. O romance A

Dama do Velho Chico, de autoria de Carlos Barbosa, publicado em 2002, nos presenteia com

um protagonista vaqueiro denominado Agenor.

Para além das fontes escritas, as fontes sonoras são recursos de grande potencial

para o entendimento da memória sobre a pecuária e os vaqueiros. Podemos citar aqui,

ilustrativamente, as obras Cantiga do Boi Encantado e História de Vaqueiros, do cantor e

compositor baiano Elomar Figueira de Melo, as músicas da dupla Vavá Machado e Marcolino

e de outros grupos de aboios e toadas65. No campo da pintura indicamos os trabalhos do

artista feirense Juraci Dórea.

É possível que o interesse pelas peculiaridades pecuárias dos sertões baianos e dos

vaqueiros ganhe novo fôlego a partir desse momento. Um elemento de destaque foi dado

nesse sentido: a transformação do ofício de vaqueiro, e seus saberes, em Patrimônio Imaterial

da Bahia, pelo decreto nº 13.150, de 09 de agosto de 2011. No ano de 2007 o município de

Feira de Santana já havia dado um primeiro passo, instituindo o dia 31 de maio como o Dia

Municipal do Vaqueiro. Essas ações de institucionalização, todavia, nos remete ao

pensamento de Pierre Nora: a necessidade da memória sinaliza o fim dos meios de memória66.

64 Além dos já citados, possuem trechos específicos sobre o vaqueiro: SAMPAIO, Gastão. Feira de Santana e o Vale do Jacuípe. Salvador: [1970 à 1980], p. 75-76; BATTISTEL, Arlindo Itacir; CAMANDAROBA, Joana. Barra: um retrato do Brasil. Porto Alegre: Edições EST, 1999, p. 53-64. 65 Tendo a música como fonte de pesquisa, podemos citar aqui a monografia de VIEIRA, Natã Silva. O cotidiano dos vaqueiros do sertão nordestino nas músicas dos cantadores aboiadores. Salvador: UFBA, 2006 [Monografia de Graduação]. 66 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dez. 1993, p. 7.

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38

Problemática

Em que pese os avanços da nova historiografia que tem abordado a pecuária e seus

trabalhadores direta ou indiretamente, o vaqueiro permanece ainda, para os historiadores,

como sujeito do passado. Inicialmente sua imagem está atrelada aos processos coloniais de

povoação do interior, através da criação das grandes fazendas de gado, que se estenderam

entre o século XVI e o século XVIII. É possível encontrarmos algumas referências ainda

abordando essas temáticas nas primeiras décadas século XX. Aos olhos dos historiadores do

presente só faz sentido falar em “vaqueiro” nesses contextos temporais, parecem aceitar o

“limiar dos currais e das caatingas” proposto por Macedo67, como o limite para o homem e o

boi.

Em claro antagonismo a esses discursos historiográficos, os vaqueiros ainda são

sujeitos presentes em muitas partes do Nordeste. No caso específico do interior baiano, o

processo de mercantilização das terras, oficializado em 1850 com a Lei de Terras, só se

implantou efetivamente na segunda metade do século XX, permitindo que relações de

trabalho e sociabilidades, formas de uso da terra, de recursos naturais e de trato com o gado,

muitas vezes afirmados como referências de um passado colonial pela bibliografia

apresentada, existissem até recentemente.

Outro fator que pesa sobre a imagem em torno dos sujeitos de análise desta dissertação

são as relações de trabalho. O vaqueiro é sempre visto como funcionário de uma “fazenda”,

propriedade de um latifundiário pecuarista, seu “patrão”. Mesmo as pesquisas historiográficas

que se voltaram a analisar diretamente o mundo pecuarista ou que marcam seus recortes

temporais nas primeiras décadas do século XX, afirmam que vaqueiro não existe sem

fazenda68. Nessa perspectiva, o vaqueiro é sempre visto como um apêndice do seu “patrão”,

ainda que se mova, a partir do qual se define. É certo que trabalhar em uma fazenda com o

gado alheio, corresponde a uma regra nas relações de trabalho dos vaqueiros, porém,

antecipemos, nossos estudos apontaram para necessidade observar as peculiaridades do

mundo do trabalho desses sujeitos e relativizar categorias como “vaqueiro”, “fazenda” e

“patrão”, pelo menos para o entendimento das dinâmicas pecuárias recentes do interior da

Bahia para as quais nos voltamos.

67 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 53. 68 RIBEIRO, E. M. Vaqueiros, bois e boiadas..., p.139.

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39

Entrevistamos homens que se autodenominam “vaqueiros” pelo simples fato de

conhecerem as artes do trabalho com o gado nas caatingas, no sistema tradicional à solta.

Estamos aqui diante de trabalhadores que entendem o “ser vaqueiro” como algo além de uma

função ou de uma relação de trabalho, mas, como uma identidade. Muitos cuidaram por

décadas dos rebanhos da própria família, obtendo suas rendas pelo sistema tradicional de ¼,

ou a “sorte”, como preferem chamar, mas não possuíram um “patrão” no sentido comumente

abordado na bibliografia consultada. Não acreditamos aqui na hipótese de que houve uma

vulgarização do termo no decorrer do tempo, mesmo porque, os vaqueiros atuais, tais como o

de outrora, continuam sendo trabalhadores especializados, gozando de grande prestígio social

em suas comunidades. É importante notarmos ainda que, toda a bibliografia sobre o tema

pauta-se em leituras exógenas, ora de viajantes, ora de memorialistas, ora de historiadores.

Em síntese, considerado como sujeito do passado, evitou-se perguntar aos vaqueiros atuais “o

que é ser vaqueiro”.

Alguns dos vaqueiros por nós entrevistados cuidaram do rebanho de vários donos ao

mesmo tempo, inclusive dos seus. Uma inversão importante ocorre aqui: no contexto

abordado nessa pesquisa era comum que o vaqueiro fosse procurado pelo criador e não o

contrário, uma vez que aquele possuía uma mão-de-obra especializada. Essa inversão retira do

fazendeiro a condição de epicentro das relações de trabalho. Como vimos, Francisco Carlos

Teixeira já aponta para esse poder de barganha por parte dos vaqueiros. O termo “patrão” é

utilizado pelos entrevistados para designar pequenos e médios criadores, possuidores de

rebanhos que variavam de 50 a 300 gados, grandes pecuaristas, ou até mesmo criadores de

algumas cabeças. Além disso, o vocábulo “patrão”, para os vaqueiros depoentes, não significa

necessariamente a existência de uma relação de trabalho estável, podendo designar, por

exemplo, um contratante de serviços rápidos como a captura ou condução de animais

Outro elemento de destaque em nossas observações foi o fato dos vaqueiros

entrevistados não se definirem como “empregados” e sim como “sócios” do criador. Essa

perspectiva em muito se choca com as leituras da bibliografia consultada. O termo

“empregado” é usado comumente para definir os vaqueiros que atualmente trabalham pelo

sistema assalariado em fazendas cercadas. Acreditamos aqui que a categoria “patrão” ainda

permanece sob as representações euclidianas do grande fazendeiro absenteísta. Por outro lado,

a maior parte dos entrevistados não vivenciou as “fazendas” no sentido clássico do termo,

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40

trabalharam com o gado sob sua responsabilidade em meio às áreas de uso comum do Platô

Norte Diamantino ou áreas próximas, ocupando quase a função de donos dos animais.

Tanya Maria Pires Brandão ressalta que a tomada da imagem clássica do vaqueiro

como figura representativa do sertão, pode se vincular com a percepção que se “pretende

difundir da vida no sertão”69. As palavras da autora nos impulsiona a pensar nas

intensionalidades por trás da forma como é apresentado ou silenciado o vaqueiro. Nesse

sentido nos questionamos: Por que os historiadores enterraram o vaqueiro nos primeiros

séculos da História Brasileira? Por que os historiadores, mesmo nos estudos mais recentes,

alguns dos quais se propõem a reler as relações de trabalho em torno da pecuária, ainda

entendem o fazendeiro como o ponto fixo a partir do qual o vaqueiro planeja suas ações?

Já vimos como sua exaltação do vaqueiro serviu para Euclides da Cunha afirmar uma

originalidade social nacional, ou mesmo para autores como Wilson Lins e Eurico Alves

Boaventura reclamarem o desprestígio que a aristocracia pecuária sofria em meados do século

XX. Mais recentemente o vaqueiro serviu de instrumento para Washington Queiroz afirmar a

necessidade da criação de um organismo público que conservasse a memória da “civilização

vaqueira”. E o silêncio dos historiadores, a quem serve?

Márcia Menendes Motta tem apontado para as formas de gestação de uma “amnésia

social” em torno da ação dos sujeitos rurais comuns a partir da manutenção de memórias

oficiais70, muitas vezes alimentadas pela própria História. Ainda Motta nos mostra como os

historiadores, apegados a um dado modelo teórico e formas tipológicas, tem se omitido em

debater a ação do “homem pobre do campo” no século XIX, mesmo diante dos indícios

apontados pelas fontes. Segundo ela, esse fato dá-se em parte pela aceitação da tese

“tradicional” da Sociologia Rural, que defende a criação das Ligas Camponesas como marco

político da criação do campesinato brasileiro71. James Scott também alerta que o trabalho com

registros oficiais, muitas vezes, impossibilita historiadores e cientistas sociais de

compreenderem a dinâmica de ação e luta dos trabalhadores comuns, o que termina por

69 BRANDÃO, T. M. P. O vaqueiro: símbolo da liberdade..., p. 128. 70 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Jogos da Memória: conflitos de terra e amnésia social. In: Tempo. Rio de Janeiro: UFF, vol. 16, abr/2001, p. 113-128 Disponível em: < http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg6-11.pdf>. Acesso em: 14 de jan/2012. 71 Idem. Movimentos rurais nos Oitocentos: uma história em (re)construção. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ, vol. 16, abr/2001, p. 113-128. Disponível em: < http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/dezesseis/marcia16.htm>. Acesso em: 14 de jan/2012.

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colaborar com o silêncio já existente sobre eles72. Para esses autores, e também para nós, cabe

à História e aos historiadores questionar suas próprias categorias e formas de trabalho,

silêncios e abordagens.

Acreditamos aqui que os motivos que fundamentam o silêncio, a manutenção das

representações generalizantes e anacrônicas dos vaqueiros por parte dos historiadores podem

ser sintetizados em quatro pontos: 1) pequeno número de pesquisadores que se voltam para os

sertões e às dinâmicas de trabalho e sociabilidade em torno da pecuária. Como se tentou

demonstrar, essa realidade só começou a se alterar nas últimas décadas; 2) insuficiência de

centros acadêmicos, linhas de pesquisa voltadas ao mundo rural e resistência por parte de

alguns historiadores quanto ao trato com o domínio que ficou conhecido como História

Recente; 3) ausência de bibliografia e fontes específicas sobre o tema; 4) permanência entre

os historiadores da tese da subalternidade pecuária defendida por Caio Prado e seus

seguidores, ou mesmo, da incorporação por parte dos pesquisadores de leituras modernizantes

e categorias “oficializadas”.

Na verdade esse “aparente apagamento” e a afirmação do vaqueiro como um sujeito

do passado, deve-se ao fato de que os intelectuais da História temem mais contar o que se

vive, do que as pessoas “comuns” de viver. Pensando nessas problemáticas nos propusemos

aqui a analisar os vaqueiros baianos a partir do foco nos processos históricos recentes e de

uma abordagem qualitativa que privilegie a fala dos sujeitos. Nosso espaço de pesquisa é o

Platô Norte Diamantino e seus espaços circunvizinhos, ou melhor, o Sertão de Irecê.

Embora se assemelhasse em linhas gerais a várias outras populações do semi-árido

nordestino, o Sertão de Irecê formou-se e viveu processos sócio-históricos singulares que o

diferenciou de outras áreas. Esse espaço do interior baiano só passou a ser efetivamente

povoado a partir da segunda metade do século XIX. O Sertão de Irecê esteve na maior parte

do tempo à margem das grandes disputas coronelistas. Em relação às disputas políticas

clássicas do interior da Bahia, as ocorrências aí existentes foram eventuais ou de pequenas

proporções.

Tendo sido espaço de povoamento tardio, a escravidão, embora tenha marcado

presença, foi vivida pelas comunidades aí existentes mais como efeito do que como

instituição. Também não foi esse espaço lugar de grandes fazendas de gado, nem alvo direto

72 SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. In: Raízes. Campina Grande – PB: UFCG, vol. 21, nº 01, jan/jun 2002, p. 14.

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das vias férreas instaladas no interior baiano no final do século XIX e início do século XX, e

nem espaço de mineração. Não deixou, porém, de sofrer a influência desses processos. Do

ponto de vista agrário, o Sertão de Irecê firmou-se no processo de fragmentação das grandes

propriedades pela ação de posseiros e arrendatários ou de pequenos sitiantes

poliagropecuários que compraram terras.

Diante dessas peculiaridades entendemos o Sertão de Irecê como a dimensão humano-

espacial e simbólica que possibilitou a emergência de um modo de vida rural costumeiro

sobre o Platô Norte Diamantino entre a segunda metade do século XIX e a década de 1970

(período marcado pela expansão das relações capitalistas no Platô), baseado na apropriação e

transformação direta dos recursos da natureza, no uso comum da terra, na policultura e

polipecuária, nas relações sociais e simbólicas de base comunitária, familiar e de compadrio,

na reprodução geracional dos valores, na produção imemorial das formas de trabalho e nas

relações sócio-econômicas de aprovisionamento.

Emília Pietrafesa de Godoi, baseada nos estudos do antropólogo estadunidense

Marshall Sahlins, esclarece que o aprovisionamento diferencia-se de uma “economia de

subsistência” por ser este comumente associado ao binômio “trabalho contínuo-

sobrevivência”. O aprovisionamento, pelo contrário, não significa uma produção

exclusivamente para consumo direto das famílias, abarca a formação de excedentes (que

garantem a troca por produtos dos quais não dispõem nos mercados locais e regionais), a

formação de reservas e estoques, além de não significar uma “vocação” ao trabalho contínuo,

integrando assim os momentos de lazer e descanso dos sujeitos73.

De certo modo a expressão Sertão de Irecê abarca uma contradição, pois, como

tentaremos demonstrar, a emergência de Irecê como espaço referencial no interior baiano,

firmado sobre um modo de vida urbano, baseado nas relações comerciais e assalariadas, a

partir de meados do século XX, opõe-se às características de “Sertão” predominantes até esse

momento sobre o Platô Norte Diamantino e nas suas proximidades. Contudo, entendemos que

o termo, enquanto noção sócio-espacial, se constitui em uma ferramenta válida para os

objetivos propostos nesta pesquisa por facilitar a delimitação espacial e a compreensão do

modo de vida sertanejo, assim como das transformações pelas quais este passou recentemente.

73 GODOI, Emília Pietrafesa de. O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 91-92.

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Para efeito de nosso estudo, espacializamos o Sertão de Irecê a partir da etno-noção de

campo que nos foi apresentada pelos entrevistados. O campo, de forma genérica, era

composto pelas áreas de pastagem de uso comum, mas era também o elemento determinante

na construção da Geografia Social das populações sertanejas. Era sobre o campo que erguiam-

se as casas, povoações, os caminhos, as roças, os currais, nele estava a caça, a fibra, o boi, o

vaqueiro. O campo é muito mais que a caatinga, é uma proposta comunal de uso e

propriedade da terra.

Como reflexo do avanço das relações capitalistas de produção no mundo pós-

guerra, e sua posterior adoção pelos Governos Brasileiros como padrão político-econômico de

desenvolvimento, o Sertão de Irecê tornou-se alvo de várias iniciativas de modernização

agrária e urbana. Esse processo baseou-se na expansão do crédito oficial, na ênfase sobre a

agricultura comercial triconsorciada (feijão, milho e mamona), na horizontalização e

cercamento das terras, na reestruturação urbana, na monetarização das relações de trabalho, na

mecanização das relações de produção e na ação protagonizada do Estado, via produção de

infraestrutura e ergueu, a partir da década de 1970, sobre o Platô Norte Diamantino e áreas

próximas, um pólo agromercantil de grãos nacionalmente interligado e voltado para o

abastecimento interno.

Como se desenvolveu esse processo e quais os seus impactos sobre o modo de vida

das comunidades do Platô Norte Diamantino e circunvizinhança? Como os vaqueiros do

Sertão de Irecê viveram esse momento? Que estratégias usaram para sobreviver em suas

funções? Até que ponto foi possível manter-se vaqueiro? Até que ponto foram eliminados?

Que lembranças alimentam no contexto presente?

O Sertão de Irecê, enquanto lugar de bois e vaqueiros, é tão atual quanto as

modernidades ali chegantes. Entender esse encontro nos requereu ferramentas.

Referencial teórico-metodológico

Este estudo centra-se sobre o pressuposto da indissociabilidade entre sociedade e

espaço, enfocando as dimensões cotidianas e locais como totalidades explicativas dos

processos históricos. Como nos afirma Milton Santos, entender os processos que se

desenvolvem no “lugar”, é hoje um pressuposto para entendermos as dinâmicas do nosso

tempo. O mundo se faz como possibilidade e se materializa no “lugar”. Os grandes conflitos

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atuais não são outra coisa senão conflitos pelo uso dos “lugares”. Como ainda defende Santos,

no atual contexto de expansão das relações capitalistas, cada vez mais, os “lugares” se

distinguem pelas suas capacidades de oferecerem rentabilidade aos investimentos. Mas, o

“lugar” não é um vazio a ser preenchido por interesses externos, é a dimensão do vivido, do

cotidiano, é a dimensão das paixões, da sobrevivência e das espontaneidades humanas. O

“lugar” é uma totalidade, é a síntese do local e do global74.

Nosso lugar é o Sertão de Irecê, definido aqui como uma dimensão sócio-espacial e

simbólica organizada pelo costume. O costume, nos diz Thompson, é o produto da práxis

cotidiana dos trabalhadores pobres, o conjunto de normas e regras sociais, que disciplinam os

usos dos bens e recursos naturais e sociais, legitimado localmente na prática em comum, no

exercício rotineiro da sobrevivência e nos tempos imemoriais. O costume também se

apresenta como lei, na medida em que produz noções de direito de uso e de continuidade das

práticas e sentidos de vida, ao mesmo tempo em que os legitima a partir da transmissão

geracional. O costume é em si uma propriedade, reivindicada quando em risco. Esse conceito

nos põe em contato com as práticas dos trabalhadores, com seus “juízos” sobre o mundo e

sobre a sociedade, seus mecanismos de reprodução desses juízos, seus códigos de convívio,

suas noções de uso e direito, suas fronteiras e mecanismos de controle social. Ao ser

reivindicado, o costume demonstra os projetos e as expectativas presentes e futuras dos

homens75.

Foi por meio do costume que os habitantes do Sertão de Irecê produziram suas

concepções morais de vivência e uso de suas materialidades, noções espaciais, identitárias,

econômicas, temporais, de ordem e desordem. Criar animais à solta, reconhecer na função de

vaqueiro uma forma de prestígio, usar comunitariamente a terra e os recursos naturais, fazer

um “benefício”, abrir as roças, erguer as casas, usar os espaços urbanos eram no Sertão de

Irecê modos costumeiros de produção da sobrevivência. Pensar o Sertão de Irecê como

produto do costume é buscar entender a realidade do ponto de vista dos que a vivenciaram,

apropriando-se das categorias por eles mesmos gestadas como forma de compreensão dos

sentidos pelos quais definem o mundo e narram suas histórias.

74 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª Ed. 2ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 212-232. 75 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [Trad. Rosaura Eichemberg], p. 13-24,86-149. Ver também: THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (Coleção Oficinas da História, v. 7) [Trad. Denise Bottman].

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Para compreensão do processo de modernização rural que se expandiu sobre o

Sertão de Irecê na segunda metade do século XX, nos apropriamos das categorias teóricas de

Francisco de Oliveira. Entendemos o pólo agromercantil erguido sobre o Platô Norte

Diamantino e áreas próximas como uma “região econômica”: a “região do feijão” ou “Região

de Irecê”, uma “especificidade regional” dentro da “Região econômica Nordeste”. Como nos

fala Oliveira, uma região é um espaço especial de produção do capital dentro do modo de

produção capitalista, é um espaço onde se imbrincam o econômico e o político, determinado

por uma das formas do capital, cuja finalidade maior é garantir os meios para a reprodução

ampliada desse capital e sua inserção nas esferas superiores76.

Enquanto espaço do capital, a região possui sua própria hierarquia de classes,

estruturada pela posição em que os sujeitos se encontram em relação às dinâmicas que

controlam os sistemas de produção e reprodução do sistema77. O conceito de região, ou

melhor, a noção de “especificidade regional”, nos possibilita entender os processos pelos

quais o capital determina a forma de uso das espacialidades no seu processo de reprodução

desigual e combinado, que determina e produz a divisão regional do trabalho no País. A partir

dessa abordagem buscamos compreender os reflexos da dinâmica sobre a sociedade que os

vivencia.

Se o costume era o poder que organizava as relações sociais no Sertão de Irecê, a

partir de meados do século XX, o capital, enquanto relação social, tornou-se o novo poder que

mediou a relação dos homens com o meio e dos homens entre si. Com a expansão da

agricultura comercial não se plantou mais para abastecer a casa, mas, para atender aos

mercados das grandes cidades; se fez cada vez menos adjuntos; cantou-se cada vez menos nas

fontes, viu-se cada vez menos reses fugidas em meio à caatinga, cada vez menos aboios, cada

vez menos caatinga. O Sertão de Irecê foi, pois, substituído pela Região de Irecê no ritmo em

que os mecanismos de reprodução do costume deixaram de ser repostos, dando lugar a novos

sentidos para as relações sociais e de trabalho, para a terra e para a cidade. O Sertão de Irecê,

pois, não existe mais como realidade sócio-espacial vivenciada, existe agora como lugar de

memória, nos termos definidos por Pierre Nora78.

Considerar o local como uma totalidade explicativa da relação entre as dinâmicas

capitalistas atuais e o cotidiano dos homens, é alcançar os sujeitos em seu movimento

76 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-164, 228. 77 Idem, Ibidem, p. 149. 78 NORA, Pierre. Entre memória e história..., p. 21-28.

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concreto de vida sem esquecermos o peso do global sobre a existência. O homem, em sua

dimensão integral, emerge da intersecção entre esse movimento e esse peso. Compreender

essa dinâmica nos exigiu olhar para o homem comum, para os trabalhadores na faina rotineira

do sustento, que vivem suas vidas de modo pragmático, possuindo poucas possibilidades de

sobrevivência, mas, que, a partir delas, engendram suas artes de viver e defender seus

interesses. Mergulhamos aqui, no que Thompson definiu como experiência humana. A

experiência é a vivência cotidiana, conflituosa, concreta, que permite aos indivíduos uma

leitura crítica das relações de exploração nas quais estão inseridos, assim como da sua posição

e de suas possibilidades conscientes de ação sobre essas relações. A experiência é

determinada dentro das relações de produção em que os homens entram involuntariamente79.

É a partir da experiência que a atividade diária dos vaqueiros no trato com o gado em

meio às caatingas, pode ser vista como ato produtor de leitura de mundo. Os interesses do

capital se antagonizaram às suas expectativas de vida. Retirou-lhes o trabalho, ofuscou suas

representações sociais, dominou-lhes em grande parte o saber, o comportamento. Considerar a

experiência é considerar as possibilidades dos sujeitos produzirem formas conscientes de

sobreviver em meio ao conflito que se ergue e se sente no exercício do trabalho. Não as

formas ideais, mas as formas possíveis no seu tempo e no seu espaço.

Pensar e entender o vaqueiro e a prática da pecuária à solta como uma realidade

recente nos impôs o exercício de ouvir os trabalhadores e buscar os sentidos de suas versões,

para tanto, nos apropriamos do método da História Oral. Jorge Eduardo Aceves Lozano, nos

explica que a História Oral é um espaço de contato e influência interdisciplinar, no qual se

enfatiza os fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, gerar interpretações

qualitativas dos processos históricos. Como destaca esse autor, a História Oral busca as visões

e versões que emergem do interior das experiências dos atores sociais80. Quanto ao uso do

recurso oral como fonte de pesquisa, nos lembra Alessandro Portelli que a suposta

superioridade da escrita sobre a oralidade, defendida por muitos historiadores, não possui

fundamento uma vez que estas não são dimensões antagônicas, uma vez que muitas fontes

79 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um panfletário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182. Ver também: THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2001 [Trad. Antônio Luigi Negro e Sérgio Silva]; THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols. 80 AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da história oral. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 16.

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escritas tem por base a oralidade assim como a oralidade moderna está saturada de escrita81.

Para Yara Aun Khoury, a responsabilidade do pesquisador ao lidar com as fontes orais é

identificá-las e compreendê-las em seu contexto social e dentro dos seus objetivos analíticos,

não como dados e informações, mas, como práticas e/ou expressões de práticas sociais através

das quais os sujeitos se constituem historicamente82.

Foram produzidas 17 entrevistas semi-dirigidas (com roteiro temático previamente

montado) abordando temáticas relacionadas ao mundo do trabalho e as mudanças recentes

implantadas pelo avanço das relações capitalistas. Os vaqueiros entrevistados foram homens

com mais de 60 anos, que conheceram e trabalharam com gado no sistema à solta no Platô

Norte Diamantino ou mesmo nas áreas circunvizinhas, que afirmam ser ou terem sido

vaqueiros e que tiveram no trato com o gado bovino uma de suas principais fontes de renda,

pelo menos temporariamente.

Dois entrevistados, porém, divergem um pouco desse perfil. Um deles afirmou que

trabalhou no campo, mas que não era vaqueiro porque não executava as destrezas de seus

colegas, outro, trabalhou em diversas fazendas do interior baiano e também em áreas de

caatinga mas, não cuidou de rebanhos no espaço em estudo. Optamos por incluir as narrativas

desses trabalhadores, haja vista a riqueza de detalhes em torno das funções e representações

do vaqueiro abordadas e a possibilidade de entendermos as diferenças entre trabalhar no

campo e ser vaqueiro de campo. De modo geral, os entrevistados sobrevivem atualmente da

aposentadoria, agricultura, artesanato em couro e de serviços esporádicos de trato e condução

dos rebanhos ainda restantes no Platô Setentrional da Chapada Diamantina.

Durante o processo de elaboração das narrativas orais percorremos 8 municípios que

compunham o antigo Sertão de Irecê, a saber: São Gabriel, Jussara, Central, João Dourado,

Uibaí, Lapão, Canarana e Irecê. Optou-se aqui por uma dispersão territorial dos entrevistados

como forma de abarcar a maior diversidade de fatos e narrações possíveis. O contato com

esses trabalhadores deu-se pelo modo indicativo, tanto por parte dos próprios entrevistados

como por parte de amigos. As entrevistas foram realizadas nos locais de moradia dos

vaqueiros e organizadas em dois momentos: 1) abordando as representações e formas de

trabalho dos vaqueiros no campo. Se incluem aqui também os debates sobre a alteridade, a 81 PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDCU, vol. 14, fev/1997b, p. 33. 82 KHOURY, Yara Aun. Narrativas orais na investigação da História Social. In: Projeto História. São Paulo, vol. 22, jun. 2001, p. 81.

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saudade, o passado; 2) destacamos a ação dos agentes capitalistas, o desenvolvimento

agrícola, as estratégias de sobrevivência, o hoje. Essa divisão deu-se apenas didaticamente,

como é natural, durante as entrevistas os temas se entrecruzaram, emergindo mesmo em

vários momentos das conversas.

A realização desses dois momentos de entrevista foi planejada inicialmente em um

prazo não inferior a uma semana, porém, devido a disponibilidade de tempo dos entrevistados

essa dinâmica foi alterada, havendo casos em que a conversa foi realizada em um único

momento ou mesmo em três momentos diferentes. Com o objetivo de nos aprofundarmos nas

memórias dos entrevistados, utilizamos duas imagens (ver Caderno de Fontes

Complementares) no decorrer das entrevistas que mostram vaqueiros em seus trajes de

trabalho. A imagem 1, uma foto, mereceu destaque nesse sentido, uma vez que os

entrevistados atribuíram a ela uma familiaridade. Diz o senhor Juarez José de Brito olhando a

imagem:

Quando eu me vistia de côro e cedim chamava na lapa do xxx pra o campo, de manhã cedo e vinha chegar de noite, me lembro direitim como fosse..., ferrão..., tudo mais aqui na mão... gostei muito viu. Cavalim branco que’nem o meu... e já é de idade tomém esse vaquêro. Eu só lembro dos meus colega que já tudo já morrero, que era nós tudo vistido de côro e saia tudo junto, eu, cumpade Fernande, Roxinho e muitas pessoa aqui, muitos vaquêro aqui no Gabriel, cumpade Samuel tomém (...)83

O senhor Amado Alves Pinto, popular Roxinho Vaqueiro, chega mesmo a se

confundir com o vaqueiro representado na imagem: En: Essa foto é minha! Num é minha não?! E: (risos). É do sinhô! É de um vaquêro de Uibaí! En:É, né não rapaz! (no sentido de: “É, num sou eu não?!”). (...) Achei bonita! Aqui é o ferrão né!?84

Essa estratégia rendeu momentos de grande emoção, a emergência de lembranças não

contadas ou mesmo o detalhamento de algumas já citadas. De forma geral, a imagem acionou

o pensamento e foi muitas vezes entendida como um presente. As narrativas elaboradas

totalizaram 38 horas, 28 minutos e 37 segundos de gravação, que foi posteriormente transcrita

e organizada segundo eixos temáticos. Ao lado da produção das entrevistas realizamos

também os registros fotográficos que embasam o trabalho.

83 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez), 73 anos, lavrador, criador e antigo vaqueiro, Sede/São Gabriel, 2º momento, 15 de out/2010. 84 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro), 76 anos, lavrador e vaqueiro, Povoado de Mandacarú dos Pilões/Central, 2º momento, 28 de ago/2011.

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Durante o processo de transcrição optamos por manter os termos expressos o mais

próximo possível da forma falada, exemplo: “tiraram”, permaneceu “tiraro”, “lutou”,

permaneceu “lutô”. Evitamos, no entanto, grandes alterações que viessem a prejudicar a

leitura dos textos transcritos, por exemplo: palavras como “filho” e “cavalo”, geralmente

pronunciadas como “fii” e “carralo”, tiveram sua grafia gramatical mantida. Evitamos

também realizar mais de uma alteração por palavra. Os verbos no infinitivo foram mantidos

em sua forma gramatical, por serem eles de extrema importância no entendimento dos

períodos, uma vez que indicam as ações. Por fim, ainda nos apropriamos das contrações: “que

eu”, permaneceu “qu’eu”; “neste instante” permaneceu “nes’tante”. No decorrer do texto, as

falas foram organizadas em forma de diálogo, optamos ainda por mantermos, sempre que

possível, a fala do entrevistador (sempre sublinhada) como indício das condições concretas de

desenvolvimento da conversa.

As narrativas orais aqui trabalhadas são entendidas como um gênero específico de

discurso, composto de outros gêneros - formado por um conjunto de interrupções, pausas,

ritmos, tonalidades, significados -, produto das Ciências Sociais, na medida em que resultam

de um ato dialógico e intencional de entrevista, como concebido por Alessandro Portelli85, e

situadas em um campo multitemporal próprio, transitando entre o mítico, o vivido e o

mitificado, como defende Tânia Risério D’Almeida Gandon86. Essa perspectiva nos orientou

para uma leitura plural das versões históricas dos vaqueiros do Sertão de Irecê. As narrativas

emergiram como textos complexos, formados por tradições, histórias, necessidades e casos,

pelas condições do presente e as marcas do passado, pelo lugar que se encontram e o que

almejam os entrevistados.

As narrativas orais nos possibilitaram o acesso às experiências vivenciadas pelos

trabalhadores vaqueiros diante das mudanças impostas pelo projeto de modernização rural do

Platô Norte Diamantino. A partir delas pudemos entender as possibilidades de ação e defesa

dos territórios de pastagens, as mudanças impostas em seu modo de vida, as estratégias de

valorização dos espaços de prestígio e reprodução profissional, as formas como os vaqueiros

85 PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História: EDUC. São Paulo, vol. 22, jun. 2001, [Trad. Maria Therezinha Janine Ribeiro], p. 10,13. 86 GANDON, Tânia Risério D’Almeida. Entre história e memória: tempos múltiplos de um discurso a muitas vozes. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História: EDUC. São Paulo, vol, 22, jun. 2001, p. 141-146.

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vivenciaram a expulsão ou buscaram manter práticas tradicionais de trabalho e os sentidos

que esses fatos possuem hoje.

O trato com a oralidade, por sua vez, nos põe em contato com a memória coletiva dos

sujeitos. Segundo Maurice Halbwachs, as memórias dos indivíduos se referenciam em uma

memória grupal. Em outras palavras, enquanto seres sociais, os homens produzem vivências

coletivas que servem como uma base comum a partir da qual os indivíduos produzem seus

“pontos de vista” sobre suas experiências. Esses “pontos de vista” variam de acordo com o

lugar que ocupamos nos grupos e as relações que estabelecemos com outros grupos. Para

Halbwachs, nunca estamos realmente sós, mesmo os nossos sentimentos e nossos

pensamentos aparentemente mais autônomos, possuem sua base nos meios e circunstâncias

sociais definidas. Só temos a capacidade de nos lembrar quando nos colocamos do ponto de

vista de um ou mais grupos87.

Acrescenta-nos Ecléa Bosi que a memória coletiva é um trabalho. Ainda que prevaleça

a base comum, é o indivíduo que recorda, é ele que se põe ao trato, seleciona seus passados,

desenvolve o trabalho de usar, reconstruir e manusear suas lembranças significando-as. A

memória coletiva é assim definida como uma ação ativa, relacional, comum (pertence aos

indivíduos e aos meios coletivos) e seletiva de ressignificar atos do passado no presente,

como meio de produção de solidariedades, relações de pertencimento e de disputa pelos

espaços sociais no contexto em que se vive88.

Entendemos aí, que recontar é também uma estratégia dos indivíduos de significarem

o viver. A memória não um depósito de lembranças, mas um tear socialmente vivido, onde

cada indivíduo tece suas peças de formas diversas a partir dos materiais disponíveis ao grupo,

aí colorem e se descolorem os sentidos e valores dos objetos, das relações, do mundo. A

memória nos permite aqui, entendermos como o vivido-passado sobrevive no presente e se

remodela a partir deste. É a partir do acesso à memória coletiva dos trabalhadores que

buscamos analisar como eles se definem hoje, como lembram o passado, que sentido atribuem

ao passado a partir dos seus lugares de vida atuais.

Na medida em que o presente impõe aos indivíduos novos valores e normas, estes

buscam manipular suas reminiscências - passados importantes dos indivíduos selecionados

entre as lembranças – no sentido de garantir a existência ou continuidade de suas práticas e

87 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990, p. 25-52. 88 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1987, p. 17; 411.

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pontos de vista, através de um processo de composição. A composição, nos diz Alistair

Thomson, nos demonstra que os atos de esquecer e lembrar são atos intencionais,

manipulados em situações específicas nas quais vivem os sujeitos. Todavia, por se basear em

seleções, bloqueios e exclusões, o processo de composição é sempre incompleto, o silêncio do

não falado denuncia o falado como uma estratégia, como uma ação consciente, como um

modo de defesa de certas práticas e valores89. É a partir da relação entre as formas/temas

falados e as formas/temas silenciadas que o historiador consegue entender a memória coletiva

como um “trabalho”, tal qual nos diz Bosi.

A memória, assim, não se apresenta neutra, é fruto de um trabalho intencional. Jacques

Le Goff já destacou que o controle da memória é ,nas sociedades atuais, uma das questões de

maior relevância. Tornarem-se “senhores da memória e do esquecimento”, nos diz ainda Le

Goff, é uma das grandes preocupações dos grupos sociais90. Como nos afirma também Emília

Pietrafesa de Godoi, não podemos nos esquecer que as versões do passado exercem um poder

determinante sobre as formas de definição da realidade atual e de perspectivas futuras, da

mesma forma que as perspectivas futuras também redefinem o “dizer” sobre o passado, até

mesmo como estratégia de ação política dos indivíduos91. A memória é, pois, um poder, um

uso consciente do passado para dados fins presentes.

Trabalhar na interface entre a memória e a História requer a determinação de

fronteiras. Como nos diz Júlio Pimentel Pinto, ambas partem do mesmo ponto, o passado, mas

diferem-se quanto as suas naturezas e formas de ação. Enquanto a História busca demonstrar

as versões a partir de verdades organizadas e compreensíveis, a memória destaca-se

justamente por dificultar a percepção histórica na medida em que reconstrói os sentidos para

as lembranças, produzindo leituras coerentes de episódios na origem desconexos92.

Também Antônio Torres Montenegro nos ajuda a entender que a memória contém

elementos básicos para construção de uma concepção histórica. Sua característica fundante é

o processo reativo que a realidade presente provoca no sujeito, é portadora do desejo coletivo

e individual, ela se forma e opera como conseqüência do impacto das realidades sobre os

grupos, formando um imaginário que se torna referência. Por outro lado, destaca ainda Torres, 89 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDUC, vol. 15, abr. 1997, p. 51-84. 90 GOFF, Jaques Le. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 426. 91 GODOI, Emília Pietrafesa de. O trabalho da memória..., p. 28-29. 92 PINTO, Júlio Pimentel. Os muitos tempos da memória. In: Projeto História. São Paulo, vol. 17, nov. 1998, p. 206.

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a História opera com a versão pública, estrutura-se como uma leitura social recortada

tematicamente, trabalhada a partir do método e está mais distante do imaginário93. O ponto de

vista da História é o de quem fala do passado com vistas na compreensão da ação dos homens

em um contexto; o ponto de vista da memória coletiva é o de quem fala do passado para

compartilhar sentidos necessários ao seu presente, ao seu grupo.

Como forma de ampliar a compreensão dos impactos dos processos de modernização

rural sobre o trabalho dos vaqueiros analisamos paralelamente às fontes orais, um conjunto de

documentos oficiais que fundamentaram o discurso de “vocação agrícola” para a terra e os

homens do Sertão de Irecê e consequentemente possibilitaram o erguimento da Região de

Irecê. O objetivo central do trato com esses documentos foi tentar entender os projetos

traçados pelo Estado para o campo e a cidade do Platô Norte Diamantino e/ou próximas a

este, assim como as versões históricas e as representações dos trabalhadores no discurso

oficial.

A primeira parte desse conjunto de fontes foi formado por relatórios, pareceres,

mapas, diagnósticos e estatísticas do Ministério da Agricultura, do Ministério do

Planejamento e do Interior, da Companhia de Ação Regional (CAR), da Secretaria do

Planejamento, Ciência e Tecnologia, de órgãos como a Superintendência do Desenvolvimento

do Nordeste (SUDENE), os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND’s), dados do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Superintendência de Estudos

Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), do Instituto de Urbanismo e Administração Municipal

da Bahia (IURAM), das fundações de Planejamento, de Pesquisas e da Fundação Centro de

Estudos e Projetos da Bahia, do Centro de Estatísticas e Informações da Bahia, do Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Secretaria da Indústria, Comércio

e Mineração. Esses documentos foram localizados, em sua maioria, nos arquivos da biblioteca

da SEI, em Salvador.

Outra parcela de documentos oficiais foi colhido na biblioteca da unidade regional da

Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA) em Irecê. São relatórios, dados,

folhetos, jornais e circulares internos, mapas, manuais, textos reflexivos e diagnósticos

pertencentes e publicados pelas agências de assistência técnica e extensão rural, que

participaram do processo de implantação do pólo agromercantil de Irecê, especialmente da

93 MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e memória: a cultura popular revisitada. 5ª Ed. São Paulo: Contexto, 2003, p. 18-20.

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Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia (EMATERBA) e da Empresa de

Pesquisa Agropecuária da Bahia (EPABA).

A análise desses documentos nos possibilitou compreender o processo de

modernização rural do Platô Norte Diamantino e das áreas vizinhas, dentro do processo

nacional desenvolvimentista da segunda metade do século XX. Ao mesmo tempo

identificamos os projetos e agentes locais, suas ações, discursos e contra-discursos, a chegada

de recursos, dados estatísticos sobre a produção de feijão, milho e mamona, rebanhos bovinos

e horizontalização das terras. A catalogação desses dados permitiu a elaboração de tabelas e

porcentagens quanto as variações de produção agrícola e a sua relação direta com o processo

de devastação da caatinga, o crescimento populacional, os níveis de crédito e as variações nos

níveis dos rebanhos bovinos. Esses instrumentos apontaram para o ritmo intenso com que deu

a mercantilização das terras e mecanização das relações de trabalho na área em estudo.

Completando o conjunto de documentos oficiais analisados, encontramos nos arquivos

da Câmara Municipal de Irecê (CMI) correspondências, orçamentos municipais, projetos de

lei, requerimentos, telegramas e abaixo-assinados que exemplificam as formas de contato

entre as representações políticas municipais e as instâncias estaduais e federais. Ainda aí

tivemos acesso às atas de sessões da Câmara entre o período de novembro de 1977 à

novembro de 1984. Esses documentos demonstram como a ênfase no desenvolvimento

agrícola foi assumida e alardeada pelas elites locais, como elas buscaram interferir nos

processos, a preocupação com a disponibilidade de máquinas na lavoura, suas ligações

políticas e suas preocupações diante do fim do crédito agrícola subsidiado em meados dos

anos 1980. Por fim, analisamos ainda a Lei de Terras de 1850, o Código Civil de 1916, o

Estatuto da Terra de 1964 e a lei 4.829 de 1965, que institucionalizou o crédito rural.

Diante dessa diversidade de fontes buscamos entender as versões dos trabalhadores e

do Estado de forma integrada sobre o processo que possibilitou a expansão da agricultura

comercial no Platô Norte Diamantino e nas proximidades e a consequente eliminação do

modo costumeiro de vida e o Sertão de Irecê. Na base desse processo instala-se um conflito

pelo direito de falar.

Buscamos organizar as temáticas em uma perspectiva contextual, de forma a

esclarecer as características centrais do modo de vida costumeiro das comunidades do Sertão

de Irecê, como ele foi modificado a partir de meados do século XX, e como os vaqueiros, a

partir da vivência da exclusão, buscaram defender seus espaços e práticas de trabalho.

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O capítulo I está voltado para o entendimento dos fatores históricos que possibilitaram

a emergência do Sertão de Irecê. Apresentamos, a partir de referências historiográficas

recentes, os traços centrais do povoamento, das dinâmicas agrárias e mercantis dos sertões

baianos, como forma de contextualizar o processo tardio de ocupação do Platô Norte da

Chapada Diamantina, compreender o modo costumeiro de vida que aí foi desenvolvido e a

espacialização do Sertão de Irecê a partir da etnonoção de campo. No capítulo II abordamos

os sujeitos de pesquisa em seu cotidiano de trabalho. Enfatiza-se aqui a formação social dos

vaqueiros, sua relação com terra, as formas de trabalho tradicionais e a construção de suas

representações sociais.

No capítulo III demonstramos o processo que possibilitou a consolidação da

modernização conservadora como modelo de desenvolvimento agrário brasileiro na segunda

metade do século XX. No primeiro momento, buscamos as interrelações entre os debates

sobre a natureza e as condições do espaço agrário brasileiro no pensamento social e a

expansão das ações de desenvolvimento pelo País, destacando o papel das iniciativas de

modernização do Nordeste como modelo para formação de um padrão político-econômico

para o Brasil durante os Governos Militares. No segundo momento, enfatizamos a

modernização conservadora como face planejada do capital, destacando em seguida a chegada

e consolidação dessas iniciativas sobre o Sertão de Irecê, especificando o arranjo urbano-

agrário que aí foi produzido.

No capítulo IV partimos das mudanças e iniciativas de modernização, destacadas no

capítulo anterior, para defendermos a Região de Irecê como uma “especificidade regional” da

Região Econômica do Nordeste. Descortinamos em seguida o discurso científico-tecnológico-

oficial que afirmou a existência de uma vocação agrícola para os homens e terra do Sertão de

Irecê como forma de fundamentar os objetivos do Estado. Na sequência, destacamos o

contexto conflituoso vivido pelos vaqueiros diante do avanço da lavoura comercial, do

cercamento e do fim das terras de campo, apontando para experiências e formas de resistência

engendradas cotidianamente por esses trabalhadores como meio de se manterem próximos às

práticas e lembranças que lhes dão sentido à vida. O capítulo se encerra abordando o processo

que levou a crise da Região de Irecê e as formas atuais de sobrevivência do Sertão de Irecê

como lugar de memória, logo após, realizamos as considerações finais da pesquisa.

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55

Acrescentamos ao fim do trabalho um Caderno de Fontes Complementares composto

por algumas fontes iconográficas, poéticas e pelos documentos que nos serviram de base

durante a produção, catalogação e análise das narrativas orais.

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CAPÍTULO I

O sertão em movimento: relações agrárias, costume e uso comum de terras

Não eu não sou do lugar dos esquecidos Não sou da nação dos condenados Não sou do sertão dos ofendidos Você sabe bem! Conheço meu lugar!

(Belchior)

Sertão: povoamento, relações de produção e circuito mercantil

Desde a primeira metade do século XVI, a Coroa Portuguesa buscou povoar e explorar

as novas terras tendo como política principal a doação de capitanias e a concessão de amplos

privilégios aos chamados “donatários”. Essas iniciativas, contudo, surtiram pouco efeito e a

maior parte das terras continuou ainda desconhecida por longo período. Entre o final deste

século e o decorrer do século XVII, as sesmarias doadas à família D’Ávila, descendentes de

Tomé de Souza, e a família Guedes de Brito, transformam-se em grandes domínios fundiários

que compuseram a tela principal sobre a qual se desenvolveu o processo de povoação das

zonas interioranas da Colônia. Além dessas, diversas outras sesmarias foram doadas até o

início do século XIX.

Como nos informa Erivaldo Fagundes Neves, o regime de sesmarias no Brasil,

representou a ordem jurídico-política da colonização, estabelecendo critérios e normas para

repartição, posse, exploração e ocupação dos territórios conquistados. Porém, a ausência de

controle administrativo por parte da Coroa, a busca dos sesmeiros por ampliar suas posses por

meio da expulsão dos indígenas e da incorporação de territórios “vazios”, a constante omissão

das fronteiras de seus domínios junto aos órgãos da Coroa, o desrespeito para com as

determinações legais e a própria ineficácia de muitas dessas determinações, marcadas que

foram por corriqueiras revogações e reeditações de normas, transformaram o regime de

sesmarias em um “caos fundiário” já visível no final do século XVIII. A esse contexto

acrescentou-se a ação dos posseiros, nunca combatidos pelo Governo Português94.

94 NEVES, E. F.. Estrutura Fundiária..., p. 98-100.

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Analisando as observações do governador da capitania do Pará, Francisco Maurício de

Souza Coutinho, elaboradas em 1797, Márcia Menendes Motta demonstra que tal “caos” era

motivo de grande preocupação entre as elites coloniais. Entre os problemas que envolviam a

posse das terras, estava a ausência de mão-de-obra qualificada para demarcar áreas contíguas

em grandes extensões, como geômetras e astrônomos, e a necessidade de cartas cartográficas.

Outro problema apontado pelo representante do Governo Português relacionava-se à

disparidade entre a extensão das terras doadas e a capacidade de cultivo. Relata Motta as

reflexões de Coutinho a esse respeito: Meia légua em quadra, vem a ser um espaço um espaço de dois milhões duzentas e cinqüenta mil braças quadradas. Um lavrador que tenha pouco mais ou menos 100 escravos de todas as idades, e sexo de que venha a apurar trinta de cada sexo capazes de trabalho, o mais a que poderá entender os seus roçados de modo que os aproveite, e que ele possa dar a tempo o preciso benefício, será tralvez duzentas braças de frente com igual fundo, segundo o que tenho podido alcançar a este respeito, e ouvido das pessoas de mais confiança na sua inteligência, que ainda duvidam que a tanto possam chegar.

Além disso, aponta ainda a autora, em áreas antigas o conflito de terras já se fazia

muito antes da concessão de sesmarias, a concessão desta por sua vez abria precedente para

incorporação de áreas limítrofes pela alegação, por parte de seus possuidores, da existência de

“sobras”, recurso para o qual a Coroa não possuía disposições. Nesse sentido, afirma ainda

Motta que a concessão de sesmarias era antes de tudo uma concessão política e não territorial.

Na ritualística da conceção das terras, encontravam-se um Estado investido enquanto

determinador da justiça e harmonia e um solicitante súdito, mediados por uma suposta relação

de submissão. Alcançar a posição de sesmeiro, conclui Márcia Menendes Motta, era mesmo

uma forma de ascensão social, diferenciando o seu portador do “universo de lavradores, sem

títulos de propriedade”95.

As sesmarias eram assim um capital fundiário e simbólico em movimento e em

constante disputa. A dilatação constante dos domínios avançou sobre os territórios indígenas e

os conflitos foram inevitáveis. Como afirma Erivaldo Fagundes Neves, os colonizadores

buscaram, na luta contra as populações indígenas, garantir mão-de-obra escrava e recursos e

terminaram por produzir uma “desterritorialização em cadeia”. Em muitos casos os

colonizadores se apropriaram das divisões entre grupos indígenas para obter apoio na guerra

contra outros grupos, além disso, muitos ou nenhum, eram os argumentos usados para o

95 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito a terra no Brasil: a gestação do conflito 1975-1824. São Paulo: Alameda, 2009, p. 113-126, 170-171.

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estabelecimento da chamada “guerra justa”. De qualquer forma, “descobrir” as novas terras

significou a dominação armada, a expulsão, submissão e eliminação física das populações

autóctones96. Francisco Carlos Teixeira sintetiza esse processo ao relatar que os primeiros

momentos da ocupação do sertão deram-se pelo despovoamento97. Ainda contribuíram para

esse extermínio as diversas doenças e a ruptura social e cultural às quais foram expostos os

grupos indígenas98.

Seguindo esse processo ou mesmo paralelo a ele, deu-se a implantação das fazendas

de gado no interior da Colônia. Como nos afirma Maria Yeda Linhares, a expansão da

fazenda de gado para a fronteira aberta, constituiu ao mesmo tempo uma estratégia econômica

e prática do Governo Português, uma vez que liberou as terras litorâneas para o cultivo da

cana e garantiu a ocupação dos territórios interioranos nos primeiros séculos99. O gado bovino

chegou ao Brasil ainda no século XVI e consolidou sua marcha nos séculos seguintes em

direção as partes mais afastadas da Capital. Como destaca Basílio de Magalhães, por volta de

1700 o rio São Francisco já era chamado de “rio dos currais”100. Por tal dimensão, afirma

Eurico Alves Boaventura que o “boi” foi o grande descobridor do sertão, onde se fundou uma

“civilização do pastoreio” que tinha na “fazenda de criar” o símbolo maior de sua “origem” e

no “curral” a sua “identidade”101. O gado trazido para colônia recebeu o nome de “curraleiro”,

“crioulo” ou “peduro”, suas matrizes tem origem portuguesa e espanhola, mais tarde

miscigenaram-se com bovinos holandeses e franceses102 gerando um tipo de animal

condicionado às especificidades do semi-árido103. A criação desses animais deu-se de forma

96 NEVES, E. F. Estrutura Fundiária e Dinâmica..., p. 122-132. 97 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conflito de terras numa fronteira antiga: o Sertão do São Francisco no século XIX. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF, nº 7, v. 4, jul/1999, p. 10. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg7-1.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 98 Maria Hilda Baqueiro Paraíso tem desenvolvido importantes trabalhos sobre o conflito entre colonizadores e indígenas no Brasil, a partir da interface entre a Antropologia e a História. 99 LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, alimentos e sistemas agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. nº 2, v. 1, [s. p.], A pecuária como parte de um sistema de susbsistência dez/1996. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg2-6.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 100 MAGALHÃES, B. de. Expansão Geográfica do Brasil Colonial..., p. 145. 101 BOAVENTURA, Fidalgos e Vaqueiros..., p. 24. Para esse autor, essa “civilização” se opunha à “civilização do açúcar” e a ela nada devia. 102 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). 2ª Ed. rev. e ampl. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2008, p. 188-189.; Sobre o processo de miscigenação do gado bovino no sertão do sanfranciscano ver também: MACEDO, Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 3-4. 103 Alguns autores (cf. Erivaldo Fagundes Neves, José Roberto de Macedo, Flávio Guerra) afirmam que a miscigenação desordenada e o contato com a região semi-árida do Brasil, onde as pastagens teriam supostamente baixos índices nutricionais, teria “degenerado”, “atrofiado” ou desenvolvido “graves defeitos” na espécie bovina, gerando animais pequenos e ossudos. O gado sertanejo é nessa perspectiva um “subproduto genético” das raças

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extensiva em meio às caatingas, uma vez que as fazendas não possuíam cercamentos e nem

delimitações precisas. No século XVIII, João Antonil já afirmava que: as fazendas e os currais do gado se situam aonde há largueza de campo, e água sempre manante de rios ou lagoas, por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de São Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Para-mirim, na do rio Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio Inhambuque, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vaza-barris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais, e, só na borda aquém do rio de São Francisco, cento e seis. [...] se tem por certo que passam de meio milhão [de cabeças de gado]104.

As observações de Antonil têm sido revistas por pesquisadores como Erivaldo

Fagundes e Francisco Carlos Teixeira. Segundo Teixeira da Silva, informações do jesuíta tem

contribuído para o equívoco corrente em confundirmos o grande domínio sesmeiro

(configurado pela jurisdição, ou seja, pelo exercício de direitos de senhorio) com as fazendas

de gado. Esclarece ele que os grandes domínios nunca foram em si explorações diretas e na

verdade se constituíram de um conjunto disperso de várias unidades (sítios, situações,

fazendas) arrendadas sob diversas formas. O grande domínio e as áreas de exploração direta

eram, pois, categorias sociais e economicamente diferentes. Nesse sentido, acrescenta ainda

Teixeira da Silva, conquistar mais terra para arrendar tornou-se um dos grandes objetivos dos

desbravadores e sacralizou o arrendamento como forma dominante de posse da terra, o que

garantiu aos seus reais donos a apropriação do sobretrabalho sem nenhum investimento

prévio105.

De qualquer modo, o gado foi fator fundamental na ocupação dos espaços do

interior. O deslocamento dos rebanhos em direção à Capital da Colônia deu origem às grandes

estradas que cortaram o sertão baiano, como por exemplo, a Estrada Real do Gado, a qual,

partindo de Cachoeira, atravessava o atual território do município de Feira de Santana, que aqui chegaram. Não podemos perder de vista que os problemas relacionados as pastagens do sertão não são, necessariamente, de ordem qualitativa, mas sim, quantitativas (disponibilidade suficiente e constante de pastagens, acesso a água, deslocamento por grandes distâncias). O atual fenótipo dos bovinos sertanejos é um reflexo da relação entre os fatores climáticos, genéticos e ambientais no qual se formaram, o que não quer dizer uma “degradação”, mas a geração de animais com características diferentes das européias. Acreditamos que essa “desqualificação” dos animais concebida pelos autores, tem mais a ver com uma visão moderna de mercado, na medida em que o gado possui pequeno porte, do que com o entendimento do processo biológico ao qual foram submetidos. 104 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3ª Ed. Belo Horizonte : Itatiaia/Edusp, 1982. [s.p.] Quarta parte: I - Da grande extensão de terras para pasto, cheias de gado, que há no Brasil. Disponível em: <http://www.seed.pr.gov.br/portals/portal/usp/primeiro_trimestre/textos/literatura/andre_antonil/cultura/cultura.html> Acesso em: 30 de fev/2011. 105 SILVA, F. C. T. da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-Colônia..., A fazenda de criar: uma análise da empresa sertaneja.

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Conceição do Coité, e de lá, bifurcando em direção a Jacobina e Juazeiro. Outra dessas

grandes vias partia de Salvador em direção aos sertões de Pernambuco através de Jeremoabo,

uma ramificação desta chegava também até Jacobina. Antonil assim descreve as viagens das

boiadas: CONSTAM AS BOIADAS que ordinariamente vêm para a Bahia de cem, cento e cinqüenta, duzentas cabeças de gado; e, destas, quase cada semana chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito léguas, aonde têm pasto e aonde os marchantes as compram; e em alguns tempos do ano há semanas em que, cada dia, chegam boiadas. Os que as trazem, são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado, e outros vêm atrás das reses, tangendo-as, e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontoem. As suas jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos aonde vão parar. Porém, aonde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra às reses o vão por onde hão de passar106

Estudando o povoamento do Sertão da Ressaca, Maria Aparecida Silva de Sousa

demonstra a ação de João Gonçalves da Costa na construção de diversas estradas que

facilitassem o acesso à Capital e as áreas do norte de Minas. Do ponto de vista da Coroa,

esses caminhos significavam uma maior facilidade de abastecimento de Salvador e das vilas

litorâneas com boiadas e outras mercadorias107. Autores como Capistrano de Abreu108 e

Felisbello Freire109 também descreveram as estradas e o deslocamento das boiadas.

Além dessas, muitas outras entrecortavam o sertão interligando povoações,

fazendas, áreas de mineração e áreas de produção de sal. Em torno dos pontos de parada

desenvolveram-se núcleos comerciais e populacionais, a exemplo da cidade de Feira de

Santana. Em seu clássico Fidalgos e Vaqueiros, Eurico Alves Boaventura sintetiza esse

processo ao afirmar que “em toda parte onde rolou um aboio vespertino para um pouso,

marcando o final de uma marcha, ou se acendeu a trempe para o repasto rude de uma tropa,

caiu a semente de uma cidade ou vila sertaneja”110.

106 ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil... Quarta parte: III - Da condução das boiadas do sertão do Brasil; preço ordinário do gado que se mata e do que vai para as fábricas. 107 SOUSA, M. A. S. de. A conquista do sertão da ressaca..., p. 94-95. 108 ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1960, p. 96. 109 FREIRE, Felisbello. História territorial do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1906, p. 89-90. 110 BOAVENTURA, E. A.. Fidalgos e Vaqueiros..., p. 39.

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A emergência de áreas de mineração intensificou a circulação comercial e

populacional nas áreas interioranas e destas com a Capital, a exemplo da descoberta de ouro

em Jacobina (início do século XVIII) e na Serra do Assuruá (meados do século XIX).

Discorrendo sobre esta última, Elisangela Oliveira Ferreira nos informa sobre a preocupação

das autoridades da vila de Xique-Xique, localizada a cerca de “dezesseis ou dezoito léguas”

das minas do Assuruá, diante do abandono em que caiu a povoação logo espalhou-se a notícia

de ouro. Segundo reclamações oficiais, continua a autora, em apenas sete meses já existiam

mais de mil pessoas minerando e muitas outras não paravam de chegar. Junto à possibilidade

de riqueza erguiam-se também o tráfico, o despotismo e a violência assustando ainda mais as

autoridades que não dispunham de força policial suficiente.

Ainda segundo Ferreira, o penoso trabalho de escavação não poupava homens nem

mulheres, e até mesmo as crianças pobres arriscavam suas vidas em busca da sobrevivência.

Para ela, a mineração não só atraiu fluxos populacionais ao interior, mas, desenvolveu entre

os sertanejos de Xique-Xique o hábito de migrar em busca de novas áreas sempre que as

reservas do local escavado pareciam diminuir ou os trabalhos se tornavam muito difíceis111. A

mineração diamantífera na Chapada Diamantina, iniciada em meados do século XIX,

alcançou proporções ainda maiores e estendeu-se até início do século XX112. Discorre

Teodoro Sampaio sobre esta: “Nas lavras, ainda as mais importantes não se empregavam

maquinismo, mas o processo geralmente seguido de desviar as águas para se lavar o cascalho

no leito posto a seco, e trabalhado tão-somente com ferramentas de uso manual”113.

Mas a ocupação espacial do interior não se formou só de fazendas, de guerras contra

o autóctone e de mineração. Refletindo sobre a importância da pequena lavoura dentro do

processo de colonização, afirma Maria Yeda Linhares que a roça articulou-se de várias formas

ao trato com o gado, a grande lavoura de caráter comercial e à pequena criação de consumo

local, ocupando assim um lugar central na reprodução do sistema colonial. Essa reprodução

apresentou baixo custo monetário para a Coroa uma vez que a disponibilidade de terras uniu-

se ao constante tráfico atlântico - garantia de mão-de-obra – permitindo a recriação do sistema

agrário-escravista nas áreas de fronteira. Esse arranjo, além de garantir o domínio da terra,

111 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 108-114. 112 Sobre mineração na Bahia ver: FARIAS, Sara Oliveira. Enredos e tramas nas minas de ouro de Jacobina. Recife: UFPE, 2008 [Tese de Doutorado]; RIOS DE JESUS, Zeneide. Eldorado Sertanejo: garimpos e garimpeiros nas serras de Jacobina (1930-1940). Salvador: UFBA, 2005 [Dissertação de Mestrado]. 113 SAMPAIO, Teodoro. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. (Org. José Carlos Barreto de Santana). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 265-266.

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manteve ativo o mercado de escravos. Em meio a esse processo, as pequenas propriedades

produtoras de alimentos eram a base da economia litorânea e sertaneja, o instrumento central

de manutenção do homem à terra114.

O uso direto de uma área nos sertões, contudo, estava sempre condicionado aos

recursos ali disponíveis. O acesso a água, sal, solo de melhor qualidade agrícola ou produtor

de melhor pastagem e até mesmo o acesso a madeiras, eram fatores decisivos para uso das

parcelas de terra e em grande parte justificava a necessidade de arrendamento. Vivendo em

regiões distantes dos centros de poder administrativo e sujeitos a estiagens, a terra foi sempre

o meio central de produção da sobrevivência dos sertanejos. Elisangela Ferreira demonstra

essa centralidade da terra ao relatar a preferência dos grupos familiares sertanejos em realizar

casamentos entre parentes próximos, como forma de manter a integridade do patrimônio ou

mesmo, o costume de se adquirir as terras dos parentes que as dispunham à venda. Poucos

eram, todavia, os trabalhadores que possuiam a propriedade efetiva da terra. A sociedade

sertaneja foi fortemente marcada pela presença de posseiros, agregados e arrendatários

pobres115.

Eram nas pequenas roças plantadas de feijão, milho, cana, mandioca, frutas,

amendoim, algodão onde a sobrevivência se consubstanciava. Associavam-se a esses recursos

a criação de animais de pequeno porte como cabras e ovelhas, aves, porcos e algumas

unidades de gado bovino. Os produtos gerados nessas pequenas unidades poliagropecuárias

eram estocados e a parte excedente trocados nas feiras semanais por sal, roupas, rapaduras e

ferramentas. Quanto a posse do gado bovino, nos diz ainda Elisangela Oliveira que, na vila do

Xique-Xique, mesmo as famílias mais pobres, tinham especial preocupação em adquirir esses

animais, uma vez que isso apontava para uma diferenciação social em relação aos que viviam

apenas da lavoura e para a melhoria das condições de vida do grupo116. Acreditamos ser esse

um traço comum às diversas áreas dos sertões, pelos menos nos baianos, na medida em que o

gado bovino sempre compôs parte significativa das riquezas presentes nos testamentos e

inventários.

Segundo Erivaldo Fagundes, no século XVIII as populações do Alto Sertão da

Bahia já possuíam autonomia de abastecimento e movimentavam laços comerciais inter- 114 LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, alimentos e sistemas agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. nº 2, v. 1, [s. p.], dez/1996. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg2-6.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011. 115 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 58, 162. 116 Idem, Ibidem, p. 162.

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provinciais e inter-regionais por meio dos excedentes gerados. A produção nesse sentido

ultrapassava a linha da subsistência gerando uma economia de traços próprios e uma

acumulação interna de peso significativo para os padrões da época117. O sertão ainda foi palco

das formas comunais de uso da terra. Por ser esta uma categoria de extrema relevância para

este estudo, as debateremos adiante de forma aprofundada.

O carro de boi e a tropa sempre foram os principais meios de transporte das

populações sertanejas. Jurema Paes já destacou a importância dos tropeiros na manutenção do

intercâmbio de mercadorias, produtos e notícias entre as povoações interioranas do Alto

Sertão da Bahia, e destas com outras áreas do interior e a Capital, na primeira metade do

século XIX. Afirma a autora que o tropeiro era uma “pessoa do mundo”, aguardada com

ansiedade nas vilas e seu prestígio era proporcional ao tamanho da tropa que possuía ou

conduzia118. Os tropeiros muitas vezes compunham redes de comércio que chegavam até o

exterior da Colônia, exemplo significativo dessa participação nos é dado por Erivaldo

Fagundes ao afirmar que, o algodão produzido no Alto Sertão da Bahia chegava através das

tropas ao porto de São Felix, no Recôncavo, e de lá passava a Salvador, chegando, no século

XVIII, às indústrias têxteis da Inglaterra119.

A marca central da produção da sobrevivência no sertão foi sem dúvida a

apropriação direta dos recursos da natureza. Capistrano de Abreu, em passagem clássica do

seu Capítulo de História Colonial, já discorreu sobre a importância do couro para as

populações sertanejas, destacando ser essa a matéria-prima das camas, das cordas, dos

utensílios domésticos, da bainha das facas, dos recipientes para pegar água e até para se pisar

tabaco120. Assim também eram as ferramentas e até as próprias residências, estas, construídas

de barro, madeira e palhas, geralmente em formato de “taipa” e de chão batido. Em sua

viagem pelo rio São Francisco, no final do século XIX, Teodoro Sampaio nos deixou uma

descrição do ambiente residencial sertanejo: No interior das casas não havia mais que sala, quarto, corredor e cozinha; o chão duro, mas escavado pelo transitar e varrer; as paredes barreadas e enegrecidas pela fumaça; o tecto de palha não tinha melhor aspecto. A um canto, estava o pote cheio d’água que se ia buscar ao rio, cuja qualidade todos nos gabavam, pois é crença geral que a água do S. Francisco não se corrompe. Notávamos pelo chão as esteiras estendidas em que as moças costumam assentar-se para fazer renda em almofadas, e

117 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 184-205; Estrutura Fundiária..., p. 220- 238. 118 PAES, Jurema Mascarenhas. Tropas e tropeiros na primeira metade do século XIX no Alto Sertão baiano. Salvador: UFBA, 2001 [Dissertação de Mestrado], p. 71-74. 119 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 192. 120 ABREU, C. de. Capítulos de História Colonial..., p. 73.

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em que empregam bilros feitos de coquilhos e espinhos de mandacaru substituindo os alfinetes; víamos as redes que, logo que entrávamos, eram estendidas ou armadas para nos receberem, algumas feitas de algodão e guarnecidas de rendas, outras mais singelas feitas de palha macia do butiti121.

Luiz Cléber Freire aponta para a existência de móveis e utensílios básicos entre os

inventários da população pobre de Feira de Santana no século XIX, como mesas, bancos,

selas e espingardas122. Segundo Elisangela Ferreira, até mesmo as roupas podiam ser

inventariadas para posterior divisão da herança o que demonstra a sua condição de

patrimônio. Ainda segundo essa autora o registro de talheres nos documentos não comprova o

seu uso, era comum que essas peças fossem guardadas apenas como “patrimônio distintivo”

da família123. A imagem que emerge das observações acima, corresponde em traços gerais ao

modo de vida das populações pobres do sertão124, bem diferente era a vida dos grandes

proprietários, a exemplo dos Fidalgos feirenses: Até figurinhas biscuit se encontram em alguns salões rurais. É fina a mobília, toda de palhinha, com bons espelhos para sala-de-visitas e nas alcovas. Do hirto catre rude passa-se à comodidade nas amplas camas envernizadas, de encosto harto aberto em lavores modestos de talhas. Camas largas sustentando-se até em pés-de-bicho. Algumas de leito alto, bem alto. Esconde-se nas salas-de-dentro e nas camarinhas o velho estrado. [...] Adornam-se os altares e enfeitam-se os salões e as salas-de-jantar com finos jarros de porcelana e de apaline lindíssimos. Não se dispensam as escarradeiras de louça bem interessantes125.

Euclides da Cunha afirmou no início do século XX que, às margens do sertão,

bateram “por igual” “o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro”126. A sintética expressão serviu

por muito tempo para encobrir uma diversidade social marcante do mundo sertanejo dos

primeiros séculos. Ao lado destes, estiveram os indígenas combatidos, o minerador pobre, o 121 SAMPAIO, T. O Rio São Francisco e a Chapada..., p. 98-99. 122 FREIRE, L. C. M.. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra..., p. 112-113. 123 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 142, 143, 160. 124 Ainda predomina entre alguns historiadores uma leitura estereotipada dessa cultura material, que em muito devem às formas exóticas e inferiorizadas com que foram registradas pelos viajantes. Erivaldo Fagundes Neves, embora produza uma perspectiva revisada das dinâmicas agrárias dos sertões baianos, incorre ainda nesse equivoco. Para ele, as habitações eram “rústicas”, os móveis e utensílios “toscos e rústicos”, as trancas das casas eram “toscas”, os tamboretes ‘incômodos”, as camas “rudes”, os transportes eram “precários”, dificultavam a circulação de mercadorias, reforçando a necessidade da auto-suficiência, o que “desmonetarizava” a economia colonial e “debilitava” a economia regional. Optamos por não nos apropriar desses termos por entendermos que as relações agrárias do sertão foram, sempre, produto das condições possíveis de sobrevivência do homem no seu espaço e no seu tempo. Se hoje utensílios e móveis de madeira ou barro e casas de enchimento nos parecem “rústicos”, não eram assim entendidos no seu momento histórico (as “camas de couro”, por muito tempo, foram artigos de luxo nos sertões!); o carro-de-boi e a tropa, antes de “dificultar” ou “debilitar” o transporte, o permitia, possibilitava as trocas e o deslocamento. Desenvolvimento tecnológico e monetário maior não foi possível por um longo período nos sertões baianos. Ver: NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 217-218; Uma comunidade sertaneja... p. 189-190, 104. 125 BOAVENTURA, E. A. Fidalgos e Vaqueiros..., p. 137. 126 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 100.

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estrangeiro viajante, o tropeiro, o ribeirinho, o pequeno lavrador, o grande fazendeiro, o cabra,

o passador, o marchante (atravessadores que negociavam o gado nas feiras), o comerciante, o

negro. Esses sujeitos incorporaram situações diversas de sobrevivência. Foi muitas vezes o

vaqueiro, o tropeiro, o cabra, um lavrador; foi o vaqueiro um escravo127; foi o lavrador

também um criador; foi o indígena um garimpeiro pobre em busca da sorte, um meeiro; foi o

grande comerciante um homem pobre falido; foi o jesuíta um fundador de povoações, um

fazendeiro; foi o negro um escravo, um homem livre, um agregado, um quilombola; foi o

ribeirinho um posseiro; foram os pobres retirantes em momentos de grandes calamidades.

Também diverso foi o uso da terra: a propriedade privada aceitou o uso comum integralmente

ou em partes e, por vezes, gerou terras comuns; a grande sesmaria recebeu em seu meio a

pequena roça, a mina, o sítio, a fazenda. Em busca da sobrevivência, a mudança de condição

era sempre uma realidade e emergia ora como tragédia ora como possibilidade128.

Em meio a essa busca, ressalta enfaticamente Elisangela Ferreira se referindo as

comunidades do Médio São Francisco do século XIX, que o núcleo familiar foi sempre a base

do trabalho, das relações sociais e de poder. Seja pela organização de casamentos com intuitos

políticos e patrimoniais, seja pela importância da mão-de-obra familiar nas pequenas roças,

foi ela a rede que garantiu a sobrevivência. Essa autora expande a noção de família,

estendendo-a aos laços consaguíneos ainda que distantes, às alianças e relações de compadrio

e parentesco fictício129.

Para alguns poucos grupos familiares do sertão, possuidores de maior patrimônio, as

condições de vida foram mais amenas. Os estudos historiográficos apontam para a natureza

tripartite desses patrimônios, formados por escravos, gado e terra, sendo os primeiros os

elementos mais valiosos. Como nos demonstra Luiz Cléber Moraes Freire, o número de

escravos de uma família podia aumentar na medida em que eram mais significativas as rendas

oriundas da atividades consorciadas com a agricultura, uma vez que esta exigia maior

quantidade de mão-de-obra130. A essa base se acrescentava o comércio e a aquisição de cargos

públicos e militares como fatores de distinção social e econômica dos grupos. A realização de 127 Já é significativo o número de obras que apresentam informações sobre a escravidão nas áreas sertanejas, indicamos aqui apenas de forma ilustrativa, além dos trabalhos citados de Erivaldo Fagundes, Elisangela Ferreira e Luiz Cléber Moraes, os trabalhos de Luíz Mott, estes voltados especialmente para a escravidão indígena: MOTT, Luiz. Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial. In: Revista de Antropologia, Separata do volume XXII, USP, 1979. 128 Sobre a migração das populações do Alto Sertão para São Paulo ver: ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: EDUC, Humanitas, 2003. 129 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 378. 130 FREIRE, L. C. M. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra..., p. 42-71.

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atividades comerciais, contudo, nem sempre foi tão estável e a “rede de endividamento” da

qual nos fala Elisangela Ferreira, foi uma constante para os indivíduos nelas envolvidos. Essa

“rede” incluía comerciantes locais e da capital131, não sendo poucos os que incorreram na

falência. Como regra geral, a diversificação de atividades foi sempre o mecanismo mais

seguro das famílias abastadas sertanejas para manterem ou elevarem suas riquezas.

A vivência nos sertões nos primeiros séculos estava assim, longe de uma estagnação

como muitas vezes deixa transparecer os textos historiográficos clássicos. A sobrevivência se

revestiu de diversas formas, foi garantida por formas próprias de uso dos recursos naturais

onde se mesclavam estratégias comunitárias e privadas, fez-se nas minas, nas fazendas, nas

roças policultoras, nas pequenas casas, no caminho das boiadas ou das tropas, nas pequenas

feiras. A seca foi sempre o elemento instabilizador e, por mais que as comunidades sertanejas

tenham desenvolvido estratégias próprias e eficazes de lidar com ela, a ocorrência de pouca

ou nenhuma chuva por anos seguidos ameaçava não só o patrimônio, mas a continuidade da

própria vida. É importante notarmos, porém, que suas conseqüências mais imediatas e graves

recaíam sempre sobre as camadas mais pobres da população, desprovidas de recursos e

patrimônio.

Em momentos de estiagem, a calamidade tendia a se instalar pelo encarecimento do

preço dos alimentos, pela necessidade do êxodo, pela ausência de emprego, ausência de água

e comida para os animais, pelo aparecimento de doenças, pelo crescimento da violência (os

mais ricos se armavam temendo os saques) e pela fome. Relata Teodoro Sampaio quando da

sua passagem por Penedo, Alagoas:

A população da cidade estava então muito aumentada com a gente emigrada dos sertões assolados pela seca. Viam-se nas ruas muito povo faminto e sem trabalho, levas de mendigos androjos esmolando ou estendidos pelo chão à sombra das árvores, homens que foram robustos, belos tipos de uma adaptação admirável, como se foram esqueletos vestidos de couro. A fome que os tinha depauperado e dizimado aos centos, cedera lugar agora à varíola, que devorava as famílias inteiras destes desgrçados que de tão longe, fugindo às misérias da seca, tinham vindo procurar socorro às margens do grande rio. O São Francisco, com um oásis no deserto, através dos sertões adustos da Bahia ao Ceará, de Pernambuco ao Piauí, é, na verdade a terra da promissão e o refúgio daqueles povos assolados pela seca prolongada e priódica”132

A fuga em busca de melhores condições de vida causou o deslocamento de grupos

humanos pelo interior gerando o fenômeno dos retirantes, imortalizado na memória popular 131 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 204, 209, 211, 224. 132 SAMPAIO, T. O Rio São Francisco e a Chapada..., p. 65-66.

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tanto pelas obras de autores como Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938) e Cândido Portinari

(Retirantes, 1944), como pelos cordéis e repentes dos cantadores anônimos dos sertões. Na

custosa necessidade de migrar, muitos “Fabianos” não suportavam o deslocamento e eram

enterrados pelas caatingas e estradas, essas, já salpicadas de “manchas brancas que eram

ossadas”133 de animais. Às autoridades restou solicitar ao governo apoio e ajuda aos

flagelados no que raramente eram atendidos.

Na medida em que foram decaindo as zonas de mineração, um grande contingente

de trabalhadores passou a se deslocar em busca de áreas para cultivo, especialmente na

segunda metade do século XIX. O fim do regime sesmarial em 1822 e a fragmentação/venda

dos domínios da Casa da Ponte da família Guedes de Brito, finalizada em 1830, possibilitou

aos pobres um acesso relativo à posse/propriedade da terra nos períodos seguintes. Como nos

explica Erivaldo Fagundes, muitos desses trabalhadores compraram propriedades, arrendaram

partes a seus novos donos, agreraram-se nas fazendas já constituídas ou mesmo se apossaram

de trechos ainda virgens134.

Como já nos referimos, Márcia Menendes Motta tem buscado demonstrar a ação

desses sujeitos no decorrer dos oitocentos, atribuindo a eles um grande poder de disputa pela

posse da terra135. No interior baiano a ação dos posseiros chegou mesmo a ser facilitada na

medida em que, buscando combater as ocupações “ilícitas”, os procuradores da Casa da

Ponte, no início do século XIX, arrendaram terrenos com prazos de carência, muitos deles já

ocupados, e até cederam gratuitamente faixas de terra por determinado tempo136. Sem dúvida

a extensão dos domínios, a dispersão das fazendas e pequenas glebas, as dificuldades de

transporte e a precariedade de recursos humanos para fiscalização e cobrança dos foros,

permitiram a muitos grupos de posseiros sobreviverem por anos sem uma formulação jurídica

do uso da terra ou mesmo, nunca a oficializarem junto aos donos das sesmarias.

A primeira grande mudança nas relações socioespaciais, comerciais e políticas do

interior baiano dá-se entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século

XX. Esse período foi marcado pela instalação de duas grandes vias de transporte: a estrada de

Ferro Bahia-São Francisco e a navegação a vapor no rio São Francisco. Em 1855 a companhia

inglesa Bahia and San Francisco Railway Company já possuía a concessão para a construção

133 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008, p. 10. 134 NEVES, E. F. Uma comunidade sertaneja..., p. 105. 135 MOTTA, M. M. M. Movimentos rurais nos Oitocentos..., p. 113-128. 136NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 174.

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da ferrovia. Só em 1896 os trilhos chegaram a Juazeiro, depois de terem passado por Serrinha,

Santa Luz, Queimadas, Itiúba e Senhor do Bonfim. Saindo desta cidade em 1917, os trilhos

chegam a Jacobina em 1919 e a Iaçu em 1937. Além de empresas nacionais, franceses e

belgas tiveram por certo tempo o controle da Estrada de Ferro Bahia-São Francisco, além do

próprio estado brasileiro.

A navegação a vapor no rio São Francisco se estruturou a partir da década de 1870,

predominando até 1950. Além de pessoas, os “vapores” ou “gaiolas”, transportavam

mercadorias e notícias. Cidades como Xique-Xique e especialmente Juazeiro, pontos de

parada dos vapores, tornaram-se pólos comerciais e populacionais de grande importância no

interior baiano. A implantação desses dois serviços simultaneamente aumentou o fluxo

mercadorias e a diversidade de produtos, formou centros distribuidores, possibilitou o

deslocamento de pessoas, encurtou o tempo de viagem à Capital e elevou a capacidade de

carga137. Diante da extensão do interior baiano, porém, o impacto da ferrovia e da navegação

restringiu-se uma pequena parte das populações, as demais continuaram tendo o carro-de-boi

e as tropas como formas predominantes de transporte138.

A chegada da República impôs a interligação dos espaços nacionais. Fatos como a

Guerra de Canudos, a seca de 1877-1879 e o cangaço atraíram os “olhos políticos e militares”

dos centros administrativos do País, deixando suas marcas na formação social e histórica das

populações sertanejas. A partir da década de 1930 os Governos Baianos empenharam-se na

abertura de estradas com vistas na circulação de automóveis, aos poucos foram essas vias

substituindo a estrada de ferro e os vapores do São Francisco.

O processo de povoamento do sertão baiano se desenvolve ainda hoje e seu

território é composto por um grande número de municípios com baixa densidade demográfica.

Longe da tão pregada “insignificância histórica”, o sertão e suas formas de produção,

fundamentadas na pequena policultura, na pecuária extensiva e na formação de pequenos

excedentes que chegavam a alcançar mercados externos, tiveram papel fundamental na

estruturação do “macro-modelo” agrário colonial. A roça, pequena e policultora, foi o suporte 137 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984. v.2 - O Sertão da Bahia, p. 89-99. 138 A respeito dos impactos das políticas de transporte e comunicação sobre as espacialidades baianas ver: FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de. “Eu vou para a Bahia”: a construção da regionalidade contemporânea. Bahia Análise & Dados. Salvador-Ba: SEI, vol. 9, nº 4, mar/2000, p. 24-37; Sobre ferrovias na Bahia ver: SOUZA, Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre! Trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador; São Paulo: EDUFBA, FAPESP, 2011; ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: doze cidades conectadas pela ferrovia no sul do Recôncavo e sudoeste baiano (1870-1930). Feira de Santana: UEFS, 2001.

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das grandes e pequenas fazendas que dilatavam os horizontes, enquanto a mineração moveu

grupos de trabalhadores pelo interior num entrecruzar em busca de riqueza, ao mesmo tempo,

os grandes domínios se fragmentaram pela ação de posseiros, arrendatários e sitiantes. Do

ponto de vista social a escravidão negra e do extermínio indígena compõe os maiores traços

das populações sertanejas.

Uso comum no sertão: permanências em frente a lei

É recente o debate sobre as terras de uso comum e usos comunitários de recursos

naturais no Brasil. Francisco Carlos Teixeira tem apontado para um possível uso dilatado e

costumeiro dessas formas comunitárias de trabalho entre os posseiros dos sertões

sanfranciscanos dos séculos XVIII e XIX, acentuando ainda a existência de uma diversidade

de áreas comunitariamente apropriadas nesse espaço, como as malhadas (áreas de reunião do

gado para pernoite, para junta, ou mesmo para ruminar), pastos comuns, áreas de extração de

madeira ou mesmo de fornecimento de água139.

Para além dessas, Teixeira identificou também entre a documentação da Freguesia

do Porto da Folha, em Sergipe, terras declaradas como “indivisas” ou “pró-indivisas”. No seu

entendimento esse termo remete a existência de áreas usadas coletivamente por indivíduos

sem vínculo aparente de parentesco, a partir da aquisição dos direitos de uso de certas frações

da terra. Essa aquisição, no entanto, não mudava em nada a natureza coletiva da área.

Segundo o autor, essas terras não se tratavam de terrenos que, por ausência de partilha

familiar, tivessem continuado unidas, mas sim, de uma prática corriqueira entre os posseiros

sanfranciscanos que poderia mesmo estar presente na quase “totalidade das terras”. Conclui

Teixeira que esse fato aponta para a existência de comunidades de posseiros que não

reconheciam a “noção de apropriação privada de uma parcela” tal qual existe hoje140.

Ainda em suas pesquisas, Francisco Carlos Teixeira afirma que certos declarantes

relatam possuir um lugar “reservado” ou “fixo” para suas posses. Essa afirmação leva o

pesquisador a cogitar (embora reconheça a ausência de fontes e a característica recente do

tema) a existência de áreas “não fixas”, ou seja, a existência de uma espécie de “rodízio” entre

trabalhadores e parcelas trabalhadas, que se fundamentava na aquisição temporária de um

139 SILVA, F. C. T. da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia... O regime de terras na pecuária sertaneja. 140 Idem. Conflito de terras numa fronteira antiga..., p. 26.

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direito de uso. Buscando elaborar hipóteses que justifiquem a existência dessas práticas

comunais entre os posseiros, Teixeira afirma que elas poderiam ter se originado da mistura

das tradições comunitárias dos indígenas, dos negros africanos e dos missionários

capuchinhos, acrescidas ainda da participação de brancos pobres e permeadas pela busca de

autonomia de certos grupos a partir do uso da terra, resultando na união de terras para

trabalho, para refúgio e para negócio.

A segunda hipótese apresentada por Teixeira estrutura-se a partir do caráter não

mercantil das terras do morgadio, o que teria desenvolvido uma comunidade de posseiros com

tradição de trabalhar terras em comum, tendo essa prática permanecido após o fim da

instituição. Embora afirme serem “precárias” essas indagações, conclui o autor que “muito

possivelmente”, o sertão sanfranciscano foi palco de uma “paisagem agrária original” de base

camponesa, onde se misturaram, em um contexto colonial, as tradições comunitárias de várias

culturas141.

Cabe-nos aqui um parênteses para contextualizarmos a densidade das observações

de Teixeira da Silva. José Nazareno Campos, estudando as diversas formas de uso comum da

terra no Brasil, nos apresenta três categorias analíticas para o entendimento desse contexto: as

terras de uso comum, o uso comum dos recursos e as terras de uso coletivo. Segundo

Campos, as terras de uso comum correspondem ao que se denomina corriqueiramente de

“terra devoluta” ou “terra pública”, seu uso é feito por grupos que agem individualmente e

tem no espaço uma de suas fontes complementares de sobrevivência. O uso comum dos

recursos, inclusive da terra, é uma prática, e sua efetivação independe do regime jurídico da

área, contando que a continuidade de sua utilização seja garantida. O organograma abaixo

esclarece mais sobre essa categoria:

141 Idem, Ibidem, p. 27-28. Este autor ainda nos lembra que até hoje, no sertão sanfranciscano, existem formas

comunitárias de uso da terra que se mantém pela transmissão via herança.

Propriedade

Uso comum das terras e dos bens naturais

Produção

Agricultura

Pecuária

Extração

Pública

Privada

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O esquema acima demonstra como é possível a pessoas de uma comunidade usarem

comunalmente tanto áreas públicas quanto privadas, por exemplo, para pastorarem seus

animais. Da mesma forma certas famílias podem realizar a coleta de frutos para consumo

doméstico ou comercial em uma propriedade pública ou privada. O ponto central para

compreensão da noção de uso comum é o fato de que uma propriedade privada não significa,

necessariamente, um uso exclusivo, podendo a mesma ser apropriada por outras pessoas sem

que seu pertencimento seja questionado. As terras de uso coletivo, completa Nazareno José de

Campos, remetem a áreas apropriadas consuetudinariamente por um grupo que limita o seu

uso. O fator de une essas três categorias é a perspectiva comunitária que as atravessa, nesse

sentido, afirma este autor que elas são categorias inter-relacionadas e assumem arranjos

complexos, nunca surgindo sob formas “puras”142:

As terras de uso comum, o uso comum dos recursos ou mesmo o uso coletivo tem

importância fundamental para sobrevivência de muitas comunidades rurais, servindo como

reserva (madeira, folhas, lenha, barro, água, caça, frutos), como espaço para o pastoreio de

animais, complementando as rendas das áreas exploradas diretamente ou sendo elas próprias

áreas de exploração direta. Há casos, como o de alguns grupos indígenas e quilombolas, que a

área de uso comum chega a ser a única terra disponível para cultivo e usufruto. Para Campos

as áreas de uso comum são geralmente aquelas que despertaram menor interesse comercial143.

Esse não é o caso, por exemplo, das áreas de uso coletivo, onde a união dos trabalhadores

pode corresponder a uma estratégia para aquisição de parcelas de melhor qualidade.

A diversidade de formas e combinações apresentadas se misturam ainda às normas

culturais, às especificidades ambientais locais, regionais, nacionais, históricas e até religiosas

que delimitam e modelam as formas de uso comunitário em cada contexto. Ocorre ainda casos

em que o direito de uso se restringe a certos recursos ou a totalidade deles, à certas épocas do

ano, a certas funcionalidades ou a certas qualidades físicas que possuem os terrenos como por

exemplo o acesso a água ou solos de melhor qualidade agrícola. Os usos comunitários podem

ainda beneficiar diretamente as comunidades próximas ou a grupos transitórios como

viajantes e podem ainda ser efetivados por grupos “não-proprietários”, como as terras de

142 CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil: um estudo de suas diferentes formas. São Paulo: USP, 2000 [Tese de Doutorado], p. 46-47. 143 Idem, Ibidem, p. 109-114.

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índios, de negros (reservas, quilombos) ou de Santo ou Santa (nesses casos podem ainda ser

definidas por força de justiça ou pelo direito consuetudinário)144.

Nos espaços usados comunalmente ou coletivamente, não são apenas a terra e os

recursos naturais que são compartilhados, na base dessas práticas está uma experiência

coletiva de vida. Os estudos de Thompson sobre os usos comunitários das florestas inglesas

nos demonstram que as comunidades do século XVIII experimentavam as matas (coletavam

arbustos, madeira ou pastoreavam seus animais) como espaços sociais e resistiam ao avanço

dos cercamentos e a apropriação privada das terras, através da reivindicação do direito de uso,

da derrubada de cercas e/ou portões, da caça aos cervos do rei e da ameaça direta às

autoridades florestais. A forma comunal de uso das florestas inglesas expressava uma noção

alternativa de posse baseada nos direitos e práticas de usos transmitidos ao longo do tempo

como “propriedades dos pobres”, que fora, por muitas vezes, posta em conflito e até

reconhecida pela justiça inglesa enquanto direito local. Esse direito, que por si só já era uma

propriedade, permitia aos florestanos disputarem e argumentarem pela continuidade de suas

práticas costumeiras e das formas “legítimas” de uso que haviam herdado no decorrer do

tempo145.

Podemos assim concluir que os estudos de Teixeira tem apontado para a existência

nos sertões baianos das três dimensões descritas por Campos: as malhadas e áreas de

pastagem podem ser consideradas áreas de uso comum (quando realizada em espaços de

regime jurídico não definido) ou configurar um uso comum de áreas (quando ocorre em

propriedades com regime jurídico definido). Basta lembrarmos que na ausência das cercas os

animais transitavam por todas as partes. Por fim, a existência de áreas cultivadas em regime

de “indiviso” nos demonstra áreas apropriadas de forma coletiva.

Teixeira nos induz a pensar que o uso comunitário e coletivo das terras e recursos

naturais nos sertões sanfranciscanos, alcançou proporções superiores às até então imaginadas.

Como tentaremos demonstrar, o presente do interior baiano foi até recentemente palco de

vivas mostras dessa prática. Até meados do século XX as populações do Sertão de Irecê

tinham no campo um lugar de uso comum. O campo era definido como “terra da nação” ou

“terra solta” de uso imemorial, nele pastavam os animais, dele se retiravam as madeiras e

144 Idem, Ibidem, p. 114-246. 145 THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... ; THOMPSON, E. P. Costumes em comum..., p. 13-24,86-149.

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outros recursos de forma comunitária. Mesmo as áreas que eram tidas como privadas

integravam o espaço de uso comum.

O entendimento da continuidade das práticas de uso comunitário e das áreas de uso

comum durante o século XX, requer um esclarecimento das medidas fundiárias implantadas

no País a partir da Lei de Terras de 1850 e da compreensão das formas e ritmos com que suas

determinações alcançaram aos diversos lugares e populações. A Lei de Terras representou um

novo projeto de nação que tinha por base uma reestruturação fundiária pautado na criação de

um mercado de terras, na eliminação de formas não exclusivas de trato com esta e na sujeição

do trabalho ao capital. Afirma-se:

Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. Art. 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. [...] Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente [...] § 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o contrario. Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o sómente para serem mantidos na posse do terreno que occuparem com effectiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto. Art. 11. Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão hypothecar os mesmos terrenos, nem alienal-os por qualquer modo146.

Ao tempo em que estabeleceu a compra como meio único de acesso à terra, a lei de

1850 também estabeleceu o Estado como árbitro das relações agrárias e passou a obrigar os

trabalhadores a medirem e apresentarem títulos de suas posses, correndo o risco de perdê-las

caso não as registrassem. Essa estratégia foi, no decorrer do tempo, expondo as áreas não

146 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm>. Acesso em: 05 de fev/2011, (grifo nosso).

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declaradas usadas comunitariamente. Como nos diz Márcia Menendes Motta, foi definindo

primeiramente as terras privadas que o Estado buscou “encontrar” as terras públicas, tudo o

que não se encaixava no primeiro grupo passou ao segundo147. Identificar as terras públicas

foi o primeiro passo para a mercantilização das terras.

É importante observarmos ainda no trecho acima, que o critério abordado pela lei

para legitimação das posses foi a exploração direta, não valendo para tanto “os simples

roçados, derribadas ou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e outros

actos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura effectiva e morada habitual

exigidas” (art. 6º). Esse mecanismo atingiu diretamente as áreas de uso comum, uma vez que

nelas se desenvolviam atividades temporárias ou complementares, não sendo, pois, áreas de

exploração direta.

Nos termos oficiais, os “campos de uso commum”, deveriam existir apenas

“emquanto por Lei não se dispuzer o contrario” e acabaram sendo interpretados como terras

públicas (portanto, expostas à venda). Ainda assim, durante sua existência regressiva, os

“campos communs” passaram a ser fiscalizados na medida em que se proibiu a derrubada de

matos e o uso do fogo. Essa possibilidade de alteração na lei se tornou ainda mais real devido

ao fato de que a Constituição de 1891 transferiu para os Estados-membros da federação a

responsabilidade sobre as terras devolutas, ficando essas sujeitas a uma maior pressão local.

Como destaca ainda Menendes Motta, os interesses que fundamentam a Lei de

Terras, nos permite entendê-la como uma expressão legal dos conflitos sociais da segunda

metade do século XIX148. Diante da iminência de escassez de mão-de-obra, devido a

proibição do tráfico atlântico de negros africanos (Lei Eusébio de Queiroz), da expansão da

cafeicultura paulista e da afirmação da política de imigração, os deputados e senadores do

Império, em sua maioria integrantes da elite latifundiária do Sudeste, buscaram mecanismos

que obrigassem os pobres nacionais e estrangeiros a venderem sua força de trabalho por certo

tempo antes de conseguirem o acesso à terra. A Lei de Terras foi o maior desses mecanismos,

de modo que agiu produzindo a mercantilização das áreas e evitando que a existência de terras

livres absorvessem os imigrantes e servissem de pressuposto para a intensificação das revoltas

e fugas de escravos. Muitos foram, todavia, os obstáculos à efetivação dessas determinações.

147 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Terra, Nação e Tradições Inventadas: uma abordagem sobre a Lei de Terras de 1850. In: MENDONÇA, Sônia; MOTTA, Márcia (Org.) Nação e poder: as dimensões da história. Niterói: EDUFF, 1998, p. 84. 148 Idem, Ibidem, p. 82.

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José Murilo de Carvalho chega a afirmar que a lei de 1850 “não pegou”149. Nos

esclarece Fagundes Neves que os registros e declarações de terra (feitos pelas freguesias)

ficaram a cargo dos párocos e apresentam dados imprecisos e falsificados, quer pelo

despreparo dos seus responsáveis, quer pela desconfiança por parte dos declarantes quanto à

política agrária do Governo Imperial, levando-os a omitir informações ou mesmo a adulterá-

las como forma de englobar novas áreas ao seu patrimônio. Comuns foram ainda as queixas

relativas à venda de “terras do Estado” por parte das municipalidades e a cobrança de

rendimentos, por parte dos párocos, para a realização do registro. Tal cobrança baseava-se no

número de palavras escritas, o que tornou os textos concisos, com poucos detalhes150.

Exemplificando essas dificuldades na freguesia de Porto da Folha, no sertão

sanfranciscano, Francisco Carlos Teixeira afirma que nos anos seguintes à promulgação da lei

as autoridades locais ainda debatiam sobre em quem recairia a responsabilidade pela

aquisição dos livros nos quais se fariam os registros, se sobre o governo ou sobre o pároco

local. Ainda segundo Teixeira da Silva, até mesmo o conceito de “terra devoluta” era

desconhecido na região de Porto da Folha durante os primeiros anos de vigência da Lei de

Terras, gerando diversas informações contraditórias, que só puderam ser resolvidas à medida

que a noção de propriedade foi se tornando sinônimo de obrigatoriedade de registro cartorial

do domínio. A princípio, todavia, causava “perplexidade” às autoridades locais a necessidade

de se definir claramente as dimensões das áreas151.

As dificuldades de aplicação efetiva da lei de 1850 permitiram, até pelo menos

meados do século XX, a existência de diversas formas de uso comum e coletivo entre as

comunidades rurais no interior baiano. Esses fatores limitadores, porém, não impediram que a

Lei de Terras se constituísse em um marco no processo de expansão do capitalismo no Brasil,

ao servir de parâmetro para a construção do arranjo agrário do período republicano,

oficializando e garantindo a manutenção da propriedade privada exclusiva como forma padrão

de propriedade e de uso. A sua emergência, é o “ressoar” sobre o Brasil da Revolução

Industrial que se expandia pelo mundo, impondo novas relações sociais, produzindo a divisão

social do trabalho e novas formas jurídicas.

149 CARVALHO, José Murilo de. A política de terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro nas sombras: a política imperial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 346. 150 NEVES, E. F. Estrutura Fundiária..., p. 194-197. 151 SILVA, F. C. T. da. Conflito de Terras numa fronteira..., p. 11-15.

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As linhas gerais que definiam as formas de posse e propriedade da terra, firmadas

pela lei de 1850 permanecem até hoje. Como nos diz Nazareno José de Campos, a redação

referente às terras de uso comum passou a ser reproduzida (semântica ou integralmente) nas

leis de diversos estados até as primeiras décadas do século XX152. Destaca ainda esse autor

que o Código Civil de 1916, vigente até 2002, absorve as terras de uso comum sob a categoria

de compáscuos em terras públicas (art. 646) sem se preocupar com o real sentido dessa forma

de uso. O compáscuo se caracteriza pelo uso de terrenos para pastagem de animais de

diversos donos de forma comum e livre, enquanto as terras públicas tem seu uso regulado

pelo Estado153.

Ao afirmar que “o compáscuo em terrenos baldios e públicos regular-se-á pelo

disposto na legislação municipal” abre-se espaço para interferências locais e

“mercantilização” das terras. Campos ainda afirma que, enquanto os fundamentos da política

fundiária no Brasil se mantém os mesmos do período imperial, a referência às terras de uso

comum se tornaram cada vez mais raras e vagas nos documentos oficiais, especialmente a

partir da Constituição de 1946154. A falta de legislação própria e a generalidade das

referências às terras de uso comum na atualidade é a continuação do projeto de 1850 que

firmava a propriedade e o uso privado exclusivo como formas únicas de acesso e trabalho na

terra. A lei silencia uma prática secular das comunidades, inclusive as dos sertões baianos,

que a cultura teima em recriar.

Apesar dessas restrições e omissões legais, alguns estudos apontam para a

importância e continuidade das terras de uso comum e das formas comunitárias de uso em

tempos recentes. Os camponeses do sul do Piauí, estudados por Maria Dione de Carvalho

Moraes, estruturaram um sistema produtivo que articulava o uso dos baixões (áreas mais

férteis e úmidas, lugar da moradia, do cultivo, das comunidades, da posse e propriedade, das

relações com os vizinhos) e das chapadas (áreas de pastoreio aberto e de obtenção de espécies

vegetais alimentares, terapêuticas, madeira e diversas espécies de animais) garantindo assim a

reprodução social do grupo por meio do “sistema antigo”, como eles próprios denominavam,

até a segunda metade do século XX. O processo de modernização rural instalado sobre as

chapadas, impôs mudanças radicais no modo de vida e na organização espacial desses

152 CAMPOS, N. J. Terras de uso comum..., p. 257-264. 153 Idem, Ibidem, p. 247-250. Cf.: BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071impressao.htm>. Acesso em: 05 de fev/2011, artigo 646 completo. 154 Idem, Ibidem, p. 262.

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trabalhadores. Como nos afirma Moraes, esse conflito demonstrou as diferenças entre a noção

de “utilidade” espacial dos camponeses e a dos empresários/Estado: para os primeiros as áreas

de uso comum tinham papel fundamental na manutenção dos rebanhos e no fornecimento de

recursos naturais; para o capital, a chapada era um “espaço vazio” e improdutivo155.

Em outro estudo, também sobre o mundo rural do Piauí, nos demonstra Emília

Pietrafesa de Godoi como a reprodução social de um dado grupo de camponeses- o “povo do

Véi Vitorino” – passa pelo uso comum e coletivo não só da terra, mas das regras morais,

éticas, econômicas, sociais, parentais e simbólicas, assim como da manutenção de uma

memória genealógica comum. Alimentando uma matriz ancestral, que remonta ao processo de

apossamento dos primeiros ocupantes, esses camponeses mantêm uma noção de

pertencimento familiar sobre a terra (a terra é dos descendentes) como base moral do seu uso,

o que não exclui a existência de direitos individuais - “sistema de direitos combinados”-, ao

mesmo tempo em que reservam áreas comuns em terras de conjunto, terras de ausente e

terras de padroeiro (fonte de recursos, inclusive de terra), nas quais os mais jovens podem

abrir seu “serviço” (roça)156.

A presença de formas comunais de uso e de terras de uso comum na atualidade,

reforça a hipótese da presença expandida dessas práticas e espaços entre as comunidades

rurais dos primeiros séculos. Os diversos modos de defesa dos direitos de uso comum – por

exemplo, a ação direta da derrubada das cercas, a afirmação de outra noção de utilidade dos

espaços, a manutenção de uma memória comum ou mesmo o conflito direto entre

trabalhadores e fazendeiros157 – reforça a importância que essas formas de trabalho e

propriedade tem ainda hoje as para muitas comunidades interioranas e apontam para

resistentes e flexíveis mecanismos de perpetuação do uso comum que o fizeram chegar até o

155 MORAES, Maria Dione Carvalho de. Memórias de um sertão desencantado: modernização agrícola, narrativas e atores sociais nos Cerrados do sudoeste piauiense. Campinas, SP: [s. n.], 2000. [Tese de Doutorado], p. 248-284. 156 GODOI, E. P. de. O trabalho da memória..., p. 41-98. 157 Os dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os conflitos no campo, lançados em setembro de 2010 (referentes ao período de 1º de janeiro a 31 de julho do mesmo ano), demonstram, em relação a 2009, que ao lado do crescimento de conflitos pela água (32%), da elevação das taxas de conflito pela terra (o Nordeste centralizando 54% dos casos) e do número de ocorrências de trabalhadores presos, agredidos submetidos a condições de escravidão no País, cresceu também o número de manifestações de trabalhadores (18%) (Fonte: www.cptnacional.org.br). Esses dados não se reduzem aos conflitos em torno das terras e recursos de uso comum (englobam conflitos referentes a diversas formas de uso/propriedade da terra, recursos naturais e condições de trabalho), além disso, reconhecerem as “manifestações” como forma central de resistência (não abarcam, portanto, diversas outras formas), no entanto, nos servem como base reflexiva, uma vez que parte significativa desses conflitos provém do choque entre as formas tradicionais de uso e trabalho das comunidades rurais (entre elas o uso comum da terra e dos recursos naturais) e o avanço do agronegócio.

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presente. É baseado nessas reflexões que buscamos entender o campo do Sertão de Irecê e as

formas de uso de seus espaços e recursos.

Como afirma Márcia Menendes Motta, é preciso superar as visões reducionistas que

apresentam os posseiros e camponeses como derrotados e buscar entender as formas pelas

quais os camponeses, ainda que sob alvo de despejos e pressões dos fazendeiros, tentaram

assegurar suas parcelas de terra e suas formas de trabalho com base nas suas próprias noções

de justiça e nas suas tradições advindas da prática diária158.

Sertão de Irecê: o viver entre o costume e o campo

A área a qual denominamos Sertão de Irecê era uma parte do Sertão do São Francisco,

mais conhecido como caatingas de Xique-Xique, englobava o Platô Setentrional da Chapada

Diamantina e áreas circunvizinhas e formou-se entre meados do século XIX e a década de

1970. Entendemos o Sertão de Irecê como uma dimensão sócio-espacial e simbólica de

formação tardia em relação a diversas outras áreas do interior baiano, cuja ocupação se iniciou

ainda nos primeiros séculos. Comumente se atribui esse “retardamento” na povoação dessa

área ao fato dela não possuir, em número significativo, reservas aquíferas perenes. Há, no

entanto, a necessidade de se averiguar a possibilidade da existência de outros fatores.

Atualmente essa área corresponde em partes ou integralmente aos atuais territórios dos

municípios de Irecê, João Dourado, América Dourada, Canarana, Lapão, Jussara, Ibititá,

Ibibeba, Uibaí, Central, São Gabriel, Presidente Dutra, Barro Alto, Cafarnaum, Itaguaçú da

Bahia, Morro do Chapéu, Gentio do Ouro, Barra do Mendes e Mulungu do Morro.

Como já pudemos afirmar, essa área do interior baiano viveu os últimos fôlegos da

escravidão institucional, isso, no entanto, não significa que esta tenha sido menos cruel ou que

suas conseqüências aí tenham adquirido formas mais tênues. Espalhados pelo Platô Norte

Diamantino e áreas vizinhas estiveram diversos grupos quilombolas, alguns deles atualmente

tem sido reconhecidos pelas políticas públicas de valorização étnica. Assim como na maior

parte do interior baiano, as comunidades indígenas existentes foram também expulsas pelo

colonizador e delas hoje restam apenas fragmentos da cultura material e fatores genéticos. Do

ponto de vista econômico-estrutural e político oficial, essa área permaneceu à margem dos

grandes processos e disputas que atravessaram o interior baiano até meados do século XX,

158 MOTTA, M. M. M. Movimentos rurais nos Oitocentos..., p. 113-128.

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quando da estruturação sobre o Platô de pólo agromercantil de grãos para abastecimento

interno, baseado no crédito público subsidiado e na ação do Estado.

As terras do Platô Norte Diamantino pertenciam aos domínios da família Guedes de

Brito. De acordo com as observações do memorialista Jackson Rubem, a primeira negociação

envolvendo as terras do Platô deu-se em 21 de fevereiro de 1807, quando os representantes da

Casa da Ponte venderam a Antônio Teixeira Leite e Felipe Alves Ferreira, moradores do

município de Morro do Chapéu, uma extensa área denominada Barra de São Rafael com as

seguintes fronteiras: Nascente: fazenda tereco, dos vendedores, onde faz meio com o Sítio São Rafael; Poente: pelos contrafortes desta até o Sítio Santa Rosa, no poço de Água Verde (já é no rio Verde) e deste ao lugar chamado São Pedro, nas imediações da Chapada Velha. Norte: com a travessia de Dona Joana, (que é cá no centro da caatinga), cortando por cima da serra chamada São Francisco, procurando o lugar chamado São Pedro e daí cercando a Lagoa dos Porcos, acima do pasto de deste lugar à Travessia de Dona Joana... Sul: do lugar São Pedro, a Lagoa dos Porcos daí vereda abaixo até a Barra de São Rafael159.

Anos depois, ainda segundo Rubem, Joaquim Alves Ferreira, Joaquim Gomes Pereira

e Domiciano Barbosa Pereira adquiriram parte do território da Barra de São Rafael chamado

Lagoa Grande e nessa área passaram a arrendar porções de terra. Sabe-se que parte dessa

propriedade foi revendida a João José da Silva Dourado em 1840, incluindo aí a fazenda

Lagoa das Caraybas ou Brejo das Caraíbas onde hoje se encontra a cidade de Irecê.

Devido a crise das zonas auríferas e diamantíferas do interior baiano, no final do

século XIX, e a ocorrência de períodos de estiagem, diversos grupos migrantes se deslocaram

para o Platô Norte Diamantino em busca de terras para cultivo. A chegada desses grupos

obrigou João José da Silva Dourado e seus descendentes a ocupar as suas propriedades a

partir de 1877160, passando a residir na fazenda Lagoa das Caraybas. É importante notarmos,

contudo, que a propriedade Lagoa Grande abarcou a área central do Platô Norte Diamantino,

as áreas localizadas nas bordas deste foram ocupadas especialmente por posseiros até meados

do século XX. Outro fluxo de povoamento do Platô pode ser atribuído também à instalação da

fazenda Barra (na localidade onde atualmente existe o município de Barra do Mendes) no

início do século XIX.

159 RUBEM, Jackson. Irecê: história, casos e lendas. 2. ed. Irecê: Print Fox Editora, 2001, p. 37. 160 Idem, Ibidem, p. 40.

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Imagem 1: Localização do Platô Norte da Chapada Diamantina e áreas próximas

Área aproximada do Platô de Irecê.

Fonte: IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/mapas/ba_mapa.htm>. Acesso em 20 de fevereiro de 2011.

Como é comum na área semi-árida, as comunidades do Platô Norte da Chapada

Diamantina se desenvolveram próximas às fontes de água, aguadas, pequenos córregos ou em

locais mais úmidos onde era possível a abertura manual de poços e cacimbas. Nesses locais

originaram-se as primeiras povoações como América Dourada, Rochedo (atual Ibititá),

Canarana, Canal (hoje João Dourado) e Caraíbas (hoje Irecê)161. Infelizmente não dispomos

ainda de obras específicas sobre os processos iniciais de ocupação dessa parte do interior

baiano. A dispersão ou mesmo a ausência de documentos escritos referentes a esse processo,

impõe a memória oral como uma das poucas fontes para o conhecimento do modo de vida dos

primeiros habitantes do Platô.

161 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê. Salvador: SEI, 2000. (Série Estudos e Pesquisas, nº 48), p. 18-21.

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A construção do sistema hidroferroviário da Bahia, entre a segunda metade do

século XIX e a primeira metade do século XX, influenciou indiretamente a vida das

populações aí localizadas. O contato destas com as linhas de transporte deu-se por meio de

relações comerciais estabelecidas via porto da cidade de Xique-Xique e ramal ferroviário de

Jacobina. Reinaldo de Lôro, morador do povoado de Lagoinha, em Canarana, afirma que

“antigamente”

os tropêro panhava mamona aqui, fejão, milho, até quando cumeçô caminhão, panhava pra ir pra Jacobina e Miguel Calmon! [...] Por causa da linha do trem, o trem passava, a Maria-Fumaça, pra Salvador, vinha de São Paulo, lá tinha as istação, ai o trem de ferro pegava os produto daqui do sertão, que era tirado em lombo de burro! [...] Ia carregado de mamona e milho pra lá, voltava carregado de bibida, rôpa, sal, querosene, sabão, biscoito, bulacha [...], nas imbalage de madêra!162

Independente da influência das ferrovias e dos vapores, o comércio de gado sempre fora

frequente entre o Platô Norte Diamantino e as zonas de Morro do Chapéu, Jacobina e beira do

Rio São Francisco. O senhor Luiz Batista de Oliveira, Luiz Vaqueiro, afirma que por muitos

anos conduziu boiadas para Jacobina: “Lá era uma região rica, Jacobina, que a gente levava...

um saia com 200 boi, ôto saia com 300, ôto saia com 100, ôto saia com 50, tudo vindia de,

chegava em Jacobina de um dia pra ôto vindia, tudo! Voltava aqui pr’esse sertão”163.

Foi a partir da década de 1920 que surgiram aí as primeiras vilas e municípios.

Irecê, o município mais antigo, obteve sua emancipação de Morro do Chapéu em 1926,

ratificada em 1933164. As mudanças sócio-espaciais e políticas mais intensas na área em foco

só ocorreram a partir de 1950, com a abertura das estradas, a modificação nas bases

produtivas, a circulação dos caminhões e a criação de novas unidades municipais. Em 1962 o

Platô Setentrional da Chapada Diamantina já estava dividido entre 12 municípios165, tendo

sido esse número elevado para 19 até o final da década de 1980166.

162 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro), 67 anos, lavrador e vaqueiro, Povoado de Lagoinha/Canarana-Ba, momento único, 07 de jan/2012. 163 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro), 61 anos, vaqueiro, Sede/Irecê, 2º momento, 14 de nov/2010. 164 Sobre os embates políticos em torno da emancipação de Irecê ver: LEITE, Gedean Gomes. “Terra do frio”, coronéis de “sangue quente”?: política, poder e alianças em Morro do Chapéu (1919-1926). Feira de Santana: UEFS, 2009 [Dissertação de Mestrado em História]. 165 Barra do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra, Uibaí e Xique-Xique. 166 Surgiram na década de 1980 os municípios de São Gabriel, Mulungu do Morro, Lapão, João Dourado, Itaguaçu da Bahia, Barro Alto e América Dourada.

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Imagem 5: Localização da atual Região Administrativa de Irecê em relação a Salvador

Imagem 2: Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1889

Imagem 3: Divisão político-administrativa do Platô Norte da Chapada Diamantina em 1940

Imagem 4: Divisão político-administrativa atual do Platô Norte da Chapada Diamantina

Fonte: Prefeitura Municipal de Irecê. Disponível em: <http://irece.ba.gov.br/news/imapas.asp>. Acesso em 05 de fevereiro 2011

Fonte: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONOMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Evolução territorial e administrativa do Estado da Bahia: um breve histórico (CD ROM). Salvador: SEI, 2003 (Série Estudos e Pesquisas, nº 56).

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As relações sócio-econômicas e agrárias aí desenvolvidas até meados do século XX,

basearam-se em normas morais sustentadas sobre o direito de uso, na policultura e pecuária,

no uso comum das áreas de campo e no predomínio das relações familiares/comunitárias de

vida e trabalho. A terra foi sempre o elemento central no provimento da sobrevivência das

populações do Sertão de Irecê. Nas áreas pertencentes à família Dourado os trabalhadores

realizaram aquisições de parcelas para cultivo e moradia, um dos entrevistados, o senhor

Amado Alves Pinto, conhecido como Roxinho Vaqueiro, nos repassou as informações que

ouvira do seu pai:

A terra nesse tempo era..., eles tinha uma iscritura... é o siguinte, daí os Dourado (família Dourado) vendia uma parte de terra. Você tem que comprar da fazenda Lagoa Grande, se tiver 100 tarefa, você ia e comprava um taco, aí você mandava ao redor de sua fazenda toda, eles vendia, dizia: _“Aqui vamo vender a fazenda Lagoa Grande!” Acho que era (esse o nome) né, aí você ia e comprava aquele taco ali (quer dizer que a família Dourado vendeu parcelas da Fazenda Lagoa Grande), aí pagava aquele xxxx167 e pronto! Ficava mandano!168

Embora não tenham sido relatadas nas entrevistas ocorrências quanto ao arrendamento

de partes da Fazenda Lagoa Grande, não é equivocado imaginarmos que essa prática ocorreu

paralela a aquisição de parcelas por compra ou mesmo a ação de posseiros. Esses, contudo, ao

que tudo indica foram mais comuns nas áreas que margeavam essa propriedade. O senhor

Sinobilino Francisco Nunes, morador do povoado de Poço, município de Uibaí afirma: E: [...] de quem era a terra assim como é, comprava a terra? En:A terra era de valor, terra num tinha dono. E: Num tinha dono! En: Não, terra era de quem, de quem fizesse sua roça, quem quisesse fazer sua roça169.

O senhor Hermes José da Silva, popular Véi Herme, afirma também ter existido a ação

de posseiros na Vila de Recife de Jussara. qualquer um chegasse, podia pegar e fazer, aonde num tivesse, um num já estiver, que à vez, aqueles mais primêro circulava uma área [...] de variante (pequena clareira que demarca a fronteira do terreno) que’nem nós chama, fazer as picada né, 4 picada cercava ali (demarcava), dento da catinga. Então aquele ali já respeitava que já tinha dono né, aquele já tirô a área dele, mas, eu e ôto pudia tocar a foice e tirar ôta área pra frente tombem né! Como todo mundo fez aqui foi assim.170

167 XXX = Trecho inaudível. 168 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 169 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó), 86 anos, antigo lavrador e vaqueiro, Poço/Uibái, momento único, 26 de ago/2011. 170 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme), 71 anos, lavrador, criador e antigo vaqueiro, Vila de Recife/Jussara, 3º momento, 16 de out/2010.

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A disponibilidade de terras e a pequena população, manteve o sistema de apossamento

primário equilibrado. O senhor Almir Mendes Batista, popular Almir Vaqueiro, também

morador da Vila de Recife, se lembra que esse sistema valia igualmente para a construção das

moradias e que permaneceu até tempos recentes: Aí você chegava, dizia: _“Eu vô tirar uma...” Metia a foice pra dentro aí, tirava sua terra e óia. Em [19]70! E aqui, era quem chegasse, onde agradasse podia fazer sua casa, sua roçinha... eles pegava e fazia as roça171

A origem do sistema de apossamento primário remonta ao período colonial. Não só

senhores de sesmarias avançavam sobre os territórios reivindicando-lhes os direitos de uso,

como defende Márcia Menendes Motta, os posseiros foram uma categoria ativa quanto a

ocupação e disputa das áreas. Emília Pietrafesa de Godoi encontrou esse mesmo sistema entre

os camponeses do Piauí. Para ela a noção de posse continuou existindo entre os seus sujeitos

de estudo, mesmo após a abolição do sistema jurídico de posses com a Lei de Terras de

1850172. Como vimos, Francisco Carlos Teixeira, tentando explicar a origem das práticas

comunais no sertão sanfranciscano, também cogita a continuidade da noção de posse coletiva

entre os posseiros de Porto da Folha no século XIX, após a sacralização da compra como

forma de acesso à terra173.

Para os trabalhadores do Sertão de Irecê, os recursos naturais não tinham valor

monetário direto, sua apropriação era baseada em um valor de uso. Mesmo aqueles que

adquiriram por compra parcelas junto a família Dourado, proprietária da Fazenda Lagoa

Grande, optaram por assim fazer por reconhecerem nas áreas que almejavam características

julgadas importantes. Como demonstrado, nas margens do Platô existiam, até meados do

século XX, áreas de caatinga consideradas sem dono que eram alvo da ação de posseiros.

Almir Vaqueiro e Chico França, este também por nós entrevistado, nos dão um claro exemplo

das concepções não-monetárias que pesavam sobre os recursos naturais, ao relembrarem a

chegada de suas famílias à Vila de Recife, no final da década de 1930:

171 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista, (Almir Vaqueiro), 69 anos, vaqueiro, Vila de Recife/Jussara, 1º momento, 11 de nov/2010. 172 GODOI, E. P. de. O trabalho da memória..., p.41-108. 173 SILVA, F. C. T. da. Conflito de terras numa fronteira antiga..., p. 28.

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En 1 :É a vereda de desce pra’i óia. É, comprou a vereda! A terra aí, onde você chegava, ia fazer sua roça onde quisesse aí óia!174 E: Por que só comprou a vereda? En 1: É por que... nessa época...175 En 2: Ele (seu pai) comprou foi os direito!176 En 1: Os direito! Foi os direito ali né, pra cuido daquela pessoa... XXX pra quê que ele quer terra? Só queria a vereda óia! [...] Aí, ia chegando as pessoas... onde agradasse você ia fazer sua roça pra lá e pronto, não tinha negócio...XXX comprar um terreno não, era onde chegasse aí.

É importante notarmos aí que a negociação realizada não visava a compra do recurso

natural em si, mas a compra dos direitos de uso sobre ele. Esse sistema deixa claro a

perspectiva comunitária que recaía sobre os bens naturais que garantiam a sobrevivência. A

aquisição dos direitos de uso, porém, não lhe retirava a característica comunitária, dessa

forma, nada impedia que os moradores vizinhos dessedentassem os animais em um riacho

cujos direitos foram adquiridos por outros. Assustado com a pergunta do entrevistador sobre a

existência do sistema de compra de terras, questiona Almir Vaqueiro: “pra quê ele quer

terra?”. A questão esclarece ainda mais a proximidade entre a noção de valor e de uso que

atravessa a fala dos entrevistados.

Havendo terra disponível para posse, era a presença de fatores naturais como a água,

ou mesmo a realização de algum trabalho que lhe atribuía características especiais. Hermes

exemplifica. E: E essa coisa de comprar e vender a terra, ninguém comprava e vendia? En: Não! Se por acauso, eu, ou ôtro, qualquer um, fizesse uma roça e quisesse sair, ou ficar sem ela, mudar pra comprar ôta área em ôto canto, aí ele vendia, aquele binifício (benefício) que fez né, só o binifício que fez ou cercô [...] mas, mais pra frente não, que num era dele!177

174 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. (En 1). 175 Alessandro Portelli nos desafia a entender o áudio como “o documento real” a ser trabalhado, uma vez que o processo de transcrição desconfigura a linguagem oral, na medida em que objetiva tornar compreensível certas tonalidades, volumes e ritmos, (reveladores da dimensão emocional da narrativa) “irreproduzíveis na escrita”. Ver: PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDCU, vol. 14, fev/1997b, p. 26-29. O caso aqui descrito é claro na gravação, buscamos expressar por meio das reticências o “espanto” do entrevistado em relação a pergunta, por outro lado as exclamações marcam a tonalidade e a firmeza das respostas. Essa observação nos serve para refletirmos tanto sobre a forma concreta com que os trabalhadores concebiam sua noção particular de propriedade, baseada no valor de uso, como sobre a distância desta em relação à noção de propriedade capitalista atualmente predominante, presente no próprio entrevistador. 176 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França), 77 anos, antigo lavrador, vaqueiro, matador de boi e artesão, Vila de Recife/Jussara-Ba, 1º momento, 13 de nov/2010. (En 2). 177 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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O entrevistado demonstra que não era a terra em si o fator comercializado, mas o

“binifício” que estava sobre ela. Os entrevistados usam o termo “binifício” para designar os

produtos das ações humanas que incorporavam valor à terra, estes podiam ser das mais

diversas naturezas, desde o desmatamento de uma área, um reservatório, uma cerca ou uma

casa, por exemplo. Outros fatores não humanos poderiam ainda valorizar certas parcelas.

Hermes, mesmo podendo abrir sua própria gleba na caatinga virgem, optou por comprar uma

pequena roça quando da sua chegada à Vila de Recife (município de Jussara) em 1968,

justificando ser esta mais próxima de sua residência.

De qualquer forma, a compra dos direitos de uso ou o apossamento de certa parcela

inseria os indivíduos nas regras morais e sociais da comunidade que regulavam a convivência

e a apropriação dos bens, passando o mesmo a ser reconhecido como dono. Almir Vaqueiro e

Chico França exemplificam o funcionamento dessas normas. En 2: Se você saísse, saia e dexava seu pedaço:178 _“Ó eu vô sair moço! Vocês que planta a roça aí!” En 1: _ “Xx planta aí pra tu!” 179. En 2:_ “Fica óiano minha roça aí, se você quiser plantar, planta...”, En 1: [...] ali é minha, se eu fiz ali a capuêra era minha! _“Capuêra de fulano!”, era. En 2: _ Vendia pra ôto. En 1: Ou vendia! Você ia fazer a sua lá onde você quisesse, mas essa daqui foi eu que fiz, é minha! [...] Se achasse o compradô você pudia vender que foi você que fez!

A fala dos entrevistados demonstra que a aquisição do direito sob certa área era uma

noção socialmente referendada e respeitada, ainda que o seu dono não se fizesse presente. Ao

que tudo indica esse direito de uso, ainda que adquirido via apossamento primário, tinha

caráter hereditário. Assim como no caso da aquisição dos direitos de uso sobre a fonte de

água, relatado acima, o direito de uso sobre a terra não impedia sua apropriação comunitária.

Desta forma os animais da localidade podiam livremente pastar sobre áreas de copoeira ou

roças em pousio. As capoeiras eram “antigas roças” ou áreas queimadas, geralmente

pequenas, cobertas por vegetação renovada em estado arbustivo e de pequeno porte. Era, pois,

uma área portadora de “benefício”, uma vez que já havia sido desmatada, e pertencente a um

dono.

178 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. (En 2). 179 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. (En 1).

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A poliagropecuária foi a base econômica das comunidades do Sertão de Irecê. Sobre a

consorciação entre agricultura e a criação de animais relata Almir Vaqueiro: “eu lembro

moço, que meu pai era vaquêro, toda vida criava o rebanho de ovelha, criava o gado, era vaca

dos ôtos mais... a roça era no Angico (área próxima ao Morro do Angico, a 8 Km da sede do

município de Jussara), dava o feijão de corda, dava milho, dava mamona, dava tudo”.180 O

senhor Hermes José da Silva, nos detalha a forma de abertura das roças e a presença do

sistema de queimadas ou coivaras: às vez quando estava já roçando, brocando a terra, a caatinga pra fazer a roça, já ia tirando a madêra daqueles pau né, cortando e tirando a madêra e juntando, depois que roçava todo ia tirar a madêra nas costa de dentro da... e botar nos acêro, quando queimava aquela roçage, agora ia, com aquela madêra ia levantando a cerca, fazendo a cerca.181

Os trabalhadores do Sertão de Irecê derrubavam a caatinga para formação das roças por

meio de ferramentas básicas como machados e foices, ou mesmo do uso do fogo. Os detritos

das queimadas forneciam matéria orgânica para as culturas e aos primeiros sinais de

enfraquecimento do solo novas áreas eram abertas. As dimensões das roças impediam,

contudo, que esse sistema produzisse consequências graves para o meio ambiente. Ainda

segundo Almir Vaqueiro “os melhor de vida às vez fazia 8 ou 10 tarefa182 de roça ali, mas o

pobre começava com 1 tarefa, 2, 3.”183

A criação de animais estava presente na maior parte das propriedades e nas mais

diversas proporções. Os bovinos, ovinos, caprinos, muares, suínos e eqüinos eram criados

livremente em meio às caatingas. Esse sistema não excluía a existência de pequenos currais e

cercados onde os animais eram presos temporariamente, por outro lado, a prática de criação

dos rebanhos à solta obrigava os pequenos agricultores a cercarem suas propriedades com

madeira nos períodos produtivos. Sobre esse assunto Almir ainda afirma: “Era tudo aberto,

qual é cerca tinha nada aí! Só tinha um curral e um quintal nessas vereda aí ó! Aqui tudo era

aberto, abandonado, gado cumia aí onde quisesse, era abandonado”184. Nos explica o senhor

Guilhermino, morador do município de João Dourado e antigo vaqueiro: o bicho naquele tempo era solto, o criatóro era sôto no município aí de todo canto, né, nesse tempo aí num existia quase roça, tudo era catinga, tudo, o bicho vivia solto

180 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista, (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 181 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 182 1 tarefa = 66m². 183 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 184 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010.

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aí, você lutava daqui pra lá, vinha pegar gado aqui, no município de América, vinha pegar gado aqui, o mesmo gado vivia solto comum no mundo185

Como afirma Sinobilino Francisco Nunes, a caatinga servia de pastagem natural para

os animais:

o gado come verde e sêco, quando caía as folha o gado cumia ne’ra, tudo cumia, aquelas folha que ia no chão, quando mucha chega o tempo cai tudo, cai no chão o gado come toda, né, do jeito que come verde come sêca, passado tempo, num emagrecia não, só se aduecesse, que é acustumado186

As pequenas unidades policulturas associadas à pecuária, garantiam as condições

básicas de sobrevivência e a acumulação de pequenos excedentes que alimentavam o

comércio circunvizinho nas comunidades do Sertão de Irecê. Nesse contexto predominou

sempre a mão-de-obra familiar, sendo esta acrescida, por vezes, da troca de serviços e

produtos ou mesmo, da contratação de mão-de-obra para realização de atividades rápidas.

Os transportes mais comuns e acessíveis às populações do Sertão de Irecê até a década

de 1950 eram as tropas e carros-de-boi. Estes emitiram seus cantados por várias estradas do

Platô Norte Diamantino e áreas próximas, até pelo menos o final da década de 1970. Como

era comum em diversas áreas do interior baiano, aí também eram as moradias, as ferramentas,

os utensílios produzidos geralmente dos materiais mais acessíveis como o barro, a madeira, o

couro, o algodão. Os produtos manufaturados, ou não gerados pelas pequenas comunidades,

eram adquiridos nas feiras onde se comercializavam alimentos, ferramentas de ferro, farinha,

tecidos e produtos vindos de outras áreas do interior baiano. Ainda na década de 1950 o

sociólogo norte-americano Dolnald Pierson, em viagem pelo Vale do São Francisco, registrou

diversos momentos da vida do Sertão de Irecê e da cidade de Irecê, 9 anos depois, a pedido do

Ministério do Interior e da Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE) retorna ao

vale para realização de um “inquérito ecológico e sociológico” levando a público suas

primeiras anotações. Na sua primeira visita ao Vale (do São Francisco), o autor encontrou à venda na praça de Irecê, cidade situada a 100 quilômetros do rio, peixe seco do São Francisco, incluindo o surubim, a Curimatá e a corvina. O preço do surubim alcançava, nessa ocasião, 10 cruzeiros o quilo e, a Curimatá e a corvina, 8 cruzeiros.187

185 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino), 81 anos, antigo lavrador e vaqueiro, Sede/João Dourado-Ba, momento único, 18 de ago/2011. 186 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011. 187 PIERSON, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: SUVALE, 1972; Tomo II, p. 382.

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O comércio rompia as barreiras da distância e possibilitava às comunidades do Platô

Norte Diamantino e vizinhanças, o atendimento de suas necessidades. Embora o relato seja

recente, não nos é difícil imaginar que o viajante observara um momento corriqueiro da vida

comercial do Sertão de Irecê. Nos povoados e vilas, no entanto, predominava o sistema de

trocas de produtos. Roxinho Vaqueiro afirma que “de primêro” “dinhêro quase num existia!

Dinhêro, era algum que tinha um dinhêrim, aquelas coisa né, mixaria, quando vendia um bode

por 5 mil réis, [...] é o dinhêro que fazia é isso, é, dinhêro era difícil, era difícil”188.

Como é comum nas áreas semi-áridas, a seca foi sempre uma ameaça constante no

Sertão de Irecê. Daiane Dantas Martins, analisando a seca de 1932 na Vila de Canabrava do

Gonçalo, demonstra que, diante da instalação das calamidades no Sertão de Irecê muitas

pessoas se deslocavam para a cidade de Xique-Xique, às margens do rio São Francisco, em

busca de emprego e comida. Os que permaneciam ficavam sujeitos a fome, sendo obrigados a

se alimentarem de raízes, cactos como o xique-xique, de “batatas” como a cuca do umbuzeiro,

sementes como a mucunã ou mesmo de couro cru.

A desnutrição e a subnutrição expunham tais pessoas a diversas moléstias, muitas

vezes lhes causando a morte. Contudo, era nesse trágico contexto que se reforçavam e se

recriavam formas de solidariedade familiar189. É importante lembrarmos as observações de

Elisangela Oliveira Ferreira, ao afirmar que, a vida no sertão tinha para a maior parte das

populações a marca central da pobreza, que a dependência direta dos fatores naturais ou

mesmo a “técnica relativamente pouco elástica” de produção impôs aos sertanejos um

constante sentimento de “incerteza quanto ao futuro”190.

Guilhermino, no alto dos seus 81 anos, relembra:

Quantas e quantas pessoa eu via torrar milho assim, num caco véi pra cumê que num tinha ôta coisa pra cumê!? [...] Naquele tempo era pior, porque o mundo era a catinga e tudo mais, muitas hora o cara tinha vontade de fazer a rocinha e num pudia, porque num pudia cercar, porque o gado era solto [...] ficava pedino aos ôto uma coisinha pra cumê. [...] Em (19)44, eu tinha 14 ano, nasci em (19)30! Nessas catinga tudo, você iscutava no mato, xxx iscutava: “pêêê!”, o povão no mato juntano mucunã! [...] Juntano mucunã pra cumê, pra num morrer de fome, (19)44!191

188 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 189 MARTINS, Daiane Dantas. Um flagelo no sertão baiano: cotidiano, migração e sobrevivência na seca de 1932 (Vila de Canabrava do Gonçalo/Xique-xique). Santo Antônio de Jesus – BA: UNEB, 2010 [Dissertação de Mestrado em História Regional e Local]. 190 FERREIRA, E. O. Entre vazante, caatingas e serras..., p. 140, 169. 191 Entrevista Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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O entrevistado afirma ainda que muitas pessoas se sentiam mal após ingerirem raízes e

sementes. Diante da estiagem, conseguir água era sempre um desafio. Relata ainda o senhor

Guilhermino:

Água, óia, aqui dentro de João Dourado tinha um lajedo, tinha um buraco aí, o povo dessa região de 3, 4 légua que morava pra dento desses mocotozim, dessa catinga aí tudo, vinha pegar água c’uns carotinho em riba de um jegue, os caçoá véi com uma lata véa dento e umas cabaça, né. [...] num tomava banho, nem home, nem muié, nem nada! [...] Só os carrêro na catinga, num tinha istrada!192

Reinaldo Lôro, nos conta como ainda criança, lidava com os rebanhos de sua família

diante da escassez de água.

chegava lá tirava água na lata [da cacimba], na corda, corda bem cumprida na lata! Soltava naquela cacimba! E aí panhava água, inxia a lata, puxava botar no côxo! Pra dá água a criação. Aí quando as criação bibia a gente voltava com essa criação pra cá pra mesma manga [área cercada de criar], deve dá uns 9 km, 9 a 10 km mais ou menos, e olhe lá se não dá mais! Aí bibia hoje, amanhã não, dia sim e dia não, e nessa batalha a gente vincia! Murria muita criação, até de sêde!193

Os mais velhos possuem rico repertório de lembranças sobre as dificuldades vividas

em momentos de estiagem. No entanto, nem só de crises viveu o Sertão de Irecê. Os

momentos de fartura em que havia chuva regular, permitiam o retorno das atividades das

roças e a recomposição, ainda que parcial, dos rebanhos. Zizinho discorre:

Mais a gente vivia vida boa! Era vida boa! Que tinha fartura de leite, tinha o bode, o porco, num faltava pra se matar pra cumer! E a farinha, essa ai era da lavôra. [...] Produzia muito fejão, [...] era tudo plantado na mão, era só mesmo pra cumer, num tinha coisa pra dizer assim: _“Vendi tantos saco de fejão, vendi tantos saco de milho!” Num tinha isso não!194

A realização de trabalhos coletivos amenizava as dificuldades vividas e facilitavam a

produção das condições de sobrevivência. Os vaqueiros entrevistados relatam a existência de

práticas como o adjunto ou trocas de serviços, comuns em diversas partes do interior baiano,

deixando transparecer a predominância de formas comunitárias de convivência, sociabilidade,

lazer e trabalho entre as populações do Sertão de Irecê. Roxinho e Almir exemplificam essas

práticas:

192 Idem, Ibidem, loc. cit. 193 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)...momento único, 07 de jan/2012. 194 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho), 66 anos, matador de boi, lavrador e antigo vaqueiro, Tanquinho/Lapão, 1º momento, 13 de set/2011.

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É, dá o nome de adjunto![...] Fazer o adjunto pra ajuntar o pessoal, 10 ou 15 ou 20 home pra ir fazê aquele trabalho né, pra fazê cerca! Ou capinar, fazia muito pra ir capinar, às vez a pessoa se achava doente: _“Vamo capinar a roça de fulano hoje? Vamo todo mundo!” Reunia nós... cansemo de ir, capinar, cercar, às vez plantar, quando alguém adoecia: _“Vamo plantar a roça de fulano que tá doente moço!” Aí o povo ia. (...)! Era de graça, ninguém pagava nada. Só dava a despesa, a comida lá e pronto.195 Ali é o siguinte, naquele tempo, os vizinho era tudo unido! Se eu... aqui tinha 5 vizinho ou 10, se eu matasse um bode, cada quem ganhava um taco (um pedaço). Quando você matava era a mesma coisa, era repartido. Você arrancava uma mandioca, todo mundo ia ajudar! Num tinha esse negóço de pagar não né. O fornêro ia mexer! Só tinha o bêjú (beiju): _“O bêjú é do fornêro!” Bêjú de tapioca, e aí pronto, quando fizesse ôto a mesma coisa fazia! Era tudo desse jeito.196

A troca de serviços poderia se estender à diversas atividades: construir uma casa, fazer

uma cerca, capinar a roça de algum conhecido, capturar animais na caatinga ou simplesmente

fazer farinha. Para os grupos rurais, a possibilidade de trocar serviços sempre teve grande

importância na cobertura de suas necessidades cotidianas. Poder contar com uma mão-de-obra

a mais durante o plantio, a colheita, diante da iminência de uma chuva que ameaçasse a safra

ou mesmo em condições de impossibilidade física do dono da roça em realizar a tarefa, era

fator da maior relevância. Por outro lado, a troca de produtos facilitava o acesso a alimentos

básicos ou utensílios desejados. É importante notarmos que essas formas de trabalho tinham

ao mesmo tempo um grande caráter simbólico e sócio-econômico que terminava por

fundamentar “redes domésticas” de relações que se estendiam além da consanguinidade e

eram constantemente reconstruídas e reforçadas pelos laços de dependência e pertencimento.

Exemplo dessa perspectiva nos é fornecido por Ana Ferreira Rocha ao analisar a

“freguesia” no município de São Gabriel. A “freguesia” consistia em uma prática centenária

de ajuda mútua, caracterizada pelo auxilio voluntário de um dado grupo de mulheres a outras,

geralmente vizinhas ou parentes, que se encontravam gestantes ou em “resguardo”197. A ajuda

fornecida tinha como foco central as atividades domésticas como lavar roupa e cuidar das

crianças, incluindo-se também o trabalho das parteiras. Rocha aponta para a “freguesia” como

uma prática fortemente marcada por trocas simbólicas em torno da maternidade e do

“resguardo”, que produziam sentimentos de pertença entre o grupo e amenizava as condições

de sobrevivência na pequena comunidade de São Gabriel. Ainda essa autora, aponta para

195 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 196 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 197 Período pós-parto, no qual a mulher ficava impossibilitada de realizar tarefas durante cerca de 20 a 30 dias.

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existência de outras formas comunitárias de trabalho no espaço por ela estudado como a

“espinhaçada” (mutirão para matança de porcos), a “derruba de milho” e os “trabalhos da casa

de farinha”198.

A realização de atividades laborais no Sertão de Irecê não se antagonizava aos

momentos de divertimento. Para além da realização de festejos religiosos e de folguedos, um

simples adjunto ou qualquer outro trabalho coletivo intercalava de modo flexível as tarefas do

cotidiano e os momentos de sociabilidade. Nos fala Luiz Vaqueiro:

[...] você tinha 10, 12, 15 boi pra pegar, aí reunia a vaquerama pra pegar [...] E aí a festa ia cumeçano, e a aligria [...], quando pensava que não chegava uma bibidinha por o mei, (risos) um lito de cachaça, e lá vai, nêgo tomava uma dose ali já ficava mais alegre... [...] Aí, quando era de noite, tomava o pé de um bar daquele e a farra cumia!199

Como afirma E. P. Thompson, nas comunidades em que o controle do tempo se dá

atravéz da orientação das tarefas cotidianas a serem realizadas, quase não existe diferenças

entre o ‘trabalho’ e a ‘vida’. Nesses espaços não há conflito entre o trabalho e o passar do dia,

aliás, a própria noção de dia tem como referência o tempo gasto para realização das tarefas,

podendo assim se alongar ou contrair200.

A dinâmica cotidiana da vivência dos habitantes do Sertão de Irecê era produzida a

partir da integração de diversos espaços.

En: [...] de manhã cedo levantava ali, quatro horas, três horas, [ia] pra o curral né, pra lutar com... tirar leite, ajeitar bezerro nas mães pra mamar e tudo, quando era a base de seis horas era soltar eles do curral, ai ia pegar cavalo, dar banho e arriar, quando era sete pra oito horas ia pra o campo. Então quando desce certo, você entrava pra o campo, [...] Achava uma vaca parida ou pra parir, pra trazer para o curral, trazia, outras vezes não achava cedo [...] Passava o dia, por lá pelo campo! Lutando, em procura daquela rês que você está com mais preferência pra não perder o bezerro! [...] E ai, XXX não achava, quando era a base de cinco horas ia voltando pra casa, quando vinha chegar era seis horas, sete horas em casa, com XXX, com a rês ou sem nada, mas o horário era esse! [...] E quando chegava, [...] se era de jantar, não, ia pra o curral! (risos) E: Tem um trabalho no mato e tem um trabalho em casa. En: Acho que já estava em casa, no curral! [...] Quando vinha pra casa, já era de sete pra XXX, era que você ia jantar.201

198 ROCHA, Ana Ferreira. Gênero, reciprocidade e reprodução social: o circuito da dádiva na prática da “freguesia” entre mulheres de São Gabriel-Ba. Viçosa: UFV, 2008 [Dissertação de Mestrado em Economia Doméstica]. 199 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 200 THOMPSON, E. P. Costumes em Comum..., p. 271-272. 201 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.

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Ao narrar o seu cotidiano de trabalho o velho vaqueiro nos descortina uma “união de

lugares”, marcados por um “ir e vir”, que, em última instância, possibilitava o próprio

“existir” para os sertanejos do Sertão de Irecê. A esse conjunto de espaços (o campo, a casa, o

curral) unia-se a roça, como espaço central de produção de alimentos, como demonstra Luiz

Vaqueiro: “fazia sua rocinha pra você ter sua dispesa, o milho... ninguém vendia milho

naquela época! Cada qual todo mundo tinha, criar seu porco, criar seu bode, dar ração a uma

vaca fraca, um cavalo... pronto, era esse... e comer, o milho.202 Por fim, as feiras completavam

a rede espacial como lugar de lazer, comunicação e comércio.

O campo era o mais extenso dos espaços de produção da sobrevivência das

comunidades do Sertão de Irecê e compunha o fundo sócio-ambiental sobre o qual se

desenvolviam as demais atividades. O campo marcava o “estar dentro” ou o “estar fora” dos

seus espaços de pertencimento. A definição mais corriqueira do termo campo, remete a uma

área extensa, sem mata, geralmente cultivada, um tanto quanto afastada das áreas urbanas, a

qual se atribui representações e sentimentos bucólicos de paz e calma. Para as populações do

Sertão de Irecê, a expressão tinha um sentido oposto e era utilizado para definir uma área

pastoril, coberta com caatinga virgem ou renovada203. Esclarece Viana Vaqueiro: O campo é o vasto aí né, você selar o cavalo e caçar o bicho no mato, nas capôera, queimada...o campo é esse aí. Quando uma pessoa viu outra dizia: _“Vai pro campo?!” Já sabe que eu vou caçar o trem (o boi) no campo né, que num tinha circo! (área fechada com cercas para criar os animais). Hoje diz assim: _“Eu vô ali na manga, eu vô no circo juntar o gado” Porque o trem é preso! Aí...: _ “Vô pro campo!” Merguiava no campo.204

Roxinho Vaqueiro também explica:

O campo é... é o campo mesmo, era a terra solta aí pra todo mundo! Era um campo! Vamo dizer: o campo é a terra solta pra todo mundo. Quando tem dono é um sítio, né: _“No sítio de fulano!” né, fulano... _“Lá no sítio de fulano tem uma rês!”, ou “Na fazenda de fulano tem uma rês sua!”, Diz: _“Tá no campo!” _“Qual é o campo?”

202 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 203 Aparentemente o termo é comum a toda a área do semi-árido nordestino onde houve a prática da pecuária “solta”. 204 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro), 75 anos, lavrador e antigo vaqueiro, Sede/Jussara, momento único, 10 de nov/2011.

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_“Campo fulano, naquela lagoa, lagoa do Juá, lagoa do Urubu, ou Três Lagoa, lá tem uns gado de vocês pastano lá!” Era assim: “No campo!”. É por que era todo mundo.205

O “campo pastoril” sertanejo não é necessariamente uma área plana, podendo incluir

morros, declives, lagoas e diversos outros acidentes geográficos, não é, pois, uma área aberta

e sim fechada, no sentido da manutenção da natureza primária. Outro fator que diferencia os

sentidos apontados para o termo é o fato de que, enquanto o “campo agrícola” aceita cercas e

delimitações materiais exatas, o “campo pastoril” sertanejo se delimitava por fronteiras

sociais e comunitárias. Nessa direção, as noções de propriedade que acompanham os sentidos

apresentados podem ser radicalmente opostas.

Enquanto o “campo agrícola” pode ser definido muitas vezes como uma propriedade

privada de acesso restrito- uma “área usada por um dono”, o “campo pastoril” pertence à

comunidade por costume, por direito consuetudinário, embora juridicamente possa ter um

dono (geralmente desconhecido). O “campo” do qual nos fala os vaqueiros é a união de áreas

de uso comum e do uso comum de áreas privadas, no sentido apontado por Nazareno José

Campos. Ainda hoje existem no Platô Norte Diamantino e/ou áreas marginais, pequenas

áreas usadas comunalmente para pastoreio definidas como campo.

Quanto a propriedade, alguns dos informantes classificam o campo como um terreno

“absoluto” “sem dono”, “terra solta”, ou “terra da nação”. Guilhermino informa: Bom, o campo é... a região, né, porque é o gerais, né! Tudo era catinga a gente trabaiava campo, campiano a criação, né, o criatóro, a gente chamava campiano: _“Eu vô hoje pro campo!” Pegar o criatóro pra trazer pro curral, trazia pra casa e tudo mais, era isso aí.206

A noção de campo orientava espacialmente e disciplinava a vida das populações do

Sertão de Irecê. A sua constante relação com as atividades pecuárias esconde uma série de

outras tarefas que nele eram realizadas. Era sobre o campo que se efetivava o sistema de

apossamento primário da terra, nele se encontrava a madeira, a caça, nele se realizava a coleta

de mel, de plantas medicinais, de fibras, frutas, tintas, nele se encontravam os reservatórios de

água. Em tempos de seca estavam nele os alimentos: raízes e “batatas”, a mucunã. Sobre o

campo se estabeleciam os “carreiros207” e caminhos, as roças e espaços de moradia.

o campo era aí abandonado! Quem que chegasse...:

205 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 206 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 207 Caminhos feitos em meio as caatingas, geralmente pelo gado e as criações.

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_“Eu vou fazer uma casa aqui...” É só chegar e cortar (desmatar) e fazer, não tinha negócio: _“Eu vou comprar um terreno”, não.208. E: O povo, naquela época que existia campo Seu Luiz, o pessoal usava o campo mesmo pra criar o gado e mais pra que assim? [...]

En: Só era mesmo só pra criar! Fazia sua rocinha pra você ter sua dispesa... 209 O garrancho era, acabava, a gente renovava, todo ano, todo ano a gente consertava a cerca, depois que acabou o campo, não tinha onde se tirar nem a madeira nem o garrancho pra renovar a cerca de novo, passô a gente fazer de arame.210

O campo guardava também os seus perigos: a onça, a cobra, o buraco, o graveto que

feria os vaqueiros e seus cavalos, os mistérios e ciênças211. Embora “vasto”, o campo era

habitado, embora perigoso, era fonte de sobrevivência, embora “solto”, o campo tinha limites.

Juarez informa: tudo isso aí era campo que a gente andava, ia por aí, por isso tudo. Agora quando você ia pro Variante, outras vezes você ia pras Cem Tarefa, por Angical... a gente ia buscar (o gado) pra ficar no campo aqui, lá já era campo forasteiro, não era mais... de lá ia rompendo mais pra frente, ia buscar o gado, pra ficar no campo nosso aqui, a gente ia panhar o gado lá212.

O mecanismo definidor do “campo nosso” e do “campo forasteiro” eram as relações

de vizinhaça e amizade as quais, além de possibilitarem o aceso a notícias sobre o paradeiro

dos animais, produziam também noções de pertencimento espacial a partir da formalização de

relações de confiança com outros moradores.

Então, os bicho ficava só na região, na região daí do município e tudo mais. Você tinha uns criatóro solto naquele município, fugia um, aparicia, acumpanhava os ôto..., eu fui saber que minha rês, porque os trem tudo era ferrado, né: _“Apareceu uma rês!” Eu tinha cunhecimento com ôto fazendêro do ôto canto, ôto n’ôto canto e tudo mais e isso aí, explorava isso aí, né. É como você tinha um cunhecido num canto, é mesma coisa que você ter uma rês em um canto e fulano dá notícia: _“Eu, eu vi uma rês sua, de seu fulano de tal!” Quando dizia assim aí você, ia buscar aquilo.213

Criados à “solta” os animais se espalhavam pelas caatingas e, a medida em que se

deslocavam, obrigando seus donos ou cuidadores a andarem maiores distâncias e

estabelecerem novas relações de conhecimento, também alargavam as dimensões do campo. 208 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 209 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 210 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 211 Popularmente essa expressão se refere a ocorrência de um “saber sobrenatural” que não foi ainda descoberto ou que é controlado por poucos. Ver trecho sobre saberes dos vaqueiros na parte seguinte do capítulo. 212 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 213 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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O meu cumia lá, inté lá em sua casa, o seu cumia de lá pra cá, cumia daqui prá’culá... ia atrás de gado com 3 légua, com 4 légua... [...] tinha vez de aí o gado de Gabriel (São Gabriel) ia batê em Jussara (aproximadamente 20Km de distância)! [...] Você hoje incontrava, [...] vaquêro “fulano de tal”, [...] eu digo: _[...] “Rapaz, você me dá nutiça (notícia) de gado fulano, de gado da gente por lá não?” _“Rapaz, lá tem gado de vocês lá. _ [...] “O ferro era esse aqui!” _ “É?” _“É!” _ “Tem tantos bicho lá” _ “Tal dia eu tô lá pra pegá!” [...] era como eu dizer: _“Moço, lá tem do teu lá também!” Aí, eu pegava os teu cá, prindia, mandava te avisar, e tu pegava os meu lá e mandava me avisar, era assim. Era coisa boa demais.214

Essas redes de solidariedade, confiança e vizinhança poderiam se estender por muitos

quilômetros e ainda assim funcionarem de forma eficaz. Samuel, agricultor, morador do

município de São Gabriel, afirma que por muitas vezes foi buscar o rebanho da família a uma

distância de 10 léguas, aproximadamente 60 Km. Como nos explica o senhor José Estevão

dos Santos, vaqueiro, morador da cidade de Jussara, o campo abarcava referências espaciais

que permitiam o deslocamento e o fortalecimento dessa rede de relações e vizinhança.

Aí num tem mais o campo nosso! Os de antigamente, num era? E cumeçava daqui dos Morrinho o campo, ói, daqui saía do Recife, na Toca! Sítio Novo, nos Morro, ali tudo era campo de catinga! Você entrava e só via catinga! [...] Nosso campo é esse aqui... _ “Vai pra onde hoje?” _ “Nós vamo aqui pra baxo.” _ “Vai pra onde amanhã?” _ “Vamo pra Lagoa do Pinhão.” Tudo tem nome os lugar... [...] o campo é um só! Pra um canto e pra ôto, mas cada qual tem os ponto de ir!215

Circundando as roças, as vilas, os caminhos, abarcando as referências espaciais que

fundamentavam a Geografia Social das comunidades - o morro, o carrasco, a aguada, a

umburana torta, o tanque de fulano, a cacimba, o caminho tal, o tabuleiro (área de vegetação

arbustiva, formada essencialmente por cipós, para onde os trabalhadores deslocavam os

rebanhos em períodos de estiagem) -, proporcionando pasto, alimentos e madeiras, o campo

se firmava como o pano de fundo da vivência dos sertanejos. O que não era mais campo, com

214 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 215 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos), 67 anos, vaqueiro e lavrador, Sede/Jussara-Ba, 2º momento, 24 de jan/2012.

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certeza fora. A roça, a moradia, o curral, a vila, correspondiam a subespaços dentro do espaço

do campo, que se diferenciavam e se complementavam ao mesmo tempo.

O campo não era, portanto, a caatinga (esta é seu véu). O campo era o que acontecia

entre a caatinga. O campo firmava-se assim como lugar de trabalho e vivência, determinado

pelas regras do costume e estendido pelas relações de vizinhaça. O campo unificava e

espacializava o Sertão de Irecê, permitindo formas sociais e simbólicas de produção

semelhantes entre as diversas comunidades espalhadas pelo Platô Norte da Chapada

Diamantina e áreas circunvizinhas. Era a síntese entre a natureza e o trabalho, nesse sentido,

também um espaço social.

Durante cerca de 100 anos (meados do século XIX até década de 1970) as populações

do Sertão de Irecê nortearam suas vidas através de formas próprias de vivência e

sociabilidade, do uso comum dos bens naturais, especialmente da terra e da água, do

mecanismo social de trocas de serviços e produtos; da convivência com a seca, do

desenvolvimento de estratégias de resistência a esta e da manutenção da atividade

poliagropecuária de base familiar como elemento central de sobrevivência. Cotidianamente,

no campo, na roça, na casa, no curral, no trajeto do tropeiro, no trabalho das mulheres, do

agricultor, dos vaqueiros, na bodega, no casamento, na fuga dos retirantes, na conversa no

açude, na lida em busca de água, nas relações de parentesco, as comunidades do Sertão de

Irecê produziam suas relações sociais, simbologias e valores, sanções, noções de ordem e

desordem, nascidos do labor, da diversão, da religião, do sofrimento que permitiram a

produção de concepções de mundo consolidadas no decorrer do tempo através das gerações.

Nesse sentido, entendemos o modo de vida do Sertão de Irecê como um modo de vida

costumeiro, na perspectiva proposta por Thompson216.

Como afirma esse autor o costume é o produto da práxis cotidiana dos trabalhadores

pobres, o conjunto de normas e regras sociais, que determina as formas de apropriação dos

bens e recursos naturais e sociais, legitimado localmente no uso em comum e nos tempos

imemoriais. Por isso o autor afirma que o costume é a interface entre a práxis agrária e a lei.

Para Thompsom o próprio costume assume a posição de uma propriedade repassada às

gerações futuras. O costume atravessa as crenças, a oralidade e as formas de uso prático e

comportamento sem, contudo, gozar de registros escritos nem de regulamentos. Na medida

216 THOMPSON, E. P. Costumes em Comum..., p. 13-25, 86-149.

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em que disciplina os membros de uma comunidade, o costume pode, por exemplo, servir de

instrumento punitivo contra os indivíduos que transcridem as normas morais217.

No Sertão de Irecê o costume delineava e fundamentava a forma de funcionamento

das relações sociais, os modos de uso dos recursos naturais e os limites de ação dos grupos

sobre a realidade. Cultivar pequenos pedaços de terra, por exemplo, era ao mesmo tempo uma

prática produzida pela realidade técnica que impossibilitava o plantio de grandes áreas e um

mecanismo de inserção nas regras morais da comunidade. A realização de um adjunto em

uma propriedade, inseria o morador desta na rede de serviços e solidariedade, incubindo-o de

um compromisso em participar dos adjuntos vindouros. O direito de apossamento primário ou

a compra dos direitos de uso, como vimos, não impedia a apropriação comunitária das

propriedades ou recursos ali existentes. Criar animais à solta era uma prática comum a todos

e, portanto, moralmente correta. Como em diversas partes dos sertões baianos, a família era

também no Sertão de Irecê a base social e a principal força de trabalho. A vida nas vilas e

povoações não se diferenciava muito, eram nelas desenvolvidas as atrativas feiras semanais e

de algum modo, todos os habitantes tinham relações com o meio rural. Eram vilas e cidades

rurais.

A reprodução desses valores fundamentava o costume e definia formas específicas de

relação entre o homem e o meio. O Sertão de Irecê era, pois, produto espacial e simbólico de

um modo de vida costumeiro. A roça, a vila, o curral, o campo, a feira, o rancho se

articulavam nas estratégias de sobrevivência se constituindo como territórios do vivido,

espaços produtores de sentido, e é nesse contexto que viviam nossos sujeitos de pesquisa: os

vaqueiros.

Em meados do século XX diversas dessas regras sociais (muitas delas associadas

ainda ao processo de ocupação primário) ainda podiam ser encontradas entre as populações do

Sertão de Irecê, especialmente as rurais, como por exemplo, o apossamento, a negociação de

“benefícios”, a realização de práticas comunitárias como os adjuntos, freguesias, a prática da

pecuária “solta” e o uso comum das terras.

217 Idem, Ibidem, loc. cit.

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CAPÍTULO II

Campear no espaço do costume

Quantas vez nós ia pegar gado ali naquelas queimada véa! [...] Ave Maria! Diversão boa danada!

(Almir Vaqueiro)

“O que é bom já nasce (por ser) feito!”218

Embora não pudesse ser considerado como área de grande porte pecuário, os animais

compuseram parte essencial da economia de aprovisionamento das comunidades do Sertão de

Irecê. Mesmo os bovinos, animais de maior valor, eram comuns nas pequenas propriedades,

geralmente, em lotes reduzidos. O trato com os animais exigia do grupo familiar vigilância

constante: era preciso saber se retornaram ao xiqueiro ou curral, se estão sadios, dessedenta-

los quando necessário ou mesmo se existia alguma matriz prenhe. Diante da ausência de

algum animal não havia outra solução a não ser embrenhar-se nas caatingas à sua procura.

Até a década de 1970, em diversas partes do Platô Norte Diamantino e nas áreas

circunvizinhas, buscar cabras, ovelhas ou porcos em meio ao mato era tarefa cotidiana das

famílias rurais. Não nos é difícil imaginar aqui (embora muitos afirmem não ser essa a função

do historiador) mulheres, crianças, homens e idosos em busca de seus patrimônios

quadrúpedes, entoando entre à caatinga a repetitiva cantiga “xiqueiro-xiqueiro” que tão bem

funciona na condução do “gado miúdo” (animais de menor porte), enquanto badalavam

pequenos chocalhos anunciando a chegada de retardatários ao rebanho.

Quando a busca se estendia por trechos mais distantes ou se tratava da procura de

animais de maior porte como os bovinos e eqüinos, a atividade se tornava mais masculina e

exigia conhecimentos detalhados do trabalho na caatinga. Usava-se aí o cavalo e as

indumentárias de couro para proteção contra os espinhos e garranchos. Acrescentemos, pois, à

nossa cena o emergir de gritos de algum cavaleiro em sua ânsia de captura da rês219 em

218 Adaptação do ditado popular “O que é bom já nasce feito!”, ressaltado em entrevista pelo senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri), 61 anos, vaqueiro e lavrador, Vila Amaniú/Sento-Sé, momento único, 03 de nov/2010. 219 Usamos o termo aqui segundo a definição dos entrevistados, como sinônimo de animal bovino.

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disparada, orquestrando um estalar de galhos e gravetos, ou mesmo a chegada sonora de um

aboio condutor. Seria esse cavaleiro um vaqueiro?

Samuel afirma que sempre dividiu o seu tempo entre o trato com o gado da família e o

trabalho na roça, destacando:

Eu fui, eu...eu trabaiei muito tempo, trabaiei muito tempo, e depois dexei de mão, fui pra roça. Toda vida eu fui pra roça, agora qu’eu lutava... se tivesse precisão, eu ia e pegava a rês, mas minha vida foi na roça, toda vida. [...] Então nós criava umas 4 vaquinha, quando precisava de pegar eu mesmo ia pegar não pagava ninguém. É. Era coisinha pouca. [...] Então, num posso dizer qu’eu fui vaquêro, (risos) acustumado viu, qu’eu só pegava quando tinha precisão de dinhêro, dinhêro faltava, a gente ia e pegava. [...] Eu arriava o cavalo..., eu tinha! Tinha os côro, tinha tudo! [...] Porque naquele tempo, em pano, não se podia entrar no mato. Como é que entrava?! Porque se entrasse voltava nú! (risos)

Afirma ainda que ajudava os colegas na captura de animais e relata não possuir as

destrezas dos amigos, pois, era “mole” e “deixava quase todo dia” as rêses escaparem.

Samuel diz que apenas “campeava”, vestia os “côro”, mas não era vaqueiro, pois, ser vaqueiro

exige coragem “num é pra todo mundo não!”220.

O uso da indumentária de couro sempre foi uma das marcas centrais do vaqueiro desde

os primeiros relatos de viajantes e memorialistas. Samuel parece contrariar essa perspectiva.

Esse entrevistado nos demonstra que o uso do gibão e das demais peças de couro era,

primeiramente, uma necessidade para o trabalho no campo, muito longe de uma peça de uso

exclusivo de um dado grupo. Embora seja produto de uma arte especializada, as

indumentárias de couro eram relativamente acessíveis para os trabalhadores do Sertão de

Irecê. Todos os entrevistados possuíram suas próprias peças, mesmo Samuel que nega ter sido

vaqueiro. Juarez afirma que em 1964 possuia “dois terno de côro”221. É possível que com

desenvolvimento técnico e de transporte, as indumentárias tenham sofrido um barateamento

na primeira metade do século XX. Observando as imagens apresentadas durante a entrevista

nos explica Hermes: O terno de couro que nós trabalha aqui é de uma forma e o de lá (da beira do rio São Francisco) é de ôtra, que nós chama “matêro” né, que é feito em Feira e Ipirá, que é lugar que vai xxx de couro xxx. Sempre o desenho é ôtro. E aí (Caderno de Fontes Complementares – Imagem 2) de Curaçá é ôtro ó, tá aqui esse desenho aqui (Caderno de Fontes Complementares – Imagem 1) é diferente desse aqui [...] O daqui (Imagem 1) é o mais comum daqui era esse! E esse ôto (Imagem 2) era de

220 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel), 85 anos, antigo lavrador, Sede/São Gabriel-Ba, momento único, 20 de out/2010. 221 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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Curaçá, aqui pra bêra do rio trabaia muito com ele, aí de Sento Sé pra cá, ali na Ponta D’água, com esse terno aqui e (esse) chapéu e aqui, é o chapéu diferente222.

Segundo as observações desse entrevistado, o gibão feito em Curaçá recebia o nome de

“curaçazêro” e tinha formato mais arredondado, mais justo, como a imitar uma roupa, e era

pouco usa do no Sertão de Irecê.

Euclides da Cunha define as peças de couro que recobrem o cavaleiro como “fosca e

poenta”, afirmando que ela cravava sobre o homem a mesma feição do meio e acrescenta: Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana, com o pelo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro223.

Câmara Cascudo, como vimos, a define como “armadura côr de tijolo”224. No Sertão

de Irecê, usar a indumentária de couro não era sinônimo de ser vaqueiro, não deixava, porém,

de demonstrar a afinidade do indivíduo para com o trato com o gado e os serviços do campo.

É corrente entre as narrativas colhidas a afirmação de que “nem todo mundo era vaqueiro”.

Segundo Zé dos Morrinhos “todo mundo pode se incorar, e sair pro mato incorado e dizer que

é vaquêro, mas na hora de pegar um bicho num pega!”225. Roxinho Vaqueiro afirma que “era

pôcos que era vaquêro naquele tempo tomém, porque era pôcos que tinha corage”226. É ele

ainda que melhor nos explica a importância e a singularidade do trabalho do vaqueiro em

relação aos outros trabalhadores que, assim como Samuel, apenas “campeavam”. E: E nesse caso aí, como é que sabia quem era vaquêro e quem num era, se todo mundo [campeava]...? En: É por causo que..., o siguinte: à vez você tinha uns animal mêi brabo e você lutava e num pudia pegar: _“Vamo chamar fulano!” Chamava um pra... aí você já vê o trabaio dele! Qu’era diferente do seu, à vez o sirviço era diferente, você vê como é qu’ele lutava, né, diz: _“Ah! É por aqui que se faz o sirviço, né!” Jogar um corte no bicho (desviar o animal) ou botar pra pegar logo tombém, né, aí você ia aprendeno227.

222 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 223 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 123. 224 CASCUDO, L da C.Vaqueiros e Cantadores..., p. 80. Este autor apresenta várias descrições sobre a roupa do vaqueiro em CASCUDO, L. da C. Tradições Populares da pecuária..., p. 63-67. 225 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 226 Entrevista Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 227 Idem, Ibidem, loc. cit.

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O “dono do animal”, após ter campeado sem obter êxito na captura, resolveu chamar

“fulano”. É importante observarmos como o narrador define a diferença entre o trabalho do

dono e o da pessoa convocada para resolver a situação. Em sua narrativa o “dono do animal”,

assume o papel de observador e até aprendiz, chegando a conclusão de que “o trabalho de

fulano era diferente do seu” e aprendendo como “se faz o sirviço”. O “fulano” chamado

domina as artes do trato com o gado de uma forma polida e objetiva, sabe “jogar um corte”,

sabe “botar pra pegar logo”. Outro fator narrativo importante inda emerge da fala do vaqueiro

Roxinho: quem seria esse “fulano”? A expressão “fulano” funciona aqui como um

delimitador. Não se objetiva chamar qualquer pessoa, mas, uma pessoa específica que pudesse

resolver o problema, era, pois, uma pessoa cujo nome e habilidades na captura do gado eram

reconhecidos comunitariamente. A construção da diferenciação laboral do vaqueiro no Sertão

de Irecê era, contudo, um processo lento que a princípio pouco se diferenciava do modo de

iniciação dos demais jovens ao mundo do trabalho. À medida que firmavam suas afinidades

no trato com o gado, suas destrezas eram postas à prova e o trabalho no campo lhe permitia o

acesso às dinâmicas próprias do grupo e o convívio com os vaqueiros mais experientes.

A lida com o gado, as criações228 e a roça, esteve presente desde a infância de todos os

entrevistados, se combinando de várias formas e variando segundo a idade. Como nos afirma

o vaqueiro Licuri: “ninguém diga também que já nasceu na profissão de vaquêro e já nasce na

profissão, mas, primeramente, ele tem que pegar na inchada, pegar em tudo!”229. Nosso

informante é um exemplo de suas próprias palavras. Iniciara-se no mundo do trabalho, ainda

na infância, pelo trato com a roça, aos 12 anos de idade tornou-se “carregador de leite” e

“fazedor de requeijão”. Roxinho Vaqueiro, em meados da década de 1940, ainda “mulecote”,

trabalhou como postador230 na tropa de um compadre de seu pai, transportando farinha do

Sertão de Irecê para Jacobina e outras cidades. Zizinho e Gilson, quando crianças, cuidavam

das criações de seus familiares ganhando 1 em cada 4 ou 5 animais nascidos.

A maior parte dos entrevistados afirma que se tornaram vaqueiros entre 12 e 15 anos

de idade. Jairo, vaqueiro desde os 13 anos, nos explica: Peguei (comecei a) tirar leite mais meus irmão no curral, lutar com a vaca, amansar uma, amansar ôta. E no dia que resolvi a fazer o sirviço, muntei no cavalo fui pro

228 Termo usado pelos entrevistados para definir as cabras e ovelhas. 229 Entrevista do senhor Antônio Cerreia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010. 230 A pessoa que monta para guiar o animal durante o trajeto.

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mato e truxe. E ai continuei a trabalhar, tomaro fé neu, eu continuei, me dero uns côro, ai eu continuei a lutar!231

O “dia” em que conseguiu capturar o boi funcionou como um ritual de passagem para

Jairo, pois, a partir de então “tomaro fé” em seu trabalho. Nem sempre a iniciação se dava de

forma tão tranqüila, Juarez afirma ter sofrido uma surra do seu tio por não conseguir capturar

um cavalo, o mesmo tio, que já era vaqueiro, no entanto, lhe fizera a seguinte proposta no dia

posterior: “Vai me acumpanhá hoje?!”. A resposta do então garoto de 14 anos de idade não

tardou: “Você quereno nós vai!”. Após o fim da empreitada do dia e tendo Juarez capturado

uma vaca, reconhece o seu iniciador: “Muito bem cabra! É pra pegá é desse jeito mermo!”232.

Das mais diversas formas os vaqueiros iniciavam sua função, ora com maior e ora com menor

dificuldade.

A narrativa de Jairo e Juarez nos demonstra, ao mesmo tempo, o momento de

reconhecimento familiar e social da afinidade do jovem na lida com o gado e a existência de

situações preparatórias. Jairo já realizava os trabalhos do curral sob a supervisão dos irmãos

mais velhos, enquanto Juarez era “disciplinado” pelas normas de trabalho do seu tio. É

comum aos vaqueiros lembrarem o momento em que vestiram seus primeiros “couros” como

um marco de iniciação na profissão. O próprio Juarez afirma que, ainda nessa época, comprou

seu primeiro “ternim de côro”; Almir Vaqueiro relata: “pai mandô fazer umas pernêra do côro

de uma onça [...] [e] comprô um gibãozinho, eu dobrava aqui a manga... me criei seno

vaquêro”. O acesso ao primeiro gibão era o acesso ao campo e a inserção do indivíduo na

condição de aprendiz de vaqueiro.

De modo geral, ser vaqueiro no Sertão de Irecê era uma função de família. A tabela

abaixo sintetiza as informações colhidas entre nossos entrevistados quanto a participação de

familiares em seus processos de iniciação.

231 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho), 71 anos, vaqueiro, Sede/São Gabriel-Ba, momento único, 07 de out/2010. 232 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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Font

e: N

arra

tivas

ora

is.

Tabela 1: Iniciação profissional dos entrevistados Iniciação Qua

nt. Pai 4 Pai/irmão 1 Pai/Avô 1 Irmão 2 Tio 1 Tio/Primos 1 Família criava 4 Conhecido 1 Não respondeu 1 Não se considera vaqueiro 1 Total 17

Entre a observação do trabalho dos mais velhos e a realização de pequenas tarefas,

como dessedentar as criações ou conduzir alguma vaca ao curral, os mais jovens

desenvolviam interesse em trabalhar com o gado. Nesse processo, não podemos descartar

ainda a importância das brincadeiras na construção dessa afinidade entre as crianças e os

animais, a exemplo do “cavalo de pau” e das “disputas de argolinhas” que se davam entre

garotos montados sobre varetas de madeira a imaginar ações de vaqueiro, práticas essas muito

comuns entre as crianças do meio rural sertanejo. Embora não tenhamos obtido relatos dessa

prática nas entrevistas, por experiência própria, vimos e vivenciamos essas brincadeiras.

Roxinho Vaqueiro assim descreve o nascer do seu gosto pelo ofício: E: E como é que o sinhô aprendeu essa profissão de vaquêro? En: É por causa que eu via, lá em casa eu via o povo correr e eu saia no rasto olhano, quando eu tinha tempo, digo: _“Ô mais é bonito! Ainda vô ser vaquêro!” E uma vez eu vi 2 primo meu lutano com um garrote e bateno num garrote, né, e via, quando eles curria assim, via só o mato virar e ... digo: _“Eu vô ser vaquêro ainda!” _“Dexa de cunversa minino! Tu cunversa...”, digo: _“Vô ser vaquêro ainda!”233

Dos 16 entrevistados que se afirmaram “ser” ou “terem sido” vaqueiros234, 82% tiveram sua

iniciação por meio de algum parente ou a partir do trabalho com os animais da família. Cabe

destaque para o vaqueiro Zizinho, 3º representante de uma família de vaqueiros: avô – pai –

filho.

233 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 234 Exclui-se aqui Seu Samuel que nos informou que “campeava”, mas afirmou não ter sido vaqueiro.

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A iniciação dos indivíduos ao mundo da “vaquerama”235 é justificada pelos

entrevistados como uma questão de “coragem” e “dom”. A análise do trecho abaixo é

representativo para o entendimento da questão posta:

E: [...] o sinhô acha que qualquer pessoa pode ser vaquêro? En 1: Não! Não!236 En 2: O quê?!! É nada!!”237. En 1: Num é todo mundo que vai não. [...] Tem que ter a dispusição moço, e a corage! En 2: A profissão de vaquêro é pra quem já nasceu com o dote (o dom)! En 1: Porque tem muito vaquêro, mas tem muitos que de vaquêro só tem o nome!238

O trecho em negrito pertence a um dos amigos de Chico França que observava a

entrevista e que até o momento se encontrava em silêncio. O susto do visitante diante da

pergunta é um comportamento denunciador da existência de uma “forma específica” de ver o

trabalho do vaqueiro e diferenciá-lo dos demais trabalhadores que campeavam, atribuindo-

lhes características únicas, no caso acima, a “corage”, o “dom” e a “dispusição”.239 Zé dos

Morrinhos e o vaqueiro Licuri também partem do mesmo princípio. En 1: E aquele [menino] que tem o signo pr’aquilo, tem o distino daquilo ele... o cavalo tá amarrado, ele pede logo pra dar uma volta! [...] isso é o que? O distino que já tem! Que o vaquêro num é feito a natureza dele depois! É pelo qu’ele nasce com aquele distino que tem! [...] En 2: Já nasce feito! Já nasce com aquele isprito (espírito)...!240 En 1: Quer dizer: ‘o que é bom já nasce feito!’, então, é o home que tem o distino de vaquêro! [...] Quando tem o distino! Você vê ele [criança] muntar, já pega, já istira logo a mão pra pegar na réde! [...] Ali, a força do vaquêro é essa241.

Luiz Vaqueiro afirma: “você tem vontade de fazer o sirviço, o dom chega. [...] tudo é

aquele dom que Deus dá. Deus vê que você tem vontade de fazer aquele sirviço, tudo pra você

é fáci, se torna fáci”242. O “dom” presume aqui a ação de uma força sobrehumana que

permitiria ao indivíduo habilidades e disposições próprias ao trabalho com o gado. Como é

possível percebemos nas falas acima, para alguns entrevistados, o “dom” seria um elemento já

presente desde o nascimento, outros afirmam que o “dom” chega com o exercício da função.

235 Termo usado pelos entrevistados para definir um grupo de vaqueiros. 236 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)... 2º momento, 01 de dez/2010. 237 Fala de uma dos amigos de Seu França que observava a entrevista, conhecido por Firmino. 238 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)... 2º momento, 01 de dez/2010. 239 Buscamos expressar essa intensidade na fala do narrador, por meio da repetição do sinal de pontuação. 240 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010 (En 2). 241 Entrevista do senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010 (En 1). 242 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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De qualquer forma, afirmar um “dom” é um meio de anunciar uma diferenciação social pra o

trabalho do vaqueiro e delimitar uma fronteira social para o grupo, alegando a existência de

uma maior proximidade deste com “Deus”. Essa idéia será retomada um pouco mais adiante.

O mundo social dos vaqueiros do Sertão de Irecê se ancorava em uma dimensão

laboral, a partir do tipo de relações de trabalho que estabeleciam, da possibilidade de

formação de micropatrimônios, do controle do seu saber, do direito ao lazer e ao uso do seu

tempo. A união desses elementos permitia a esses trabalhadores a construção de um poder

simbólico243 que lhes garantia um domínio relativo sobre o seu trabalho e a fundamentação de

suas representações sociais244 a partir de perspectivas ligadas a autonomia individual e

coletiva e ao uso de determinados espaços, diferenciando-os assim de outras categorias de

trabalhadores.

Mundo laboral: relações de trabalho e saberes no campo

A forma costumeira de trabalho dos vaqueiros era localmente definida como “sistema

de sorte”, ou “sorte”, também conhecida como “quarta”. De cada 4 animais nascidos sob sua

responsabilidade, 1 pertencia ao vaqueiro. Esse sistema não se restringia ao trato com os

bovinos estendendo-se também às criações, nesse caso, a proporção da divisão poderia ser

alterada, 3/1, por exemplo. Assim a define José Norberto de Macêdo se referindo às fazendas

de gado do Vale do São Francisco: “Consiste a ‘partilha’ na conbinação e execução de um

contrato verbal entre fazendeiro e o vaqueiro e pelo qual este recebe um animal em cada 4 ou

5 que nascem”245.

No Sertão de Irecê, o sistema de sorte poderia ainda receber alguns adendos e

variações. Gilson Vaqueiro destacou que, no início dos anos 1980, levou o rebanho do seu

patrão para o Riacho do Ferreira, nas margens do Rio São Francisco, e lá trabalhou por cerca

de 20 anos como vaqueiro, a partir do seguinte acordo: “gado fêmea era de minha sorte, boi

de compra eu tinha uma arroba”246. De acordo com relato observa-se que os animais machos

estavam fora da contabilidade da sorte. O senhor Reinaldo Pedro de Souza, conhecido como

Reinaldo de Zé Pedro, trabalhou 10 anos cuidando do rebanho de um criador, entre o final da 243 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 14-15. 244 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1998, p. 17-28. 245 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 33. 246 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro), 65 anos, vaqueiro, Sede/Jussara-Ba, momento único, 15 de jan/2011.

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década de 1950 e de 1960, e lembra ter feito o seguinte acordo sobre obtenção da renda dos

animais machos: “depois que o bizerro... que o mamote247 tava com 2 ano, avaloava

(avaliava) o bizerro, e daqueles 2 ano em diante aí, o que aumentava era meu mais dele

(criador)”248.

Ainda no que diz respeito às relações de trabalho entre vaqueiros e criadores, Zizinho

nos esclarece que o sistema de sorte garantia ao vaqueiro o “direito” de receber o “quarto do

bizerro” caso o criador vendesse uma vaca prenhe: “Tinha esse direito, se vender vaca pra

parir, tem que pagar o quarto do bizerro.”249. É certo que em meados do século XX o

costumeiro sistema de sorte já sofria influências da expansão das relações capitalistas, por

outro lado, a existência de variantes desse sistema, mesmo hoje, nos possibilita questionar a

leitura genérica com que foi descrito essa forma de pagamento.

Ainda segundo José Norberto, a divisão dos animais nas fazendas do Vale do São

Francisco se dava por meio do uso de um dado ou através de pedaços de papel onde se

encrevia o nome da vaca mãe do bezerro em disputa e, muitas vezes, os patrões exigiam a

venda imediata do animal250. No Sertão de Irecê a partilha se dava de forma diferente. Os

animais a serem divididos eram organizados em lotes de 4, e seguia-se a escolha alternada

entre vaqueiro e criador de acordo com suas preferências. Essa alternância era contínua e

poderia se estender às partilhas vindouras. Após a partilha realizava-se a ferragem, por isso,

os entrevistados atribuem também a esse momento o nome de “ferra”. O comum entre os

criadores era o uso do ferro na anca dos animais. Euclides da Cunha assim descreve essa

prática: A primeira coisa que fazem é aprender o abc e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os "ferros" das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na "solta" primitiva251.

Viana Vaqueiro nos explica o procedimento para o caso em que o animal fosse

vendido após ferrado: “Se você me comprar, você contra-ferrava inriba na anca ou inriba do

247 Animal jovem com cerca de 1 ano e meio a 2 anos de idade. 248 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro), 72 anos, vaqueiro, Povoado de Lagoa Velha/Canarana-Ba, momento único, 07 de jan/2012. 249 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 250 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 33. 251 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 127. Ver também MACÊDO, J. N. Fazendas de Gado no Vale..., p. 35

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meu ferro. Ali foi eu que já lhe vendi. Num tinha quebra-cabeça. E o que aparecesse no mei

do gado da gente sem sinal, sem ferro, pudia morrê de véi!”252. É ainda ele que relata o modo

como eram marcados os animais de menor porte:

Cada um fazia sua divisa (um corte) na orêa, né, uma “furquia” (forquilha) ou um “dente de portêra”, ou quarquer coisa... aí já sabia que aquele sinal é o ferro, o carimbo na orêa, ou um “S”, ou um “Z”, quarquer tipo de letra pra... que num incontrasse com ôto! Que, por exempo, se você tivesse, por exempo fizesse o carimbo de “O” pra carimbar na orêa, eu nem ninguém pudia fazê, que já sabia que era o seu!253

O “sinal”, assim como o formato do “ferro”, não podia se repetir e servia de prova

inconteste de propriedade. A manutenção de parte dos animais recebidos em partilha permitia

aos vaqueiros a formação de pequenos rebanhos. Estes permaneciam junto com o gado do

criador e pastavam igualmente pelo campo. Nos explica Hermes: dá pra juntar dessa parte, você vai ter precisão, vende 1 ou 2 [bezerros], mais ainda fica, com 4 ou 5, e aquele, uma novilha dá cria (se reproduz), que você vende mais só os macho, aquela bizêrra cresce, com dois anos... [...] é difícil uma novilha passar de 2 anos, 3 anos sem dar cria, [...] com 3 anos já era uma vaca! Já era adulto. [...] A bizêrra que eu tirar de sorte, quando ela produzir, aquele era meu, já não tinha mais... patrão não tinha conta mais com o meu não, só com os dele mesmo (riso). 254

Acrescenta Juarez: “quando você fazer a ferra mais o patrão você tira a que você... tira

sua parte de bizêrro. Você faz pagamento o patrão e sobra, toda vida sobrô. Todos vaquêro

que trabaiava assim, nenhum saiu sem nada! Eu sempre reparava os vaquêro que trabaiava

assim. E o que trabaiava ganhano dinhêro só sai limpo! Sem nada!”255. A possibilidade de

acumular alguns animais sempre atraiu a atenção dos vaqueiros, como relata Gilson Vaqueiro:

“E se eu estô aqui (trabalhando de sorte), [...] pode ser o entrar do sol, tem uma vaca parida

aculá e o bizêrro num mamô, eu tenho que tomar o pé dela, pois, se eu não for eu perco o

quarto do bizêrro! Aí o interesse é ôto!”256.

O vaqueiro, em sua atividade diária, cuidava ao mesmo tempo dos seus animais e dos

animais do criador e buscava se esforçar para garantir a reprodução, a saúde, a segurança e a

alimentação do rebanho uma vez que, entre os do patrão, estavam também os seus possíveis

animais. Dessa forma, atrelava o seu horário de trabalho às necessidades da rotina, muitas

vezes retornando para casa em meio à noite.

252 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 253 Idem, Ibidem, loc. cit. 254 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 255 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 256 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.

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O sistema se sorte valia desde os primeiros momentos de trabalho. Quando o acordo

de trabalho envolvia rebanhos maiores, cabia ao criador abastecer o vaqueiro com alimentos

até a realização da primeira ferra (geralmente um ano após o início do trabalho), quando eram

quitadas as dívidas. Explica Hermes:

Se ele me dava uma fêra, mais na ferra eu pagava aquela fêra né, que eles ajudava né, ele ajuda o vaquêro [...] depois de 2 anos que lutar lá ele já tem o bizêrro dele vender, tem tudo, o boi, tudo, não precisa nem de patrão estar ajudando né, mas, na entrada ele dá os saco de açúcar, saco de feijão, saco de farinha, de arroz, não é? [...] quando era tempo da ferra (maio, junho, julho), [...] a gente vendia 4 ou 5 bizêrro pra ele, pra descontar na conta257.

Além de alimentos, ao criador cabia disponibilizar as ferramentas de trabalho do

vaqueiro: o cavalo, a sela, o gibão. Os entrevistados utilizam o termo “fornece” para designar

esses adiantamentos realizados pelos criadores aos vaqueiros. Gilson nos informou que,

quando iniciou o trabalho com o seu atual patrão, ainda em meados dos anos 1960, era ele

“quem fornecia” a vestimenta de couro e o “cavalo arriado”.258 Esse primeiro momento de

trabalho era de fundamental importância para o vaqueiro, uma vez que nele se tornavam

claras as personalidades dos sujeitos envolvidos na relação e as possibilidades de

continuidade da mesma.

o patrão bom, (é) aquele que dá de sorte, ele lhe ajuda! Que ele lhe furnece! E num fica lhe pisano! Quando você ferra os bizerro, que tira os seus e você pagô aquela dispesa, ele faz ôta dispesa com você, pra você num acabar com aqueles que você ficô! (lhe fornece alimentos por mais um ano) [...] Ai no ano que vem aqueles que você ficô que era bizerro, já tão uns garrote, umas nuvia! Ai você vai multiplicano pra frente! O patrão bom é assim! [...] Por que o patrão ruim, quando você tira os bizerro de sorte, que paga os débito, as dispesa, ele quer que você fique vendeno aqueles que você tem pra fazer dispesa, pra você num precisar mais dele! [...] Assim o vaquêro fica toda vida de ismola! Nunca passa a ser dono de nada, nunca!259

Para Jairo, conviver com um “patrão bom” ou um “patrão ruim” fazia toda a diferença.

A forma como se dava a relação entre as partes envolvidas, explicava a possibilidade de o

vaqueiro acumular, ou não, certo nível de patrimônio. A fala de Jairo descortina aqui uma

relação nem sempre harmônica, onde fica clara a perspectiva de classe que se estabelece: o

patrão ruim é aquele que impede o vaqueiro de formar seu próprio rebanho, como meio de

mantê-lo em uma condição subalterna.

257 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 258 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 259 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010.

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Essa tensão concentrava-se no momento da realização da ferra, onde se dividiam os

animais entre criador e o vaqueiro. É possível inferirmos aqui que os animais mais

desenvolvidos e saudáveis atraíssem a atenção de ambas as partes. Joana Medrado

Nascimento também pontua a existência dessa tensão entre os vaqueiros do Barão de

Jeremoabo durante os momentos de partilha, afirmando que nem todos entendiam esse

momento como uma cancessão do proprietário do rebanho, mas, como uma obrigação deste,

um pagamento pelos serviços prestados260. A superação do momento inicial do trabalho

representava a consolidação da relação e, para o vaqueiro, o início da construção de

autonomia sobre sua vida e o seu saber. Mas, quem era o patrão?

Os dados apresentados nas entrevistas quanto ao perfil dos criadores, nos permitiram a

elaboração do quadro abaixo:

Tabela 2: Perfil dos criadores e rebanhos do Sertão de Irecê

Frequência Número de cabeças por rebanho Porte do criador

22 10 - 50 Pequeno

10 50 - 200 Médio Pequeno

8 200 - 300 Médio

4 + 300 Grande Fonte: Narrativas orais.

A partir da tabela observamos que os rebanhos do Sertão de Irecê tinham proporções

módicas e predominavam os pequenos rebanhos com menos de 50 animais. Isso significa que

o patrão ao qual se referem os vaqueiros, poderia ser, muitas vezes, um pequeno criador. Era

comum ainda que um vaqueiro cuidasse do gado de vários criadores ao mesmo tempo.

Reinaldo de Zé Pedro nos informa que o rebanho do qual cuidou, entre o final da década de

1950 e 1960, era composto por animais de um criador local, do seu pai, do seu tio e do seu

irmão, mas que só “tirava sorte” do gado do primeiro, os demais, “de vez em quando me dava

uma ajuda, assim na roça!”261. Gilson Vaqueiro trabalha com o mesmo rebanho a 45 anos e

destaca que por vezes também cuidou dos animais de outros proprietários.

260 NASCIMENTO, J. M. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho e cultura..., p. 93-94. 261 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.

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E: E lá no Riacho Ferreira o sinhô trabalhava para quem? En: Era para Rafael, para Miguel Machado... e só vinha para aqui, na rua, quando vinha fazer feira, fazer uma compra, uma coisa262.

O termo “patrão” deve ser aqui relativizado. Muitas vezes os entrevistados utilizam o

vocábulo para se referir a criadores que solicitam realização de trabalhos rápidos de captura.

Jairo afirma que: En: [...] trabalhei mais foi pra família e pra patrão tamém, pra ganhar dinhêro! E: Como era que funcionava o trabalho? En: Funcionava que você impleitava um gado pra carregar 8, 10 légua, você impleitava, achava um cumpanhêro ou dois e fazia a jornada, pra intregar ao dono lá na frente, onde ele marcô o lugar263.

As falas acima demonstram que para os entrevistados o termo “patrão” não está

diretamente ligado uma relação de trabalho exclusiva e estável com um criador de grandes

rebanhos. “Patrão” é sinônimo de criador contratante, o que não significa necessariamente,

“fazendeiro”. O criador, como vimos, poderia ser o possuidor de poucos animais.

No caso em estudo essa relativização deve recair também sobre o termo “fazenda”.

Analisemos algumas narrativas. Juarez levou o seu gado de São Gabriel para a Vila de Recife

e afirma: “Lá nós demo sorte, [...] que ainda tinha campo tombém, [...], lá eu dei sorte pra

cumpade Belo tirar lá”264. Gilson Vaqueiro relata seu deslocamento com o rebanho: “E é

nesse rojão, é trabalhano direto, agora que eu... depois do Brejão, eu vim do Brejão fui para...

tirei um ano na Lagoa Grande nesse mesmo rojão, depois da Lagoa Grande vim e fui para o

Riacho Ferreira, tirei uns 20 anos...”, sobre esta última localidade afirma: “lá eu tinha

campo”265. Roxinho relata que, com o cercamento das terras do Platô Norte Diamantino em

meados do século XX, tinha que levar os rebanhos para a “Vereda e na Vereda (do Romão

Gramacho) tem muita rama né, tinha ispaço pro gado, a gente tirava pra lá”266. Hermes narra: como eu tô dizendo, que era solto, ainda sem ter roça, e tinha os morador cunhicido né, que era amigo, então, o de lá dizia: _“Moço, aqui ainda cria solto!” Então o ôtro de cá dizia: _“Então eu vô lhe intregar meu gado pra você oiar lá pra nós” Entregava e ele levava né267.

262 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 263 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo)..., momento único, 07 de out/2010. 264 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 265 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 266 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 267 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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Em nenhuma das narrativas acima o cuidado ou deslocamento do rebanho tem como

referência uma fazenda. Bem distante das concepções clássicas que permeiam a imagem e os

discursos sobre o mundo da pecuária, no Sertão de Irecê, a referência espacial para o trabalho

do vaqueiro não era a fazenda e sim o campo, ainda que tivesse como ponto de apoio alguma

casa fornecida pelo criador. Ainda Gilson Vaqueiro relata:

naquele tempo, [...] o vaquêro tinha liberdade! Vivia por conta própria! [...] eu morava aqui no meu lugazim, você chegava e me intregava 100, cento e tantos gado, toda hora que você quisesse tirar seu gado você tirava e eu tinha meus, ficava com meus bicho, mas, hoje num tem mais isso não.268

Observamos na fala acima uma situação em que o vaqueiro recebe o gado para cuidar

sem que necessite da presença de uma “fazenda”. A fala de Gilson é exemplar para

analisarmos a relação de trabalho estabelecida. O narrador deixa clara sua autonomia em

relação ao criador que lhe procura, justamente por ser ele também um pequeno criador. O

movimento inverso se estabelece: não é o vaqueiro que busca o fazendeiro, mas o fazendeiro

que busca o vaqueiro e lhe entrega “100, cento e tantos gado”. A possibilidade de ter um

“lugazim”, de ter seu pequeno rebanho e o acesso livre ao campo, lhe garante o poder de dizer

que “toda hora que você quisesse tirar seu gado você tirava”, produz uma autonomia que

permite ao vaqueiro se impor, muitas vezes, sobre indivíduos com melhores condições

econômicas. Tem destaque ainda na narrativa, a forma como esse poder torna-se sinônimo de

“liberdade”.

O fator central que estrutura essa relação era o campo e suas formas de uso comum.

Mesmo os animais considerados “de uma fazenda” espalhavam-se pelo campo e cabia ao

vaqueiro conduzi-los quando necessário para novas pastagens. Como veremos o termo

“vaqueiro da fazenda” é utilizado pelos entrevistados para definir os vaqueiros atuais que

trabalham em sistema intensivo e assalariado em propriedades cercadas.

Reinaldo de Zé Pedro, lembrando-se do período em que cuidava do rebanho de um

criador afirma:

Ele (o dono do rebanho) nem vinha cá olhar! Só vinha no tempo de ferrar! De partir os bizêrro! Só vinha nesse tempo! Eu tirava leite! Vindia leite! Fazia requejão! Fazia tudo! Tudo era por minha conta aí! [...] Ele intregava, intregô o gado e eu tomava conta! O que precisasse também era meu! O remédio tudo, tudo o que precisasse!269

268 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 269 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.

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O campo possibilitava aos vaqueiros do Sertão de Irecê grande mobilidade em seu

trabalho e um distanciamento do criador. Nesse sentido afirma Zé dos Morrinhos que “quem

manda é o vaquêro! [...] O dono do gado, é... seno o vaquêro o dono é eu, o dono só manda...

ele mermo só manda no dia que chega! Num tano aí quem manda é o vaquêro”270. Roxinho

Vaqueiro explica como negociava com o patrão o deslocamento do rebanho: Ali ordenava com o patrão: _“O gado tá precisano mudar!” Ele dizia: _“Você muda pra tal canto, pra tal lugar assim-assim! Traz pra tal campo ou pra tal roça! Pode mudar o gado.” [...] falava com o patrão, ele mandava a gente procurar. Então, se ele num tivesse mandava a gente procurar, mandava mudar o gado. Aí você ia (ao patrão): _ “Eu achei o lugar!” _ “Pode mudar o gado! Depois eu vô lá olhar!” Depois ele vinha olhar e diz: _“Tá certo!” Era assim271.

Observemos que mesmo na narrativa de Roxinho, marcada pela presença do seu

patrão, o vaqueiro ainda detém o poder de procurar e definir o local do rebanho, ainda que

fosse preciso uma confirmação posterior por parte do proprietário. As narrativas nos

informam que a autonomia do vaqueiro sobre o rebanho variava de acordo com a maior ou

menor proximidade com o criador, existia assim, duas unidades de decisão sobre o destino

dos animais que se hierarquizavam à medida em que se aproximavam e se horizontalizavam à

medida em que se afastavam. Era, contudo, função do vaqueiro direcionar o rebanho para as

áreas do campo que possuíam melhor pastagem. Esse fato impõe uma característica móvel ao

seu trabalho que ultrapassava referências fixas diretas, como é o caso de uma fazenda. Essa

possível flexibilidade em suas relações laborais permitia a esses trabalhadores, por exemplo, a

realização de pequenos serviços para amigos e conhecidos que poderiam ou não lhes render

alguns ganhos, bastando para tanto que dispusesse de tempo. Hermes afirma que

mesmo o (vaqueiro) que tivesse um patrão, [...] [e] ôtra pessoa chegasse lá, qu’ele (o vaqueiro) era o mais cunhicido no campo, chegava: _“Moço, meu boi tá aí nesse campo aí, quer pegar? Eu lhe pago tanto pra você pegar ele, qu’eu tô precisando!” Mesmo o vaquêro da fazenda ia pegar272

270 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 271 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 272 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.

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Os vaqueiros do Sertão de Irecê, diante do uso comum do campo, viviam relações de

trabalho relativamente frouxas e gozavam de grande controle sobre os rebanhos. É nesse

sentido que Gilson afirma: “Porque ele sendo vaquêro, tirano sorte, ele não é empregado, ele é

sócio!”273. Isso explica o fato de, geralmente, os vaqueiros não definirem o sistema de sorte

como uma forma de “pagamento”, mas como uma “renda” ou “produção”, forma essa que se

antagoniza ao modo assalariado de trabalho existente atualmente.

É, pra receber a renda, a sorte! A gente chamava sorte, né: _“Vô tirar a sorte, tanto!”, “Deu sorte, tanto!” [...] Aqueles qu’era dinhêro no fim num tinha nada, porque o dinhêro era bagaço! Agora, quem labutava pra receber a renda acustumava, quando você fosse intregar aquele gado, de tantos ano que você trabalhô ali, você já saía tamém com, calçado com o gado, né274

É uma escravidão! Eu num acho vantage hoje no vaquêro trabaiar alugado não. Num tira mais bizêrro de sorte, só ganha o saláro, aí todo mês, quando ele recebe já vai pagar o supermercado, toda vida o vaquêro hoje é atrasado.275

Jairo nos explica que “o vaquêro que luta com gado, luta por produção”276. As

relações de trabalho que emergem das entrevistas colhidas, em muito flexibilizam o

tradicional binômio fazendeiro/fazenda-vaqueiro que predomina na historiografia e nas obras

literário-memorialistas. A análise dessas narrativas nos permitiu mesmo duvidar desse

binômio uma vez que nem todos os vaqueiros por nós entrevistados vivenciaram a experiência

de cuidar diretamente de rebanhos de terceiros pelo sistema costumeiro de sorte. Entre os

entrevistados identificamos alguns se dedicaram ao cuidado com os rebanhos familiares, dos

quais nem sempre obtinham renda, ou optaram pela realização trabalhos esporádicos de trato

e condução de animais.

Juarez sempre trabalhou com o gado da família e afirma: “nunca tive patrão, o patrão

meu foi eu e meu pai, o gadim era meu e do Véi meu pai, agora, eu carreguei muita boiada

dos ôto pra ganhar dinhêro!”277. Almir se lembra que durante cerca de 30 anos foi “vaquero da

família”, cuidando do rebanho do seu pai e dos seus irmãos pelo sistema de sorte, no final da

década de 1980, diante do fim do campo e da fragmentação do rebanho familiar, o vaqueiro

passou a cuidar das suas poucas unidades de gado e realizar captura e deslocamento de

rebanhos para os criadores que solicitavam seus serviços. Reinaldo de Lôro vai além, e

273 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 274 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 275 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 276 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 277 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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destaca que no período de 1970 à 1978, cuidou do seu rebanho e ainda do gado do seu sogro e

de seus cunhados, sem que houvesse nenhum tipo de pagamento.

a família unida, eu num tinha a sorte do gado deles não! Era misturado. Aí, a gente, no caso de considerar cunhado como irmão e sogro como pai278... de qualquer manêra foi levano a vida assim, mas eu nunca tirei sorte de gado deles ninhum! E nem eles me pagava meus dia! Aí ficava naquela compensação das minha, mas eu mesmo nunca trabaiei pra ninguém tirano sorte não, de gado não279.

Complementa ainda o entrevistado que o mais comum nessa época, nos arredores do

povoado onde mora até hoje, era existir o vaqueiro “dono do seu próprio gado, à vez do gado

do pai, de um irmão ou mesmo de sogro” que associava esse trabalho às tarefas da roça, e

destaca: “eu lembro só de Tião de Vito (vaqueiro) que saiu assim de cima do que é seu pra ir

morar lá mais seu fulano”280. Guilhermino nos relata também que “num era vaquêro dos ôto”,

e que “campiava o gado da gente”, referindo-se ao rebanho do seu pai e do seu cunhado.

Quando questionado se de fato foi um vaqueiro responde: E: Mas o sinhô acha que já foi vaquêro ou também [...]? En: Não! Eu fui vaquêro que eu trabaiei 17 ano nessa profissão, né.

As narrativas e experiências desses trabalhadores distanciam-se da concepção que

define o vaqueiro como produto de uma relação de trabalho. A situação apresentada nos põe,

pois, diante de especificidades sociais, laborais e identitárias dos sujeitos do Sertão de Irecê,

que escapam aos autores que registraram o mundo do trabalho do vaqueiro. O que permite aos

entrevistados se classificarem como vaqueiros não é, necessariamente, sua relação com o

criador, mas a proximidade que possuiam com o gado. Estamos diante de trabalhadores que

buscavam se manter como vaqueiros dos rebanhos familiares como forma de evitar a

fragmentação do patrimônio, muitos não conheceram o trabalho em uma “fazenda”, lidaram

com os rebanhos diretamente no campo, deslocando-os quando necessário; seu “patrão” não

foi necessariamente um fazendeiro no sentido clássico abordado em obras como por exemplo

Euclides da Cunha e Eurico Alves, podendo ser mesmo um pequeno criador ou vários

pequenos criadores. Apenas um dos entrevistados afirmou que o vaqueiro é aquele que

278 Percebe-se aqui que a noção de “família” para os entrevistados inclui as relações matrimoniais e estende-se aos indivíduos que, por meio dela, se aproximam de alguma forma. 279 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 280 Idem, Ibidem, loc. cit.

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trabalha para o criador em uma fazenda: “você tem a fazenda e me bota como vaquêro, ai

chama! Ai é o seu vaquêro!”281

Os vaqueiros do Sertão de Irecê viveram assim, uma diversidade de relações de

trabalho: podiam associar-se a algum criador por anos seguidos; podiam implantar adaptações

ao sistema de sorte; alguns dedicaram-se aos rebanhos familiares, estendendo esse cuidado

inclusive a “familiares” não consaguíneos como sogros e cunhados; os que viviam mais

próximos dos donos dos rebanhos tinham seu poder de decisão diminuído; outros mantinham

relações esporádicas com os criadores, possuindo autonomia quase completa sobre os

animais. Há ainda os vaqueiros que realizaram durante parte de suas vidas laborais, apenas

atividades rápidas de captura e condução de rebanhos enquanto cuidavam de suas roças e

outros que, cuidaram dos rebanhos de diversos criadores ao mesmo tempo, via sistema de

sorte. Essas possibilidades se combinavam de várias formas, uma vez que cuidar de um

rebanho próprio não excluía atender uma solicitação para captura de algum boi fujão e ainda

assim, cuidar do rebanho de outro criador.

Mas as fontes de renda dos vaqueiros não estavam restritas ao trato com o gado. Na

construção de suas formas laborais, as atividades agrícolas, embora muitas vezes vistas como

subordinadas à atividade pecuária, estiveram sempre associadas ao trabalho no campo. O

quadro abaixo sintetiza essa relação.

Tabela 3: Vaqueiros: associação entre o trato com o gado e a agricultura

Entrevistado/Ano de nasc.

Relação com a agricultura/terra

Almir/ (1941) Cultivou nas terras da família. A partir de 1982 adquiriu terras próprias por herança.

Chico França/ (1933)

“eu nunca fiquei sem minha roça não!”

Gilson/ (1947/1948)

Cultivou nas terras da família até o início da juventude, a partir dos 15-18 anos dedicou-se somente ao trabalho de vaqueiro. Possui propriedade, mas afirma não cultivá-la.

Guilhermino/ (1930)

Associou a atividade de vaqueiro à roça até 1952 nas terras da família. Trabalhou 9 anos com lavoura fora do Estado da Bahia (1952-1961). Já cultivava terras em América Dourada antes de 1968. No início da década de 80, após deixar a “profissão de gado”, foi “fazê roça por minha conta”.

Hermes/ (1938) Associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família até a juventude, no final da década de 60 adquiriu terras próprias na Vila de Recife. Dedicou-se exclusivamente à função de vaqueiro entre os anos de 1988-1998.

Jairo/ (1939) Sempre associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família e em terras próprias.

281 Entrevista Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011.

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Juarez/ (1937) Sempre associou o trabalho com gado ao cultivo nas terras da família e em terras próprias adquiridas por herança.

Licuri/ (1949) Cultivou as terras da família durante a infância e adolescência282. Adquiriu terras próprias no final da primeira década do século XXI.

Luiz Vaqueiro/ (1948)

Sempre se dedicou à atividade de vaqueiro, por diversas vezes associando-a às atividades da roça, com destaque para os períodos de 1968-1969, 1974-1978.

Reinaldo de Lôro/ (1945)

Sempre associou às atividades de vaqueiro ao cultivo nas terras da família e terras próprias (adquiridas a partir de 1969). Dedicou-se com maior destaque às atividades agrícolas a partir do final da década de 1970.

Reinaldo de Zé Pedro/ (1940)

Em 1969 já cultivava terra própria associada ao cuido do seu rebanho, permanecendo assim até os dias atuais.

Roxinho/ (1935) Trabalhou na roça no início da década de 1950, tornou-se funcionário de fazendeiro entre 1950-1961. Adquiriu terras próprias no início da década de 1960 trabalhando nas mesmas até 1966. A partir desse período foi vaqueiro de fazenda até 1982, associando essa atividade ao cultivo da sua terra. A partir da década de 1980 voltou-se ao cultivo da terra própria e à realização de serviços rápidos de condução e captura de animais.

Samuel “Toda vida eu fui pra roça” Sinobilino/ (1925) Trabalhou nas terras da família até a juventude, associou, a partir dos 18 anos, a atividade

de vaqueiro ao cultivo da terra. Na década de 1950 já possuía terra própria. Dedicou-se exclusivamente ao trabalho na roça a partir de 1975.

Viana (1936) “Fazia todo sirviço de roça, pra todo mundo” Sempre associou o trabalho na roça ao cuido dos animais, por vezes, dedicando-se unicamente ao trabalho de vaqueiro. Dedicou-se com maior destaque ao trabalho na roça a partir de 1981-1982.

Zé dos Morrinhos/ (1943)

Associou o trabalho da roça ao cuido do gado entre 1953 e meados da década de 1960, passando então a dedicar-se à função de vaqueiro. Adquiriu terras próprias na segunda metade da década de 1990.

Zizinho/ (1945) Associou trabalho na roça à função de carreiro até os 18 anos. Entre os anos de 1963 e 1983 associou o trabalho de vaqueiro às atividades da roça, com ênfase no primeiro. A partir do início da década de 1980 dedicou-se ao trabalho agrícola e realizou conjuntamente serviços rápidos de captura e condução de animais.

Fonte: Narrativas orais.

O trabalho com fontes orais não nos permite recortes cronológicos exatos, além disso,

a variedade de formas e períodos em que o trabalho de vaqueiro se associava ao cultivo das

roças, ou vive-versa, não nos garante a produção de esquemas mais sintéticos, com risco de

perdermos a leitura da dinâmica de ligação e re-ligação dessas atividades. O importante aí é

notarmos que os indivíduos aqui estudados sempre estiveram, de algum modo, ligados à

agricultura durante a suas vidas laborais. O vaqueiro, nesse sentido, foi por muitas vezes

também um agricultor, assim como o agricultor necessitou, ou optou, por tornar-se vaqueiro

em alguns momentos, sem que a realização de uma atividade implicasse necessariamente na

exclusão da outra.

A análise dessa relação reforça a afirmação da característica poli-agropecuária das

pequenas unidades familiares do Sertão de Irecê. Por outro lado, evita-nos a leitura errônea,

282 Dados posteriores incompletos.

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dicotômica, de que o vaqueiro, em sua vida de trabalho, “foi só vaqueiro”, ou que o agricultor

“foi só agricultor”, possibilitando-nos ver os sujeitos sertanejos localizados na intersecção de

formas de trabalho e sobrevivência disponíveis no seu contexto. Exemplos para reforço desse

argumento não nos faltam. Reinaldo de Lôro, em meados da década de 1970, associava o

trabalho de vaqueiro e agricultor à função de tratorista. Hermes na década de 1980, tendo

deixado temporariamente o trabalho como vaqueiro, associou à roça a função de açougueiro.

Sinobilino, tornou-se tropeiro por cerca de 4 anos no início da década de 1960, ainda quando

trabalhava ativamente com gado. Chico França explica as atividades que desenvolveu durante

a década de 1970, enquanto encerrava sua função de vaqueiro: “Já matei boi 10 ano! Depois

eu ispichiva o côro (no curtume), eu mesmo riscava as bruaca, fazia! Pegava no dinhêro pra

puder me manter!”283.

Essa variedade de funções atendia às necessidades de sobrevivência em uma sociedade

localizada em pleno semi-árido baiano e que sentia os primeiros impactos do processo de

modernização rural sobre o seu modo costumeiro de vida, a partir do fim do campo e da

redução dos rebanhos (bovinos, caprinos, ovinos, eqüinos). Isso, contudo, não impediu que

certos indivíduos exercessem, durante décadas, somente a atividade de vaqueiro. Gilson,

como já foi relatado, cuida do mesmo rebanho há pelo menos 45 anos! Reinaldo de Lôro

dedicou-se de forma exclusiva ao trabalho com o gado entre 1970 e 1978, mas afirma que

antes desse período já ajudava o pai com o gado da família. Luiz Vaqueiro teve poucas

relações com o trabalho agrícola e ainda hoje se dedica ao trato com gado. Durante sua

narrativa relata Roxinho Vaqueiro:

E: Os amigo do sinhô que na época eram vaquêro também. O sinhô sabe o quê qu’eles fizero nessa época que o campo foi acabano? En: Moço, eu sei que aí, é o siguinte: esses colega meu, tudo tinha suas rocinha né, tinha a rocinha, que’nem cumpade Jairo, Verneul faliceu, mas, tinha sua rocinha, Juarez né, Valdomiro nunca teve roça! Ele era home que trabaiava direto tamém no campo.284

Assim como os acima citados, Valdomiro parece ter optado também pelo trabalho constante

com o gado, infelizmente não foi possível conhecê-lo já que ele “morreu cedo tomém, já tem

uns 10 ano”285. Levando-se em consideração os casos de trabalho com rebanho próprio ou

familiar, nenhum dos nossos entrevistados dedicou-se menos de 17 anos no trato com o gado.

283 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 284 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 285 Idem, Ibidem, loc. cit.

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Quando questionados sobre a relação vaqueiro-roça, é comum a ocorrência de

narrativas que, sem negá-la, afirmam uma superioridade do primeiro sobre o segundo.

Segundo Jairo:

En: Vaquêro num trabalhava em lavôra não! Vaquêro ninhum num gosta de roça! [...] E: Mas o sinhô num tinha uma rocinha?! En: Mas, vaquêro ninhum, num gosta de roça!286

Outros ainda reforçam a idéia. Almir Vaqueiro afirma: “criei a família pegano boi! [...]

A roça toda a vida eu não gostei, até hoje eu vô nela, mas eu nunca gostei da roça não, estão

lá os terreno (risos), terra boa! [...] mas eu nunca gostei da roça, sempre mais o trabalho era no

campo.”287 Gilson destaca que seguiu os passos do pai, também vaqueiro: “toda vida fui

chegado a gado, não era chegado a roça, quando peguei de 18 anos acima já cumecei a vida

(de vaqueiro) também”, no entanto, não deixa de reconhecer que possui sua propriedade: “eu

comprei um pedacinho de roça, agora só para fazer um ponto de prender um animal, não

gosto de ir para roça não”288. Zé dos Morrinhos relata que seu pai queria que ele “fosse

trabaiar na roça”: “minha vontade num dava pra roça, era pro campo, até quando tomei conta

de si”289. A recorrência do discurso de “negação” da afinidade do vaqueiro com a roça,

demonstra o esforço dos entrevistados em manipular suas lembranças de forma a destacar a

sua proximidade com o gado. Aqui eles escolheram as memórias pelas quais querem ser

reconhecidos. É nesse sentido, que, como nos diz Ecléa Bosi, a memória se torna trabalho,

ação intencional de produzir versões e imagens através do uso das lembranças290.

A constante afirmativa de que não possuem afinidade com a roça rendeu aos vaqueiros

a fama “priguiçoso”. Segundo Hermes, “tem muitos (vaqueiros) priguiçoso pro lado de roça!

Pro lado do campo trabalhador, pega o sirviço pesado e no ôto, já se botasse pra roça era

fraco! (risos) Por isso aquele que teve corage de trabaiar roça hoje se deu bem, tá trabaiando

em suas roças e o que num teve tá parado!”291. A negação por fim, termina por denunciar o

que se objetiva silenciar: a proximidade entre o trabalho do campo e a roça em diversos

momentos da vida dos trabalhadores. Outras narrativas destacam:

286 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 287 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 288 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 289 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010. 290 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade..., p. 17. 291 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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De qualquer manêra, a gente fazia os dois que tinha necessidade, né. Você trabaiava no campo, você criava tamém, era obrigado você rebanhar aquele bicho, né, e a roça tinha, a roça você trabalhava pra adquirir as coisa, pra botar dentro de casa, né, quando chegô a época de, que deu pra entrar carro (na região) e tudo mais, aí você vindia as coisa que sobrava, né, você culhia pra ter dentro de casa e vindia tamém pra fora.292

E de premêro (antigamente) o vaquêro... era bom qu’ele tirava sorte, ele ferrava o bizêrro e tinha vez qu’ele plantava fejão na roça dele, o fejão dava, ele num comprava fejão... mas o vaquêro de hoje não, o vaquêro de hoje compra tudo!293

As atividades relacionadas à roça foram, pois, de alguma forma, associadas ou

intercaladas às atividades do campo. Para Reinaldo de Lôro, adquirir suas primeiras tarefas de

terra em meados da década de 1970, foi uma verdadeira “independência”: “Aí eu já tinha um

gadim, vindi uma parte de gado, vindi uns porco, vindi uma safra, e comprei 60 tarefa. Pra

mim foi o negoço milhor no mundo, foi o maior prazer que eu tive foi quando eu comprei essa

área de terra”.294

A ocorrência de momentos de trabalho dedicados exclusivamente à função de

vaqueiro poderia repercutir, ou não, no abandono temporário das terras de cultivo. Quando do

deslocamento do rebanho familiar de São Gabriel para a Vila de Recife (Jussara), em busca de

campo no final dos anos 1960, Hermes afirma que comprou

um pedaço pequeno, 16 tarefas, depois fui arrumando condições comprei mais ôtras área, certo que comprei umas cento e poucas tarefa ainda e sai, deixei, cheguei, voltei ôtra vez e tô trabalhando nela. [...] porque terra você pode largar e deixar aí, com 10 ou 20 anos ou 30 que você chegar está. (risos)295

Em uma situação diferente, Chico França nos informa que, quando exercia a função de

vaqueiro, aproximadamente entre os anos 1950 e 1970, já tinha “os minino de ir trabaiano na

roça e eu ia pro campo!”296. Gilson, recordando seu período de juventude, relembra que seu

pai também era vaqueiro e que sua mãe era a responsável pelo cultivavo as terras: “mãe

plantava! Ele tinha terra, mas só quem tocava a roça era mãe, ele era encima do cavalo para

cima e para baixo.”297

As falas de Chico França e Gilson nos remetem a uma dimensão à qual as fontes orais

não esclarecem apropriadamente: as dinâmicas familiares que possibilitavam o exercício da

292 Entrevista do senhor Gulhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 293 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 294 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Louro)..., momento único, 07 de jan/2012. 295 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 296 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 297 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.

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função de vaqueiro. Nesse sentido, os rápidos relatos enfocam a importância dos outros

membros, como mulheres e filhos, na manutenção da associação roça-campo e na

sobrevivência do núcleo familiar. Em outro trecho da entrevista, Chico França lembra-se que,

ao final do dia de trabalho no campo era necessário retornar ao curral para cuidar dos bezerros

recém-nascidos “se a muié num subesse botar (o bezerro) pra mamar!”298. Deduz-se daí que o

espaço do curral e as atividades com o gado bovino não eram estritamente masculinas. Por

fim, recordamos aqui as sábias palavras de D. Janice, esposa de Juarez, que rapidamente nos

encaminharam a essa reflexão: “Só sabe quem é vaqueiro, quem é mulher de vaqueiro!”.

A roça e a terra, dessa forma, sempre foram presença marcante na vida dos vaqueiros

do Sertão de Irecê, uma espécie de pilar a partir do qual os indivíduos se iniciavam no mundo

do trabalho. A fonte básica de sobrevivência que dava suporte, via mão-de-obra familiar ou

diarista, ao exercício exclusivo da “profissão de gado”, facilitando e diversificando assim os

meios de produção da sobrevivência. Almir afirma que, quando não podia ou não “aguentava”

o trabalho da roça “vendia um mamote, um garrote ou uma vaca véa ou uma rês gorda,

pagava o trabalhador pra ir roçar, dessa maneira toda vida!”299.

Ao lado da roça e do pequeno rebanho que cabia ao vaqueiro pelo sistema de sorte,

uniam-se também outras pequenas fontes de renda que garantiam à família o suprimento das

necessidades básicas. Alegam os entrevistados que a sorte sozinha era insuficiente para a

manutenção, especialmente quando o rebanho era pequeno e o grupo familiar numeroso. Esse

fato se ressalta ainda mais quando se destaca que os animais conseguidos durante a partilha

cumpriam também o papel de “semente”300 de rebanho, não podendo, portanto, serem

consumidos totalmente. Informa o vaqueiro Luiz:

quando é um cara experiente, que à vez, você chega lá, cria uma galinha, cria um bode, cria um porco... ali já ajudano na dispesa né, mas, pra dispois você tirar esses bizerro, pra dispois pagar a dispesa... você fica nú de novo! [...] porque ele tirava a sorte né, e ali ele prantava um pedacinho de roça, as dispêsa ali, e ele ficava com seu garrotinho ali pra vendê para uma hora de uma pricisão.301

De posse de algum rebanho, familiar ou não, punha-se o vaqueiro ao desafio do

campo e à sua rotina diária: 298 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 299 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 300 Termo usado pelos entrevistados para designar os primeiros animais conseguidos pelos vaqueiros ou a porção restante do rebanho destinada à reprodução, ou ainda relações sanguíneas, neste caso afirma-se: “este animal é semente daquele!”. 301 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010.

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vaquêro num tem horáro! O horáro do vaquêro é quando termina o sirviço! É, de 4 hora, 3 hora, tirar leite, quando termina o leite, solta aquela vacaria, quando solta a vacaria, se incora, vai pru campo, às vez atrás de mais parida ou vê se tem algum cu’ma bichêra, uma coisa... vaquêro é desse tipo. Chega em casa 7, 8 hora da noite, ôtas vez 10 hora, da noite!302

A função do vaqueiro era cuidar do rebanho entre o curral e o campo, este, porém, não

transmitia a segurança do primeiro, trazendo-lhe grandes obstáculos e exigindo o domínio dos

saberes sobre a natureza e os animais. A busca por um animal desaparecido poderia durar

dias. A estratégia de trabalho central dos vaqueiros era a construção de uma rede social de

“amizades”, sociabilidades e troca de experiências que possibilitasse o acesso a notícias. A

feira livre semanal era um espaço especial para obtenção dessas informações.

Sai sem saber onde é que a criação, o boi tá, por exemplo. Anda o dia interinho até de noite nem nutícia! [...] Quando num tem nutícia ele vai pras fêra, eles ia pras fêra! [...]. Lá na fêra do Salobro (Vila de Canarana), por exemplo, tinha gente da Baixa do Vigário, [...] Bunina, [...] Gameleira, [...] Lagedinho, aí procurava aqueles vaquêro: _“Ah! Moço! Esse boi tá em tal lugar!” Aí agora ele já ia no rotêro certo! Com aquele cuidado, procura a um, procura a ôto, até: _“Tá no gado de fulano.” [...] E aí agora quanto mais ele já tá com 2, ou 3, ou 4 dia perdido, mais a hora que ele (o vaqueiro) ver é obrigado pegar, que ele não pode mais perder tempo com esse boi! Por isso que os vaquêro tinha hora que era, fazia das tripa coração! Criava corage.303

O reconhecimento do ferro ou do sinal nas orelhas dos animais, permitia aos

moradores seber sua origem e propriedade e informar ao vaqueiro o seu paradeiro. Juarez

afirma: “nós cunhecia pelo ferro. E quando vinha gado deles pra’qui tomém nós sabia, nós

dava nutícia a eles lá, é, que tinha gado deles aqui no campo nosso”304. A habilidade de

reconhecer a simbologia dos sinais e ferros impressionou Euclides da Cunha, que assim

relata:

Porque o vaqueiro não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes por extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto305.

302 Idem...,1º momento, 07 de nov/2010. 303 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 304 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 305 CUNHA, E. Os Sertões..., p. 127.

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As dificuldades no trabalho do campo, todavia, não paravam por aí. Hermes nos

explica que nem sempre era possível para o vaqueiro levar comida para sua jornada. você amarra, pega uma mochila de comida e bota de baxo do braço ou na garupa do cavalo, com duas tarefa ele achava uma rês de pegar, corria no mato, daí um pau arrancava, jogava no mato e aí?! (risos) [...] Perdia tudo! (risos) [...] Vaquêro só come em casa quando chega, ou então se o cara, no campo, ele encostar na casa de um amigo, [...] e lá ele lhe oferecesse o café ou a comida você aproveitava logo, era a hora de (risos) abastecer, se não (risos) ia chegar em casa tarde da noite, né.306

O trabalho com o gado em meio à caatinga sem cercas exigia esforços físicos e

resistência orgânica dos trabalhadores, além do domínio de certos saberes e estratégias. José

Norberto de Macêdo relata:

Em serviço, vaquejando o rebanho ou, como de costume, vagando em busca de um animal qualquer, exercita os olhos e a prende a enxergar, adquirindo pelo treino excelente golpe de vista. Muitos praticam a proeza de contar sem erro, um lote de animais que passe a todo galope pelo vão de uma porteira. A vastidão do horizonte conserva-lhe e acomoda-lhe a vista; o vaqueiro tem, por isso, bons olhos e boa visão até alta velhice307.

Exageros à parte, a citação do autor nos encaminha diretamente para a restrita relação

entre a prática de trabalho do vaqueiro e a aquisição de habilidades. É o vaqueiro Hermes que

nos explica de forma pormenorizada a dinâmica da lida com o gado no campo.

o gado faz uns carrêro dentro do mato e você vai nos carrêro, que eles faz aquelas estrada no mato, deles andar, mas, madêra é tudo trançada por cima, eles andando por baixo, bem assim você baixava no pescoço do cavalo e ia direto, aqui e acolá, quando você saia em um aberto, às vez numa lagoa, um vagiado308, você tomava um tempo ali escutando chucai e coisa, pra ver se não tinha gado ali por perto, sentava na sela, [...] e ai marcava no giro da pancada daquele chucai até quando chegava lá né, naquele gado. Se dava certo ser um gado manso ia raiar (tanger) e oiar e ficar arrodiado, e se for um gado brabo, você vê a carreira, ai agora era obrigado correr pra acompanhar309.

Roxinho pontua que, um vaqueiro acostumado com o gado conhece o seu rastro:

tem uma que tem a unha maior, ôta menor, tem uma que arrasta à vez a unha: _ “Ó, vaca fulana passô aqui!” Muitas vez o marruá310, tomém, você diz: _“Moço, aquele marruá tá faltano!” Você vê o rasto do marruá é redondo, da vaca é cumprido (a pata)!”311

306 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 307 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 50. 308 Equivale a uma área rebaixada onde acumula água e onde os rebanhos que concentram. 309 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 310 Novilho ou boi jovem, pouco ou nada domesticado. 311 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011.

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O trabalho rotineiro no campo tornou os vaqueiros grandes conhecedores dos hábitos

dos animais. Segundo Almir Vaqueiro, o gado “cumia tudo no campo, misturava mas, eles

procurava, cada qual procura os seus, que nem a gente procura o amigo (risos)”312. Juarez

relembra que seu rito de iniciação como vaqueiro se deu quando, em meio à procura de uma

vaca, ocorrera uma “garoinha” e seu tio o alertara para passarem “naqueles lajedo, que

quando chove assim gado vai procurar água” 313. A empreitada foi certeira e desta vez a vaca

fujona foi ao chão! O conhecimento do som do chocalho, já citada pelo vaqueiro Hermes,

ganha contornos detalhados na explicação de Zé dos Morrinhos:

Aí você escuta o chucaio: “tam, tam, tam!”. Ela tá dano mamar o bizerro. [...] ela vai na frente e você vai divagazinho amuntado no cavalo: “pam, pam, pam” (som do cavalo andando), esperano, ela vai doida (rápido), o chucaio: “pô, pô, pô, pô”, quando o chucaio quetar, aí você vê a bizerrinha: “béééé!”. Ela fica em pé, aí a bizerra berra, mode o chucaio, aí dá de mamar. Aí o cara chega e traz314.

Era comum que as vacas prenhes ou recém-paridas usassem chocalho para facilitar sua

localização. O velho vaqueiro produz uma leitura sonora a partir da qual identifica, mesmo a

distância, a condição e o comportamento do animal. Afirma este entrevistado: “se ele (o

vaqueiro) num conhecer a pancada do chucai num é vaquêro! É obrigado ele ir atrás de todo

chucai que tocar no campo [...] pra olhar se é a dele!”315. Esse mesmo depoente ainda nos

revela outro conhecimento sobre o trato com o gado na caatinga.

Tem as árvore da catinga que o gado maia debaxo! Imbuzero, é um! Imburana, é ôto! O Pau-de-Colher é ôto! [...] Deu uma hora dessa (meio dia) em diante eles tão maiado! [...] Então aí você só acha de tarde! [...] E o cara que é acustumado a tabaiá [...] o sol isquentô, ele se deita de baxo de uma sombra de pau no mato, [...] quando for de tardezinha, que o vento pegar a correr, o gado levanta pra cumê! Iscuta o chucaio: _‘Vaca fulana, vou pegar ai!’ A gente vai e pega!316

Nas entranhas das caatingas os animais afinavam também os seus instintos e muitos se

tornavam selvagens. Quando ocorria a necessidade de capturar algum deles para venda,

condução, para realizar algum procedimento veterinário ou mesmo quando os mais arredios

“davam a testa”317, homem e animal travavam uma disputa. A “pré-dominância” do primeiro,

312 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 313 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 314 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 315 Idem, Ibidem, loc. cit. 316 Idem, Ibidem, loc. cit. 317 Expressão usada pelos entrevistados para definir o momento em que o boi desafia o vaqueiro.

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contudo, nem sempre significava êxito. Almir Vaqueiro não nega: “Nós cansamo de dar duas,

três carreiras em boi aí e boi ficar.”318. Juarez assim explica o processo de perseguição à rês:

En: [...] pra ir incostado nele direto, o boi soltano pau e você... antes do pau acabar de levantar você já tá passano!Uma catinga quanto mais fechada é melhor pra se pegar boi! [...] Por que quando o boi pega a catinga ele sai arrastano a catinga pesada [...] num guenta arrastá aquela catinga! [...] logo você joga o peito do cavalo na cabeça dele, pra o cavalo impurrar ele, tem vez que ele cai, vai cansado ele cai e se num cair ele briga muito, é obrigado você defender! [...]319

Mesmo a perseguição dentro da caatinga tinha suas leis, suas estratégias. A grande arte

do vaqueiro na captura do gado estava em saber usar a vegetação a seu favor, cabia a ele

correr o mais próximo possível da rês, aproveitando-se da brecha que esta fizera na caatinga,

pressionando-a contra a vegetação para que se cansasse. Em sua viagem pelo interior do

Nordeste ainda no início do século XIX, inglês Henry Koster assim registrou esse momento:

Quando o homem se aproxima, o boi foge para o mato vizinho, e é perseguido o mais próximo possível, a fim de aproveitar a vantagem de os ramos se entreabrirem na passagem do animal, fechando-se logo após, retomando sua primeira posição. Num certo tempo o boi passa por baixo de um galho pouco elevado duma grande árvore, e o vaqueiro, às vezes, passa também, e para conseguir, pende para o lado direito tão completamente que pode segurar a cilha da sela com a mão esquerda ao mesmo tempo que o calcanhar esquerdo se prende na orla da sela. E com a vara na mão direita, quase arrastado pelo solo, galopa sem diminuir o passo, voltando a sua posição logo que o obstáculo foi transposto. Quando atinge o boi, fere-o com a vara e, se o golpe foi certo, atira-o ao chão. Desmonta, prende as pernas do animal ou passa uma delas pelos chifres, e o tem rendido completamente. Muitas pancadas são recebidas pelo vaqueiro, mas é raro ocasionar-lhe a morte320

Correr na caatinga, não era pra qualquer um, era preciso, primeiro, saber deitar no

cavalo, saber guiá-lo e desviar-se da vegetação. Luiz Vaqueiro afirma:

Então, o vaquêro, ele tem que aprendê trabaiar, tem que sabê se defendê da madêra. Você se abraça no pescoço d’um cavalo [...] correno com boi aqui, ele vai pra lhe rumar aqui, mas, você carregô o corpo todo pra cá, o cavalo sai do pau! Você carregô pra riba do pau você..., a pancada é grande! Você tem que carregar o contráro, com força! E se arrastá!321

Reconhecer aqueles que dominavam essa técnica não era tão difícil assim, Juarez

atesta: “É obrigado saber trabalhar campo. [...] você vê aqui que todo vaquêro bom ele tem...

o chapéu é sujo de suor d’um lado onde ele deita, porque ele tem que colar a cabeça no

318 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 319 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 320 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 209. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-ao-nordeste-do-brasil>. Acesso em: 15 de fev/2012. 321 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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pescoço do cavalo”.322 Para os nossos entrevistados, não só o “quebrado” do chapéu

anunciava um saber, como a sujeira nas suas abas era marca cabal do exercício de campo.

Hermes nos esclarece que durante a captura é preciso ainda “dar o grito”.

A vantagem é dar o grito! (risos) [...] ali é um desabafo, vai desabafar o vaquêro, o vaquêro vai ali, quando ele joga usura (vontade de pegar; o momento que se configura a oportunidade da captura do boi) que vai perto, que conhece que vai arrastar aquele trem (risos), ai grita! Ai grita animado! Grita animado. O ôtro, o ôtro amigo [...] vai no giro que eu (estou) gritando, ele vai certo, chega, e se correr calado não sabe pra onde deu, e ôtras vez também quando a gente vai sozinho grita também [...]. Quando vai chegando pra perto é que anima gritando! (risos) Porque sabe que pega!323

Tal como o grito do vaqueiro, a ênfase do velho narrador ao contar sua história era

também um “desabafo”. Gritar era uma estratégia de orientação entre os vaqueiros para que os

“amigos” soubessem o “giro” para onde corria a rês e fossem ao seu encontro. Era também

uma forma de deixar o boi mais agitado para que com isso cometesse erros em sua fuga,

errasse um pulo, errasse o caminho; era um “desabafo” para o vaqueiro, mas era ainda um

sinal de que ele se adiantara aos “amigos” e estava próximo ao êxito. Juarez se lembra do dia

em que, após a tentativa frustrada de captura de um boi, “a vaquerada” lhe provocou,

acusando-o de ter corrido “disputano” e de não ter gritado “pra ninguém acumpanhar”.

Restava a captura em si. Almir afirma que quando era “novo” “cansou” de descer do

cavalo pra pegar “o boi de mão”: _“Dexa vir!” E eu: “Vapo!” dentro da cabeça dele aqui (entre as pontas), embolava com ele aqui, depois que chegava no bagaço (o boi cansava), botava no chão”324

Reinaldo de Lôro ao derrubar algum boi “sentava na barriga dele, pegava a mão dele e

botava aqui na cabeça, aí já facilitava muito, aí agora tirava a corda amarrava, botava careta e

chucalho, aí agora pronto!”325 A captura poderia ainda se dar de outra forma. Zé dos

Morrinhos conta que, quando possível, usava armadilhas para pegar alguns animais, subia em

uma árvore, “tirava o gibão e sacudia”, quando o animal se aproximava ele o laçava pelo

chifre. Nos casos em que a disputa se acirrava restava ao vaqueiro o uso de suas ferramentas:

322 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 323 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 324 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 325 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012.

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se você tiver ferro (faca, ferrão ou até facão), você vai pro ferro frio, se num tiver você abre o cavalo um pôco (afasta o cavalo) e dêxa ele queto, na hora qu’ele (o boi) calmô você tira a corda da garupa e laça ele e passa logo num pau. [...] E: Se remeter fura onde no boi? En: A gente só fura da, dali da amarra do chucai pra cabeça por que se você furar da amarra do chucai pra trás pega os vão (os órgãos internos) dele e aí morre!326

Os entrevistados denominam ferrão uma estaca de madeira na qual se encaixa em uma

das extremidades uma base de ferro ponteaguda, utilizada para furar os animais. O objetivo do

seu uso não é causar a morte do animal, mas, apenas amedrontá-lo, o que não exclui a

possibilidade de que os ferimentos provocados ocasionem a morte da rês. Almir Vaqueiro, no

momento em que nos demonstrava o ferrão com o qual trabalha, comenta: “tem deles (os

bois) que na hora que cai no prego, que aí é que a carreira é segura, caiu no ferro frio, aí é que

corre bunito! Agora, tem deles também, que morre de baxo do prego, tem deles que são

malcriado, morre no ferrão!”.327 Nos momentos de risco, um simples pedaço de madeira pode

também servir de arma de defesa para os vaqueiros. Hermes nos explica que muitos animais

não resistiam a captura e morriam, ainda que sem ferimentos: Sempre a gente quando botava assim, corria que pegava, peava, porque naquela hora ele não presta pra viajar né, quando tem um pau assim mais perto a gente amarra, mais o comum mais é pear pra ele ficar andando, pra não agitar muito, ele ir desenvolvendo (caminhando). Então, quando nós fomo acabando de pear (riso) foi acabando de morrer, de raiva. Aconteceu muitas vez isto328.

Como vimos na introdução deste trabalho, o discurso sobre as destrezas e valentias dos

vaqueiros, compõe parte significativa de suas representações sociais e muito devem a autores

como Euclides da Cunha e Eurico Alves e as artes populares como repentes e cordéis. Porém,

o encontro tantas vezes versado pelos literatos, cantado pelos poetas e cordelistas, o qual o

cancioneiro sabiamente definiu como os “mistero da hora in qui num pode havê erro”329, não

era em si um ato de heroísmo. Não importando a modalidade de captura, a necessidade de

dominar era o fator determinante do momento e o choque entre homem e animal era sempre

uma situação desafiadora, tanto para os que apenas “campeavam” como para os vaqueiros

experientes.

Em períodos de seca, os vaqueiros costumavam reunir-se nas margens das fontes de

água mais resistentes para a captura do gado.

326 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 327 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 328 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 329 MELLO, Elomar Figueira de. História de Vaqueiros. In: Xangai canta: cantigas, incelenças, puluxias e tiranas de Elomar. Rio de Janeiro: Kuarup Discos, 1998.

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En: [...] nas água (período de chuva) nós pegava era na catinga aqui, e no tempo sêco o gado cumia nessa região toda e ia beber lá com 4 légua, nós isperava o gado no bêiço da vereda (de América Dourada). E: [...] E aquela Vereda num secava? En: Não. Vez em quando secava um poço, mas o ôto num secava, né, o gado puxava pr’aquele lugar que tinha água, aí ia 20, 30 vaquêro esperar o gado lá.330

Segundo Guilhermino, muitos vaqueiros aproveitavam o momento em que o animal

bebia para laçá-lo, outros animais, de tão selvagens, sentiam a presença dos seus caçadores e

corriam ou desenvolviam o hábito de beberem durante a noite. Nesse caso cabia ao vaqueiro

adequar suas estratégias de acordo com as necessidades. Nas palavras do entrevistado: “muito

gado imbradicia aí e ficava, só ia beber de noite! Quantas e quantas vez nós ficava no bêiço da

vereda de noite, o gado chegava nós metia o cavalo inriba?! Pegava de noite na catinga aí,

pegar.”331 A captura a noite ocorria, geralmente, em fases de “lua clara”.

O retorno à casa era precedido ainda pelas atividades do curral: cuidar dos bezerros

recém nascidos, conferir a saúde dos animais, amarrar, amansar, separar as vacas dos bezerros

para, na manhã seguinte, realizar a ordenha, se necessário, e conferir as demais criações, caso

houvessem. O cuidado com a saúde e a integridade dos animais é uma dimensão de

conhecimentos a parte. Na concepção do vaqueiro, aboiador e poeta Licuri: “o vaquêro que é

vaquêro tem que saber aplicar uma injeção [...]. Ele tem que fazer operação, ele tem que fazer

parto de vaca, ele tem que fazer tudo pra ele ser um vaquêro!”332. Zé dos Morrinhos destaca

que o vaqueiro deve saber usar a força no momento certo e ser uma “pessoa paciente! Trabaia

com o bicho sem xingar! Sem bater! Porque tem deles que ruma uma pedra! Fura um olho!

Ôto joga um pedaço de pau, bate, arranca uma ponta de uma vaca!”333. Ainda esse

entrevistado sentencia que os “vaqueiros de hoje” não dominam mais o “saber” necessário à

lida correta com o gado: “num sabe fazer um parto d’uma vaca! Num sabe botar uma luva

numa mão pra tirar um bizerro! Num sabe cortar a junta d’um bizerro dento do paridor da

vaca, pra tirar!334 Então, não é vaquêro, um cabrunco desse! Num é não!335.

O cuidado com os animais ia além do trato físico, poder-se-ia estender ao mundo

sobrenatural por meio do uso de rezas e benzeções. Roxinho Vaqueiro nos explica a oração

para combate às parasitas. 330 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 331 Idem, Ibidem, loc. cit. 332 Entrevista do senhor Antônio Corrêia Araújo (Licuri)..., momento único, 03 de nov/2010. 333 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)...2° momento, 24 de jan/2012. 334 Quando ocorre a morte do bezerro ainda dentro do útero da vaca. 335 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)...2º momento, 24 de jan/2012.

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Pra curar, o bicho tá daqui à 3 légua, até conforme 5, você reza. Se tiver um rio, você pega um copo d’água e bota na frente, é, porque se tiver água a reza num passa e com o copo d’água passa. [...] Você pega de 9 até 1 ou pega de 7 até 1! [...]É: _“De 9 a 9, de 8 a 8, de 7 a 7, de 6 a 6, de 5 a 5, de 4 a 4, de 3 a 3, de 1 a 1, num fique bicho ninhum!” Até chegar no 1! Você reza 3 vez, pega 3 ramo né, e vai jogano, você circula a base do que o gado come (anda em torno de um círculo imaginário direcionado ao campo onde pasta o gado), aí você vai dano as palavra e jogano pr’um lado e pra ôto, assim ó (forma de cruz), você tendo fé, pronto! [...] Daqui você reza onde o gado tiver! No giro qu’ele come [...] inlarguesse mais um pôco né, faz o circo (círculo) grande, faz de conta que você tá caçano uma rês, você faz um campo grande e reza. [...] Pode rezar parado. Você só abre o braço e faz o sinal assim.336

Em Histórias de Vaqueiros: vivências e mitologias, Washington Queiroz registrou a

diversas fórmulas de benzenção de animais entre os vaqueiros da Bahia, inclusive a presença

da referência a números, a água, além de fórmulas e técnicas veterinárias fitoterápicas337. O

trato com a saúde animal poderia mesmo garantir destaque ao vaqueiro, Luiz Vaqueiro é um

exemplo disso e nos narra um episódio ocorrido em Goiás entre os anos de 1990 e 1992,

enquanto trabalhava em uma fazenda. Tendo ele avistado uma vaca aparentemente doente e

iniciado uma avaliação juntamente com um veterinário, relata: meti a mão, digo: _“O bizerro já tá de lino” (ou limo, no sentido de ‘em decomposição’) Tirei ele todo os taco (pedaços) de dento e o dotô (o veterinário que estava presente) oiano aí, o dotô disse: _“É, um home desse aí sabe fazer o sirviço” Dispachei (retirou os restos do bezerro e a placenta), aí [...] ele disse: _“E aí Luiz?” Eu digo: _“Dotô é o siguinte, aqui tem que cortá!” Ele disse: _“Cortá?!” Eu digo: _“É! Pra iscapar a vaca aqui tem que cortá” Ele disse: _“Você sabe cortá?” _ “Dô um jeito!” _ “Então faça o sirviço!”. Botei pra fora (útero da vaca), puxei, cortei, mandei botar um cavadô no fogo, o bicho tava vermei, no fogo! Aí eu cortei ele aqui ligêro e puxei ele (útero da vaca) pra fora e queimei “tchi, tchi, tchi!”, queimei ele todim, quando acabar bati o remédio, apliquei as injeção nela, soltei pro pasto...Aí ele disse: _“Se a vaca iscapar é minha e sua!” Eu digo: _“Apois já sabe que é de nós 2” Aí quando foi, a vaca sarô. [...] O dotô disse: _ “Óia, eu mermo num sabia queimar fazer, queimar, queimar o úto [útero] dessa vaca aí, eu num sabia fazer! E sô veterinaro e nunca vi nem fazer isso!”

336 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 337 BAHIA. I. do P. A. e C. Histórias de vaqueiros..., vol 2, p. 123-146.

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Aí disse: _“Você, você tem nota 10 da minha parte!”, aí falô com patrão, disse: _“O home sabe fazer o sirviço” Disse: _“Esse aí nasce pra isso mermo”338.

Luiz Vaqueiro acabou assumindo o papel de “dotô” na situação e seu saber tradicional

desafiou a medicina veterinária institucional, mesmo que por um momento. Esse prestígio

inicialmente conseguido e o domínio das demais artes de trato com o gado, garantiu ao

vaqueiro a função de “gerente” da fazenda por 1 ano e 8 meses.

Os saberes necessários ao trabalho no campo e ao cuidado com o gado eram assim das

mais diversas naturezas. Era preciso conhecer o relevo, os morros, as aguadas, os lajedos, as

queimadas339, as capoeiras, observar os rastros dos animais, ouvir o chocalho, saber onde

nascia certo tipo de planta, o horário de circulação dos animais, seus “carrêros”, conhecer o

ferro ou a marca, sua anatomia, sua preferência alimentar e suas variações no decorrer do ano,

seus comportamentos diante da chegada das chuvas. Um vaqueiro experiente sabe que “vaca

(recém)-parida come sempre separada das ôtas”340; que em vaca parida não se bate, a menos

que seja realmente necessário; que, durante uma captura, o “bizêrro (quando) vê o cachorro ia

pra perto da mãe”341. Reinaldo de Lôro sabia que “no fim das água” o gado buscava a “Lagoa

Vermêa”, de trás do “Morro dos Calango”, por ser ela a mais resistente das fontes

circunvizinhas. O cuidado direto com a saúde dos animais exigia ainda outras práticas e

saberes dos vaqueiros: era preciso conhecer os ciclos reprodutivos dos animais, os remédios,

as rezas, os procedimentos veterinários e até cirúrgicos.

O controle dos saberes de captura, condução e cuidado garantia aos vaqueiros do

Sertão de Irecê o poder de barganha, afirmação pessoal e diferenciação social suficiente para

disputar espaços com outros trabalhadores do campo, com criadores ou pessoas de maior

poder aquisitivo.

Quando eu vivia panhano boiada de um e de ôto, de um e de ôto, mais vivia ni minha, no meu cantinho sussegado, não! Você chegava e dizia: _“Luiz eu quiria que você fizesse um sirviço pra mim amanhã!” Digo: _“Amanhã num dá! Só dá pra ir adepois, se você achar...”

338 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 339 Refere-se a áreas que sofreram ação do fogo por indução humana ou natural, cujo solo ainda possuem as marcas do incêndio, coberta por pequenos arbustos. Uma queimada pode, por exemplo, se tornar uma capoeira com o passar dos anos, na medida em que sua vegetação avança. 340 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 341 Idem, Ibidem, loc. cit.

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Tinha que me isperá! E se eu fosse impregado dele eu tinha que ir, de quarquer jeito, né! Você tem que ir: _“Bôra!” Não! Eu vivo por conta de, por minha conta: _“Não, hoje num dá pr’eu ir não, só dá pr’eu ir amanhã, se você achar que dá pra ir...” _“Não! Então é o jeito! É o jeito isperar você, eu... você é quem sabe fazer o sirviço!”342

O relato acima exposto por Luiz Vaqueiro demonstra bem o peso que o domínio das

artes com o gado no campo atribuia ao vaqueiro. O requisitante reconhece a existência de um

portador do “conhecimento”, cabendo-lhe, portanto, esperar. À medida que aumentavam as

dificuldades de captura, condução ou os riscos à vida dos animais, no caso de um parto mal

sucedido ou de um ferimento grave, por exemplo, o seu trabalho se tornava mais valioso,

requisitado e fora das condições de execução dos que apenas “campeavam”. Nesse sentido o

trabalho do vaqueiro assumia um caráter especializado. Esse fator era essencial para

constituição de um processo de diferenciação laboral dos vaqueiros, em um contexto onde era

comum a muitos outros trabalhadores o acesso ao campo e a posse de pequenos rebanhos

(mesmo que algumas unidades), portanto, certo nível de contato com a dimensão dos saberes

que envolviam a pecuária.

Em meio ao campo do Sertão de Irecê a experiência era o grande orientador do

vaqueiro, mesmo assim, não escapavam eles aos riscos de sua função. Todos os nossos

entrevistados têm histórias diversas de acidentes que durariam horas para serem narradas e

muitas páginas para serem descritas, vamos aqui apenas exemplificá-las. Nos termos do

vaqueiro Zé dos Morrinhos: “o comum do vaquêro é sempre alejado”. Esse mesmo

entrevistado nos narra um episódio representativo durante uma perseguição dentro da

caatinga: “Panhei o sedém (rabo do animal) dobrei na mão, aí rancô esse pedaço do estrivo da

sela, eu istirei, aí arrastei ela (a vaca) assim, arrastei. Lá na frente o cavalo meteu a mão num

buraco de mamão-brabo, [...] torô (quebrou) a mão e eu torei aqui (o pulso), rancô os arreio,

tudo perdeu.”343.

Licuri acumula uma clavícula e 4 costelas quebradas; Roxinho não conseguiu se

desviar de uma árvore que o derrubou do cavalo deixando-o no chão “sem fôlego”; Reinaldo

de Zé Pedro necessitou de procedimento cirúrgico, após sofrer uma queda com seu cavalo

sobre as pedras que lhe “qualhô o sangue por dento”; Luiz Vaqueiro e Jairo quebraram a

342 Entrevista do senhor Luiz Mendes Batista (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 343 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2° momento, 24 de jan/2012.

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perna na lida com o gado; Viana perdeu a visão de um olho, após ser atingido por um graveto;

Guilhermino nos contou que o boi furou um dos seus cavalos: “nunca mais pude derrubar

gado com ele, assombrô, né. O bicho tamém entende e tem medo, né.”344

O campo não desafiava só o homem, muitos são os relatos em que os próprios animais

(cavalos e até o próprio boi) se machucavam nas árvores, nas armadilhas naturais e nas

irregularidades do terreno. Por essas e tantas outras ocorrências predominam nas narrativas

dos entrevistados a certeza de que o trabalho de vaqueiro era “perigoso”, “pesado” e “difícil”.

Na visão de Jairo: “num tem sirviço de campo que num seja pirigoso, todo sirviço de campo é

pirigoso dimais! E o nêgo tem que defender a vida! E pronto!”. Ainda segundo ele “quem

trabalha no campo é sabeno que ele vai trocano a vida por morte!345. Gilson Vaqueiro não tem

dúvidas de que a vida do vaqueiro é sofrida, “passa fome, passa precisão, passa de hora de

cumer, passa de hora de dormir, dependeno da luta dele”.346 O vaqueiro Luiz não discorda,

segundo ele, o trabalho de campo é “o sirviço mais pesado do mundo”, pois, não é qualquer

trabalho que faz “o suor traspassar (atravessar) gibão, traspassar côro” e conclui: “num é

brincadêra não!”347. Para Chico França, o vaqueiro “só pega o boi se num tiver medo de

morrer!”348.

A ênfase nas dificuldades do trabalho, latentes em suas narrativas, dão vazão aos

discursos de coragem, “macheza” e “proteção divina”. Almir afirma: “Nunca tive medo de

correr com boi e nem de brigar com boi também, toda vida fui cabra macho!”349 e completa:

“o trem mais abençoado do mundo é vaquêro!”350. Reinaldo de Lôro explica

Sempre o povo tem um dizer: _“Eu boto pra isbagaçar!” Mas é a nação que Deus mais guarda! Já guardô, foi o vaquêro! Naquele tempo! Por que, olhe na hora que você tá, na luta! [...] As vez acuntece até de você cair, levanta e torna pular em cima do cavalo! [...] ou que ôto vaquêro, passa, você passa atrás devagar as vez num lugar onde você já passô. Admira como é que passô naquelas ponta de pau! E debaxo de pau e saiu, em paz. E já hoje, num é todo mundo que tem essa corage351.

344 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 1° momento, momento único, 18 de ago/2011. 345 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)...., momento único, 07 de out/2010. 346 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 347 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 348 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 349 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 350 Idem. 2º momento, 13 de nov/2010. 351 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012.

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Chico França afirma: “vaquêro é querido de Deus moço, se não num tinha um aí com

os 2 olhos na cara! Era tudo cego!”352. Como vimos, a afirmação entre o vaqueiro e a proteção

divina é um fator corrente nas narrativas. Ele foi usado para explicar a origem do interesse

pela profissão, agora emerge como justificativa para proteção durante o trabalho. Como nos

afirma Júlio Pimentel Pinto, a memória une de forma linear elementos que na vida concreta

foram desconexos353. Do ponto de vista da memória, os narradores selecionam o discurso da

proteção divina como mecanismo de diferenciação social. Ele se une às constantes afirmativas

de coragem, para as quais os acidentes e suas sequelas funcionam como provas do ato

heróico, o discurso dos saberes, e a afirmativa de uma autonomia laboral baseada no acesso ao

campo, produzindo uma imagem requisitada pelos próprios entrevistados.

Sociabilidades da vaquerama: habilidades, poder simbólico e representação social

Mas, nem só de sacrifícios viviam os vaqueiros do Sertão de Irecê. O trabalho árduo e

cansativo era também marcado por momentos de lazer, descanso e momentos coletivos que

possibilitavam a construção de relações de solidariedade/sociabilidade, a delimitação das

fronteiras sociais do grupo e a afirmação de uma identidade própria. Sinobilino afirma:

E tinha muito gado, era muito vaquêro, uns conhecia os outros, e aquilo era uma farra, gado mudava muito, você era vaquêro eu também era, eu, e uma novilha minha, gado meu, passava lá por sua fazenda, e eu ia você me ajudava pegá, eram tudo unido, me ajudava pegar, encurralar, depois durmia em sua casa, me recebia bem, se fosse você, eu lhe recebia bem. E eu lhe ajudava, um ajudava os ôto, amanhâ você pegava sua novilha, seu garrote, sua vaca, e conduzia pra sua fazenda, carregava.354

A realização de trabalhos conjuntos rendeu aos vaqueiros a imagem de “união”.

Reunir os colegas para captura de animais era uma das práticas comunitárias corriqueiras no

Sertão de Irecê, bastando para tanto um simples convite durante uma conversa na feira, um

recado encaminhado ao vizinho ou mesmo o encontro inesperado em meio ao campo. De

acordo com Guilhermino: “inté um estranho chegava e lhe ajudava porque tava veno você

naquele sacrifício, naquele serviço e tudo mais, todo mundo era colega! No mato, todo mundo

352 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico Franca)..., 2º momento, 01 de dez/2010. 353 PINTO, J. P. Os muitos tempos da memória..., p. 206. 354 Entrevista do senhor Sinobilino Francisco Nunes (Sinó)..., momento único, 26 de ago/2011.

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era colega!”355. Para Zizinho os vaqueiros eram “a mesma coisa de ser irmão!”356. Hermes

afirma:

ali era nós amigo, vaquêro, então, se tivesse uns 5 ou 6 vaquêro naquela região, ou 10, tinha vez de nós incontrar e tá todo mundo trabalhando junto, eu procurando o da minha intrega, o ôto procurando o gado da entrega dele, o ôto..., então, nós incontrasse... o que incontrasse premêro juntava tudo pra pegar aquele! [...] num tinha separação não, o que incontrasse primêro é que ia pra corda! [...] Era uma comunidade assim, o vaquêro xx trabaiava lá, nenhum cobrava dos ôtos não357.

Viana relata que os vaqueiros que trabalhavam com ele eram “tudo camarada, tudo

criado junto![...] É, tudo. Daqui desse rebalde (arredores) tudo, todo mundo se cunhece. O

longe a gente num ia por que num... 10 légua, 12 légua pra ir, ninguém... né. Daqui de perto,

dos município da gente aqui de perto”358. O fato de “ser de perto” ou de ter sido “criado

junto” inseria os indivíduos nas relações de confiança, troca de serviços e momentos

coletivos. É significativo nesse sentido a opinião de Zizinho, para quem o trabalho de

vaqueiro só faz sentido ao lado dos “colega que a gente gostava”. E: E se fosse dizer assim, seu Zizinho: ‘o sinhô vai nascer de novo!’. Toparia ser vaquêro de novo? En:(risos) Pelo ao menos umas vez, umas hora, (risos) se aparicesse todo mundo, daqueles colega que a gente gostava, a gente ajuntava todo mundo travez, quem é que num queria moço!? Eu mesmo quiria!359

O discurso da coletividade é um dos traços marcantes das narrativas dos vaqueiros do

Sertão de Irecê. Os entrevistados evocam constantemente em suas falas a presença de colegas

com os quais compartilhavam o mundo do campo. As referências a afetividade e a

fraternidade agem como elementos de demarcação das fronteiras do grupo. Nos termos de

Halbwachs a memória coletiva emerge aí como “fundamento comum”. O vaqueiro que se

lembra, se lembra do ponto de vista de um grupo, insere os demais nos espaços e ações

lembradas como forma de fundamentar suas próprias reminiscências360. Henry Rousso destaca

também nesse sentido que o passado nunca é do indivíduo somente, mas de um indivíduo em

um contexto familiar, social ou nacional361.

355 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 356 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 357 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 358 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 359 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 360 HALBWACHS, M. A Memória Coletiva..., p. 34. 361 AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos & abusos da história oral..., p. 95.

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Um momento coletivo era sempre especial para demonstração de destrezas, ora por

vontade própria, ora por situações inesperadas. Juarez afirma que durante uma “pega de boi”

junto com outros colegas deu-se o seguinte fato: “quando o boi atrevessô a picada eu já

atrevessei na frente de todos os vaquêro! No saltar da vereda eu botei ele no chão! [...] quando

eles chegaro eu tava sentado em cima!”362. Sentar sobre o animal capturado foi a forma que

encontrou o vaqueiro para anunciar sua agilidade e êxito total da investida. Observemos aqui

a importância do público como testemunha da habilidade exercida. Questionemos: teria sido a

pura habilidade que permitiu Juarez se adiantar aos demais colegas? Quem eram esses

colegas? Passemos a outros exemplos. Durante a produção das narrativas, muitos vaqueiros

iniciaram suas falas relatando situações de ação nas quais tiveram suas habilidades testadas

diante de outras pessoas.

os vaquero quando via eu chegar lá dizia assim: _“O terno de côro desse home aí parece uma rôpa!” Um terno de madêra, a coisa mais linda do mundo, bem vistido, muntado numa mula preta! (...) disse: _“Vaquêro do sertão aqui num dá não... num dá (pega) nada!”, a jurema, um fechado da peste! Entremo pro campo (...), tirei o boi preto e, fui marrar, sozinho! (...) Aí quando eu cheguei (junto aos outros vaqueiros) tá ôto boi brigano, inrabano neles, lá vai, eu cheguei falei com boi, o boi partiu enriba da mula, sentei a faca nele! (...) ele (o patrão) disse: _“Esse... e esse, esse cara, esse sertanejo é dóido!” O boi fastô pra lá, eu lacei, tirei a corda, eu era bom pra laçar mermo, (...) aí o patrão incostô aí disse: _“Mas rapaz! Quer dizer que você num viu a carrêra do boi?”, Eu digo: _“Não, vi não! Vocês corrêro com esse aí, 3 home... e eu corri com um só.”, (...) _“Tá amarrado?” _“Tá!” (...) Aí disse: “Moço esse sertanejo é brabo!” _ Aí ajuntei... eles fizero a base que 8 dia nós ajuntava os 40 boi, com 3 dia eu marrei os 40 boi! Aí no ôto dia eles me dero um cavalo bom! (...) aí meu patrão disse: _“Moço! Home vaquêro igual a esse aqui no mundo, só se nascê, porque esse minino é bom!” Eu nesse tempo eu tinha 18 ano, agora, eu pegava ligêro demais moço!363

Decorre-se algum dia de 1966, Luiz Vaqueiro, então com 18 anos de idade, tem suas

habilidades testadas em meio às caatingas piauienses durante uma pega de boi, terras

estrangeiras. Diante dele, seu “patrão” e outros vaqueiros. O desafiado, no entanto, não teme,

afinal seu pai era vaqueiro e desde os 7 anos de idade Luís já lidava com gado, aos 12 já

trabalhava para um fazendeiro local. Sua habilidade, por tanto tempo gestada e melhorada, era

362 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 363 Entrevista do senhor Luís Batista de Oliveira (Luís Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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agora posta em dúvida pela voz de alguém: “Vaquêro do sertão aqui num dá não... num dá

(pega) nada!”. A resposta veio rápida. O vaqueiro Luiz pegou o “boi preto” e ainda enfrentou

“na faca” o boi que “inrabava” (desafiava) os demais vaqueiros. O reconhecimento ao final

eliminou qualquer dúvida sobre sua prática: “aí meu patrão disse: “Moço! Home vaquêro

igual a esse aqui no mundo, só se nascê, porque esse minino é bom!”. Aos demais presentes

restava a certeza de que sua habilidade fazia jus ao seu “terno de madêra” e a sua “mula

preta”.

Entre tantas outras, essa lembrança é especial, entre várias o vaqueiro Luiz a escolheu

para nos contar, mas, não em qualquer momento, quis que soubéssemos dela logo no início da

entrevista. Por quê? Novas questões superam a aparente linearidade da narrativa: teriam os

demais vaqueiros assumido realmente a condição única de observadores oculares? Qual o

sentido da ênfase dada ao elogio do “patrão”? Teria sido esse o único elogio recebido? Qual a

importância de um ato eficaz de destreza nas terras alheias, diante de seus iguais?

Roxinho também tem estórias para contar. Se lembra ele que na década de 1960 foi

convocado, juntamente um dos seus colegas de campo, Verneul, para capturar uma vaca

“corrida” de um criador local e que nesse momento foram ambos desacreditados pelos demais

vaqueiros presentes:

Aí tinha um (vaqueiro) lá e disse: _“Ô! Qual Agnelo (o criador), esse aí não! Cavalo magro! O que cavalo gordo num pega ele vai pegar?!” [...] Aí nós... aí eu disse: “Ó a vaca!” E eu sentei o cavalo (botou o cavalo na perseguição) e lá vai, lá vai, aí soltei o cavalo e ele (Verneul) dizia: _“Mata a vaca Nêgo!” Nessa hora ele vinha pertinho: _“Mata a vaca Nêgo!” _ “Dexa (eu) achar uma brecha!” _ Aí como daqui... a base de quase 1 quilômeto, aí incontrei uma imburana e um angico bem assim ó (cruzado em forma de X), aí a vaca passô, fez “truco!” [...]. Eu digo: _ “É aqui agora!” Aí quando eu baxei, com a perna em cima da sela (o vaquêro deitado no pescoço do cavalo) o cavalo sentiu o peso baxô! Passei! Aí o ôto aí ficô, Verneul, disse: _“É! O Nêgo morreu!” Aí levô, levô, lá adiante achei uma brecha, o cavalo meteu os peito nela ela virô! Quando ela já ia mêa cansada aí eu tive ação, aí saltei em cima! Aí nisso Verneul chegô, nós cabemo de amarrar aí dexemo no curral. Mas foi uma festa!

Ao fim da jornada a habilidade de Roxinho também lhe rendeu elogios dos que tinham

lhe desacreditado: “Mas rapaz! O Nêgo pegô a vaca mesmo! Mas rapaz! O Nêgo pegô a

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vaca!”364. Analisemos a narrativa de forma mais detalhada. Quando da ocorrência do fato

narrado, o vaqueiro Roxinho tinha chegado ao município de São Gabriel a apenas 10 anos e

iniciava sua “profissão de gado”. O colega que o acompanhava era ninguém menos que

Verneul, o tio e iniciador de Juarez, vaqueiro experiente e de habilidades reconhecidas. Um

olhar atento para esse persongem nos demonstra a tensão e responsabilidade que recaíra sobre

os visitantes diante da ofensa dos demais vaqueiros. Verneul incentiva Roxinho à captura da

vaca como se o instigasse a um acerto de contas: “Mata a vaca Nêgo!”, diz ele. O termo

“mata” aqui não se refere a eliminar a vida do animal, para o seu emissor era importante

instigar Roxinho a um ato eficaz, ao nível da desfeita. Roxinho, em sua narrativa, tenta se

mostrar cauteloso, afirma ele ter tido o tempo pra pensar como se livraria das árvores caídas.

Ao testar a sorte, impressionou até ao velho vaqueiro Verneul que, metros a frente, já o

encontrara agarrado à vaca fujona. É novamente Juarez que nos narra outro exemplo.

[...] o boi entrô entre a casa e um tanque de cimento e eu fiquei com medo dele me jogar. O tanque de cimento num era cuberto por riba, era aberto! [...] Aí eu fiquei fastano e aí ele ( dono do boi) botô a cara assim lá na janela véa e disse: _“Ê Verneul! Você invés de trazer um vaquêro traz um ‘imbrulho de côro’! Tá com medo do boi!” Aí, o que ele falô assim eu bati a mão a faca e caminhei pra riba, quando o boi vêi eu bati a faca nele, a faca entrô, ele chega ele iscorô! [...], digo: _“Ó Seu Xxxx pode mandar buscar açoguêro no Gabriel (São Gabriel) se num querer perder o boi, q’ele daqui pra 2 hora da tarde ele morre!”365

A narrativa demonstra um vaqueiro que, embora com medo, não resistiu ao ter sua

habilidade questionada e reagiu imediatamente. Presente à cena estava ninguém menos do que

nosso conhecido amigo Verneul. Em uma clara referência de tutelamento, a ele foi dirigida a

acusação do dono do boi de que Juarez não era vaqueiro e sim, um “imbrulho de côro”. A

reclamação pôs em questão não só a habilidade do aprendiz, mas a capacidade do instrutor em

orientá-lo no mundo da vaquerama. A situação exigiu de Juarez uma medida enérgica que lhe

garantisse a segurança, o respeito para com Verneul, que comprovasse sua habilidade e

coragem e silenciasse as indagações do proprietário. Em um golpe o vaqueiro ceifou a vida do

animal.

As circunstâncias descritas estão envoltas em um contexto de desafio, adequado para

comprovação e exercício de valores como coragem, masculinidade e habilidade, e

compunham momentos especiais para a integração do cavaleiro ao grupo dos vaqueiros. A

364 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 365 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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presença de um público que compartilhava com Luiz, Roxinho e Juarez os saberes e

afinidades do trato com o gado, especialmente dos “patrões” e “instrutores”, impôs sobre estes

critérios rígidos de avaliação, obrigando-os a executar medidas eficazes rodeadas por um

certo nível de sorte.

A partir da narrativa encontramos a lembrança ancorada em um meio, localizada em

um contexto coletivo de códigos compartilhados que situam e comprovam os fatores em

disputa. É importante observarmos como os narradores quem ser vistos, querem ser

lembrados, como define os outros, que experiências querem levar a público, como se situam

no espaço e no tempo: Luiz se lembra que tinha só 18 anos, Roxinho deixa transparecer que

romper as árvores caídas foi uma medida calculada, Juarez, ao descrever o tanque, anuncia o

perigo pelo qual passou, sacralizando seu ato. Todos eles destacam o questionamento de suas

habilidades como fator impulsionador dos seus atos e a presença das hierarquias como

elemento comprovante do fato.

Os episódios são tratados em clima de horna e em júbilo a esta os vaqueiros recebem

os elogios finais. Não menos estridente que os elogios recebidos por Luiz e Roxinho, foi o

silêncio do dono do boi ao ver seu animal agonizando diante da ação de Juarez. As formas das

narrações apontam para o “saber” como o objeto de uma disputa pacífica entre homens, em

uma arena onde hierarquias se encontram presentes. Na voz dos entrevistados os papéis

sociais quase se invertem, o criador parabeniza e admira seu vaqueiro, quase querendo ser um

deles!

O destacar desses elementos ressalta o trabalho da consciência, a construção de um

processo de visão e a produção de uma forma verdadeira de narrar (que não se confunde com

uma verdade do fato). Estamos aqui diante do escorregadio e rico espaço das possibilidades

trazidas pelas narrativas orais de que nos fala Alessandro Portelli. Como destaca o autor é a

fala, a voz, a subjetividade que nos encaminha às possibilidades narradas, elas nos permitem

alcançar o “horizonte de expectativa social dos indivíduos”, não só o que aconteceu, mas o

que queriam que acontecesse, os desejos, a teia de poder em jogo no momento das

experiências, as possibilidades potenciais que se entrelaçavam, as que podiam ser alcançadas

e os reflexos dessas leituras sobre o presente366. A subjetividade individual nos permite aqui

pensar numa subjetividade coletiva. O que pensavam os demais vaqueiros ao verem um

366 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. In: Tempo. Rio de Janeiro. EDUFF, vol. 1, nº 2, 1996, p. 59-72.

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“estrangeiro” exibir suas habilidades e conquistar o respeito? O que pensou Verneul ao ver

Juarez e Roxinho responderem as afrontas à altura? Sigamos...

Viana Vaqueiro teve uma de suas capturas versada em cordel. Esta foi realizada em

1970 e ganhou o seguinte enredo:

[...] No passar de um apertado O “cara preta” virou Viana tirou o cavalo O touro se acampou Esperava os companheiros Mais ninguém lhe acompanhou O vaqueiro aboiava Mas o touro acampava O novio dava cada turro E depois se amoderava Porém ninguém chegava Nos versos do aboiador Ele aboiando dizia: “Na estrada em que eu viajo Também viaja Maria Deus menino e São José Santo Antônio é o meu guia” Entonce ficou pensando Tá na hora de matar Mas eu me acho sozinho Não convém me arriscar Deixo para outra vez Quando agente te encontrar Viana afastou o cavalo E ficou pensando ali: Eu não sei quem é que teve Com Osvaldo e Valmir367 Se não fosse uma atrapalha Estava comigo aqui Assim tirou o cavalo A procura de um carreiro Quando caminhou um pouco Entrou com os vaqueiros Que disseram: atrapalhamos Por que perdemos o aceiro368 [...]

367 Provavelmente Almir, o mesmo “Almir Vaqueiro” que por nós foi entrevistado. 368 SILVA, Luis Alves da. (Romance) Cara Preta Alvaçam e o Novilho da Serra. (Cordel) 30 de agosto de 1970, 23 págs. (digitado).

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Tendo saído com mais 7 “companheiros” em busca do “cara preta”, boi cuja valentia

já era conhecida dos vaqueiros, Viana deparou-se sozinho com o animal em plena caatinga. A

presença da reza é simbólica para pensarmos o momento de tensão em que o vaqueiro se vê

em desvantagem. Explica o velho vaqueiro:

a hora que eu dexei ele (o boi) brigano, qu’eu tomei medo de lutar que os homi num apariceu, o sol já tava pra se pô, de (desde) manhãzinha e num apariceu ninguém! Gritei dimais e esse tôro brigô o dia todo cumigo e num apariceu um vaquêro! Caia daqui pra’í, isbagaçaro, num sei o que foi que ficaro surdo e eu gritei que tava rôco!369

Sendo vaqueiros experientes, Viana não compreendeu por que teriam seus

“companheiros” se perdido no meio da caatinga. A narrativa expõe o jogo no qual se inserem

seus personagens e requer análise. O narrador apresenta uma série de argumentos que

estruturam um ambiente justificador para o fracasso ou desistência da empreitada: o sol estava

para se pôr, Viana lutara com o boi desde a manhã, estava cansado de gritar e estava só.

Contudo, para o narrador, o fator principal que justifica a fuga do animal foi a ação de uma

força superior que “atrapalhou” os vaqueiros desnorteando-os. Segundo o entrevistado “esse

povo mais véi fazia ‘mendraca’ pro cara num (pegar)... cair, levar ramada”. “Mendraca” é,

segundo o relato, uma espécie de feitiço que tinha por objetivo impedir a captura do boi.

Quanto à autoria do suposto feitiço afirma:

Daqui não, os daqui, os nosso daqui num fazia esse tipo de coisa não, que num sabe! Os home aqui trabaiava na corage que Deus deu! [...] trabaiava porque tinha vontade de trabaiar com o bicho né. Nasceu pra’quilo! Porquêra não, porquêra não370.

As justificativas do narrador protegem não somente a sua imagem dos

questionamentos, mas, também, a imagem e a integridade de seus “companheiros”. Afirmar a

existência de uma “mendraca” e condições improváveis de continuação da disputa, serviu

como estratégia para encobrir o infortúnio da busca e desigualdade numerica (8 x 1) que

compunha o momento, evitando assim as dúvidas em relação as habilidades e reconhecimento

social dos participantes. É importante notarmos que Viana Vaqueiro atrelou diretamente a

ausência dos seus companheiros à impossibilidade de capturar o boi. Vemos aqui que a

ausência do público permitiu ao vaqueiro uma maior cautela. Não foi ele obrigado, como

Roxinho, a fazer uso da sorte. Não precisou ele ariscar suas habilidades, optando assim por

encerrar a disputa da forma mais segura possível. 369 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 370 Idem, Ibidem, loc. cit.

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141

O uso do discurso mágico entre os vaqueiros também foi identificado e estudado por

Joana Medrado Nascimento a partir dos cordéis, entrevistas e folcloristas que registravam

histórias de “bois misteriosos”. Afirma a autora que, atribuir um poder mágico aos animais foi

recurso usado pelos vaqueiros para não exporem socialmente situações que pusessem sua

capacidade profissional em questão.371 Pelos exemplos acima, constatamos que a exposição

pública das habilidades tinha a função de referendar ou deslegitimar a prática do vaqueiro

diante do grupo. Nesse sentido remontamos aqui ao vaqueiro como um “título honorífico” de

que nos fala Capistrano de Abreu ao lembrar do Roteiro do Maranhão a Goiás372.

No tocante ao uso de referências mágicas no trato com o gado, Washington Queiroz

coletou diversas narrativas de bois misteriosos e formas de “ideamento” entre os vaqueiros da

Bahia. “Idear” é um termo usado pelos trabalhadores para definir animais portadores de

habilidades sobrenaturais, que escapam aos seus caçadores de forma súbita. O “ideamento” é

um produto de uma ação humana sobre os animais e teria a função de dificultar ou até

questionar as habilidades dos vaqueiros, uma vez que estes teriam suas investidas frustradas.

No mesmo estudo, Queiroz registrou relatos sobre o uso de elementos materiais também

considerados mágicos entre os vaqueiros como “maçãs” e “costelinhas”. Os vaqueiros

denominam “maçãs”, um certo nódulo encontrado no organismo dos animais. As

“costelinhas” seriam pequenos pedaços de ossos em forma de costela, encontradas entre a

carne. Esses instrumentos garantiriam, segundo os vaqueiros entrevistados pelo autor, a

incorporação de novas habilidades aos seus portadores, contudo, acrescentam os

entrevistados, raros são os animais que as possuem373.

Alguns desses elementos foram identificados entre as narrativas por nós produzidas.

Guilhermino afirma que em todas as espécies de animais existem certos indivíduos que

portam em seu organismo esses nódulos. Esse entrevistado as denomina de “pedra” e ‘massa’

e afirma que a pessoa que conseguir ganha domínio sobre aquela espécie. Para Guilhermino,

“tem uma época de você possuir aquela pedra, diz o povo que só é até os 7 ano, passô de 7

ano aquela pedra num serve mais pra nada! [...] você tem que jogar pro bicho panhar de novo,

qualquer bicho do mato, quando ele panhá de novo, você tornava a matar e ia... panhar ali a

371 NASCIMENTO, J. M. “Terra, laço e moirão”: relações de trabalho..., p. 139-153. 372 ABREU, C. de. Capítulos de História Colonial..., p. 73. 373 BAHIA. I. do P. A. e C. Histórias de vaqueiros..., vol. 1, p. 147 – 150, passim; vol. 2, p. 101-123.

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mesma pedra! [...] porque tinha a ‘pedra’ e tinha a ‘massa’.[...] A massa é cabiluda e a pedra é

lisa”374.

Quanto às “costelinhas”, Samuel relata que ouviu de um vaqueiro a seguinte história: _“Uma custela (costela)! Eu tratano de um boi, achei uma custela numa manta trazêra e tirei!”. E pegô e colocô no chapéu, aí foi trabaiar campo. Disse que uma ‘custelinha’ na manta de carne! Foi trabaiar campo, diz ele que num perdia campo, [...] o trem que ele ia atrás achava na hora! Muitas vez diz que tinha vaquêro brigano com boi aí, boi valente que só o cão, ele chegava entrava no mêi, batia o chapéu inriba, boi saltava fora e aí viajava e ia imbora, mas o povo disconfiaro. Ele disse que num sabe como foi, qu’ele discuidô e um cara achô, e disse: _“Desse dia pra cá num valeu mais nada!”375

Observamos no trecho acima a relação direta entre o instrumento mágico e o sigilo,

característica essa também relatada pelos vaqueiros entrevistados por Queiroz. Zé dos

Morrinhos nos narra um caso significativo para compreensão do modo como os dizeres sobre

os poderes sobrenaturais possibilitavam ao vaqueiro ser visto com destaque pelos colegas.

Estando ele montado em um jegue certo dia e tendo encontrado o “famoso” boi Amarelo, o

qual já teria escapado de várias investidas dos vaqueiros, Zé dos Morrinhos preparou uma

armadilha com o laço e o prendeu sem necessidade de enfrentá-lo. No momento em que fora

informar ao dono do animal sobre a sua captura, deu-se o seguinte diálogo:

_“Peguei muntado no jegue!”. Ele (o dono do boi) disse: _“Não!” Eu digo: _“Foi! O boi num corre não, o boi deu pra brigar eu botei a corda na cabeça!” Eles (os vaqueiros presentes e o dono do boi) ficaro acreditano! Mas eles ficaro acreditano dizeno que era reza qu’eu fiz. Eu num contei que tinha armado o laço, eu digo: _“Ele... eu falei com ele, ele virô e eu tirei a corda, lacei, marrei no pau.” E até hoje eles acredita que foi isso mermo, mas num foi não, ele (o boi) caiu no laço! [...] Aí eles diz: _“Não, foi reza que o veão fez, o veão né gente não!”376

O entrevistado se diverte ao afirmar que seus amigos, até hoje, ainda o consideram um

conhecedor de rezas. O importante é refletirmos aqui por que o narrador optou por não

esclarecer para o público o real fato, ou seja, a construção da armadilha. Sem dúvida, o

atributo de “rezador” o referendava como grande conhecedor do campo e do gado. Zé dos

Morrinhos usou a interpretação do público sobre o fato para ganhar destaque dentro do grupo

374 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 375 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel)..., momento único, 20 de outubrode 2010. 376 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012.

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e essa estratégia, ainda hoje, divide opiniões e gera boas gargalhadas. Não podemos, todavia,

imaginar o uso do “mágico” apenas como estratégia de não exposição dos infortúnios dos

vaqueiros, uma vez que era uma dimensão realmente vivida e considerada cotidianamente,

determinadora de comportamentos e perspectivas. O caso narrado por Viana é um exemplo

disso, afirma o mesmo que só retornou ao campo para buscar o “cara preta”, após ter sido

benzido, junto com seu cavalo e os arreios, por um conhecido seu que lhe confirmou a

existência da “mendraca”.

Momentos como os exemplificados acima eram rotineiros na vida dos vaqueiros do

Sertão de Irecê. Em todos os casos o público, ou melhor a vaquerama, era sempre o alvo e o

elemento de referência para práticas e discursos. A realização de momentos coletivos ou,

como no caso de Zé dos Morrinhos, momentos coletivizados, permitia o referendamento das

ações e definia a posição do indivíduo no grupo. Não podemos confundir aqui a exposição

pública da habilidade com a competição nos termos capitalistas. Para os vaqueiros, a

exposição pública das destrezas era um fator de união que produzia destaques individuais

dentro do grupo, ao mesmo tempo em que ajudava a delimitar o grupo social em relação a

outras funções laborais do Sertão de Irecê. As descrenças das quais foram alvo Roxinho e

Verneul, terminaram com elogios e, assume o narrador, ao fim da captura “foi uma festa”.

A exposição pública não produzia vencedores e sim, “afamados”. Relata Guilhermino: cada um quer fazer milhor do que os ôto, quer disafiar o ôto, né (risos) e por aí num isquece, né. Uma hora um faz bunito, ôta hora o ôto passa por ruim ou por fraqueza daquilo que num acunteceu, os ôto tá ali fazeno farra e surrino, arriliano daquela pessoa e tudo mais [...]. Então, o cara num quiria ser mole, quiria ser bom pra puder (risos) ter fama, né.377

O título de vaqueiro “afamado” era cativado nos círculos internos dos grupos que

compartilhavam afinidades em torno da pecuária e direcionado a indivíduos considerados

como corajosos, possuidores das técnicas de trabalho com o gado e com o campo. Zé dos

Morrinhos afirma que hoje, devido a sua idade e os acidentes que já sofreu, “num é mais

vaquêro afamado cuma era”378, ainda ele destaca: a pessoa, é famoso pelo trabaio que você trabaia e o saber. [...], aí corre a nutíça!: _ “Fulano é bom vaquêro! Fulano trabaia bem!” [...], até hoje, pra laçar, moço, num tem esse home que laça do jeito d’eu! Dos que tem aí ainda”379.

377 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 378 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 1º momento, 03 de nov/2010. 379 Idem. 2º momento, 24 de jan/2012.

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A produção da “nutíça” de que alguém é um “bom vaqueiro” era o primeiro passo pra

construção da “fama”. O discurso de Zé dos Morrinhos, transita, mesmo que

imaginariamente, por um desafio em torno do uso do laço (saber e trabalho), no qual afirma

ser o melhor. O reconhecimento social e a “fama” necessitavam, contudo, serem mantidos e

estavam diretamente ligados à honra do seu portador. Jairo nos esclarece que:

se um cabra chegar aqui e mandar você ir pegar um boi brabo, você tem que ir e trazer [...]. Porque, pra você ir hoje, corre com o boi, num pega, você vai amanhã num pega. Ai vai indo, o companhêro vai e perde a fé sua, diz: _“Não! Vou botar um aqui, fulano num trabaia! Quer trabaiar, mas ele num pega o trem pra ganhar o dinhêro!” E a luta sempre é assim.380

A não execução dos serviços solicitados punha em cheque a “fama” e a honra do

vaqueiro ou impossibilitava a sua construção. “Perder a fé” é sinônimo de que “fulano” não

sabe trabalhar campo, não tem a experiência e destreza suficiente. É nesse sentido que o

vaqueiro Luiz destaca: Vaquêro é aquele que diz assim: _“Eu faço e faço mermo! Vô buscá? Vô!”, _“Rapaz, num vêi não!”, _“Por quê?”, _“Morreu!” ou “Matei!” Era assim!381

As práticas coletivas e as exposições públicas de habilidade eram assim o suporte de

manutenção das imagens sociais dos sujeitos vaqueiros. Essa aparente disputa não impedia,

porém, que momentos coletivos de trabalho se constituíssem também em momentos de lazer.

Felizes com a captura de dois bois, sendo um deles o “cara-preta” envolvido no epísódio da

“mendraca”, Viana afirma aos seus colegas: “É de nós 4 o tôro! E o ôto aí nós vamo cumê de

água (beber) aí, São Gonçalo e dançar a noite todinha, virar corcodilo (crocodilo) aí!”382.

Retomemos aqui uma das narrativas de Luiz Vaqueiro que bem ilustra a associação entre

trabalho coletivo e lazer:

você tinha 10, 12, 15 boi pra pegar, aí reunia a vaquerama pra pegar [...] E aí a festa ia cumeçano, e a aligria [...], quando pensava que não chegava uma bibidinha por o mei, (risos) um lito de cachaça, e lá vai, nêgo tomava uma dose ali já ficava mais alegre... [...] Aí, quando era de noite, tomava o pé de um bar daquele e a farra cumia! [...] Aí, no fim da semana eu ia tirar um gado, ajuntar os ôtos mermo vaquêro e ia

380 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 381 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 382 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011.

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tudo prun’tá eu! Aí, quando era ôto, nós ajuntava e ia... o ôto quiria pegar um gado, nós ia lá ajudava ele tamém! Num tinha negóço de, de pagar ninguém não, era um ajudano o ôto! A vaquerada unida né, era bom moço!383

A beira das aguadas eram espaços especiais para reunião dos vaqueiros e a ocorrência

de brincadeiras e “arrilias”. Relata Guilhermino que nas margens da Vereda de América

Dourada,

quando tava o bataião junto, tava aquela festa, né, zuadano e tudo mais, fazeno festa uns aos ôto, contano história! (risos) [...] tinha muito era gracista, contadô de mintira, contadô de lorota, os ôto iscutava, né (risos)... [...] uns arrilia uns aos ôto... [...] Tinha cabra bom que curria com a rês e pegava daqui pra aí e ôtos dexava ir embora, né, quando dexava ir imbora pegava metia a farra em cima.384

Muitas outras aguadas eram também palco de demonstrações das habilidades de

captura dos animais. As “zuadas” e “arrilias” eram os sinais da existência de “apresentações

públicas” entre os vaqueiros. Guilhermino afirma ainda que o momento da “ferra” poderia se

transformar em uma “farra”: “É, ‘a ferra e a farra’!(risos) Muitas hora tinha a bizerrada braba

e tudo mais, nêgo pegava de mão, pegar de todo o jeito! Ôtos, pegava e num guentava, caía,

bizêrro arrastava, relava tudo, mas todo mundo tomano cachaça, fazia isso tudo! Sem sentir

nada!”385. A realização os momentos de doma dos animais impressionou José Norberto de

Macêdo quando da sua visita às fazendas de gado do Vale do São Francisco, deixando

transparecer seu espanto e sua visão urbanocêntrica. Afirma o observador: “Tais foram seus

atos de audácia que mereceu daqueles homens (que assistiam), um a um, caloroso apêrto de

mãos. Até então, nunca tínhamos visto este gesto tão citadino ser praticado por vaqueiros”386.

As práticas de coletividade e demonstração das destrezas não se restringiam, porém,

aos espaços de trabalho. A feira era sempre um momento especial para encontrar os amigos e

se demonstrar publicamente. Chico França lembra que “na fêra, na hora que incontrava... é

difícil um vaquêro incontrar ôto moço pra num beber umas duas! (cachaça)”387. Luiz

Vaqueiro nos dá uma clara descrição do uso social desse espaço.

se incontrava um dia de fêra, era aquela reunião, [...], cada qual queria tá bem mais vistido, né, bem incorado, seu cavalo bem arriado, e XX você chegava, oiava pr’um cavalo... sua careta tá de um lado, a corda tá do ôto, a polaquinha marrada na capa

383 Entrevista Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 384 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 385 Idem, Ibidem, loc. cit. 386 MACEDO, J. N. de. Fazendas de Gado no Vale do São Francisco..., p. 38. 387 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010.

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012.

da sela... e, a vida do vaquêro é essa, quando se incontrava era aquela aligria, é como o, a merma coisa do cara hoje diz: _“Ah! Vai ter um famoso cantô, que vem pra’qui oi!” A merma coisa do vaquêro, quando dizia: _“Vaquêro fulano vai pegar o boi de fulano!” Você via a vaquerada dizer: _“Eu vô oiá!” O ôto dizia: _“Eu vô vê a carrêra!” O ôto dizia: _“Eu vô vê home pegá!” E era naquele, dento da catinga aí, pau quebrano aí, cachorro ganino, inté nego sentava em cima naquela aligria.388

A narrativa desenha: havia uma reunião de homens “bem incorado[s]” e de cavalos

“bem arriado[s]”, vestidos em peças de couro necessárias ao trabalho no campo, porém, não

estavam no campo e sim, na feira. O entrevistado Luiz associa a imagem do vaqueiro à de um

“cantor famoso” anunciando (ou reivindicando!) a sua popularidade e distinção. Nas

indumentárias, segundo ele, estava o “quilate do vaqueiro” e a reunião com os colegas trazia

notícias dos desafios que eferveciam o grupo. Não era incomum a um vaqueiro sair do seu

trabalho diretamente para os espaços públicos, ora pra convidar alguns amigos, ora pra contar

as proezas do dia. As marcas da luta nas peças de couro, o pó da terra, o suor do cavalo, eram

provas da prática no campo e instrumentos de definição do sujeito. Em meio à feira, os

vaqueiros buscavam construir seus territórios, demarcar certos espaços como próprios do

grupo. Os bares eram locais especiais, mas, uma simples árvore já servia como mecanismo

anunciador das suas presenças.

Foto 1: Amendoeiras localizadas no centro da cidade de Jussara, usadas pelos vaqueiros para amarrarem seus cavalos

388 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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As amendoeiras representadas na foto acima, localizadas no centro da cidade de

Jussara, eram, até início dos anos 1990, ponto de encontro de cavaleiros nos dias de feira

livre, entre eles, vaqueiros. Aí ficavam os cavalos amarrados exibindo peças de couro ornadas

como a anunciar seus próprios donos. Dos bares emergiam sons de vaquejadas que

possibilitavam um ambiente propício para realização de aboios e toadas por parte de algum

indivíduo mais exaltado. Entre as doses de cachaça, a música, as conversas, algum “rôlo”

(troca de produtos), piadas e os constantes ir e vir de cavalos, produziam os sujeitos seus

próprios momentos de lazer, ressaltando suas presenças, instituindo e exibindo símbolos e

definindo suas identidades. Quanto ao uso do jaleco relata Guilhermino: “Usei muito! (pausa)

Aquilo eu climatei (se acostumou) o jaleco de côro no corpo e até a roupa se vestia pra cidade,

quanto mais... era com aquilo nas costa, acostumô, né (Risos, risos)”389. Samuel relembra:

“eu num dava... como diz a história, a pessoa me chamava pra ir aculá de carro: _“Vô nada, se

quiser vô a cavalo!”390. Luiz afirma que é possível conhecermos um vaqueiro até pela forma

como monta o cavalo. Tem vaquêro que sabe muntar, sabe se arrumar, sabe sair, vê o cara muntar e você inté sente pelo corpo do cara que o cara é firme inriba do animal... o vaquêro tem, ele tem que tê, sê domesticado, igualmente se domestica o bicho!391 [...] Eu mermo fui um cara que, [...] só gostava de coisa boa, minhas coisa era... onde, onde eu chegava todo mundo parava pra oiar, porque eu só andava arrumado! Terno de côro arrumado, bem muntado, bem arrumado mermo!392

Para Zé dos Morrinhos “o vaquêro que num tiver prazer numa sela nova, num cavalo

zelado! Ele num é vaquêro! É um morto! O cavalo tem que ser zelado! Banhar e ficar lumiano

pro sol!393. Quando questionado sobre as indumentárias necessárias a um vaqueiro, responde

Roxinho: “ter um cavalo bom, ter os côro, uma sela boa, ter a careta, o chucalho, um laço

bom, um facão, pra ele cortar rama se inganchar uma hora né”. A todos esses instrumentos o

entrevistado ainda acrescenta “um cachorro bom”394. Os entrevistados reivindicam como fator

definidor do “ser vaqueiro” uma dimensão estética que funciona como medidor da sua

proximidade com o gado e com os saberes do trabalho no campo. Estamos aqui diante da

instituição de um poder simbólico, nos termos propostos por Pierre Bourbieu.

389 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 390 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Samuel)..., momento único, 20 de out/2010. 391 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 392 Idem. 2º momento, 14 de nov/2010. 393 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012. 394 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011.

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Segundo Bourdieu o poder simbólico é um poder que emerge da manipulação

intencional e compartilhada de símbolos com o intuito de produzir formas de fazer ver e fazer

crer. O poder simbólico possibilita a aquisição de um poder equivalente àquele que se

consegue por meio do exercício da força ou do fator econômico395. No caso dos vaqueiros, o

uso público dos espaços, especialmente da feira, a exibição de belos cavalos, de jalecos,

chapéus ou arreios novos, a demarcação de locais de encontro, a música da vaquejada, a

cachaça, as demonstrações de destreza em momentos coletivos e as farras, produziam formas

de ver e de crer nas habilidades dos sujeitos para com a “profissão de gado”. A maior ou

menor proximidade do grupo indicava a afinidade do indivíduo com as práticas e os símbolos

defendidos pelo grupo e terminava por identificá-lo com certas práticas, hábitos, lugares.

Associados à possibilidade de formação de pequenos rebanhos e outros patrimônios e

ao exercício flexivo de suas atividades laborais em meio ao campo, das quais não se excluiam

momentos de diversão ou mesmo de um sono sob as árvores, o poder simbólico que

estruturavam os vaqueiros do Sertão de Irecê lhes garantia grande prestígio social. Almir

Vaqueiro relata que:

na região aqui, onde a gente botar os pés no chão, todo mundo cunhece a gente. Por que? Por causa do home-vaquêro! Você sabe, quando o home ganha o nome de vaquêro [...] todo mundo cunhece aquele home! É que nem eu, ganhei aquele nome de ‘vaquêro’, então todo mundo me cunhece por ‘Almir Vaquêro’, até as criança.396

O narrador busca demonstrar sua popularidade recorrendo à imagem das crianças,

afirmando que até elas os conhecem como “Almir Vaqueiro”. O termo “home-vaqueiro” pode

aqui ser problematizado. Novamente o “ser vaqueiro” extrapola a relação de trabalho e se

torna a identificação do “homem”. Além de Almir, 4 outros entrevistados carregam seus

nomes sociais o termo “vaqueiro”, o que é relevante para entendermos como o mundo da

pecuária fundamentava mais que relações de trabalho, fundamentando formas de

autodefinição dos sujeitos. O caso do entrevistado Almir, é significativo nesse sentido, uma

vez que ele nunca trabalhou de forma estável para um fazendeiro ou patrão, seu “título”

provém dos conhecimentos que adquiriu no cuidado com o rebanho da família e da realização

e serviços rápidos para os criadores locais.

Retornando ao prestígio social, Zizinho narra uma situação tensa, envolvendo

vaqueiros e policiais em torno do uso da faca que muito nos esclarece:

395 BOURDIEU, P. O poder simbólico..., p. 14-15. 396 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1° momento, 11 de nov/2010.

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Vaquêro xxxx era rêspeitado! [...], porque todo vaquêro daquela região usava [Jussara] sua faquinha assim na pernêra! Teve uma vez lá que, um pulicial chegô e barrô eu mais Almir: _“Não amigo...!” Mas, eles fôro reclamado na hora: _ “Êpa meu chefe! Aqui vaquêro tem direito!” Porque todo mundo tinha que usar sua faquinha na pernêra! Ali é a precisão de maior a gente tinha, aquela faquinha.397

Como se não bastasse as divergências quanto à utilidade do instrumento, a situação

ainda se torna mais agitada pela diferença numérica dos grupos envolvidos, pelo espaço e

pelas relações de poder em pauta. O espaço onde ocorre o fato descrito por Zizinho é a

sombra do “pé de amêndoa” às margens do Tanque Velho, um reservatório natural localizado

no centro da cidade de Jussara, antigo local de reunião dos vaqueiros que esperavam o gado

“descer pra bibida”. Do outro lado, a autoridade policial respaldada pelo manto ditatorial da

década de 1970, que, mesmo nas cidades pequenas do interior baiano, fazia suas vítimas e

impunha suas disciplinas.

Zizinho nos diz que “um pulicial chegô e barrô”, a confusão, no entanto, foi

imediatamente resolvida, bastando para tal que o policial fosse “lembrado” pelos demais

presentes sobre o tipo de indivíduo com o qual estava lidando: “Êpa meu chefe! Aqui vaquêro

tem direito!”. A autoridade militar sofreu, segundo o narrador, uma “reclamação” da

autoridade popular. O reconhecimento social do vaqueiro, que lhe garantia o uso da faca fora,

pelo menos por um momento, foi superior a autoridade do Estado.

***

O vaqueiro era apenas uma das categorias de trabalho e identidade do Sertão de Irecê.

Era também por meio do costume que eles instituíam suas relações de trabalho e formas de

percepção do mundo. O sistema de sorte nunca passou de um acordo verbal formalizado pelo

comprometimento de ambas as partes para com a tarefa a ser executada. Suas práticas nunca

estiveram dissociadas das demais formas coletivas. No campo ou roça viviam as relações

comunitárias às quais nos referimos no capítulo anterior, que amenizavam as condições de

sobrevivência em um contexto marcado pela apropriação direta da natureza. A terra, as

397 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011.

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pequenas economias domésticas e a mão de obra familiar compuseram também para os

vaqueiros a base de sua sustentação.

O tipo de relação de trabalho que estabeleciam, a partir do sistema costumeiro de

sorte, permitia aos vaqueiros formarem pequenos rebanhos próprios e gozar de autonomia

sobre os rebanhos de terceiros, cuidando dos mesmos conjuntamente. Ao cuidarem de

rebanhos de mais de um criador e ainda sim atender solicitações de terceiros para captura de

animais, aumentavam suas chances de permanência na função e suas rendas. Por outro lado, o

controle do saber sobre o campo e sobre a lida com os animais, o tornava um trabalhador

especializado e diferenciava-o dos que apenas campeavam.

Trabalhando em meio ao campo o domínio sobre o seu tempo e trabalho era quase

absoluto, o que lhes garantia o acesso ao lazer, a prática coletiva, a construção da fama, a

presença nos espaços públicos e a ostentação de um poder simbólico que produzia formas de

se “fazer ver e fazer crer” no meio comunitário e tornavam a função almejada e respeitada por

muitos. O prestígio social do qual desfrutavam os vaqueiros no Sertão de Irecê emergia da

dinâmica das suas relações de trabalho e das formas como eles representavam essas relações e

si representavam. O conjunto desses fatores fundamentava suas representações socias. Como

no afirma Roger Chartier, as representações sociais são classificações e categorias de

percepção do real, formas de pensar, ver e ler a realidade, instituídas pelos grupos sociais. As

representações sociais, afirma ainda Chartier, não são neutras, elas estão em restrita

interrelação com as práticas, denunciam interesses, exigem comportamentos e confrontam

outras representações advindas de outros grupos sociais398.

Os vaqueiros no Sertão de Irecê possuíam uma representação social diretamente

relacionada ao domínio dos saberes do campo, a afirmação de uma especificidade laboral, a

um distanciamento das atividades agrícolas, e a valores como coragem, autonomia, lazer,

união, proteção divina, popularidade, liberdade, honra, masculinidade e disposição para o

trabalho. Esses fatores instituíam as formas com que eram vistos e delineavam suas próprias

identidades individuais e coletivas.

Articulando de diversas formas esses elementos os vaqueiros não se consideravam

meros empregados, mas “sócios” do criador, na medida em que tornavam-se donos de uma

parte da produção e do rebanho do qual cuidavam. Pelo menos para o contexto do Sertão de

Irecê, marcado pela predominância de pequenos criadores e do uso comum do campo,

398 CHARTIER, R. A História Cultural..., p. 17-28.

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buscamos relativizar categorias como patrão e fazenda, sem, no entanto, deixarmos de criticar

a forma esteriotipada que circunda essas categorias no meio historiográfico. Como vimos,

mesmo o contratante de um serviço rápido como a captura de um animal poderia ser

denominado como um patrão, por outro lado, o termo fazenda assume um caráter genérico e

pode ser definido como um lugar onde há presença de gado, independente da sua dimensão.

Para os entrevistados esse termo tem um sentido maior para a compreensão do contexto atual,

marcado pela chegada de grandes propriedades cercadas, onde predomina as relações

assalariadas e a criação intensiva dos animais. O lugar do vaqueiro, segundo nossos relatantes,

é o campo.

Eram os vaqueiros que mais intensamente viviam as formas comuns de uso do campo.

Ele era seu espaço de trabalho e nele estavam constantemente, experimentavam por isso, com

maior freqüência os riscos, os prazeres, as relações fronteiças, o sentimento de pertencimento

e o estranhamento trazido pelo “campo forasteiro”. Era ele o fator central que lhe permitia

destaque social e condições laborais específicas. A extensão do campo e a concepção de

propriedade na qual se firmava (terra de uso comum e terras comunitariamente usadas)

disponibilizava ao vaqueiro um exercício livre do seu trabalho e dos seus saberes, distante dos

olhares dos criadores ao mesmo tempo em que cuidavam dos seus próprios rebanhos,

organizavam seus horários e formas de trabalho, desfrutavam de momentos coletivos de lazer

e descanso. O campo era a liberdade do vaqueiro sobre si mesmo. Bem nos fala Hermes:

Eu queria o campo! O campo é como eu tô dizendo, rende mais pro vaquêro e ele sempre num é muito mandado de patrão! Que ele lá (no campo onde o gado pasta) é como um gerente né, ele é quem é dono do trabalho. Se ele toma conta do gado no campo ele quem é dono de todo trabalho, o patrão num indica ele em nada, num insina como é qu’ele fazer, nada! Ele é quem resolve tudo, o vaquêro. Num é mandado por patrão não399.

Não por acaso, foram os vaqueiros os sujeitos mais atingidos quando da extinção das

terras de campo no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas em meados do século XX. A

partir da década de 1940 o Sertão de Irecê passou por transformações em suas bases

produtivas, relações de produção, em sua estrutura agrária e organização espacial que se

chocaram com o modo costumeiro de vida, especialmente com prática da pecuária à solta, as

formas de trabalho e as sociabilidades que a circundavam. Tais mudanças foram resultado da

sedimentação das demandas de industrialização e expansão mundial das relações capitalistas

que marcaram o pós-guerra sobre o solo brasileiro. Busquemos, pois, entender essa dinâmica 399 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010.

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caitalista em suas diversas instâncias (regional e nacional) para então compreendermos seus

reflexos sobre o Sertão de Irecê e os vaqueiros.

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CAPÍTULO III

Região, nação, sertão: rastros da modernização agrária capitalista no caminho da “grande empresa nacional”

Consolidando-se o projeto econômico, definiu-se, mais nitidamente, o môdelo social. (...) O retardamento da Agricultura e da infra-estrutura é assim evitado, para resguardo do crescimento industrial e a expansão do Produto Interno Bruto. Impactos deliberados se devem produzir, ora na Indústria ora na Agricultura, para que estes setores liderem o processo e levem o sistema a garantir infra-estrutura conveniente. O planejamento é o instrumento que permite evitar capacidade ociosa nos setores de infra-estrutura e redução da eficiência e rentabilidade nos setores diretamente produtivos. (...) 5) Desenvolvimento da emprêsa agrícola, para criar agricultura organizada à base de métodos modernos de produção e comercialização.

(I Plano Nacional de Desenvolvimento 1972/1974)

Debates sobre o agrário brasileiro e a reversão do Nordeste rural como modelo para o planejamento nacional

A compreensão das alterações ocorridas no modo de vida dos vaqueiros do Sertão de

Irecê e do processo que ocasionou a extinção das áreas de campo, a partir de meados do

século XX, requer o entendimento das relações de poder e das mudanças agrárias que se

desenvolviam em nível nacional e regional nesse período. Na interface dessas instâncias, as

relações agrárias brasileiras foram abordadas por intelectuais, movimentos populares e

instituições ora como um problema a ser resolvido, ora como um arranjo próprio e funcional

do capitalismo. O estudo desses conflitos revela não só a existência de diferentes projetos para

o meio rural e a nação brasileira, como também deixa transparecer as estratégias de

sufocamento desses debates como forma de construção de um modelo político-econômico

capitalista hegemônico que afirmava a necessidade de transformar o Brasil em uma moderna

“empresa nacional” capitalista.

Embora já fosse alvo de intensas críticas, a tese que afirmava a existência de um

“feudalismo” ou “traços feudais” na economia agrária nacional, mantida pelo Partido

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Comunista do Brasil (PCB) e seus intelectuais, ainda encontrava defensores em meados do

século XX, a exemplo de Alberto Passos Guimarães (Quatro Séculos de Latifúndio- 1963) e

Nelson Wernek Sodré (Formação Histórica do Brasil - 1962). Nesse mesmo período, seu

principal opositor, Caio Prado Júnior, sistematizou suas ideias e críticas à tese pecebista,

esboçadas inicialmente no início da década de 1940, reforçando a afirmação sobre a

existência de uma gênese capitalista da formação social e econômica brasileira que se

explicaria pelo sentido mercantil original que moveu a empresa colonial400.

A partir de textos como Contribuição para Análise da Questão Agrária no Brasil

(1960), Nova Contribuição à Questão Agrária no Brasil (1962) e A Revolução Brasileira

(1966), Caio Prado uniu a defesa da gênese capitalista a debates estritamente sócio-políticos.

Nesse caminho, o autor analisou a manutenção histórica da grande exploração rural,

afirmando que a sua permanência como produtora de gêneros para o mercado externo,

condicionava o acesso dos trabalhadores à terra e explicava as formas precárias de

sobrevivência das massas rurais. Esse autor ainda acentuou a necessidade primária do

rompimento com o monopólio fundiário a partir da sua fragmentação física e as diferenças

entre a elevação do nível tecnológico do setor rural e a melhoria das condições de vida dos

trabalhadores. As proposições pradianas tornaram-se hegemônicas entre os intelectuais do

período e marcaram o declínio definitivo das ideias pecebistas no pensamento social

brasileiro.

Ainda sob uma perspectiva marxista, e também se apropriando da leitura sócio-política

sobre o agrário brasileiro, Inácio Rangel enfocou em Questão Agrária Brasileira (1961) a

importância da expansão das atividades secundárias e terciárias do setor rural e afirmou a

necessidade de reorganização da estrutura fundiária, de forma que permitisse o aumento do

número de famílias nos espaços agrários, o equilíbrio da oferta de alimentos e elevasse o nível

de vida dos trabalhadores. Esse mesmo autor ainda destacou em seu estudo a importância do

mercado externo e da demanda de mão-de-obra urbana como forma de absorver a produção e

a população rural excedente401.

No meio popular o período entre 1950 e 1960 comportou movimentos como as Ligas

Camponesas, que integrou o debate nacional por meio da movimentação das massas rurais em 400 Exposta em inicialmente em PRADO JR, Caio. Formação Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961, publicado pela primeira vez em 1942. 401 DELGADO, Guilherme C. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra: um estudo da reflexão agrária. In: Estudos Avançados, São Paulo, SP, v. 15, n. 43, set/dez 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v15n43/v15n43a13.pdf>. Acesso em 01 de fev/2011, p.159.

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torno do lema “Reforma Agrária na lei ou na marra”, produzindo assim reivindicações e

concepções próprias sobre o sentido do espaço agrário a partir da ação popular (não se

confundindo com os grupos intelectuais). Por outro lado, as alas progressistas da Igreja

Católica ainda “disputaram” com o PCB as formas de organização e luta dos trabalhadores

rurais em diversas partes do País, buscando produzir uma funcionalidade para à “Doutrina

Social da Igreja”402.

Em meio a esse debate intelectual e ideológico -“feudalismo-capitalismo”- acalorado e

a ação dos grupos populares, a CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o

Caribe - e os intelectuais a ela ligados, cujo nome mais expressivo é Celso Furtado, afirmou

uma nova perspectiva sobre o espaço agrário brasileiro, mais voltada para as possibilidades e

necessidades do seu desenvolvimento tecnológico do que para a polêmica em torno da

natureza das suas relações e da necessidade imediata de uma reforma agrária. Essa

perspectiva resultou da adequação das leituras sobre as disparidades econômicas entre as

diferentes áreas do mundo no pós-guerra, ao contexto dos países subdesenvolvidos, como

forma de entender a sua posição na divisão internacional do trabalho e sua forma interna de

desenvolvimento. A partir dessa adequação a CEPAL fundamentou a tese que afirmava a

existência de uma forma desigual de desenvolvimento - uma “dualidade conjuntural” - nos

espaços dos países mais pobres do globo, composta pela presença de um “centro” econômico

desenvolvido e de uma periferia “atrasada” que limitava o dinamismo do primeiro.

Nesse sentido a industrialização foi defendida pela CEPAL como ferramenta corretiva

das disparidades espaciais, produtivas, sociais, políticas e econômicas dos países

subdesenvolvidos, cabendo ao Estado o papel especial na produção de suas condições403.

Essas proposições expandiram o debate em torno do desenvolvimento do País e das suas

condições agrárias, do meio político-ideológico para as esferas econômico-políticas e

administrativas nacionais, sendo aí predominantes até finais da década de 1960. A partir das

idéias cepalinas os Governos Brasileiros afirmaram a necessidade de uma reorganização

sócio-espacial do Brasil, baseada no incentivo à industrialização, na implantação de novas

tecnologias e no incentivo à monetarização das relações de produção, como forma de eliminar 402 DELGADO G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.160. 403 A obra síntese das ideias furtadianas sobre o desenvolvimento econômico do Brasil é Formação Econômica do Brasil, publicado em 1959, editada e reeditada diversas vezes e traduzida para várias línguas estrangeiras. É hoje considerada um clássico da nossa História Econômica. Ver síntese das ideias cepalinas, das teses estrangeiras que as influenciaram e da perspectiva de “revolução pelos efeitos do desenvolvimento” de Furtado em CASTRO, Iná Elias de. O mito da necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1992, p. 61-62.

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os setores “atrasados” que bloqueavam o desenvolvimento e dinamizar os “centros” urbanos.

A experiência mais acabada dessas iniciativas deu-se sobre o Nordeste rural, o ponto crítico

do “arcaísmo” produtivo brasileiro segundo a CEPAL, e serviu de base na década seguinte

para a fundamentação de uma política de modernização nacional das relações agrárias.

As ideias cepalinas recaíram sobre o Nordeste a partir da criação, na década de 1950,

de novas instituições públicas voltadas diretamente para as dinâmicas econômicas, reforçando

uma tendência já apontada desde o decênio anterior. Sob o argumento do “desenvolvimento

do Nordeste” foram implantadas a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf)404 em

1945 e a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF)405 em 1948, ambas voltadas para o

controle e estudos dos recursos hídricos, a partir do aproveitamento do potencial hidroelétrico

do rio São Francisco e da expansão da irrigação como nova tecnologia; o Banco do Nordeste

do Brasil (BNB)406, em julho de 1952, instituição financeira diretamente ligada ao

investimento e ao desenvolvimento econômico e a Superintendência de Desenvolvimento do

Nordeste (SUDENE)407, criada em 1959, autarquia símbolo dessas novas políticas,

responsável por articular os demais órgãos (antigos e novos) e desenvolver medidas que

diminuíssem as disparidades sócio-econômicas do Nordeste em relação às outras áreas do

Brasil.

De acordo com Iná Elias de Castro, os estudos que tomaram como tema a “questão

Nordeste” até a década de 1940 se destacaram principalmente pela abordagem da seca como

um problema “natural”, do fenômeno dos retirantes, da violência, do coronelismo e do açúcar

nas áreas úmidas. Até esse momento, o Nordeste, tal qual o conhecemos, ainda não existia,

falava-se apenas das genéricas “Províncias do Norte” e os discursos enfocavam os problemas

aí vivenciados como pendências nacionais.408 Essa primeira linha discursiva pode ser

exemplificada a partir das obras Nordeste, de Gilberto Freyre, e O outro Nordeste, de Djacir

Menezes, ambos publicados em 1937. Enquanto o primeiro “inventou” o Nordeste canavieiro

como raiz da cultura nacional, espaço doce e referenciado no passado e no “massapé

404 Criada pelo Decreto-Lei nº 8.031, de 3 de outubro de 1945. 405 Instituída pela lei 541/48, de 15 de dezembro de 1948. Foi substituída pela Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), a partir do decreto-lei 292/67. Esta, por sua vez, deu lugar a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) via lei 6.088/74. 406 Criado pela Lei Federal nº 1.649, de 19 de julho de 1952. 407 Criada pela Lei Federal nº 3.692, de 15 de dezembro de 1959. 408 CASTRO. I. E. de. O mito da necessidade..., p.59-60.

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acomodatício”409, o segundo focou a etnogênese da sociedade livre e pastoril que se

desenvolvia nas caatingas entre uma agricultura irregular e uma “aristocracia feudalóide”,

com o intuito de descortinar as causas do cangaceirismo e do fanatismo410.

No plano político e governamental do Nordeste, o período que se estende até 1950 foi

marcado por ações de caráter institucional atomizado, voltado para o combate à seca por meio

de uma política hidráulica. Esta ação foi representada especialmente pelo Departamento

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)411 e efetivada a partir da abertura de poços,

açudagem, criação de rodovias, irrigação e instalação de rede elétrica412. De forma geral, essas

ações reduziram-se a iniciativas isoladas de caráter imediato contra as estiagens, tanto devido

a ausência de articulação entre os órgãos responsáveis e a separação espacial de suas áreas de

atuação, quanto pelas influências das elites locais e regionais sobre os órgãos, as quais que se

beneficiaram com grande parte dos recursos e obras, acirrando ainda mais as relações de

dominação e dependência.

A atuação de órgãos como o BNB, a Chesf e a SUDENE sintetizou uma nova proposta

econômica para o Nordeste que se intensificou nas décadas seguintes. Baseada em novos

estudos de cunho técnico e científico essas instituições objetivaram romper a abordagem

discursiva espacial da determinística da seca e apontaram para o potencial tecnológico e

produtivo do Nordeste, ressaltando ainda a necessidade de medidas sistemáticas e amplas que

ultrapassassem a política hídrica. Nesse sentido, o Nordeste passou, em meados do século

XX, a ser definido nas instâncias governamentais como um recanto nacional

conjunturalmente condicionado pelo baixo nível de suas forças produtivas, sobre o qual

deveriam ser aplicadas novas técnicas e novas políticas que modificassem suas estruturas

409 MARTINS, André Luiz de Miranda. “Visões da insuficiência”: o nordeste e o desenvolvimento regional no pensamento social brasileiro. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (Ieb). São Paulo: USP. nº 52, set/mar 2011, p. 76. 410 MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste: ensaio sobre a evolução social e política do Nordeste da “civilização do couro” e suas implicações históricas nos problemas gerais. 3ª Ed. Fortaleza: UFC. Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 1995. 411 A instituição fora criada em 1909 pelo decreto 7.619 com o nome de IOCS – Inspetoria de Obras Contra as Secas. Em 1919 passou a se chamar IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas pelo decreto 13.687, somente em 1945 recebe o nome de DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Decreto-Lei 8.846), tornando-se uma autarquia federal em 1963 (lei 4.229). 412 Em 1959 já existiam no Polígono das Secas, 190 açudes públicos e 470 particulares, totalizando uma capacidade de 7,6 bilhões de metros cúbicos. 53 novos açudes públicos e 152 particulares estavam em construção, 3.893 poços estavam aptos para uso e 12 mil quilômetros de estradas já haviam sido abertas. Ver: SAMPAIO, Yony; FERREIRA IRMÃO, José; GOMES, Gustavo Maia. Política Agrícola no Nordeste. Brasília: BINAGRI, 1979, (Estudos sobre o desenvolvimento agrícola, 11) p. 36-37.

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econômicas e as dinamizassem no ritmo das relações de mercado e do crescimento urbano e

industrial que se expandia pelo País413.

Uma das maiores contribuições ao desenvolvimento econômico do Nordeste entre os

anos de 1950 e 1960, partiu do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste

(GTDN), o qual, influenciado diretamente pelas ideias de Celso Furtado, publicou em 1959 o

relatório intitulado Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, apontando para a

necessidade da atuação governamental em três direções, sendo a primeira delas, a construção

da autonomia industrial. Nesse ponto o texto argumenta que “se para o Centro-Sul do Brasil a

industrialização é uma forma racional de abrir o caminho ao desenvolvimento, para o

Nordeste ela é, em certa medida, a única forma de abrir esse caminho”414.

A indústria, contudo, destaca ainda o relatório, não conseguiria sobreviver sozinha,

cabendo assim à agricultura gerar emprego, diminuir o preço dos alimentos e o custo da mão-

de-obra, especialmente por meio da política de irrigação nas áreas secas. Nesse sentido, o

GTDN afirma como segunda estratégia de desenvolvimento para o Nordeste, elevar a

produtividade da agricultura da faixa úmida e tornar resistente às secas a agricultura do semi-

árido, pois, “o ponto mais fraco das indústrias do Nordeste reside na própria agricultura da

região”415.

Por fim, o grupo de trabalho ressaltou a necessidade de deslocar parte da população do

semi-árido para a faixa úmida maranhense de forma controlada, evitando a escassez de mão-

de-obra nas áreas emissoras e expandindo sobre as áreas recém-ocupadas um setor agrícola

formado por propriedades de médio porte, voltado para o mercado e a oferta de alimentos nos

centros urbanos. Em síntese, o relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho para o

Desenvolvimento do Nordeste parte das críticas às ações hidráulicas do Estado para propor

ações interligadas de grandes dimensões, onde a elevação da produtividade agrícola facilitaria

a consolidação dos setores industriais nordestinos sem, todavia, questionar a estrutura

fundiária.

Mantendo os temas centrais ressaltados pelo GTDN, a SUDENE lançou entre os anos

de 1961 e 1972 quatro Planos Diretores (PD’s). O I Plano Diretor (1961-1963) afirma que “o

atraso relativo da economia nordestina vem sendo reconhecido e proclamado como um dos 413 CASTRO. I. E. de. O mito da necessidade..., p.60-63. Como reflexo da emergência desses novos estudos foi criado, juntamente com o Banco do Nordeste, o Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), ver: MARTINS, André Luiz de Miranda. “Visões da insuficiência”..., p. 83. 414 GTDN. Uma política de desenvolvimento para o Nordeste. Rio de Janeiro, 1959, p. 52. 415 Idem, Ibidem, p. 61.

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mais graves problemas a (se) enfrentar nesta quadra do desenvolvimento nacional”. Seu

objetivo é “apresentar um conjunto orgânico de diretrizes de política econômica, que possam

servir de base a um esforço progressivo de ordenação dos investimentos do Govêrno Federal

no Nordeste”, afirmando ainda o Poder Público como agente central “no processo de

formação de capital, cabendo-lhe a liderança do desenvolvimento econômico regional”416. O

documento em destaque diagnostica que no Nordeste existiam duas economias dispares

uma agricultura de cunho predominantemente capitalista, nas zonas úmidas (Mata de Pernambuco, Alagoas e Paraíba, Recôncavo e Sul da Bahia) e um complexo de criação pecuária, produção de xerófilas e culturas de subsistência na zona semi-árida. Na primeira, convergem produtividade relativamente alta e elevada concentração de renda, ao passo que, na segunda, vigora um regime de produtividade inferior, sendo a renda, no entanto, menos concentrada417.

Ao contrário da zona semi-árida, as zonas úmidas, às quais se refere o texto, áreas de

tradicional produção de cana-de-açúcar e de cacau, embora não dispusessem de políticas

agrárias sistemáticas e articuladas, eram alvo da maior parte das ações e recursos do Estado

nos setores fiscais e financeiros. Nessas áreas o Estado agiu reduzindo tarifas, possibilitando

medidas aduaneiras, disponibilizando empréstimos e formando órgãos, institutos e comissões

voltados para a execução de políticas regionais específicas por produtos418.

O I PD foi organizado em torno dos seguintes eixos temáticos: a) “Criação de uma

infra-estrutura econômica”, especialmente de transportes e energia; b) “Aproveitamento

racional dos recursos de água”, c) “Reestruturação da economia agrícola”, d) “Política de

industrialização”; e) “Racionalização do abastecimento”; f) “Aproveitamento dos recursos

minerais” e g) “Recursos de mão-de-obra e sua redistribuição regional”, na qual se incluía

uma “Política de Colonização”. A essas linhas de ação uniram-se iniciativas em torno da

saúde pública e da educação de base.

O II Plano Diretor (1963-1965) revisou e expandiu as temáticas e propostas

apresentadas na edição anterior, ressaltando a necessidade de investimentos na qualificação de

mão-de-obra, saneamento e habitações populares. O III Plano Diretor (1966-1968),

reforçando ainda as temáticas já apresentadas nas duas primeiras edições, emerge sobre a

certeza de que “o Nordeste está acordado”, e almeja “diminuir a desigualdade de renda entre o 416 SUDENE. I Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1961/1963). Recife: Div. Documentação, 1966a. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, p. 11-18 (grifo nosso). 417 Idem, Ibidem, p. 118 (grifo nosso). 418 A exemplo da COMDECAR – Comissão de Defesa da Produção de Açúcar –, que passou a ser chamada, a partir de 1933, de IAA – Instituto do Açúcar e do Alcóol.

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homem do Polígono e o brasileiro do Centro-Sul”419. Seu foco é a elevação dos padrões de

vida da população e a valorização da mão-de-obra, para tanto, reveste-se de um discurso

social que reivindica das comunidades o papel ativo nos processos de desenvolvimento. Por

fim, o IV Plano Diretor (1969/1973), cuja vigência foi estendida para cinco anos, garante a

“continuidade do processo” de desenvolvimento e reconhece a existência de algumas

“distorções” nas ações até então aplicadas sem, no entanto, propor soluções efetivamente

novas.

No que se refere às distorções apresentadas pelo desenvolvimento, o IV Plano demonstra uma tríplice preocupação: aumentar o conteúdo social do processo de desenvolvimento através de uma mais justa distribuição de renda (...); atenuar o desnível de aumento de produtividade entre os setores agrícola e industrial, sobretudo através da implantação de 100 mil hectares de terras irrigadas; e finalmente, uma melhor distribuição entre os Estados nordestinos dos diversos incentivos econômicos administrados pela SUDENE420

As propostas cepalinas encarnadas na SUDENE não deixaram de ter opositores.

Segundo Guilherme Delgado, ainda no decorrer da década de 1960, na Universidade de São

Paulo (USP), os economistas liderados por Delfim Neto, buscaram descaracterizar o debate

sobre a questão agrária e a “inelasticidade do setor agrícola” brasileiro, afirmando a tese de

que a estrutura produtiva então vigente responderia “funcionalmente” à pressão crescente da

demanda por alimentos, sem que fossem necessárias mudanças significativas em suas bases.

Ao mesmo tempo em que desviaram-se da polêmica em torno do “agrário arcaico” a ser

superado pelo investimento e tecnologia, Delfim Neto e seus seguidores desconsideraram

também o peso social da estrutura fundiária sobre relações de trabalho no meio rural, tal qual

emergiam das ideias pradianas421.

No final da década de 1960, diversas iniciativas da SUDENE já denunciavam a

existência disparidades entre as metas propostas e os objetivos alcançados, especialmente os

direcionados à modernização do Nordeste rural, intensificando assim ainda mais as críticas.

Administrativamente, a atuação da SUDENE e de seus planos diretores nunca resultou em

uma ação coesa. Além da recorrência das temáticas apontadas pelo GTDN (ainda que sobre

outra roupagem) e das oscilações constantes do volume de recursos disponibilizados, a 419 SUDENE. III Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1966/1968). Recife: Div. Documentação, 1966. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, apresentação, p. 7-8. 420 SUDENE. IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste (1969/1973). Recife: Div. Documentação, 1968. Disponível em: <http://www.sudene.gov.br/site/extra.php?idioma=ptbr&cod=167> Acesso em: 06 de jun/2011, p. 10 (grifo nosso). 421 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.161.

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SUDENE nunca exercera de fato, o controle sobre os diversos órgãos governamentais

envolvidos no processo (BNB, DNOCS, INCRA, etc.), por outro lado, a ocorrência de

divergências entre as ações planejadas para o nível “regional” e as ações estabelecidas em

nível nacional, puseram em questão o papel da instituição422.

O sociólogo Francisco de Oliveira, resgatando a partir de uma nova abordagem o

debate em torno da funcionalidade dos arranjos espaciais no desenvolvimento econômico do

Brasil, iniciado pela CEPAL, afirmou que a “dualidade” (centro moderno e periferia atrasada)

da economia brasileira, destacada por esta instituição e encarnada pelos governos como um

problema conjuntural a ser resolvido, não se tratava de uma anomalia, mas, de uma relação

“desigual e combinada” de apropriação dos espaços e das relações de produção no Brasil,

própria e necessária ao modelo de capitalismo adotado pelas elites. Para o autor, a relação

“desenvolvido-subdesenvolvido” não é, pois, um problema a ser solucionado pela alocação

eficaz e eficiente de recursos sobre os espaços “atrasados”, mas, uma dinâmica própria do

capitalismo que produzia espaços de “extração” e espaços de “acumulação”, tanto na relação

inter-países quanto nas relações internas de cada país423.

As disparidades entre metas e resultados e as críticas das quais foi alvo, todavia, não

impediram que a SUDENE se constituísse em um eficaz e eficiente projeto político para o

capital, pelo contrário, a primeira condição justifica a segunda. Como nos afirma Iná de

Castro, esse órgão, ao delimitar um espaço de ação, findou por dar visibilidade ao Nordeste

sem romper ou inovar sua realidade econômica, especialmente a agrária, já que suas atuações

reacenderam a influência das oligarquias açucareira, algodoeira e pecuária e mantiveram as

estruturas vigentes.424 Segundo Francisco de Oliveira, a SUDENE exerceu o papel de “correia

transportadora” da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste ao por em ação uma

nova estratégia governamental: o padrão planejado regional de condução e orientação das

atividades econômicas. Essa técnica visou amenizar a disparidade econômica entre essas duas

áreas do País por meio do estabelecimento do Estado como o agente produtor das novas

condições produtivas e controlar a efervescência social do Nordeste, marcado pela luta das

422 SAMPAIO Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p. 48. 423 OLIVEIRA, Francisco de. A economia brasileira: crítica a razão dualista. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1987. 424 CASTRO, I. E. de. O mito da necessidade..., p.62-63.

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Ligas Camponesas, do movimento de alfabetização pelo método Paulo Freire e da ação de

alguns setores da Igreja Católica em prol da reforma agrária.425

Como nos explica ainda esse autor, enquanto “forma técnica de divisão do trabalho”, o

planejamento reforçou o controle do trabalho improdutivo sobre o produtivo, radicalizou a

expropriação e a separação entre trabalhadores e meios de produção, impôs novos ritmos às

relações de produção, gerou infra-estruturas e regras, agências e sistemas, calculou resultados

e distribuiu créditos. Essas medidas garantiram a atualização dos mecanismos geradores da

mais-valia, elevando suas taxas por meio da difusão do capital como relação social

predominante, e articulou os setores econômicos nordestinos às engrenagens de reprodução

ampliada do próprio capital que se expandiam em nível nacional. Nesse sentido, afirma

Oliveira que o planejamento permitiu que às elites modernizassem os setores produtivos,

mantendo a ordem, ampliando os lucros, suprimindo as expectativas populares e integrando o

Nordeste ao processo estrutural de expansão do capital no Brasil426.

Em nível administrativo o planejamento consistiu em uma racionalização das ações e

dos recursos o Estado a partir do estabelecimento de metas, do acompanhamento de índices e

taxas, da delimitação de áreas prioritárias de investimento e da ação coordenada de

instituições públicas e privadas. Em um dos relatórios sobre o desenvolvimento econômico na

Bahia, a Fundação de Planejamento (uma coincidência vocabular?!) do Governo Estadual,

afirma em finais dos anos 1960 que o “progresso” do litoral era visível no grande número de

indústrias, enquanto no interior os habitantes iniciavam a quebra de “velhos padrões” “na

ânsia de acompanhar o ritmo de uma nova civilização”427. A diminuição dos desníveis

econômicos ainda existentes na Bahia, completa o documento, só poderia ser efetivada

“através de rígida racionalização dos passos a serem empreendidos pelos setores público e

privado. A resposta a isso: planejamento.”428.

Ainda segundo Francisco de Oliveira, a SUDENE, ao implantar suas políticas

planejadas sobre o semi-árido “algodoeiro-pecuário”, inclusive o norte de Minas Gerais,

425 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 138-139, 144, 163, 175, 236-263. Outros autores utilizam o termo “planejamento” como sinônimo de racionalização administrativa ver: SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G, M. Política Agrícola no Nordeste... 1979, passim. 426 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 129, 198-275. 427 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Estado da Bahia: micro-regiões programa. Salvador: CPE, 1969, p. 1. 428 Idem, Ibidem, loc. cit.

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redefiniu o Nordeste como uma região econômica429. A região, de acordo com o autor, é um

espaço especial de produção do capital dentro do modo de produção capitalista, uma fração do

espaço apropriado pelo capital, onde o político e o econômico incorporam uma de suas formas

(comercial, industrial, financeiro) subordinando as demais, submetendo e coordenando as

formas de geração de valor e as relações de produção (ou seja, as próprias relações sociais),

mantendo e direcionando o movimento interno de reprodução acumulada do próprio capital e

interligando a fração espacial à escalas nacionais e internacionais.

Para Oliveira, a ação do capital sobre a dimensão sócio-espacial tende sempre a

produzir uma homogeneização interna das dinâmicas de produção, em outras palavras, o

capital e seus mecanismos de reprodução acumulada se elevam como referências sócio-

espaciais ao redor dos quais gravitam e se definem as demais dinâmicas. O espaço

produtivamente homogeneizado marca as fronteiras da região econômica. A região, ainda

segundo esse autor, enquanto espaço do capital, incorpora uma estrutura de classes peculiar às

formas que o processo de acumulação assume em um dado lugar, estruturada de acordo com o

nível de proximidade dos grupos sociais em relação aos fatores determinantes desse próprio

processo e se articula complementarmente com outras regiões pelo seu papel funcional na

divisão regional, nacional e internacional do trabalho430.

A modernização conservadora: a face agrária nacional do capital planejado

O debate em torno do agrário brasileiro, latentes no meio social, intelectual e

institucional de 1950 e 1960, foi silenciado pela emergência do golpe militar e o

estabelecimento da censura. Esse silenciamento abriu espaço para estruturação de um modelo

político econômico conservador por parte dos Governos Brasileiros, baseado na

429 Segundo Oliveira, o Nordeste já fora espaço de outras “regiões” desde o período colonial como o “Nordeste do açúcar” e o “nordeste algodoeiro-pecuário”, este, “intocado praticamente até a década de 1950”. OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 153, 161. 430 OLIVEIRA, F. de O. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-152. Oliveira defende a ideia de que a “região” “tende a desaparecer” à medida que o capital se consolida sobre o sócio-espacial macro homogeneizando-o e adquirindo formas “fundidas” (capital industrial – capital financeiro [fusão entre capital bancário e capital industrial] – etapa monopolista do capital [fusão entre Estado e capital]), afirma, contudo, que essa tendência “quase nunca” se materializa de forma completa devido a própria natureza “desigual e combinada” que rege o processo de reprodução do capital. Sobre as diversas conceituações de “região” ver: FONSECA, Antonio Ângelo Martins da. Em torno do conceito de região. In: Sitientibus. Feira de Santana: UEFS Editora, nº 21, jul/dez 1999, p. 89-100; Sobre “região” como “espaço vivido” ver: CASTRO, I. E. O mito da necessidade..., p. 29-34; Sobre “região” como produto da representação social ver: ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª Ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009.

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164

sistematização e dilatação das ações de desenvolvimento e na elevação do modelo econômico

planejado adotado no Nordeste à condição de modelo econômico nacional. No final da década

de 1960 outras superintendências baseadas na SUDENE foram criadas, a saber: SUDAM -

Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Lei 5.173/66); SUDECO -

Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste (Lei nº 5.365/67); SUFRAMA

- Superintendência da Zona Franca de Manaus (Decreto-lei nº 288/67) e SUDESUL -

Superintendência do Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste (Decreto-lei nº 301/67).

Paralelamente à estruturação desses órgãos, o então Ministro do Interior, Afonso

Augusto de Albuquerque Lima, quando da promulgação do IV Plano Diretor da SUDENE

(1969-1973), afirmou:

Os resultados do planejamento regional no Nordeste credenciam o Ministério do Interior na execução de sua estratégia de integração levando-o a estender às macro-regiões do Norte, Centro-Oeste e Sul, a implantação de políticas regionais de desenvolvimento. Com base na criação de um processo auto-sustentável de desenvolvimento em cada grande região, apoiado nas características de diferenciação econômica que lhe são inerentes, e na inserção desse processo numa linha de integração econômica, visando a formação de um mercado integrado, o Ministério do Interior conta em atender às exigências de tôdas as áreas problemas, sejam elas o preenchimento de claros populacionais, a adaptação do homem ao meio ou a dinamização de setôres capazes de impulsiona-las.431

Essa dilatação do modelo de intervenção e desenvolvimento econômico

experimentado no Nordeste, alcançou seu auge no dia 4 de novembro de 1971, em Brasília. O

texto oficial em exposição nesse momento destaca: “A revolução foi feita para construir”432.

Nas páginas que antecedem a afirmativa lê-se: “LEI Nº 5727/71 Dispõe sobre o Primeiro

Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1972 a 1974”433. A

promulgação do I Plano Nacional de Desenvolvimento fez ressoar nos quatro cantos do País

as novas “diretrizes e prioridades” para a política econômica brasileira anunciando, a partir

delas, a chegada de um novo tempo: o tempo do desenvolvimento, da integração econômica e

sócio-espacial e do progresso. Ao fim do texto, assina (paradoxalmente?) sob o título de

Presidente da República, um dos protagonistas dos momentos mais complexos da história

brasileira: Emílio G. Médici.

431 SUDENE IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste... 1968, p. 6. 432 BRASIL. Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), 1972/74. [s.l.:s.n.], 1971, p. 13. 433 BRASIL. Lei nº 5.727, de 4 de novembro de 1971. Dispõe sôbre Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1972 a 1974. Parte complementar de BRASIL. P. da R.. I Plano Nacional de Desenvolvimento...

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165

O I PND elevou a política de planejamento ao nível nacional e o definiu como um

“instrumento que permite evitar a capacidade ociosa nos setores de infra-estrutura e a redução

da eficiência e rentabilidade nos setores diretamente produtivos”434 do País. Entre os objetivos

do documento lê-se:

criar mercado interno, capaz de manter crescimento acelerado e auto-sustentável, e, do ponto de vista da produção, a permitir a progressiva descentralização econômica. Isso se fará pelo estabelecimento de pólos regionais no Sul e no Nordeste, de sentido integrado agro-industrial, assim como no Planalto Central e na Amazônia, notadamente agrícola-mineral, complementando-se dessa forma o grande pólo do núcleo São Paulo-Rio-Belo Horizonte435.

A citação descortina a estratégia político-econômica oficial baseada na composição de

uma malha econômica nacional que possibilitasse a transferência de grandes somas de riqueza

para o núcleo São Paulo - Rio - Belo Horizonte, a partir da “progressiva descentralização

econômica” e da criação de pólos interligados de alta produtividade – ou regiões econômicas -

espalhados pelas diferentes áreas do País. Em suma, os Governos Brasileiros objetivaram a

partir do I PND, descentralizar a economia para centralizar o poder sobre a mesma no “grande

pólo”.

No tocante à dimensão agrária nacional, esse modelo político conservador já se

anunciava desde 1967, quando da ascensão de Delfim Neto ao cargo de Ministro da Fazenda.

Afirmando, como vimos, a tese de que a estrutura agrária brasileira responderia

funcionalmente à demanda crescente de alimentos sem a necessidade de alterações

significativas, Delfim Neto oficializou uma “modernização sem reforma”, na qual buscou

ofuscar as questões sociais e fundiárias e expandir a indústria por meio da elevação da

produção agrícola436. Para tanto, expandiu as relações capitalistas no meio rural, por meio do

uso extensivo do crédito rural e da adoção irrestrita dos pacotes tecnológicos da Revolução

Verde. Mais tarde, quando da promulgação do I PND, essas iniciativas se intensificaram,

agora, sob a égide do planejamento. Esse processo ficou mais conhecido no meio intelectual

pelo conceito de modernização conservadora, o seu uso, contudo, requer alguns

esclarecimentos.

De acordo com as pesquisas de Murilo José de Souza Pires e Pedro Ramos, o termo

modernização conservadora foi elaborado por Barrington Moore Júnior para demonstrar o

434 Idem, Ibidem, p. 19. 435 Idem, Ibidem, p. 25. 436 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p.160-163.

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166

caso específico de desenvolvimento capitalista na Alemanha e Japão. Foi incorporado ao

pensamento brasileiro inicialmente por Alberto Passos Guimarães, reaparecendo em seguida

em diversos outros trabalhos, ora enfatizando fatores políticos, ora fatores econômicos sem a

devida crítica histórica437. Uma rápida comparação pode esclarecer sobre a diversidade de

abordagens e temporalidades no uso do termo/conceito: José Murilo de Carvalho, por

exemplo, utiliza a expressão para designar como os barões do café do século XIX, no Rio de

Janeiro e São Paulo, buscaram implantar a política de colonização imigrante de forma que

impedisse o seu acesso imediato a lotes e livrasse os latifundiários das limitações e taxações

que traziam as primeiras propostas da Lei de Terras de 1850438.

Os autores que se voltam ao entendimento das dinâmicas econômico-agrárias recentes,

utilizam o conceito como instrumento analítico da forma como se deu o avanço capitalista

sobre o meio rural no pós-guerra, tendo como base a mecanização das relações de produção, a

monetarização das relações de trabalho, a expansão do crédito público, a produção de

infraestrutura por parte do Estado e a manutenção da estrutura fundiária. Outras “roupagens”

terminológicas ainda foram dadas ao conceito, José Graziano a define como “modernização

dolorosa”439. É na perspectiva destes que o conceito é aqui apropriado. Cabe-nos, todavia,

destacarmos novamente as observações de Pires e Ramos, os quais afirmam como traço

comum às diferentes abordagens do conceito/termo, o registro do desenvolvimento das forças

capitalistas na agropecuária e a manutenção de uma estrutura fundiária concentrada440.

A modernização conservadora, enquanto face radicalizada do processo de

capitalização das relações agrárias brasileiras, recaiu sobre o Nordeste articulando e

expandindo as iniciativas modernizadoras já postas, por meio da aplicação de “programas” ou

“projetos” idealizados pelos órgãos federais. Essa nova abordagem administrativa pôs fim a

política de ação via órgãos e instituições regionais e reduziu significativamente o poder destas

quanto a produção e coordenação de ações políticas, atribuindo-lhes a função de meros

executores. Esse fator foi visível especialmente quando da substituição emergencial do IV

Plano Diretor da SUDENE pelo Plano de Desenvolvimento do Nordeste (1972-1974), em

437 PIRES, Murilo José de; RAMOS, Pedro. O termo modernização conservadora: sua origem e utilização no Brasil. Revista Econômica do Nordeste. Fortaleza – CE, v. 40, n. 03, p. 411-424, jul/set 2009. 438 CARVALHO, José Murilo de. A política de terras: o veto dos barões. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro nas sombras: a política imperial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.338. 439 SILVA, José Graziano. A Modernização Dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1981. 440 PIRES, M. J. de; RAMOS, P. O termo modernização conservadora..., p. 411, 421.

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167

Imagem 6: Figura estampada na capa de um dos informes da SUDENE

virtude de disparidades entre as propostas do órgão regional e dos órgãos federais que no

momento se organizavam.441 Devidamente alinhada às expectativas federais, em 1976 a

SUDENE estampou na capa de um dos seus informes a imagem abaixo:

Fonte: SUDENE. Sudene Informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar, 1976 (capa).

Nas páginas seguintes lê-se:

A partir de 1956, começou a reversão daquela tendência secular de distanciamento da posição relativa do Nordeste, em função da nova política econômica e de outros fatores reconhecidamente favoráveis, tais como mudança de mentalidade e de atitudes na região, tanto da parte do empresariado, lideranças e Governo, como do povo em geral, quando se disseminou a idéia do desenvolvimento planejado e de empreendimentos fundamentados em projetos, passando-se a apresentar o Nordeste como uma região de oportunidade e não apenas como área-problema.442

A imagem e o texto expressos no informe do órgão sintetizam os elementos presentes

nos discursos governamentais, nacionais e regionais, sobre os rumos do agrário nordestino na

segunda metade do século XX. A disseminação da “idéia do desenvolvimento planejado”, a

mão-de-obra familiar, a pequena lavoura, o governo, o capital, a máquina e a afirmação de um

novo tempo produtivo passaram a ser destacadas como unidades de um conjunto em

441 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste...; p. 48. 442 SUDENE. Sudene Informa...,p. 4 (grifo nosso).

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movimento, pautadas na execução de grandes projetos agrários e integradas às diversas

esferas econômico-políticas (municipais, regionais, nacionais e internacionais). Segundo seus

idealizadores, esse “conjunto dinâmico” garantiria ao Nordeste rural a “reversão” e a ruptura

com “passado secular de isolamento” e atraso, especialmente as áreas semi-áridas.

Sob o discurso de um “novo Nordeste” foram implantados projetos como o Programa

de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste

(PROTERRA), o Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste

(POLONORDESTE) e posteriormente, o PROJETO SERTANEJO. O PROTERRA objetivou

a redistribuição de terra aos pequenos produtores por meio de desapropriações e vendas de

áreas - via crédito fundiário a longo prazo -, implantação de subprojetos agrícolas voltados

para produção em larga escala e concessão de financiamentos para elevação da produtividade

e viabilização da comercialização.

As metas estabelecidas para o Nordeste não foram cumpridas e os projetos esbarraram

na burocratização, devido a participação de muitas instituições e no consequente descompasso

de execução das etapas. A ausência de estrutura dos órgãos impedia o acompanhamento das

atividades e muitas das propostas ficaram inacabadas ou faliram. O crédito foi priorizado aos

grandes produtores, alimentando a concentração fundiária e a modernização dos latifúndios e

inviabilizando a redistribuição de terras443.

O POLONORDESTE ficou a cargo do II PND (1975/79) e objetivou desenvolver os

setores agropecuário e agroindustrial do Nordeste, tendo como base uma reorganização

produtiva de grande escala que integrava os domínios sociais, econômicos, científicos e

políticos. Do ponto de vista agrário, o programa enfocou as pequenas áreas produtivas e

destacou medidas especiais para as áreas semi-áridas.

O programa (POLONORDESTE) se caracteriza por uma abordagem integrada do desenvolvimento agropecuário e agroindustrial, contemplando desde a identificação de culturas e a indicação de sistemas de produção, até a reorganização agrária, a complementação da infra-estrutura, a pesquisa e a assistência técnica, o crédito e a comercialização. Dentro desse programa, incluir-se-á componente relativo à transformação da agricultura das regiões semi-áridas, de modo a tornar a atividade produtiva adaptada às condições climáticas, através do desenvolvimento da tecnologia de cultivo e o manejo racional do solo e da água. (...) considerando-se, além da implantação de

443 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p.174-187, 207.

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169

sistemas de irrigação e das lavouras irrigadas, esforço harmonizado de desenvolvimento e de elevação do padrão de vida do homem do campo444.

Desfrutava o POLONORDESTE de recursos totais no valor de 5 bilhões de cruzeiros

(inclusive créditos especiais à produção) para atuação em “áreas integradas selecionadas” no

período de 1975-1979445. Uma de suas novidades foi a apresentação de um novo mapeamento

produtivo do Nordeste, focado em cinco áreas principais que se articulavam como pólos-

integrados, “ilhas de desenvolvimento”: Vales Úmidos446, Serras Úmidas447, Áreas de

lavouras xerófilas (agricultura seca ), Tabuleiros Costeiros448 e Áreas de Colonização do

Maranhão e Piauí (Pré-Amazônia). Este novo mapeamento rompeu com as visões polarizadas

e generalizantes sobre os espaços econômicos do Nordeste (Semi-árido/Mata Úmida ou Semi-

árido/Agreste/Mata Úmida)449. Administrativamente, o POLONORDESTE baseou-se na

composição de unidades denominadas PDRI’s - Projetos de Desenvolvimento Rural Integrado

- que abrangiam as áreas de ação direta, e no apoio a diversos outros projetos, totalizando um

conjunto de 69 áreas, espalhadas por todos os estados do Nordeste450.

Os PDRI’s funcionavam como “micro-pólos” e correspondiam de fato aos projetos

foco das ações do programa. Seus recursos eram divididos no atendimento das unidades de

produção (crédito, assistência técnica, comercialização), na geração de infraestrutura

(estradas, eletrificação, armazéns) e no setor social (educação e saúde). É a partir do

POLONORDESTE que o minifúndio passa a ser visto como setor produtivo451, rompendo a

lógica predominante até a década de 1960, a qual, baseada nas observações do GTDN,

afirmava a necessidade de formação de uma “classe média rural” no espaço agrário nordestino

como forma de impulsionar a produtividade e a comercialização.

Para fins de concessão de crédito agropecuário, o POLONORDESTE definiu como

“pequena unidade de produção” as áreas de até 50ha para a agricultura e 100 ha para pecuária,

trabalhadas pela mão-de-obra familiar, com renda total (não somente agrícola) até dois

444 BRASIL. Presidência da República. II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1975/1979. [s.l.]: [s.n.], 1974. Disponível em: <http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/5bd/2br/3plans/1974II-PND/pdf/II-PND.pdf>. Acesso em: 15 de dez. de 2010, p. 63. 445 SUDENE. Sudene Informa...,p.13. 446 Rios Gurguéia, Fidalgo e Parnaíba (Piauí), Jaguaribe (Ceará), Apodi (Rio Grande do Norte), Piranhas-Açu (Rio Grande do Norte e Paraíba), Moxotó (Pernambuco) e São Francisco (Bahia). 447 Ibiapaba, Baturité, Araripe e outras. 448 Do Rio Grande do Norte à Bahia. 449WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986, p. 13 450 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste..., p. 225 ou SUDENE. Sudene Informa..., p. 18. 451 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 17, 30.

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salários mínimos regionais, auto-suficientes, mas que não geravam excedente452. O volume de

recursos disponibilizados para o período de 1975/1977 foi de Cr$ 3 bilhões453. A tabela

abaixo sintetiza a distribuição desses recursos no referido triênio pelos estados nordestinos.

Imagem 7: Distribuição dos recursos do POLONORDESTE pelos estados da região Nordeste (1975/1976)

Fonte: SUDENE. SUDENE. Sudene Informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar, 1976, p. 25.

Enquanto produto de uma política de planejamento ordenada pelo capital, os discursos

sobre o POLONORDESTE visaram a subtração das leituras classistas sobre a realidade

agrária do Nordeste. O conceito de “pequeno produtor”, por exemplo, buscou definir de forma

“positiva” o proletariado rural, enquanto a questão agrária foi tida (novamente!) como uma

“questão de produtividade”, excluindo assim qualquer crítica a estrutura fundiária. Nesse

sentido, o programa propunha dinamizar o trabalho do minifundista por meio do fornecimento

de crédito oficial, afirmando que essa estratégia resultaria na utilização da mão-de-obra

abundante e na elevação da produção454. Assim como para as demais políticas governamentais

do setor agrário, a propriedade (e não a posse) foi o critério central para o acesso a crédito e

aos “benefícios” do POLONORDESTE, o que excluiu centenas de trabalhadores sem terra do

raio de ação do programa. A execução do POLONORDESTE, assim como ocorrera com o

452 Idem, Ibidem, p. 15-16. 453 SUDENE. Sudene Informa..., p. 23. 454 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 16-17.

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PROTERRA, deixou clara redução ou subtração das demandas sociais em detrimento da

elevação da produtividade.

Do ponto de vista operativo, afirma Yony Sampaio que o distanciamento entre as

agências executoras (empresas de assistência técnica e extensão rural, cooperativas, grupos de

avaliação) e as forças político-governamentais regionais e nacionais que em última instância

determinavam o orçamento POLONORDESTE, produziu diferenças significativas entre as

demandas sociais e os recursos disponíveis, obrigando os técnicos a realizarem cortes ou

limitações de custeio, precarizando o seu trabalho, comprometendo os objetivos sociais do

programa e reforçando assim a estrutura vigente. Sintetiza esse autor que, assim como houve

uma indústria da seca, houve também uma indústria do POLONORDESTE, ligada ao capital

financeiro e a indústria de construções455.

O último dos grandes programas agrários aplicados sobre o Nordeste foi o Projeto

Sertanejo, em 1976 e seu surgimento teve relação direta com a luta “regional” pela

reabilitação do papel criador da SUDENE enquanto órgão representante da região. Dispondo

de recursos no valor de Cr$ 1,2 bilhão para o período de 1976/79, o Projeto Sertanejo visou a

criação de 20 núcleos de trabalho no Nordeste, que deveriam ficar sob responsabilidade do

DNOCS, da CODEVASF e dos Governos Estaduais. Cada núcleo deveria possuir uma

“patrulha mecanizada” (composta por caminhões e tratores, entre outros equipamentos) para

construção de açudes, abertura de poços e sistematização dos solos e compor equipes técnicas

formadas por “engenheiros civis, engenheiros agrônomos, assistentes sociais, econmistas,

zootecnistas, técnicos agrícolas, topógrafos, desenhistas, fiscais de açude, comunicador,

administrador, técnico em contabilidade”456, para a elaboração de projetos e assistência com o

objetivo básico de

tornar a economia da região semi-árida do Nordeste mais resistente aos efeitos das secas, mediante, principalmente, a associação da agricultura irrigada como a agricultura seca. A estratégia do Projeto Sertanejo dá ênfase à organização e reorganização das unidades produtivas da região, de modo a, de um lado normalizar, ao máximo, o processo de produção; e, de outro, a assegurar o nível de emprego, reduzindo as repercussões de natureza social provocadas pelo fenômeno das secas.457

455 SAMPAIO, Yony. Estrutura e Burocracia no Polonordeste: de como os técnicos ajudam o poder. Recife: Curso de Mestrado em Economia - PIMES-UFPE, 1981, p. 1-9 (Série Textos para Discussão, 109). 456 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Implantação dos Núcleos. 457 O SERTANEJO é, antes de tudo, um forte. Planejamento & Desenvolvimento. Rio de Janeiro: [s.n.], v. 4, n. 41, out. 1976, p. 20-21.

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Muitos núcleos não foram implantados ou entraram em funcionamento com estrutura

precária, por outro lado a composição das equipes de trabalho da forma prevista, se tornou

inviável devido a qualificação e a quantidade de profissionais exigida. Embora a “estrutura

fundiária inadequada” seja pontuada entre os principais problemas da área de atuação do

programa (por gerar uma subutilização das terras, o subemprego e uma massa de

trabalhadores sem terra) e tenha o Projeto Sertanejo entre suas metas possibilitar o acesso à

terra a “pelo menos” 20% dos beneficiários (cerca de 48.000 pessoas), as referências

direcionadas ao problema diluem-se na genérica afirmação de que serão usados, “sempre que

necessário”, “meios adequados à correção das distorções da estrutura fundiária”458.

Uma análise crítica dos objetivos traçados para o Projeto Sertanejo, demonstra ainda

que a questão da renda familiar reduziu-se ao enfoque sobre necessidade de melhoramento

das técnicas usadas e do aumento da produtividade. Nesse sentido, o projeto prevê “preparar

os agricultores através de assistência direta e contínua para a utilização mais racional de suas

propriedades e recursos de modo a incrementar e regularizar seus níveis de renda e eliminar

ou reduzir suas dificuldades durante as estiagens prolongadas”459.

A implantação de propostas, órgãos e projetos voltados para a modernização das

relações produtivas do Nordeste, entre as décadas de 1950 e 1970, não gerou a melhoria das

condições de vidas dos trabalhadores pobres e nem alterou a estrutura fundiária concentrada.

A distância entre os objetivos propostos e os resultados alcançados anulou as perspectivas

mais populares. As causas desse distanciamento são das mais diversas naturezas, como por

exemplo: a presença de ações e objetivos iguais provindos de projetos diferentes na mesma

área; a ação isolada de alguns órgãos oficiais; a desarticulação entre a extensão rural e a

iniciativa social (educação/saúde); a política indiscriminada de crédito e a disparidade dos

valores financiados entre grandes e pequenos produtores. Além desses, destacaram-se a

dificuldade de integração entre as instâncias estaduais e federais dos programas, a

incorporação de diversos projetos existentes anteriormente ao POLONORDESTE e ao Projeto

Sertanejo, tornando-os meros repassadores de recursos, e a influência das elites agrárias

regionais sobre as ações460.

458 SUDENE. Projeto Sertanejo: características, programa de trabalho, etapa e implantação. Recife, 1977, p. 15 459 Idem, Ibidem, p. 13. 460 SAMPAIO, Y.; FERREIRA IRMÃO, J.; GOMES, G. M. Política Agrícola no Nordeste... especialmente PARTE VI e trechos dedicados a avaliação de cada projeto.

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173

Do ponto de vista da expansão das relações capitalistas no Nordeste, todavia, as

iniciativas modernizadoras foram eficientes. Tendo o uso do crédito oficial como ferramenta

principal, essas iniciativas garantiram a monetarização das relações de produção (por meio da

disponibilização de fartos volumes de recursos), a formação de um mercado de terras e o

incentivo a aquisição de máquinas e implementos agrícolas que refletiu diretamente nos

setores industriais. Por outro lado, elevaram a produtividade, racionalizaram as estratégias, o

uso dos espaços, dos recursos naturais e da capacidade de mão-de-obra; incluiram novas

técnicas de produção agropecuária, implantaram a infra-estrutura básica que facilitou o

escoamento da produção, incentivaram o comércio, integraram o “pequeno produtor” na

engrenagem do crédito oficial e produziram o “regional”, enquanto ferramenta de integração

de uma fração espacial à dinâmica nacional da economia de mercado.

O Nordeste foi, pois, na segunda metade do século XX, uma região econômica nos

termos definidos por Francisco de Oliveira, um espaço planejado pelo e para o capital,

interligado ao projeto de “integração” e “desenvolvimento” afirmado pelos Governos

Nacionais. Como demonstra Iná Elias de Castro, a construção desse espaço foi também

produto da ação das elites internas ao Nordeste461. No jogo político junto aos grupos

dominantes nacionais, essas elites regionais alimentaram-se da produção de “condições de

subdesenvolvimento perene”, adequando suas abordagens discursivas às representações

espaciais correntes por meio da fundação de um discurso regionalista que ora anunciava o

Nordeste seco, ora o Nordeste atrasado e dependente da modernização como forma de

barganhar atenção e recursos. Na medida em que instituiram esse discurso político, as elites

regionais produziram ferramentas de identificação e coesão dos seus grupos e produziram

formas de manutenção da hegemonia local. Visaram elas defender os padrões ou vantagens

que lhes garantiam o prestígio462. Os resultados dos programas implantados no Nordeste,

assim, em nada se antagonizaram à expansão do capital, foi antes, uma estratégia de equilíbrio

ou modelo de articulação seguro para os interesses dos grupos regionais e nacionais.

Diante dessas observações, passamos a enxergar um pano de fundo na bela imagem

estampada na capa do informe da SUDENE de jan/mar de 1976 apresentada acima. Por trás

da representação de uma família laboriosa “pequeno produtora”, cujos braços familiares desde

461 Ver críticas à reflexão de Francisco de Oliveira em CASTRO, I. E. de. O mito da necessidade..., p. 63-68, as principais gravitam em torno da ênfase excessiva nas estruturas (que impedem a observação da ação dos sujeitos), da presença de um determinismo econômico e da omissão da dinâmica intra-espacial das classes. 462 CASTRO, I. E. O mito da necessidade..., p. 49.

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cedo rompem a terra anunciando, na presença de novas tecnologias, um novo ritmo e sentido

de produzir no Brasil, está o planejamento, a ideia “mestra”463 que garantiu o erguimento de

uma região econômica de extração para o capital, a partir da atualização segura (sem alterar a

estrutura fundiária vigente) dos mecanismos de reprodução ampliada, do condicionamento

dos recursos usados e da repartição dos benefícios entre as elites agrárias nacionais e

regionais.

A compreensão do processo de expansão da modernização agrária sobre o Nordeste é,

portanto, complexa. Tendo iniciado ainda em 1940 ela aprofundou-se como parte integrante

de um projeto de modernização nacional – a modernização conservadora- durante os

Governos Militares. Esse processo envolveu sujeitos diversos (os locutores e os silenciados),

classes e frações de classe, órgãos, interesses e escalas diversas de poder e requer revisões.

Assim como no Nordeste, a modernização conservadora atingiu outros espaços rurais,

incentivando a mecanização e a monetarização das relações de produção, distribuindo crédito,

expropriando a terra ou sua renda, elevando as condições de proletarização das populações

rurais, subordinando, alterando e até eliminando diversas outras formas não capitalistas de

“ser” do agrário brasileiro.

O entendimento desse processo perpassa a análise dos condicionamentos impostos

pelo capital ao trabalho, à terra, ao espaço agrário agrário e à produção. Após o esboço do

quadro ideológico, político e econômico vigente no Brasil em meados do século XX,

busquemos entender a partir de uma abordagem teórico-metodológicas, os impactos da

modernização conservadora sobre as relações agrárias e urbanas e a vida dos trabalhadores.

Modernizando a roça: impactos do capital planejado na dinâmica produtiva dos trabalhadores rurais

Os principais estudos que tiveram o processo de modernização do espaço agrário

brasileiro como objeto de análise pertencem às áreas da Economia, Sociologia, Geografia e

Antropologia. Nesse ponto a História ainda é uma grande devedora. Quanto a abordagem

predominam nas pesquisas o enfoque sobre as mudanças ocorridas no setor agrícola, nas

relações de trabalho, a formação do “bóia-fria”, o êxodo rural, aspectos técnico-políticos

voltados para o crédito, os índices de mecanização, a ação do Estado como produtor de infra-

463 SUDENE. Sudene Informa..., p. 12.

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175

estrutura e o papel das relações de produção não-capitalistas para o desenvolvimento

capitalista brasileiro.

As categorias sociais mais abordadas nesses estudos são os posseiros, rendeiros,

pequenos proprietários e trabalhadores sem terra, analisados geralmente a partir de suas

relações com as dinâmicas agrícolas. Esse recorte analítico, além de restringir o entendimento

da dinâmica econômica poli-agro-pecuária comum às pequenas unidades produtivas, fonte de

resistência e sobrevivência da maioria das comunidades rurais do Brasil, ignora outras

categorias de trabalhadores que povoam os “rurais” brasileiros e que, mesmo possuindo

vínculos com a agricultura, não dependiam dela exclusivamente, como é o caso dos vaqueiros

do Nordeste, dos peões do centro oeste e dos diversos tipos de trabalhadores extrativistas que

também foram atingidos pela modernização conservadora.

Há, pois, que se entender o processo de modernização do campo a partir da pluralidade

do próprio rural. A predominância de uma abordagem dos impactos da modernização

conservadora, emoldurada sob o ângulo do setor agrícola, dá-se por centrar-se aí o maior

contingente de trabalhadores. Outra hipótese que pode ser destacada nesse sentido diz respeito

a cristalização de um “modelo interpretativo”, baseado na forma e na precocidade como se

deu o processo de modernização no Sudeste, que passou a ser apropriado para realização de

estudos em outras áreas do País.

Do ponto de vista de suas características principais, como já visto quando da análise

do exemplo nordestino, a modernização rural brasileira pautou-se nas necessidades de

industrialização e urbanização do pós-guerra e visou elevar a produção sem realizar alterações

na estrutura agrária vigente. Segundo Guilherme Delgado, a modernização conservadora

subordinou o campo aos centros urbanos de poder, especialmente São Paulo, e construiu um

grande sistema financeiro e fiscal regulador de distribuição de renda e riqueza intra-elites

agrárias e destas para com os empresários industriais464. Por outro lado, realizou a

expropriação da terra, diretamente ou por meio da ocupação de novas áreas, o controle da

renda dos pequenos agricultores e criadores, a expansão dos latifúndios, a expansão das

relações assalariadas, a acentuação do êxodo rural, a mecanização das relações de produção e

a formação do mercado agroindustrial.

464 DELGADO, G. C. Capital e Política no Brasil. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 226.

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176

Nesse meio o Estado teve sempre o papel central, a partir da construção de uma

infraestrutura (estradas, eletrificação, indústrias, armazéns), da concessão de incentivos

fiscais, da reorganização e criação de entidades de pesquisa e extensão rural e da criação de

políticas de desoneração de riscos produtivos como o Programa de Garantia da Atividade

Agropecuária (PROAGRO) e a política de garantia de preços. O elemento central que

articulou essas iniciativas foi o crédito público rural, expandido após a criação do Sistema

Nacional de Crédito Rural em 1965 (SNCR)465. Até esse período, somente o Banco do Brasil,

através de sua Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai), podia conceder créditos para

agricultores. O SNCR compôs-se de uma articulação entre diversas instituições, entre elas o

Banco do Brasil, o Banco Central, o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia. Outras

instituições ainda ocuparam o lugar de “órgãos vinculados” (BNDES, bancos privados,

estaduais, associações e cooperativas) e “órgãos articulados” (agências de assistência técnica).

O resultado dessa ação conjunta foi a estruturação de uma política nacional de incentivo a

agricultura que se difundiu rapidamente. Especifica a norma legal:

Art. 2º - Considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor. Art. 3º - São objetivos específicos do crédito rural: I - estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuado por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural; II - favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários; III - possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;

Em seu artigo 11º a lei 4.829/65, que fundou o SNCR, apresenta cinco modalidades de

operações de crédito rural, duas delas nos interessam: I - Crédito Rural Corrente, destinado a

produtores rurais de capacidade técnica e substância econômica reconhecidas; II - Crédito

Rural Orientado, definido como “crédito tecnificado, com assistência técnica prestada pelo

financiador, diretamente ou através de entidade especializada em extensão rural, com o

objetivo de elevar os níveis de produtividade e melhorar o padrão de vida do produtor e sua

família”466.

465 Criado pela lei 4.829/65. 466 BRASIL. Lei nº 4.829, de 05 de novembro de 1965. Institucionaliza o crédito rural. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4829.htm>. Acesso em: 15 de fev/2012.

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177

Como podemos observar o Crédito Rural Orientado voltava-se para os médios e

pequenos produtores e pressupunha a ação de agências de extensão rural. De acordo com

Hildegardo R. Nogueira, as primeiras experiências de extensão rural no Brasil foram

realizadas em 1948 em São Paulo, com o apoio de agricultores, empresas, governo estadual e

da Associação Internacional Americana (AIA). Nesse mesmo ano foi criada a Associação de

Crédito e Assistência Rural (ACAR), uma sociedade civil sem fins lucrativos que passou a

atuar a partir de 1949 em Minas Gerais. Em 1954, criou-se a Associação Nordestina de

Crédito e Assistência Rural (ANCAR), com sede em Recife, produto de um convênio entre o

Banco do Nordeste, o Banco do Brasil e a AIA. Na Bahia as primeiras áreas de ação da

ANCAR foram os municípios de Serrinha, Tucano, Itapicurú, Inhambupe e Irará. No início da

década de 1960 as agências estaduais da ANCAR passaram a se tornar Associações Estaduais

Autônomas e em 1963 formou-se a ANCARBA, com sede em Salvador e unidades regionais

espalhadas pelo interior baiano467.

Os dados apontam para a intensidade com que se consolidaram essas ações. De acordo

com as observações de Tamás Szmrecsany e Pedro Ramos, entre 1950 e 1965 o número de

contratos de crédito rural no Brasil passou de 19 mil para 410 mil e a quantidade de

empréstimos a juros subsidiados para aquisição de tratores e outros equipamentos mais que

quadruplicou entre 1953 e 1966468. Guilherme Delgado também destaca que na década de

1970 houve a implantação do sub-setor industrial de insumos e bens de capital e que nesse

período o número de tratores na agricultura brasileira triplicou. Ainda segundo o autor, em

1976 o valor dos créditos concedidos já alcançava 20 bilhões de dólares, aproximadamente o

Produto Interno Bruto da Agricultura na época469.

Os custos sociais desse processo se reproduziram no mesmo ritmo das ações

governamentais e da expansão do crédito. O exemplo clássico do processo de controle do

acesso e da forma de uso da terra imposto pela modernização conservadora aos trabalhadores

rurais é a emergência do “trabalho volante” ou “bóia-fria”470 nas grandes cidades. Essa

relação de produção se caracteriza pela presença de um trabalhador expropriado dos meios de 467 NOGUEIRA, Hildegardo R. Extensão Rural no Estado da Bahia: antecedentes, evolução e influência no desempenho da agricultura baiana. Salvador: EMATER-BA, 1984, p. 2-3. 468 SZMRECSANYI, Tamás; RAMOS, Pedro. O papel das políticas governamentais na modernização da agricultura brasileira. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 237. 469 DELGADO, G. C. Capital e Política no Brasil..., p. 222. 470 Ver: D’INCAO, Maria Conceição. O “bóia-fria”: acumulação e miséria. 3ª Ed. Pretrópolis: Vozes, 1976 e GONZALES, Elbio N.; BASTOS, Maria Inês. Trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime. Capital e Trabalho no Campo. São Paulo: HUCITEC, 1979 (Coleção Estudos Brasileiros, 7), p. 25-47.

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produção, residente nas periferias das cidades, ao qual resta apenas a venda da sua mão-de-

obra nas lavouras, por um rígido e intenso sistema de trabalho, pelo condicionamento da

renda familiar às oscilações do mercado e pelo caráter sazonal do trabalho. A existência dessa

“relação” de trabalho encontra respaldo no Estatuto do Trabalhador Rural, na medida em que

esse não reconhece a “empreitada” como relação de emprego (condicionada pela

permanência, individualidade, subordinação, dependência hierárquica, salário), restando

assim os critérios da “lei comum”, que a classifica como “contrato agrário”.

José Vicente Tavares Santos afirma que as mudanças agrárias impostas pela

modernização conservadora aos trabalhadores rurais, produziram condições desiguais de

acesso a terra e formas controladas de reprodução sócio-laboral dos grupos camponeses diante

dos diversos outros agentes (instituições, classes, frações), resultando assim, em condições

desiguais de ocupação e produção do espaço agrário471. Se, desde os anos 1930, o Estado

brasileiro empenhou-se em estabelecer um processo de disciplinarização da força-de trabalho,

por meio das políticas de colonização, de migração, de clientelismo e de recursos a violência

como condição para reprodução dos fatores sociais necessários à modernização rural472, no

período ditatorial, essa disciplinarização alcançou status de “sistema”.

Em nível das pequenas unidades agrárias, a modernização conservadora materializou-

se por meio da recriação de formas não capitalistas de produção, da extração da renda da

terra, via mecanismo de controle de preços e da subtração autonomia produtiva dos

camponeses. Como afirma José de Souza Martins, o modo como se deu o desenvolvimento do

capitalismo brasileiro não só redefiniu antigas relações de produção, condicionando-as à

reprodução do capital, como também gerou relações não capitalistas, contraditoriamente

necessárias à reprodução do próprio capital. Na base dessa dinâmica, o capital agiu

controlando o trabalho (e não mais o trabalhador como era o caso da escravidão) e a renda da

terra. Para Martins esse foi o modo que a elite brasileira buscou para acumular e se

modernizar mais depressa473.

Nesse sentido destaca Ariovaldo Umbelino de Oliveira que a expansão do trabalho

assalariado tem produzido também a expansão do trabalho familiar, uma vez que o aumento

da concentração fundiária impulsiona também a luta pela recuperação das terras expropriadas.

471 SANTOS, José Vicente Tavares. Efeitos sociais da modernização da agricultura. In: SZMRECSANYI, Tamás (org.). História Econômica do Brasil Contemporâneo. São Paulo: HUCITEC, ABPHF, 1997, p. 252-253. 472 Idem, Ibidem, p. 252. 473 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra..., p. 36, 10.

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179

Para esse autor esse fato pode ser constado pelo crescente número de posseiros474. Esse

crescimento do trabalho familiar, contudo, não deixa de estar condicionado pelo capital uma

vez que este determina os níveis de valorização da produção dos trabalhadores e a oscilação

dos seus níveis de expansão.

Como destaca ainda Ariovaldo Umbelino, que o sistema de mercado imposto a

arrendatários, posseiros, rendeiros e pequenos proprietários retirou-lhes a autonomia sobre o

meio de produção (à terra e as ferramentas) à medida em que as relações externas (relações

comerciais, financeiras, industriais) passaram a determinar as condições, formas e tipos de

produção. Essas mudanças resultaram em alterações substanciais nas relações produtivas das

pequenas unidades rompendo a “forma simples” de produção/reprodução (M-D-M),

característica do trabalho familiar. Esse sistema é tratado como “simples” porque não visa a

reprodução acumulada, as mercadorias geradas pela família são transformadas em dinheiro

para aquisição de outra mercadoria, cuja função baseia-se no valor de uso, saindo esta da

circulação para consumo. Por exemplo: abastecida as condições básicas de sobrevivência

familiar, os produtos restantes são vendidos no mercado local para aquisição de alimentos ou

para contratação de mão-de-obra, não gerando, desta forma, uma acumulação.

Diante da valorização de determinados produtos em virtude das demandas do

mercado, os trabalhadores rurais viram-se incentivados ao cultivo dos mesmos, gerando por

vezes superprodução local e rebaixamento dos preços de venda. Além das oscilações do

mercado, como destaca Ariovaldo Umbelino, as baixas condições financeiras dos

trabalhadores os obrigaram a vender seus produtos (nos quais se encontram materializado

todo o trabalho familiar) in natura nos mercados locais e regionais, o que reduziu ainda mais

os níveis de renda adquiridos.

Esclarece o autor que os valores recebidos pelos trabalhadores em troca de suas

mercadorias desta forma, mal garantiram sua subsistência familiar, isso significa que parte do

trabalho investido foi (e é) repassado aos intermediários de forma gratuita uma vez que, nesse

sistema guiado pelas demandas do mercado, a mercadoria não se valoriza pela força de

trabalho investida, mas, pelo “nível do preço” que garante sua entrada na circulação. Diante

da necessidade de aumento da renda familiar os trabalhadores rurais viram-se obrigados a

adquirir empréstimos (a bancos, quando possível, ou a agentes privados), aumentar a jornada

474 OLIVEIRA, Ariobaldo Umbelino de. A agricultura camponesa no Brasil. 4ª Ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 25, 70-139.

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de trabalho, comprar ou alugar máquinas, adquirir insumos e incrementar a mão-de-obra

familiar por meio do assalariamento de terceiros.

Destaca ainda Ariovaldo Umbelino de Oliveira que essas estratégias, no entanto,

agravaram as condições de sobrevivência, aumentando as relações de dependência financeira

e a fragmentação das rendas adquiridas, já que, não havendo as condições de manutenção de

reservas de valor e diante das necessidades de dinamização do trabalho familiar em momentos

específicos da produção (uma colheita, por exemplo) os recursos direcionados a novas

aquisições (o salário dos trabalhadores contratados, por exemplo) foram retirados da renda

que garantia subsistência familiar. A família, por sua vez, foi obrigada a rebaixar suas

condições de sobrevivência na crença de que a produção vindoura restabelecesse as condições

mínimas. Tais esperanças, todavia, esbarraram-se novamente no mecanismo de preços

exercido pelo mercado475. Em síntese, o capital controlou a produção da terra sem

necessariamente expropriar seus possuidores.

José de Souza Martins, resgatando as observações de Marx, explica que a terra em si,

enquanto fator natural, não deveria ter valor, uma vez que não é fruto do trabalho humano, sua

absorção pelo capital, contudo, metamorfosea sua renda em renda territorial capitalizada476.

Desta forma, a emergência do mecanismo de controle da renda da terra, incentivado pelas

políticas de modernização agrária instaladas no Brasil em meados do século XX,

especialmente sob a vigilância do Governo Militar, interligou as pequenas unidades

produtoras aos mercados nacionais garantindo o encaminhamento de grandes volumes de

capitais do setor agropecuário para os setores industriais e comerciais via atravessadores,

juros bancários, monetarização das relações de produção e aquisição de maquinário. Sua

continuidade, contudo, impôs uma condição: a manutenção de parte significativa dos

trabalhadores pobres sobre altas taxas de exploração, a partir da manutenção condicionada das

relações pré-capitalistas no meio rural477.

Neste sentido, destaca Sérgio Silva que a contribuição da agricultura para o processo

de acumulação do capital no Brasil via políticas de modernização da agropecuária, foi

baseada na exposição de uma massa de trabalhadores à altas taxas de exploração, o que

amenizou os custos para a produção industrial (baixos custos de bens necessários à 475 Idem, Ibidem, p. 48-65. 476 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra..., p. 22, 36. 477 Sobre o mecanismo de controle de renda da terra ver também SILVA, Sérgio. Formas de acumulação e desenvolvimento do capitalismo no campo. In: PINSKY, Jaime (org.). Capital e Trabalho no Campo. 2ª Ed. São Paulo: HUCITEC, 1979, p. 10.

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reprodução da força-de-trabalho e baixos custos das matérias primas de origem agrícola)478.

Para José Graziano, embora de posse do meio de produção os trabalhadores rurais terminaram

por se “proletarizar”479, uma vez que o trabalho perdeu sua autonomia para o capital.

A “modernização sem reforma” estruturada a partir da década de 1960, ao atingir as

relações de produção sem se opor à estrutura fundiária posta na segunda metade do século

XX, garantiu a coexistência de um setor agropecuário “tradicional” condicionado por um

setor “moderno”, mecanizado, com altas taxas de produtividade. Como pontua Francisco de

Oliveira, o processo de modernização e industrialização do Brasil reservou para o espaço rural

duas funções específicas: 1) de abastecer o setor produtivo industrial com bens de capital por

meio da exportação de produtos primários e garantir o consumo interno sem elevar os custos

da alimentação, a partir da manutenção de um conjunto de relações de trabalho em “padrão

primitivo” (alta taxa de exploração da força de trabalho) via mecanismo de controle da renda

da terra; 2) fornecer mão-de-obra para os centros urbanos – “exército de reserva” – através do

deslocamento de massas rurais para as cidades em virtude da “expansão horizontal” das terras

e da mecanização da lavoura, como forma de controlar a elevação dos salários. Para o autor, o

sacrifício das massas rurais empobrecidas e da ação centralizadora do Estado, garantiu ao

meio urbano-industrial o posto de “unidade-chave” do processo de expansão das relações

capitalistas no Brasil480.

Na década de 1970 todas as áreas do País foram alvos de projetos e políticas voltadas

para o aumento da produtividade agrícola e da expansão das relações de mercado. No

Nordeste essas iniciativas se destacaram especialmente pela instituição do

POLONORDESTE, tanto pela sua abrangência e diversidade de setores de ação, quanto pelo

volume de recursos aplicados. Como discorre Guilherme Delgado, é importante sempre

destacarmos que a consolidação da modernização conservadora resultou do apagamento de

diversas propostas e convicções sobre o espaço agrário brasileiro e da eliminação física dos

movimentos em prol da reforma agrária481.

Como determinava o I PND, “A revolução foi feita para construir”482 e produzia a

“grande empresa nacional”, uma “sociedade de mercado” produtivamente compatível com as

478 SILVA, S. Formas de acumulação e desenvolvimento..., p.12. 479 SILVA, José Graziano da apud WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986, p. 27. 480 OLIVEIRA, F. de. A economia brasileira..., p. 16-25. 481 DELGADO, G. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra..., p. 164. 482 BRASIL. P. da R. I Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 13.

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nações desenvolvidas, cuja face agrária correspondeu à modernização conservadora. A

pequena frase, todavia, chama a atenção por aquilo que oculta. A “revolução” esconde um

projeto de controle social baseado no autoritarismo e na repressão às classes trabalhadoras e

intelectuais; o “construir”, indica os rumos econômicos e políticos sem tocar nos custos, nas

formas de tais mudanças, no condicionamento dos espaços e nos demais projetos de nação e

de agrário que silencia. Paralelamente ao processo político econômico capitalista-tecnológico

que embasou o modelo conservador de modernização agrária e urbana dos Governos

Brasileiros (regionais e nacionais) no pós-guerra, deu-se a chegada das primeiras iniciativas

de modernização rural sobre o nosso espaço de estudo, o Sertão de Irecê.

“Aquí, govêrno e povo irmanados, plantam a semente do progresso”: mudanças agrárias desfazendo o Sertão de Irecê

O aperfeiçoamento e a chegada de novos equipamentos para preparo do solo, como os

arados, em meados do século XX, foram as primeiras mudanças mecânico-agrárias a

possibilitarem a elevação dos níveis de produção das pequenas unidades poli-agropecuárias

do Sertão de Irecê, além das necessidades de aprovisionamento. Narra Zizinho:

já peguei muito foi no cabo de um arado pra arrar cuns boi, o dia todo, todo, todo, de Jesus, eu c’um aradim dessa largurinha aqui assim, pra tirar 1 tarefa no dia era obrigado a gente pegar cedo e num parar ora nenhuma. [...] depois disso ai vêi a grade de boi. Trabaiei muito com grade de boi também! Gradano terra. [...] Essa ai já é de disco, quase que nem assim, a grade de trator mesmo, mais era..., é a mesma coisa, agora tem a trava dele, a gente travava ela e agora ela já, rendia mais que era larga, já tirava 4, 5 tarefa por dia, ai já nessa grade de boi o arado era muito difíci! [...] Era pocas pessoa que tinha a grade e os boi, era pôcas pessoa! [...] Era a mesma coisa de hoje, um ter um trator, era difíci!483

A partir da narrativa podemos observar que a inclusão dessas novas tecnologias na

agricultura, possibilitou a preparação de uma maior porção de terra em menor tempo.

Consequentemente, esses fatores ajudaram a elevar a quantidade produzida e permitiram a

geração de excedentes. Os viajantes que cruzaram o Sertão de Irecê nesse período registraram

a chegada dessas novas dinâmicas. O sociólogo norte-americano Donald Pierson, quando da

sua viagem pelo vale do São Francisco em 1950, informa que nesse ano, em Irecê, foi

instalada “uma pequena usina de descaroçamento de algodão e descascamento de arroz, que

funcionava apenas por ocasião da colheita”484. Em outro trecho destaca o informante:

483 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 484 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 545.

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anos antes da visita do autor a Irecê, na parte inferior da zona Média do Vale (do São Francisco), o governo federal plantou na localidade um campo de palma, um cacto [...] que se considerava também “excelente” alimento para a engorda do gado. Por essa ocasião, diversos campos de palma estavam sendo cultivados na área.485

As observações relatadas por Zizinho e Pierson apontam para a presença de iniciativas

particulares e públicas de uso e aquisição dessas novas tecnologias, as quais, podemos

imaginar, apesar de limitadas a certas localidades, possibilitavam mudanças significativas

para a vida dos que delas desfrutavam. Arar 1 ou 5 tarefas de terra por dia ou aumentar a

quantidade de algodão descaroçado, por exemplo, correspondia a uma mudança relevante na

vida produtiva e comercial das unidades rurais. No meio urbano a chegada da energia elétrica

mobilizava as comunidades sertanejas, interferia no seu cotidiano e fora sempre motivo de

grande festa. A presença desses novos equipamentos denuncia a penetração no Sertão de Irecê

da lógica produtiva baseada no desenvolvimento tecnológico e no incentivo às relações de

mercado que, como vimos, se espalhava pelo Brasil a partir de meados do século XX. No

espaço em estudo, a incorporação dessas tecnologias manteve ritmo crescente por mais de

cinco décadas.

A participação governamental no processo de modernização das relações agrárias do

Platô Norte Diamantino remonta a 1943. Neste ano a Secretaria de Agricultura do Estado da

Bahia disponibilizou tratores para que pudessem ser alugados pelos produtores. Junto a essa

iniciativa, surgiram também as primeiras concessões de crédito para aquisição de

implementos. Imagem 8: Primeiros tratores do Sertão de Irecê, década de 1940

Fonte: RUBEM, Jackson. Irecê: história, casos e lendas. 2ª Ed. Irecê: Print Fox Editora, 2001, p. 194.

485 Idem, Ibidem, p. 458.

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A imagem acima demonstra os tratores recém-chegados ao município de Irecê. Dois

deles são do tipo agrícola e dois do tipo “esteira”, usado no desmatamento de áreas e abertura

de estradas. Em ato solene, acompanhado pelo hasteamento da bandeira, esses equipamentos

foram fotografados como protagonistas de um momento. O local escolhido para produção da

imagem não é menos importante: o Colégio Faustiniano Lopes Ribeiro. Assim como os

tratores, o colégio surge aí como símbolo de civilidade, de um novo tempo, lugar da presença

do Estado. Ao fundo, crianças e adultos bem vestidos se aglomeram em busca de um espaço

entre as modernas máquinas.

Na contrapartida às iniciativas dos Governos Estaduais, as autoridades da cidade de

Irecê, percebendo a chegada das novas dinâmicas agrícolas, buscaram reforçar o controle

fiscal intra e inter município e divulgar as potencialidades produtivas locais. Desde 1940 já

haviam questionamentos sobre a desproporção entre o pequeno volume de impostos

arrecadados e a capacidade fiscal da cidade. Em 1948 um requerimento reforçava o prélio

destacando a urgência em “aumentar as rendas do Município; nomeando para os povoados de

Prevenido e Ipanema, agentes arrecadadores por se tratar de povoados que têm grande

escoadores [...] (havendo) grande contrabando”486.

Nesse mesmo ano propunha-se a criação de cargos para “fiscaes gerais”, eficientes,

que zelassem pelo serviço de fiscalização uma vez que “a maioria dos fiscaes em atividade

são negligentes [...] estando a renda atual do nosso Município muito aquém das suas

possibilidades”487. Além de um maior controle sobre os impostos, essas mesmas autoridades

realizaram a padronização dos pesos e medidas locais como forma de facilitar as transações

comerciais. Em debate realizado no ano de 1949, o poder legislativo de Irecê aprovou por

unanimidade e em “regime de urgência” a “arroba de 15 kilos” como padrão no município488.

Em 1953 o então prefeito da cidade de Irecê, em correspondência ao presidente da

Câmara Municipal de Vereadores, destacou que “a necessidade de reaparelhar os tratores que

aí estão para serviços agrícolas no Município é imediata afim de que se possa ganhar tempo

para atender ao maior número possível de agricultores”489. A despesa para a manutenção dos

equipamentos naquele momento, ainda segundo o prefeito, era de Cr$ 15.000,00 acrescida de

486 CMI. Arquivo da Secretaria – Ofícios 1955. Requerimento sem identificação. 7 de maio de 1948. Irecê. 487 Idem. Requerimento do vereador Antônio Cambuí Primo. 28 de maio de 1948. Irecê. 488 CMI, Matéria Aprovada em discursão final (documentos diversos). Ata nº 14. 29 de setembro de 1949. Irecê. 489 CMI, Ofícios e comunicações da Prefeitura Municipal. Correspondência do Prefeito ao presidente da Câmara Municipal de Irecê. 3 de julho de 1953. Irecê.

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Cr$ 25.000,00 pendentes do ano anterior. Tal valor pesava nos cofres públicos, superando a

maior parte das receitas arrecadadas no período e correspondendo a 71,8% do valor total

reservado ao fomento (à produção agrícola e animal) do ano referido490. A preocupação com

os recursos municipais levou o prefeito anos depois a sentenciar: “a verdade que todos

precisam saber e compreender é que nenhum administrador pode fazer milagres, pode

executar obras sem dispor de recursos para tanto”491.

Zizinho conta que, quando jovem, no exercício de sua função de carreiro, por diversas

vezes foi obrigado a buscar estratégias para burlar a fiscalização na cidade de Irecê:

En: Eu passei muito dento de Irecê, já quando..., lá do Alto da Jurema de Gabriel, com 60 arroba de porco, passar em Irecê, chegava ali onde hoje é o mercadão, passava remédio no carro (de boi) pra num cantar, pra passar a boca da noite pros guarda num me pegar, nesse tempo já tinha guarda, a gente já passava trancano [...] passava sabão no eixo do carro pra num cantar, passar na rua de Irecê, passava bem dento do cabaré de Irecê naquela época. [...]. E: Mais ou menos quando, que época? En: (19)57, (19)58 era mais ou menos. [...] Fiscal, já tinha que pagar multa, imposto! Tinha que pagar imposto já492.

Um novo órgão de incentivo a produção agrícola chegou em Irecê ainda em 1953: a

Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), que atuou incentivando o uso de máquinas

agrícolas e prestando assistência técnica aos produtores através de sua Residência Agrícola.

Em correspondência direcionada a esta instituição, as autoridades legislativas de Irecê

relataram a esperança de que a instalação do “serviço de mecanização da lavoura” gerasse o

“levantamento para dias melhores” e de que “este serviço” preparasse “os filhos desta terra

para a batalha da produção que muito está a carecer a nossa querida Pátria”493. Nesse mesmo

ano o Banco do Brasil iniciou a concessão de financiamentos para as propriedades rurais via

Carteira Agrícola494, atendendo a alguns produtores do Sertão de Irecê nas agências das

cidades vizinhas, especialmente Jacobina e Barra do Rio Grande.

490 CMI, Matéria Aprovada em discursão final (documentos diversos). Projeto de Lei nº 52 de 1952 – Orça a Receita e fixa a Despêsa do Município de Irecê, para o exercício de 1953, Despesas [s.p.], 1952. O valor total reservado ao fomento agrícola e pecuário para 1953 foi de Cr$ 48.700,00. 491 CMI. Secretaria da Câmara Municipal – Correspondência Expedida 1961.Correspondência do Prefeito Deraldo da Silva Dourado encaminhada à Câmara de Vereadores. 15 de outubro de 1957. Irecê. 492 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011. 493 CMI, Câmara Municipal Arquivo da Secretaria – Ofícios 1955. Correspondência do Presidente da Câmara de Vereadores de Irecê, Renério J. Dourado, ao Agrônomo da Residência Agrícola de Irecê, Ivan Chagas. [1955]. Irecê. 494 DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 55.

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186

Imagem 9: Produção agrícola das principais culturas da “região agrícola” de Irecê (1950-1956)

Em 1956 foi também instalada na cidade de Irecê a agência do Banco da Bahia S/A, e

ainda nesse decênio teve início a chamada “Operação Irecê”, que unia a ação da Secretaria de

Agricultura do Estado da Bahia e da CVSF no sentido de financiar a compra de tratores,

arados, inseticidas, implementos agrícolas e garantir o serviço técnico de manutenção495. Ao

lado dessas ações as autoridades da cidade buscaram alertar constantemente o Governo

Estadual sobre a insuficiência do número de máquinas e recursos diante da crescente demanda

dos lavradores e dos “incessantes” apelos “no sentido (de) lhes ser concedida sementes (de)

feijão (e) milho dado custo elevado destes cereais nesta região tornando sua aquisição

inacessível (aos) agricultores pobres desejosos (de) semeiar (sic) suas pequenas roças”496.

O geógrafo Aluízio Capdeville Duarte, que visitou o Sertão de Irecê em 1963,

apresenta os seguintes dados relativos à produção agrícola no Platô Norte Diamantino e áreas

próximas, por ele denominada “região agrícola de Irecê”, no período de 1950 à 1956.

Fonte: DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 54.

A partir dos registros do autor observamos uma elevação significativa das quantidades

de grãos produzidas a partir de 1952. Como vimos, esse momento condiz com o período de

chegada dos primeiros órgãos e ações de desenvolvimento agrícola à cidade de Irecê. Embora

importantes para uma mensuração das mudanças ocorridas nos níveis e condições de

produção do Platô durante a década de 1950, os dados apresentados por Aluízio Capdeville

495 Idem, Ibidem, p.54. 496 CMI, Secretaria da Câmara Municipal Correspondência Expedida 1961. Solicitação do Presidente e secretário da Câmara Municipal de Irecê ao Governador da Bahia Dr. Régis Pacheco. [1951 à1955]. Irecê. (grifo nosso).

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187

Duarte se tornam passíveis de questionamento, na medida em que o autor não apresenta a

fonte de onde os extraiu. A ação governamental de maior peso no Sertão de Irecê até a década

de 1950 foi, contudo, a criação da estrada de rodagem ligando o município de Feira de

Santana a Xique-Xique, concluída em 1959.

Essa via tornou-se fator central para expansão e consolidação das políticas

governamentais no Platô Norte Diamantino e roximidades e pode ser entendida como parte

integrante da política de incentivo dos Governos Baianos ao uso do automóvel, que se

estendia desde a década de 1920, definida por Antônio Fernando Guerreiro de Freitas como

“febre de construir estradas”497. Ao possibilitar o acesso e a realização de investimentos em

áreas ainda pouco conhecidas pelos poderes públicos estaduais e federais, essa rodovia, que

passou a ser denominada BA-052, alterou a hierarquia dos centros urbanos do interior baiano.

Cidades como Jacobina e Xique-Xique, pólos comerciais da parte central da Bahia até meados

do século XX, passaram a competir com outros núcleos urbanos e a partir da década de

1970/1980 perderam importância econômica e populacional para cidade de Irecê.

Embora já circulasse pelo Platô Norte Diamantino desde a década de 1940, foi a partir

da abertura da BA-052 que o caminhão se popularizou nesta área. A maior frequência desses

veículos permitiu o aumento dos fluxos comerciais e de transporte por meio da diminuição do

tempo gasto para deslocamento, da elevação da capacidade de carga e da integração das

comunidades sertanejas mais distantes à esfera estadual e nacional de circulação de produtos.

No Sertão de Irecê os caminhões chegavam trazendo mercadorias vindas de outras áreas do

Estado e retornavam com produtos agrícolas como feijão, milho, mandioca e mamona e sua

presença causava admiração aos habitantes dos lugarejos. Guilhermino diz que: [...] o primêro carro que entrô aqui (América Dourada – João Dourado) dento, o povo chamava Asa Branca, era um caminhão Chevrolet, um GMC cara branca, a pele (pintura) dele era branca, né, e ele entrava aqui cantano Asa Branca, o povão saía tudo das casa pra ver! Muié, home e tudo, saía tudo pra ver! [...] esse carro vinha desse mundo aí, de Feira de Santana e tudo mais, entrava aqui e foi trazeno mercadoria [...]498

Em 1960 já estavam implantados sobre o Sertão de Irecê os principais elementos de

desenvolvimento rural: o representante financeiro, o órgão do Governo Estadual voltado para

o incentivo agrícola, o crédito, a máquina (caminhão, trator), a assistência técnica e a estrada.

497 FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de. “Eu vou para a Bahia”: a construção da regionalidade contemporânea. Bahia Análise & Dados. Salvador-Ba: SEI, vol. 9, nº 4, mar/2000, p. 32-34. 498 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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188

Todavia, com exceção da BA-052, de natureza diversa, o acesso às demais tecnologias e

serviços deu-se de forma restrita, limitada aos grandes produtores devido ao número reduzido

de equipamentos, aos elevados custos de manutenção e aluguel de implementos e ao

distanciamento entre órgãos de assistência e pequenos produtores. Zizinho esclarece: En: Foi o primêro trator que a gente cunheceu foi o da CODEVASF. E: E como era assim, o pessoal usava ele como? [...]Ah! aquilo ali era difíci,[...] só trabalhava pra, era pra gentão, num era pra gentinha piquena, que fazia alguma coisa com ele não. Xxxxx, tratozão azul, ele vêi de xx, tinha o de istêra, tinha ôto xxx, abria tanque! 52 (1952) abriu tanque aqui na região aqui499.

É porque nessa época (final dos anos 1950 e início dos anos 1960) quem fazia contrato no banco (do Brasil), tinha o banco do Brasil em Jacobina, e a coperativa, era pôcas pessoas que fazia contrato, que tinha condições de sair daqui pra ir fazer um contrato em Jacobina, tinha gente de ficar 30 dia lá em Jacobina. [...] Era, aqueles que tinha aquelas área grande, num sabe, tava bem estruturado, hoje em dia todo mundo faz um contrato no banco, vai no Banco do Nordeste, vai no Banco do Brasil, faz xxx, faz contrato com qualquer um documento, aquele tempo num fazia não! Num era!?500.

Sendo limitadas, pouco interferiram essas primeiras diligências de modernização na

vida dos trabalhadores rurais do Sertão de Irecê, em nada amenizando as penúrias que se

alastravam diante da ocorrência de estiagens e pragas. Donald Pierson destaca que “durante

sua primeira visita ao vale [...] uma área muito extensa em volta de Irecê havia sido devastada

pelos gafanhotos em janeiro e fevereiro daquele ano (1950). O prefeito local considerava isto

um ‘fato quase perene’. Até mesmo o ‘matapasto’ havia sido devorado”501. Esse quadro

permaneceu ainda por certo tempo. Cerca de dez anos depois a Câmara de Vereadores de

Irecê alertou às autoridades federais sobre a ocorrência de uma nova seca que causou “efeitos

DESASTROSOS”, e solicitou verbas para a realização de obras que atenuassem as “enormes

dificuldades” ocorridas “devido (a) falta (de) chuvas”, o “prejuízo quase total (da) safra” e o

“exodo”502. Nesses momentos, para parte relevante da população pobre do Sertão de Irecê,

desassistida pelas recentes iniciativas de modernização rural, a fuga para outras áreas em

busca de melhores condições de vida foi uma das poucas, se não a única, solução.

499 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. O entrevistado se refere a CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco - por ser essa a referência onomástica mais recente para o órgão, que em 1952 ainda se chamava CVSF – Comissão do Vale do São Francisco. 500 Idem, Ibidem, loc. cit 501 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 474. 502 CMI, Secretaria da Câmara Municipal Correspondência Expedida 1961. Solicitação dos Vereadores da Câmara Municipal de Irecê destinada ao Presidente da República. [1957 à1961]. Irecê.

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189

Em Irecê, na Bahia, [...] um vaqueiro [...] estava de partida com para Goiás com nove companheiros porque, como disse “ouvimos dizer que chove lá, enquanto que aqui faz uma seca danada o ano inteiro”. [...] Duas outras famílias, num total de dez pessoas, estavam também de partida na mesma ocasião, por caminhão, a caminho de Montes Claros, de onde esperavam continuar até Anápolis, em Goiás.503

Apesar do aspecto restrito, as primeiras iniciativas de modernização rural implantadas

no Sertão de Irecê até 1960, elevaram a produção em anos agrícolas normais e ajudaram a

tornar o Platô Norte Diamantino e as áreas próximas um espaço atraente aos fluxos

migratórios. Entre 1950 e 1960, o conjunto de municípios que atualmente compõe a Região

Administrativa de Irecê (de acordo com a regionalização da SEI: América Dourada, Barra do

Mendes, Barro Alto, Cafarnaum, Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê,

Itaguaçu da Bahia, João Dourado, Jussara, Lapão, Mulungu do Morro, Presidente Dutra, São

Gabriel, Uibaí e Xique-Xique) apresentou crescimento médio populacional de 3,47%a.a.(ao

ano), enquanto a taxa estadual era de apenas 2,04%a.a.504. Em 1950 habitavam nesses

municípios pouco mais de 97.800 pessoas, em 1960 esse número se elevou para

aproximadamente 129.800 indivíduos. Nesse conjunto, os municípios que apresentaram maior

elevação populacional nesse período foram Irecê, cuja população cresceu 128%; Presidente

Dutra, com acréscimo de quase 88% e Xique-Xique, com cerca de 44%505.

Os grupos migrantes que chegaram ao Sertão de Irecê provieram especialmente de

outros estados do Nordeste atingidos por estiagens. Nesse sentido, comum foi assistir os

caminhões “paus-de-arara” adentrarem o Sertão e suas poeirentas estradas conduzindo

“carradas” de “nortistas” em busca de trabalho nas lavouras, apoio técnico-financeiro e terras

para cultivo. Muitos deles adquiriram terras próprias aí se fixando. Guilhermino demonstra

bem como se intercalavam esses fatores:

[...] aqui em João Dourado aqui, você vê, esse mundo aqui tudo é imatado [...] Quando o banco financiô nêgo meteu o braço pra dento aí de nêgo dismatar aí 200, 300 tarefa de mato aí era rápido, né, com trator, com gente trabaiano, aparicia gente de todo o lado, o norte nesse tempo soltô povo muito de Pernambuco, de Ceará, o povo ia passano necessidade, chegava era a carrada e mais carrada (de pessoas), né, de gente, aí destampô (destampar, abrir) o mundo foi ligêro, né506.

A busca crescente por terra moveu também os trabalhadores locais. Relata Juarez:

503 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 51. 504SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê. Salvador: SEI, 2000. (Série Estudos e Pesquisas, nº 48), p. 21. 505 CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 13-16. Exclui-se aqui os dados referentes ao município de Cafarnaum, os quais não foram identificados. 506 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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Nós mesmo, quando nós vimo que o campo ia acabar, eu mais o véi meu pai ainda cerquemo uns pedaço de mato que tinha incostado a nossa roça, a nossas rocinha, que fiquemo, que nós coloquemo esse móizim de gado, e quem num fez isto, os ôtos chegantes que vinha de fora ia apusseano (apossando)507

A fala do entrevistado nos remete às observações de Nazareno José de Campos. Este

autor afirma que diante das pressões de valorização fundiária impostas pelo capitalismo, os

próprios beneficiários das terras de uso comum terminam por colaborar com sua extinção

pensando agir contra os grandes usurpadores508. No ritmo em que se elevou a demanda e a

ocupação dos terrenos do Platô Norte Diamantino ou de áreas próximas a este, o apossamento

foi sendo substituído pela compra, dando início a um mercado de terras que se alargou nas

décadas seguintes, como informa o vaqueiro Juarez:

Esse povo do norte que chegô aqui no Gabriel (São Gabriel) [...] e aqui uns comprô e ôtos só apussiô (apossô)! Apussiô terra, depois, os derradêro foi que compraro terra, os premêro que chegô ainda tinha terra solta aí, tinha campo, apussearo terra aí. [...] Tem gente aqui que ficô sem nada, vendeu tudo! Filho da terra!509

Aluízio Capdeville Duarte registrou em 1963, como testemunha ocular, os

direcionamentos iniciais da ocupação e desmatamento das áreas de campo:

os principais trechos cultivados se estendem de modo particular da cidade de Irecê para leste, oeste e sudeste, nas áreas de Lapão (então, distrito de Irecê) e do povoado de Gameleira. Os outros trechos e a parte leste do município de Central não apresentam a mesma intensidade quanto a ocupação agrícola. Na área setentrional de Irecê, isto é, no distrito de Gabriel, a caatinga é ainda abundante510

Hoje, a caatinga está bem reduzida, pois foi derrubada para instalação das lavouras. As capoeiras em diversos estágios, isto é, ora mais fechada e ora mais alta, aparecem por toda a área. Na parte setentrional do município (de Irecê) é que encontramos um trecho mais contínuo daquela vegetação que ainda não foi devastada, pois, como está mais distante das principais vias de comunicação, o povoamento, aí, ainda não se processou de maneira efetiva. [...] no distrito de Gabriel, a caatinga é ainda abundante e aí, a criação miúda representa papel digno de nota, enquanto a lavoura ocupa menor superfície. [...]511

A partir das observações de Capdeville observamos que o processo de derrubada da

caatinga e expansão das lavouras teve como centro as áreas circunvizinhas à cidade de Irecê, e

daí, se expandiram em direção às bordas do Platô Norte Diamantino. A análise dos dados

relativos ao número de estabelecimentos rurais e a área ocupada no município de Irecê512, é

507 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 508 CAMPOS, N. J. de. Terras de uso comum no Brasil..., p. 268-272. 509 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 510 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p.43. (grifo nosso). 511 Idem, Ibidem, loc. cit. 512 Segundo divisão administrativa anterior a 1985.

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significativa para entendermos a velocidade das mudanças fundiárias que se processaram no

Sertão de Irecê nas décadas iniciais da segunda metade do século XX.

Tabela 4: Área cultivada x número de estabelecimentos no município de Irecê (1950-1970)

Estrato de área (ha)

Área Cultivada (ha) Número de Estabelecimentos

1950(ha) 1960(ha) 1970(ha) 1950(nº) 1960(nº) 1970(nº) 1 3 32 1 3 47

1-2 1 13 164 1 9 108 2-5 556 493 3.205 135 131 901 5-10 1.985 2.663 7.041 263 332 982

10-20 4.859 6.117 11.425 341 421 798 20-50 8.454 22.589 37.858 285 686 1.169

Subtotal A 15.855 31.878 59.725 1.026 1.582 4.005 50-100 5.752 26.111 40.232 81 347 559

100-200 6.113 32.679 50.694 44 230 368 200-500 10.914 61.197 59.711 33 207 200 500-1000 3.788 20.207 21.011 5 31 30

1000 e mais 5.139 17.687 14.023 2 14 8 Subtotal B 31.706 157.881 185.671 165 829 1.165 Total Geral 47.561 189.759 245.396 1.191 2.411 5.170

.

Gráfico 1

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192

Gráfico 2

Fonte: WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986 p. 168 (adaptado).

Os dados demonstram uma elevação de aproximadamente 334% no número total de

estabelecimentos rurais e um acréscimo de 416% na área total cultivada entre 1950 e 1970 no

município em destaque. O primeiro índice demonstra o ritmo de apossamento das áreas de

campo, enquanto o segundo aponta diretamente para o intenso processo de desmatamento,

uma vez que, nem sempre a criação dos estabelecimentos vinha acompanhada imediatamente

da derrubada da caatinga. A tabela acima ainda nos permite compreender a participação das

pequenas e grandes propriedades nesse processo. O número de estabelecimentos acima de

50ha foi elevado em 606%, enquanto o número de estabelecimentos com até 50ha cresceu

apenas 290,3% no período analisado. Esses dados demonstram que a intensa horizontalização

das terras no contexto referido deu-se por meio de uma relação combinada entre

latifundização e avanço dos pequenos produtores sobre as áreas ainda não apossadas.

Esse ritmo intenso de derrubada da caatinga e apossamento das áreas, extendeu-se

pelo Platô Norte Diamantino e logo ultrapassou suas fronteiras. Recorrendo novamente às

observações de Aluízio Capdeville Duarte destaquemos um pouco mais sobre esse processo.

[...] nos últimos dez anos tem sido grande o devastamento das matas para a abertura de novas parcelas, ampliando muito o tamanho dos estabelecimentos. [...] Após alguns anos de cultivo essas terras são abandonadas, pois, há trechos ainda utilizados pelo livre pastoreio, que podem ser anexados sem grandes preocupações e com bons rendimentos513

513 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 57.

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A criação do Sistema Nacional de Crédito Rural em 1965 difundiu o crédito entre os

trabalhadores, elevou os recursos aplicados e intensificou a ocupação das áreas do Platô. Um

dos relatórios do Governo Baiano destaca:

Até o presente (1969-1970) já foram financiados 593 projetos (de custeio para as lavouras de feijão e milho) num montante de Cr$ 2.030.050,00 [...] As perspectivas para 1971 são bastante favoráveis pois a região será beneficiada pelo Plano Estadual para aplicação de crédito rural, onde foram alocados recursos da ordem de Cr$ 5.170.000,00 para inversões a curto, médio e longo prazos, além de ampliar consideràvelmente (sic) o quadro de pessoal técnico de nível superior514

Guilhermino afirma que

quando o banco deu pra financiar, aí o povo, muita gente de fora comprô terreno, muitos daqui que num tinha terreno meteu o peito e apussiô das terra, fez documento, que o banco só dava dinhêro a quem tinha documento, moço, tinha terreno muito, muito terreno aí do Estado que num tinha nem dono né515.

Zizinho explica que o banco “soltava aquele dinhêro, soltava um pôco pra distoca,

depois o ôto já pra planta, aração e planta ôta parcela, ôta parcela pra capina, dava 2 parcela

pra capina, e a colhêta. Tudo eles dava dinhêro!”516. Em que pese essa crescente difusão do

crédito oficial, as fontes privadas de financiamento da agricultura continuavam ativas na

década de 1960. O mesmo relatório destaca que paralelamente às suas atividades de compra e

venda de produtos o “agente comercial primário” continuava realizando “adiantamento(s) em

dinheiro” aos produtores, vendendo “ferramentas de trabalho, sacarias, e outras utilidades”517.

O primeiro sinal de apossamento dos terrenos era a derrubada da mata e a abertura de

trechos estreitos que marcavam as fronteiras da área, chamadas localmente de “picadas” ou

“variantes”. Em seguida realizava-se a derrubada da vegetação por meio do uso do fogo, de

ferramentas e, posteriormente, do uso de tratores. Por fim, efetuava-se a coleta do restolho.

Guilhermino informa que a caatinga era derrubada “a braço de home! [...] No machado, na

chibanca, nêgo metia chibanca aí em catinga, arrancaro o pau por tudo que era sêpa, queimar

e meter o arado, né, ôtos mitia gradão, trator, gradão e arrancava tudo, né, ôtos rancava com

trator. [...] esse ‘trator de istêra’ desmatô muita terra aqui”518. Zizinho afirma que: “Aqui era

roçado era na foice! Cortar aquele mato todim, rivirar pra depois queimar, fazer roçado,

depois voltar rancar o toco, pra dêxar a terra que nem isso aqui. Limpa! Pra depois o trator

514 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 14. 515 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 516 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 517 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 21. 518 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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arar, pra depois a gente plantar. É sofrido!”519. A irreversível ação sacrificava plantas e

animais, deixando a terra exposta e revolvida. Paralelo ao desmatamento e ao preparo do solo

dava-se o cercamento das áreas.

Segundo Aluízio Capdeville Duarte no início de 1960 “as parcelas (eram) separadas

por cerca viva utilizando o “quiabento” que é vegetal do tipo de trepadeira com grande

número de espinhos, que desempenha no sertão baiano o mesmo papel do “avelós” na zona do

agreste”520. A chegada do arame farpado substituiu essa forma de construção das cercas.

Juarez se lembra que o uso do arame iniciou-se em São Gabriel “de 60 pra cá, ô de 70 pra

cá!”521. Destaca ainda o entrevistado que, durante a década de 1960, ele e seu pai adquiriram

bolas de arame em Irecê para construção das primeiras cercas com esse material nas

propriedades da família. O termo “bola” é utilizado comumente entre os trabalhadores para

definir a forma de rolo sob a qual é vendido ou guardado o arame. Hermes, irmão de Juarez,

afirma que, quando da sua chegada à Vila de Recife de Jussara em 1968 já haviam

propriedades cercadas. Ressalta ainda que “tudo que fôro dismatando as catinga, fôro

cercando com essas cercas de arame, que primêro era de madêra! De garrancho! [...] quando

chegô... pássaro a comprar o arame, que apareceu o arame cerca o... ligêro né! Faz umas

cercas ligêras e fica bem cercado”522.

A difusão das cercas de arame farpado foi fator essencial para expansão da agricultura

e apropriação das áreas de campo do Sertão de Irecê, uma vez protegia as lavouras do ataque

dos animais que ainda eram criados à solta, ao mesmo tempo em que os expulsava para áreas

mais distantes. Deixando transparecer essa importância, em 1971, o Governo Baiano garantiu,

por meio do relatório Documento de Irecê, o encaminhamento para o Sertão de Irecê de

“arame farpado” da marca “Moto San Martin”, “grampo” e “prego” durante “todo o ano”523.

O arame farpado foi inventado nos Estados Unidos em 1873 (patenteado em 1874) e

aceito rapidamente entre os pecuaristas norte-americanos. Luiz Antônio Ferraro Júnior

registra a produção de 270 toneladas de arame em 1875 e 135 mil em 1901, destaca ainda esse

autor que sua implantação nas planícies do Texas (EUA) teve impacto direto na vida dos

indígenas e na migração natural dos animais. Em meados do século XX, o arame farpado

519 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, p. 42, 24 de set/2011. 520 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 51. 521 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 522 Idem, 3º momento, 16 de out/2010. 523 BAHIA. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Documento de Irecê. Salvador: SEPLANTEC, 1971a, p. 6.

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195

passou a ser implantado em todas as áreas rurais do Brasil524, instituindo uma forma rígida,

material, privada e exclusiva de fronteiramento e apropriação das áreas, bem diferente das

formas sociais usadas pelas comunidades tradicionais, como no caso das populações do Sertão

de Irecê.

Além da disponibilidade de terras, da difusão do crédito rural e do cercamento, outro

fator de destaque no processo de modernização rural do Sertão de Irecê entre as décadas de

1960 e 1970 foi o crescimento da frota de tratores. Nesse período, o sistema de aluguel de

máquinas implantado pelo Estado, passou conviver com a presença cada vez maior de

equipamentos adquiridos por produtores locais. Em 1961 o então Governador da Bahia,

Juracy Magalhães, informou as autoridades de Irecê que o “maquinário agrícola” iria

“retornar”, atendendo o “apêlo (dos) lavradores”525, nove anos depois, um dos documentos

oficias relatou que os municípios que compartilhavam o Platô Norte Diamantino se

destacavam “pela extensão da área cultivada, pelo valor da produção e pela utilização da

máquina nos trabalhos agrícolas”526. Em 1970, a Fundação de Planejamento do Estado da

Bahia atestou a existência de “aproximadamente 600 tratores agrícolas” em operação na área

e “mais de 130 pedidos de financiamento para aquisição de novos tratores” “nas agências

bancárias locais” 527.

Os dados relativos às taxas de tratorização no Sertão de Irecê, porém, apresentam

grande oscilação e requerem cuidados. Outro órgão oficial, destacou para o mesmo período

(início de 1970) a existência de apenas 352 tratores no Platô, tendo esse número, ainda

segundo o documento, sido elevado para 901 máquinas em 1975528. A disparidade dos dados

sobre a tratorização no Sertão de Irecê demonstra a dificuldade que essa rápida difusão

impunha à geração de registros coerentes com a realidade e aponta para o uso desses índices

como recurso de propaganda política por parte das autoridades. As elevadas cifras, por outro

lado, destacam a intensidade com que o trator assumiu o posto de novo símbolo do meio rural.

A elevação do número de tratores esteve diretamente ligada ao crescimento do desmatamento

das áreas de campo e a dilatação das áreas cultivadas. 524 FERRARO JÚNIOR, Luíz Antônio. Entre a invenção da tradição e a imaginação da sociedade sustentável: um estudo de caso dos fundos de pasto na Bahia. Brasília – DF: UNB, 2008 [Tese de doutorado], p. 45. 525 CMI, Câmara de Vereadores Correspondências Recebidas, telegramas, etc, 1959. Telegrama do governador Juracy Magalhães à Câmara Municipal de Irecê. 25 de abril de 1961. Irecê. 526 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões homogêneas 1968. Rio de Janeiro, 1970. p. 233. 527 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., [de 1969 a 1972], p. 10-11. 528 BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995 (Série: Desenvolvimento regional, 23), p. 91.

Page 196: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

196

O aprofundamento das medidas de modernização da agricultura do Sertão de Irecê

atraíu ainda mais os grupos migrantes. Entre 1960 e 1970 a taxa de crescimento populacional

do conjunto de municípios da atual Região Administrativa de Irecê (de acordo com a

regionalização da SEI) passou para 4,1%a.a, enquanto a média estadual foi de apenas

2,39%a.a529. O resultado da união entre a disponibilidade de terras, a mecanização, o

cercamento, o crédito e a oferta de mão-de-obra foi a construção de uma relação recíproca na

qual a elevação de um dos fatores ocasionava efeitos de crescimento nos demais.

Como reflexo dessa dinâmica, a produção agrícola não só cresceu como também

desenvolveu um ritmo galopante de ascensão (exceto nos momentos marcados pela ocorrência

de estiagens) que se estendeu até a década de 1980. Entre 1966 e 1968 o conjunto de

municípios formado por Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes,

Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí

apresentou os seguintes índices de produção para as três principais lavouras temporárias:

529 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes: Região de Irecê..., p. 21.

Font

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11.

Foto 2: Zadruga, um dos primeiros modelos de tratores agrícolas a chegarem no Sertão de Irecê, ainda na década de 1950

Page 197: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

197

Tabela 5: Relação total da Quantidade produzida (t) X Área Cultivada/Colhida (ha) X Valor (Cr$) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí entre 1966-1968.

Gráfico 3

Fonte: FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê. Salvador: [s.n.], [de 1969 a 1972], Síntese das tabelas 3.2-I, 3.2-II, 3.2-III-32.

Em 1966 a quantidade de feijão produzida nos municípios acima analisados equivaleu

respectivamente a 8,6% da produção total do Estado da Bahia, em 1968 essa cifra foi elevada

para 19,4%. Isso significou um crescimento de 147% (20.943 toneladas) em apenas dois anos.

Os principais produtores de feijão no contexto abordado foram Irecê, Central e Uibaí, que

centralizaram 74,4% da produção. O milho representou entre os anos de 1966 e 1968 a

segunda cultura mais importante, tendo sua produção sido elevada em 228%, correspondendo

Discriminação Quantidade (t) Área Cultivada (ha) Valor (Cr$)

1966 1967 1968 1966 1967 1968 1966 1967 1968 Feijão 14.176 25.902 35.119 9.855 34.400 40.885 5.781.280 9.734.910 10.187.240 Milho 20.381 48.360 66.856 18.185 49.150 54.690 1.869.098 6.673.350 6.467.160

Mamona 28.330 - 4.446 23.830 - 10.130 5.020.617 - 945.440

TOTAL 62.887 74.262 106.421 51.870 83.550 105.705 12.670.995 16.408.260 17.599.840

Page 198: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

198

respectivamente a 8,5% e 23,2% da produção estadual e centrando-se principalmente nos

municípios de Irecê, Central, Presidente Dutra e Uibaí530.

Embora apresente taxas negativas de produção e redução da área cultivada no período

observado, a mamona se destaca como terceiro produto mais importante do referido conjunto

de municípios entre 1966 e 1968. Esse produto ganhou maior destaque a partir de meados da

década de 1970, quando da ocorrência de estiagens que afetaram as culturas de menor

resistência. Ainda de acordo com os dados apresentados, observamos que o volume total de

recursos aplicados na produção dessas três culturas no período observado foi acrescido de

apenas 38,8%. A diferença entre os níveis de elevação da quantidade total de grãos colhida e

os níveis de elevação dos investimentos, aponta para um acréscimo produtivo de baixo custo,

garantido especialmente pela dilatação das áreas de cultivo.

A chegada de novos órgãos e iniciativas governamentais na década de 1970 dilatou os

processos de desenvolvimento agrícola gestados nos decênios anteriores e expandiu a

modernização conservadora sobre Sertão de Irecê. Nesse ano (1970) foi instalada em Irecê

uma das unidades regionais da ANCARBA (Associação Nordestina de Crédito e Assistência

Rural da Bahia)531, o que resultou na difusão ainda maior da assistência técnica e da extensão

rural e na elevação dos níveis de produção. Em 1974 uma nova ação governamental

intensificou o processo de modernização do Sertão de Irecê: o asfaltamento da BA-052, que

nessa época já era conhecida como Estrada do Feijão. Seguindo o processo que se decorria

desde a sua criação, o Governo Baiano reforçou nesse momento a idéia de que essa via

possuía a “missão” de despertar o interior. Em um dos documentos analisados encontramos a

seguinte imagem:

530 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê ..., [de 1969 a 1972], p. 15-17. 531 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola da Região de Irecê. Irecê: EMATERBA, 1980a, p. 26.

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199

Imagem 10: Asfaltamento da BA-052, Estrada do Feijão

Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, (capa final).

O texto que acompanha a imagem destaca:

Estradas... mais integração A Estrada do Feijão interligará dezenas de municípios em área de maior importância para a Economia e o abastecimento do Estado da Bahia. Os 462 Km desta rodovia podem demonstrar que a disposição inicial deste Governo, no sentido de integrar todo o interior baiano, já se transformou em realidade palpável. A este exemplo aliam-se muitos outros, ratificando a total integração do Estado, promovida nestes 3 anos de Governo532.

A foto demonstra uma bela C10 vermelha sobre o recente asfalto da Estada do Feijão.

As letras garrafais estampadas em sua carroceria expõem: “Chevrolet”. Esse automóvel por

muito tempo foi considerado nos sertões baianos como um objeto de luxo e trabalho. Era ao

mesmo tempo um carro urbano e rural, e nele se associaram o conforto interno e a grande

capacidade de carga, a robustez e o aspecto moderno (pelo menos para o período), fatores que

532 Idem, Ibidem, (capa final), (grifo do texto).

Page 200: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

200

tornaram a máquina um objeto desejado. É importante observarmos que os dois elementos da

imagem estão diretamente ligados a uma nova forma de marcar o tempo, de agilizar a

circulação, as tarefas e a comunicação, a adoção de novos caminhos sob novas formas. A

imagem reproduz, pois, o avanço da estratégia do governo baiano de afirmação da tecnologia

como mecanismo para um novo futuro, desenvolvido e produtivo, linear e rápido, sob o

interior baiano. Ainda hoje diversos desses carros circulam nas cidades e zonas rurais do Platô

Norte Diamantino e do seu entorno.

Segundo os órgãos oficiais, a Estrada do Feijão, quando do seu asfaltamento, era “a

melhor rodovia que corta(va) o solo baiano, obedecendo à mais avançada tecnologia” e junto

a ela desenvolver-se-ia uma “rede de rodovias” que seria conectada aos municípios e serviria

de artérias para implantação de serviços de eletrificação, educação, abastecimento, saúde,

comunicação e exploração dos potenciais turísticos. Sua função maior, porém, era servir de

escoadouro produtivo entre o interior e os grandes centros urbanos.

A estrada veio beneficiar cerca de 22 municípios e se constituirá no principal escoadouro da extraordinária produção cerealífera da micro-região de Irecê, bem como da produção bovina de Rui Barbosa e Mundo Novo. Os acessos serão permitidos a todas as cidade da sua zona de influência (8 por cento do território estadual) através de rede de rodovias alimentadoras construídas pelo Governo do Estado, Consórcio Rodoviário e Prefeituras. Cabe salientar, ainda, que todos os acessos às cidade mais próximas da BA-052 estão sendo asfaltados533.

A chegada dessa nova ação atraiu ainda mais a atenção para os potenciais produtivos do Platô

Norte Diamantino e de suas áreas marginais, uma vez que resolveu uma das principais

queixas das autoridades e comerciantes: as difíceis condições de tráfego dos caminhões pelo

interior.

Intensificando ainda mais o processo de expansão das áreas de lavoura, ainda na

década de 1970 deu-se a expansão de novas técnicas de desmatamento no Sertão de Irecê: o

“correntão”. Essa técnica consistia no uso de dois tratores do tipo esteira, distanciados em

torno de 20 metros um do outro, que seguiam paralelos, unidos por uma espessa corrente que

arrastava mesmo as árvores mais resistentes. A figura abaixo, baseada em um dos mapas da

Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, representa o avanço das áreas de

lavoura sobre à caatinga no ano de 1975.

533 Idem, Ibidem, p. 6, (grifo nosso).

Page 201: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

201

Imagem 11: Expansão das áreas agrícolas no Platô Norte Diamantino e proximidades (1975)

Áreas agrícolas Vegetação nativa

Jussara

São Gabriel

Lapão

Presidente Dutra

Irecê

Font

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BA – 052 (Estrada do Feijão)

Principais Povoações e BA-052 (Estrada do Feijão)

Page 202: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

202

Os espaços em destaque na figura correspondem a áreas agrícolas. Estas se

concentram próximas à BA-052 e em torno dos municípios de Irecê e Presidente Dutra

(Lapão e São Gabriel eram povoados de Irecê), onde já se mostram escassas as manchas de

vegetação nativa. O fechamento desta área na segunda metade da década de 1970 incentivou a

busca por novas terras em espaços mais distantes, como na parte superior da figura, onde se

localiza o município de Jussara.

A chegada de novas agências de desenvolvimento, o asfaltamento da Estrada do Feijão

e as novas técnicas de desmatamento, ajudaram a manter a continuidade do crescimento da

produção agrícola até a década de 1980, como demonstra a tabela abaixo.

Tabela 6: Relação total da Área Cultivada/Colhida (ha) x Quantidade produzida (t) dos principais produtos agrícolas dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, (1970-1982).

Produção das principais culturas 1970-1982 Feijão

Ano 1970 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982

Quantidade (t) 32.715 59.468 90.183 10.164 29.489 37.300

60.635

134.763

74.127

29.060 Área

Cultivada/Colhida 39.530 85.574 139.496 65.974 75.654 119.564

87.587

192.049

264.416

302.325 Milho

Quantidade (t) 35.536 78.862 67.189 62.093 34.242 66.690

117.166

154.492

35.491

78.936 Área

Cultivada/Colhida 48.400 90.186 85.710 81.232 55.810 89.463

130.597

195.212

250.015

301.318 Mamona

Quantidade (t) 6.672 49.049 32.529 17.003 27.310 75.001 83.313 68.050 80.807 47.259 Área

Cultivada/Colhida 13.880 86.803 50.850 23.897 31.278 71.873 105.672 154.856 179.668

187.173

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203

Gráfico 4

Fonte: BAHIA, Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1973; Idem, Ibidem, 1974a; Idem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1983.

Os dados demonstram que na primeira metade da década de 1970, os níveis de

produção e o número de estabelecimentos rurais do decênio anterior já haviam sido

superados, alcançando taxas ainda maiores a partir de 1979. Essa elevação produtiva

ocasionou também a latifundização e valorização das terras, especialmente dos solos da parte

central do Platô Norte Diamantino. Observemos os dados referentes ao número de

estabelecimentos do município de Irecê entre 1970 e 1975.

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204

Tabela 7: Número de estabelecimentos no município de Irecê (1970-1975)

Estrato de área (ha)

Número de Estabelecimentos

1970(nº) 1975(nº) 1 47 9

1-2 108 27 2-5 901 506 5-10 982 649

10-20 798 653 20-50 1.169 930

Subtotal A 4.005 2.774 50-100 559 479

100-200 368 347 200-500 200 251

500-1000 30 38 1000 e mais 8 12 Subtotal B 1.165 1.127 Total Geral 5.170 3.901

Fonte: WILKINSON, Jonh. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo: HUCITEC, 1986 p. 168 (adaptado).

No contexto analisado, o número de estabelecimentos com área inferior a 50ha no

município de Irecê caiu 30,7%, o que equivaleu ao desaparecimento ou a exclusão de 1.231

pequenas propriedades. Paralelo a esse movimento, o número de estabelecimentos com mais

de 200ha manteve-se em expansão, reforçando a concentração de terras (via incorporação das

pequenas propriedades) e denunciando o esgotamento das reservas de terra livre no

município. A exclusão dos pequenos produtores das áreas centrais, acelerou a dilatação das

fronteiras do projeto de modernização rural do Sertão de Irecê, uma vez que posseiros,

arrendatários e criadores passavam a buscar novas áreas às margens do Platô Norte

Diamantino.

É importante observarmos no gráfico 4 que a ocorrência de períodos de baixa

produção, como os anos de 1981 e 1982, nem sempre significou a redução da área trabalhada,

pelo contrário, nesses momentos os agricultores buscaram reparar as perdas estendendo suas

áreas de cultivo. De forma geral, os números apontam para um constante e intenso avanço das

lavouras sobre as áreas de campo.

Os registros da tabela 6 e do gráfico 4 ainda denunciam uma das principais queixas

das autoridades no decorrer do processo de expansão da modernização conservadora sobre o

território do Sertão de Irecê: a inconstância das chuvas, que expunha a produção ao risco,

gerando quedas produtivas e consumindo os recursos, desorganizando a estrutura social e

diminuindo a mão-de-obra disponível. Exemplifiquemos essa ocorrência a partir da

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205

observação dos dados pluviométricos do Sertão de Irecê entre novembro de 1975 e março de

1978, um dos momentos de estiagem mais grave que ficou conhecido como “seca de 76”.

Tabela 8: Dados pluviométricos do período 1975/1978, dos municípios de Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí

Ano

agrícola Nov Dez Jan Fev Mar

1975/76 1975 1976

18,4 39,5 8,3 229,4 0,3

1976/77 1976 1977

143,2 20,9 293,2 32,1 5,5

1977/78 1977 1978

122,9 393,0 145,5 318,3 79,6 Fonte: BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995, p. 39 (Série: Desenvolvimento regional, 23).

Entre os meses de novembro e março caem a maior parte das chuvas na parte norte da

Chapada Diamantina, momento no qual se realizam as etapas de preparo e plantio da terra. O

período agrícola de 1975/1976 e 1976/1977 foi marcado por baixa e irregular pluviosidade na

área, o que configurou uma situação de estiagem suficiente para acarretar quedas drásticas na

produção das três principais culturas do Platô e interromper o processo de crescimento

produtivo da primeira metade da década de 1970, como demonstra o gráfico 4. Do ponto de

vista social, “seca de 76” provocou o agravamento das condições de vida das populações

sertanejas pobres, obrigando-as, muitas vezes, a repetir o penoso ritual de deslocamento para

outras áreas do estado ou do País.

O jornal Folha do Norte, na sua edição de 22/01/1976, apresentou informativo

registrando a chegada de 300 migrantes à cidade de Feira de Santana, provindos de Irecê,

“onde a seca vem assolando”534. Na edição de 27/01/1976 esse número de migrantes foi

questionado pelo Serviço de Integração do Migrante (SIM), o qual afirmou em nota ter feito

“levantamento em toda a cidade” e que “apenas 14 pessoas procuraram o SIM e foram

atendidas”. A nota também acrescenta que: “Pelo que se sabe, os órgãos governamentais,

principalmente a Sudene, Setrabes e Derba estão prestando socorros de emergência à 534 Jornal Folha do Norte, nº 560, 22/01/1976, p. 03.

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206

população para evitar o êxodo desordenado”. Por fim, afirma o órgão que, “caso ocorra o

deslocamento da população atingida para Feira, o SIM está equipado para prestar a

colaboração possível e necessária”535.

Entre os anos de 1977 e 1978 ocorreu um maior volume e uma maior regularidade de

chuvas na parte norte da Chapada Diamantina, permitindo a recomposição produtiva, a

reocupação das áreas de cultivo que haviam sido dispensadas e a diminuição do êxodo, nesse

sentido, o Platô retomou a condição de espaço de atração populacional. Nos anos iniciais da

década de 1980, uma nova estiagem voltou a ocorrer reduzindo novamente a produção.

Preocupados com o retorno econômico dos recursos aplicados, as autoridades governamentais

afirmaram que “a irregularidade das precipitações pluviométricas nos períodos de cultivo

apresenta-se como principal fator a limitar o crescimento da produção agrícola”536 da área.

A segunda metade da década de 1970 marca a chegada dos grandes programas de

modernização rural organizados pelos Governos Militares ao Sertão de Irecê: o

POLONORDESTE e o Projeto Sertanejo. O Programa de Desenvolvimento Rural Integrado

de Irecê (PDRI-Irecê), unidade administrativa do POLONORDESTE, foi o primeiro de 5

“pólos de desenvolvimento” implantados na Bahia. Foi instituído em 1976 e iniciou suas

atividades em 1977, abrangendo 12 municípios, divididos entre 3 áreas agrícolas: 1) área

agrícola de Irecê, a mais povoada, composta por Barra do Mendes, Cafarnaum, Canarana,

Ibititá, Jussara, Central, Presidente Dutra, Uibaí, Ibipeba e Irecê; 2) área agrícola de Xique-

Xique, pouco povoada; 3) área agrícola de Sento Sé, pouco povoada e considerada de baixa

fertilidade537. Segundo informações da SUDENE o PDRI-Irecê visava:

o fortalecimento da infra-estrutura sócio-econômica da região, principalmente nas áreas de eletrificação rural, estradas vicinais, abastecimento de água, armazenagem, educação e saúde, além do apoio direto aos agricultores, através do crédito rural, da assistência técnica e da pesquisa agrícola. Serão investidos, em 1976, Cr$ 40 milhões, através da CODEVASF, Ministério da Agricultura e Governo do Estado da Bahia538.

535 Idem, nº 562, 27/01/1976, p. 03. Sobre migração para Feira de Santana ver: FREITAS, Necelice Barbosa. Urbanização em Feira de Santana: influência da industrialização (1970-1996). Salvador: UFBA, 1998 [Dissertação de Mestrado]. Sobre a ação do SIM em Feira de Santana ver: SILVA, Elizete da. Protestantismo ecumênico e realidade brasileira: evangélicos progressistas em Feira de Santana. Feira de Santana, Ba: Editora da UEFS, 2010, p. 174-176. 536 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê: resumo do diagnóstico e estratégia e programação indicativa. Salvador: CPE, 1974, [s.p.] ver: 1.3.1.4 Produção Agrícola. 537 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980, Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê. 538 SUDENE. Sudene informa..., p. 33.

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207

Até julho de 1977 haviam sido aplicados apenas Cr$ 21.735.201, distribuído em 12

sub-projetos dos quais “Estradas Vicinais” e “Assistência Técnica e Extensão Rural” foram os

maiores beneficiados539. O Governo Federal estimou para o PDRI-Irecê no agrícola

1980/1981 um crédito para investimento de Cr$ 500 milhões, a maior parte “destinada ao

desmatamento para fins de aumento da área cultivada”, para o plantio esperava-se mais 400

milhões como crédito de custeio no mesmo período540. O volume de recursos estabelecido

pelo Programa para investimento na área agrícola (Cr$ 900 milhões) no de 1980/81 foi 22,5

vezes maior que o recurso anunciado pela SUDENE para aplicação em todo o projeto do

PDRI- Irecê no ano de 1976, que foi de Cr$ 40 milhões541. Embora não se possa cobrar

exatidão desses dados, a análise comparativa revela o ritmo de crescimento do volume de

recursos financeiros destinados a atuação do PDRI-Irecê.

Como se repetia em diversas áreas do Nordeste, numerosos foram os problemas

vivenciados durante a execução do POLONORDESTE no Sertão de Irecê. Embora o

programa anunciasse uma proposta especial de atendimento das unidades produtivas

inferiores a 50ha, os valores não foram distribuídos proporcionalmente.

Fonte: CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980. [s. p.], ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê – O Apoio à atividade produtiva – O Sistema de Crédito.

539 COMISSÃO ESTADUAL DE PLANEJAMENTO AGRÍCOLA (BA). Plano de desenvolvimento rural integrado da região de Irecê: Plano Operativo. Salvador: CEPA, 1977, [s.p.] Resumo das operações, tabela “Fontes de recursos liberados e aplicados na Área do PDRI-Irecê”. 540 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s.p] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê – O Apoio à Atividade Produtiva – O Sistema de Crédito. 541 SUDENE. Sudene informa..., p. 33. 542 Esse relatório baseia-se nos dados trimestrais da EMATERBA, reconhece, porém, que existem “informações desencontradas”, mas, é um dos poucos a apresentar uma estimativa da dimensão do número de estabelecimentos beneficiados. Ele mesmo representa essa divergência de dados ao informar, páginas antes, que o número de beneficiados com crédito para o ano agrícola 1979/80 era de 5.492.

Estratos Nº de estabelecimentos Beneficiados % 0-10 13.494 2.211 16,3 10-20 2.418 1.341 55,4 20-50 2.822 1.245 44,1 50 e mais 2.128 172 8,0 TOTAL 20.862 4.969542 23,8

Tabela 9: Relação entre os beneficiados com crédito do POLONORDESTE e o total de produtores na região de Irecê, abril/79 a mar/80

Page 208: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

208

De acordo com os dados apresentados pela Fundação de Planejamento da Bahia,

apenas 23,8% do número de estabelecimentos do PDRI-Irecê com até 50ha foram

beneficiados com o crédito rural do POLONORDESTE. É importante notarmos que apenas

16,3% das áreas menores de 10ha tiveram acesso ao crédito, embora esse estrato fundiário

correspondesse a 64,6% do total de estabelecimentos até 50ha situados no Platô Norte da

Chapada Diamantina no período. Isso significa que os menores produtores, ainda que mais

numerosos, tiveram pouco espaço no programa, em outras palavras, “o POLONORDESTE,

na medida em que seleciona os pequenos produtores, escolhe aqueles que mostram a

capacidade de corresponder às iniciativas creditícias, conforme lógica do sistema

capitalista”543.

A abertura das estradas vicinais proporcionadas pelo Programa, gerou a valorização

das terras impedindo o acesso dos mais pobres a esse meio de produção. O controle dos

grandes produtores sobre as cooperativas mais estruturadas tornou “praticamente impossível”

a ação destas como órgãos “comercializador(es) da produção agrícola do público do

POLONORDESTE”, por outro lado, o Programa não interferiu na dinâmica comercial local,

como havia sido previsto. Nos termos do Centro de Planejamento da Bahia, a ausência de

recursos para este setor já podia ser notado quando da exclusão do quesito “armazenagem” do

Plano Operativo de 1980, “sinal evidente de que a comercialização foi entregue às correntes

de mercado, conforme a lei da demanda e oferta. Deste modo, em Irecê, um kg de feijão foi

vendido a Cr$ 20,00, em março de 1980, e chegou, seis meses mais tarde, a custar Cr$

120,00”544.

O Projeto Sertanejo chegou ao Platô Norte Diamantino por meio do núcleo de trabalho

instalado na cidade de Irecê em 1977, tendo um público local de aproximadamente 12,4 mil

“beneficiários potenciais”545. Para o ano de 1980 orçou-se um recurso de 12 milhões a ser

aplicado nos subprojetos de responsabilidade desse núcleo. Atesta a Fundação de

Planejamento da Bahia que “a irrigação foi excluída do programa do Sertanejo na Bahia, pelo

fato de que o teto de crédito para investimentos não permite a implantação de infra-estrutura.

Faltaria também a experiência indispensável, tanto da parte dos técnicos quanto da

543 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê - O Apoio à atividade produtiva – O Sistema de Crédito. 544 Idem, Ibidem, ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI-Irecê - O Apoio à atividade produtiva – Apoio à comercialização. 545 SUDENE. Projeto Sertanejo: características, programa de trabalho, etapa e implantação. Recife, 1977, p. 31-37.

Page 209: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

209

população”546. Esse fato demonstrou o descompasso das ações do Projeto Sertanejo neste

estado, uma vez que a irrigação era uma das bandeiras do programa. A tabela abaixo

exemplifica o acesso dos produtores do município de Irecê às linhas de crédito.

Fonte: CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política governamental na Bahia e em Irecê. Salvador: CEPLAB, 1980. [s. p.], ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Recursos e Créditos

Os dados chamam a atenção pela inexistência de trabalhadores “não proprietários”

(posseiros, sem terra, parceiros, arrendatários) atendidos pelo programa, além disso, somente

48,9% dos agricultores inscritos foram “pré-selecionados”, menor ainda é o número de

propriedades visitadas pelos técnicos. Esse fato agravou-se pelos constantes atrasos nos

recursos, pelas contradições entre os objetivos e as práticas executadas e pela dificuldade dos

pequenos produtores em atenderem os critérios para conceção do crédito, entre os quais

estava a presença de um açude nas propriedades. No período de 1978 a 1980, apenas 24

operações (19 projetos de investimento e 5 planos de custeio) tinham sido concluídas e

existiam 101 em andamento (45 projetos e 56 planos), aguardava-se, contudo, em 1980, a

liberação de mais verbas uma vez que 78,4% dos recursos já haviam sido gastos547.

Paralelo a execução desses programas, a CODEVASF também desenvolvia na área em

estudo o Projeto Baixio de Irecê, objetivando irrigar 185 mil hectares, através de

“bombeamento do Rio São Francisco” para fins de colonização e uso de empresas, e o Projeto

Mirorós (próximo ao município de gentio do Ouro), que previa a irrigação de mais 6 mil

hectares para colonização548. A ação conjunta dessas iniciativas no Platô Norte Diamantino e

nas áreas próximas, gerou dificuldades de execução das metas devido a sobreposição de

projetos, ao mesmo tempo em que explicitou a intensa participação do Estado na área.

546 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - Projeto Sertanejo – Implantação dos Núcleos. 547 Idem, Ibidem, loc. cit. 548 Idem, Ibidem, ver: Atuação na Bahia – A CODEVASF.

Não proprietários

até 100ha

de 100 a 500ha

mais de 500 Total

Agricultores inscritos 198 169 2 369 Agricultores pré-selecionados 97 80 177 Levantamento técnico em propriedades 61 39 100

Tabela 10: Acesso dos produtores às linhas de crédito do Projeto Sertanejo “fase preliminar” para o período de 1978/1980 no município de Irecê

Page 210: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

210

Os projetos ainda foram alvo de barganhas por parte das autoridades municipais, que

buscaram constantemente incorporar novas solicitações e obter novos recursos, interferindo

na execução das propostas e no direcionamento dos investimentos. A abertura e manutenção

das estradas vicinais, por exemplo, embora correspondessem a uma das ações mais

incentivadas pelos Governos Federais e Estaduais durante a década de 1970 e 1980, era

também pauta corrente das demandas políticas locais. Em 1978 as autoridades da cidade de

Irecê solicitaram a inclusão no POLONORDESTE de “16 Kms de estrada” entre os povoados

de Fazenda Nova, Itapicuru e Umbuzeiro para o exercício do ano seguinte549, dias depois, as

mesmas autoridades solicitaram ao Diretor Regional do Polonordeste a inclusão “(d)a estrada

que liga Prevenido a Aguada Nova, com uma extensão de 32 Km” “no programa de estradas

de rodagem”550. Para além das solicitações de novos trechos, as reclamações sobre o descaso

com as estradas compuseram a tônica de diversas manifestações de autoridades até pelo

menos meados de 1980551.

A chegada do POLONORDESTE e do Projeto Sertanejo ao Sertão de Irecê garantiu a

recuperação produtiva na segunda metade da década de 1970 (ver tabela 6, gráfico 4),

gerando uma safra recorde em 1980 que ajudou a difundir o Platô Norte da Chapada

Diamantina como uma das áreas de maior produção cerealífera do Brasil. Investiu um volume

de recursos ainda não utilizado na área, expandiu o mecanismo do crédito por meio de

estratégias voltadas para os pequenos produtores, intensificou a horizontalização das terras,

reconfigurou os espaços urbanos e manteve o incentivo à mecanização. Em 1980 já existiam

no Platô 1.912 tratores agrícolas552. Nesse mesmo ano a produção de feijão dos municípios de

Canarana, Central, Ibititá, Irecê, Presidente Dutra, Barra do Mendes, Cafarnaum, Gentio do

Ouro, Ibipeba, Jussara, Morro do Chapéu, Souto Soares e Uibaí, correspondeu a 50,84%, a

produção de milho a 54,69% e a de mamona a 52,51% da quantidade total de cada cultura

colhida no Estado da Bahia553.

Os grandes projetos geraram uma ocupação desenfreada das áreas de campo (ver

tabela 6, gráfico 4), permitindo a ação de grileiros e ocasionando momentos de tensão e

conflitos entre trabalhadores e latifundiários. No início da década de 1960, Aluízio Capdeville 549 CMI. Ata nº 181 da Câmara Municipal de Irecê, de 23 de maio de 1978. p.8 (verso). 550 CMI. Ata nº 182 da Câmara Municipal de Irecê, de 30 de maio de 1978, p. 9. 551 CMI. Atas nº 199/79; 321/84; 327/84; 334/84; 335/84; 340/84 da Câmara Municipal de Irecê, de 08 de maio de 1979 à 29 de outubro de 1984. 552BAHIA. Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração; SEBRAE. Diagnóstico de Municípios - Região de Irecê: Central. Salvador: SICM, 1995 (Série: Desenvolvimento regional, 23), p. 91. 553 BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1983.

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211

já afirmava que, no Sertão de Irecê, “apesar do grande aumento da superfície dos

estabelecimentos, a área em lavoura não vem crescendo na mesma proporção, pois, se

consultarmos os censos das últimas duas décadas, veremos que foi mínimo o crescimento da

porcentagem das terras em lavoura”554. Sua informação aponta para o uso não agrícola das

novas terras incorporadas, que passaram integrar as fazendas de gado e/ou servirem como

reserva de valor.

Essas suspeitas foram facilmente confirmadas na década de 1970. Relatório da

Fundação de Planejamento do Estado da Bahia datado de 1974, anuncia que “na localidade

denominada Vila Pioneira, distante cerca de 56 Km da sede municipal de Jussara, (existe) um

projeto de plantio extensivo de mamona numa área de 37.000ha, com 3.000ha já plantados,

com emprego de técnicas agrícolas modernas e racionais, assegurando o aproveitamento de

toda a produção em indústria de óleos vegetais instalada em Feira de Santana”555. A ênfase

dada a chegada do grande empreendimento ao Platô, não disfarça a disparidade entre a área

apossada e as áreas cultivadas.

Em 1980, o Centro de Planejamento da Bahia constata que “nos municípios de

Jussara, Barra do Mendes e Sento Sé ocorrem disputas de terra. Sobretudo no município de

Sento Sé são freqüentes os casos de grilagem, com fatos amplamente divulgados na imprensa

baiana. Nada prova que o mesmo não pode ocorrer no resto da região, bastando para isso

apenas o surgimento de maiores perspectivas de lucro”556. Nesse mesmo ano, a EMATERBA

– Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia - afirma que no conjunto

formado pelos municípios de Irecê, Ibititá, Ibipeba, Presidente Dutra, Uibaí, Canarana, Barra

do Mendes, Central, Jussara e Xique-Xique

o fenômeno da concentração de terra em mãos de poucos produtores está presente [...]. Tanto assim que, dos 1.863 pequenos produtores correspondentes a 80,9% da população entrevistada, detêm tão somente 23% da terra; os médios produtores, que são 13,4% da população, detêm 20,3% da terra e os grandes produtores, que representam apenas 5,7% da população, têm a posse sobre 56,7% da área total das propriedades557

554 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p. 57. 555 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.4.3 Mamona. 556 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III – O POLONORDESTE em Irecê: o PDRI – Irecê – A posse da terra. 557 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola da Região de Irecê. Irecê: EMATERBA, 1980a, p. 43.

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212

A memória oral também guarda diversos exemplos da prática de grilagem, Hermes

narra um desses fatos:

comprei essa terra (em 1968) e tinha muita terra pra frente, ai eu reuni uns 4 cumpanhêro e fomo cortar uma área maior adiante. De certo que nós cortemo essa área de terra, mais ou menos ela ia ficar com umas 2.000 tarefa né. [...] Aí vêi ôto cumpanhêro (um conhecido fazendeiro local) rico e chegô e cortô ôta área maior, laçando a nossa e nós perdemo, fiquemo sem nada, dexemo pra lá (risos). [...] Que nós num xxx por hora... (não tinham registro), só fez cortar e num tinha o documento né, e as condições pouca, e ele era rico! Ele fez a área dele laçando a nossa e fez o documento dele e nós num tinha documento, nós só tava cumeçando ainda.[...] até hoje ele tem a fazenda aí. [...] nós tinha uma área grande ali dento [...] quando nós cumeçasse a roçar aí era a hora de Xxxx reclamar né. E aí nós ficava como se nós que tava com invasão na terra, que nós num tinha documento! [...] Depois cunhecemo, passemo acunhecer uns aos ôto, aí num tive dúvida nenhuma: nós num tinha condições de bulir com ele pra questão (disputa jurídica) 558.

Hermes e seus amigos resolveram se calar diante do fato de perderem suas posses,

especialmente, após terem buscado sem êxito a intermediação de terceiros. A forma como o

narrador busca primeiramente entender quem é o fazendeiro, para chegar a conclusão, tempos

depois, que não “tinha condições de bulir com ele” em uma disputa judicial, representa a

existência de um nível significativo de tensão no acontecimento e nos demonstra que, mesmo

temporariamente, essa disputa chegou a ser cogitada por parte dos trabalhadores. Um caso de

conflito por terra com dimensões mais trágicas, nos foi narrado informalmente por D. Maria

Gama dos Reis, lavradora e moradora da cidade de Jussara, município onde se deu a

ocorrência entre os anos de 1983 e 1985.

A disputa envolveu grupos familiares provindos da cidade de Mairi, apossados em um

terreno próximo à fazenda Pioneira, e o grileiro Ailton Moura, conhecido popularmente como

“Ailton Ruim”. Este era originário da cidade Feira de Santana e reivindicou a propriedade de

extensa área entre o norte do Platô e o rio São Francisco, no interior da qual se encontravam

localizados os posseiros recém chegados. Após sofrerem diversas ameaças, os trabalhadores

tiveram suas casas incendiadas e seus animais mortos, até mesmo as galinhas e cães, sendo

obrigados a fugirem pela caatinga em direção à cidade de Jussara, onde chegaram em farrapos

e famintos.

Paralelo a intensificação da ocupação das terras de campo, os grandes projetos de

modernização rural também incentivaram e reforçaram o cercamento das terras com arame

farpado, facilitando, via crédito rural, o acesso dos trabalhadores a esse instrumento.

Analisando os impactos do POLONORDESTE sobre a produção agrícola familiar no Platô 558 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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213

Norte Diamantino, John Wilkinson afirma que “desmatamento” e “cercas” correspondiam aos

itens financiados mais comuns entre os produtores inscritos no programa de assistência

técnica na área, no período 1980/1981559. Segundo Hermes, a cerca de arame farpado estava

presente na Vila de Recife desde 1968, contudo, sua real expansão deu-se “de 1980 pra cá,

que foi quando foi financiado pelo banco, o banco financiava o arame”560. Destaca o

entrevistado

E: O senhor lembra mais ou menos quando foi que o pessoal começou a chegar e cercar aqui, na região aqui (em Jussara)? En:Moço, foi na época de... deixa eu ver moço, de (19)68..., foi na base de (19)81, quando existiu a EMATERBA, um negócio do banco né, que apareceu um dinhêro mais fácil pra o povo. Aqueles e os donos mesmos faziam contrato e crescendo às área deles, quem tinha fio assituado cercano as que já tinha, e outro, que não queria, vendeno para os outro de fora, iam comprano e botano no banco e fechando as terras.561

Almir Vaqueiro e Chico França reforçam a fala de Hermes, também destacando a

possibilidade de aquisição do arame via crédito oficial.

En 1: Foi, foi começano a fazer cerca de arame, o banco dava o dinhêro pra gente fazer. [...] No contrato vinha moço.562 En 2: Vinha. Você só quer o arame pra fazer sua cerca: _“Moço mais nós não temo cerca, gerente, eu preciso do arame pra eu fazer a cerca”. É. Aí eles dava algum dinhêro pra você comprar o arame, pra cercar a fazenda, o terreno.563

Acompanhando o processo que deu origem a chamada “Lei dos 4 fios” ou “Lei do pé

alto”, entre o final da década de 1970 e início de 1980, o município de Irecê e circunvizinhos

buscaram atualizar as suas legislações locais, afirmando, sob novo respaldo jurídico, a

obrigatoriedade do cercamento das terras e a proibição da prática da pecuária à solta. Essa

reformulação legal baseou-se na reafirmação e releitura do artigo 588 do Código Civil de

1916, o qual destaca: a “obrigação de cercar as propriedades para deter nos seus limites aves

domésticas e animais, tais como cabritos, porcos e carneiros, que exigem tapumes especiais,

cabe exclusivamente aos proprietários e detentores”. (Redação dada pelo Decreto do Poder

Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919). A expansão do cercamento obrigatório em todo o Brasil,

559 WILKINSON, J. O Estado, a agroindústria e a pequena produção..., p. 185. 560 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010. 561 Idem, 1º momento, 11 de out/2010. 562 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. 563 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.

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214

firmou-se como uma medida voltada aos interesses dos latifundiários e grandes comerciantes,

uma vez que ignorou as formas costumeiras de sobrevivência das comunidades rurais e

defendeu o uso privado e exclusivo da terra564. Nesse sentido Chico França afirma: “Aqui é

proibido criar solto.”565

A expansão da cultura da mamona no Platô Norte Diamantino e áreas próximas, a

partir da década de 1970, acelerou ainda mais o cercamento das terras devido ao fato dessa

oleaginosa possuir substâncias tóxicas que causam a morte dos animais quando ingerida em

quantidades elevadas566. Guilhermino esclarece os problemas vivenciados nas comunidades

rurais do Sertão de Irecê diante da expansão dessa cultura: “tinha que cercar a roça, aliás,

acabar com o criatóro, criar o criatóro preso pra poder plantar momona! Foi a derrota da

nossa região foi essa, né! Porque se dexasse aberto o gado cumia e morria, né.”567 A

comparação entre a estrutura do arame disponibilizado aos produtores entre 1950/1970 e os

arames atualmente utilizados no Platô, fornece algumas reflexões sobre a intensidade, a

irreversibilidade e as consequências do processo de cercamento das terras.

Foto 4: Arame atualmente usado

Foto: Acervo do autor, 2011

564 FERRARO JÚNIOR, L. A. Entre a invenção da tradição..., p. 57 e SANTOS, Cirlene Jeane Santos e. O pastoreio comunitário nos fundos de pasto de Oliveira dos Brejinhos – Bahia. UFAL, [2005 à 2008], p. 5. Disponível em : <http://www.uff.br/vsinga/trabalhos/Trabalhos%20Completos/Cirlene%20Jeane%20Santos%20e%20Santos.pdf>. Acesso em: 10 jan/2012. 565 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de nov/2010. 566 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL (BA) Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI - Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984, vol 3. Sistema de Produção I (Maciço do Feijão), p. 67. 567 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

Foto 3: Arame usado para os cercamentos entre 1950-1970

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215

O arame usado para a construção das cercas no Sertão de Irecê até a década de 1970

era de espessura e resistência superior aos atuais e só se degradava mais rapidamente quando

exposto ao fogo. Isso explica o fato de, ainda hoje, os trabalhadores possuírem partes desse

arame nas cercas de suas propriedades e quintais. Além dessa característica, chama a atenção

o posicionamento e a quantidade de farpas que possuía em relação ao arame recente, o que,

em última análise correspondia à intensidade dos interesses do capital sobre o Sertão de Irecê

e seus trabalhadores. A expansão do processo de modernização permitiu o uso de um

instrumento mais leve e menos custoso, na medida em que passou a obstaculizar e reduzir a

prática da pecuária à solta.

A corrida pela dominação de novas áreas (para cultivo ou para especulação fundiária)

e a facilidade de aquisição de crédito, permitiu o desvio de grandes volumes de dinheiro dos

seus fins inicialmente propostos. Explica Guilhermino:

Soltô dinhêro! Muitos cara vêi de fora, desse mundo aí arrumava uma iscritura aqui com os ôtos aí fazia impréstimo, plantava, aliás, fazia impréstimo e sigurava o dinhêro, pegava o dinhêro e num vinha mais nunca! Dero um calote retado no banco! [...] Nem plantava! De Brasília vinha tudo fazê roça aqui, chegô tudo levano num sei quantos milhão e sumia! [...] Os daqui num saiu, os que vinha de fora é que fazia isso, pegava o dinhêro, procurava onde era a roça dele, num achava568.

Zizinho confirma que

todo mundo comprava trator pelo banco comprava e guardava, e depois ninguém pagava, só era anistia, anistia. Ôtos pegava as roça, pegava mei mundo de denhêro e riscava a roça dizeno que plantô, mostava o fiscal, o fiscal ia e ele dizia: _“Num nasceu, o bicho cumeu!” Só tava o risco que plantô, mais o dinhêro ele cumeu! Farriô! Ai foi ino, foi ino, o banco trancô!569

A especulação fundiária, os conflitos e o desvio de dinheiro presentes no processo de

modernização rural do Sertão de Irecê, foram raramente abordados nos relatórios do Estado.

Os que fazem menção ao tema tratam-o de forma genérica, anunciando apenas a sua

existência. A memória local, no entanto, denuncia esses fatos como ocorrências comuns. Do

outro lado, a elevação da produtividade e as constantes afirmativas das autoridades sobre a

chegada do “progresso”, do “desenvolvimento” e do “futuro” atraíram ainda mais os fluxos

migratórios, intensificando os índices de elevação populacional que já se destacavam desde

568 Idem, Ibidem, loc. cit. 569 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 1º momento, 13 de set/2011.

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1950. Em 1980 a população total dos municípios quem compõem a Região Administrativa de

Irecê (de acordo com a regionalização da SEI) atingiu 264.696 habitantes570.

A elevação da produção agrícola do Platô Norte Diamantino e dos municípios vizinhos

foi acompanhada ainda da formação de um sistema de escoamento composto por uma

hierarquia de agentes comerciais. Esses agentes atuavam como atravessadores e interligavam

as unidades agrícolas aos centros locais de comércio, e estes, aos mercados externos. Destaca

um dos relatórios oficiais:

Os produtores [...], realizam suas vendas principalmente de fevereiro a maio [...]. Como principais agentes de comercialização do milho e feijão [...], identificam-se os camioneiros [sic], comerciantes itinerantes, em sua grande maioria pernambucanos e paraibanos, que fluem às zonas produtoras, nos períodos de colheitas, estabelecendo, com frequência, relações diretas com os produtores; os agentes comerciais primários, que atuam diretamente junto aos produtores , incumbindo-se de aglomerar pequenos excedentes comercializáveis; e, ainda, os comerciantes estabelecidos nos centros de comercialização das áreas produtoras, que possuem firmas instaladas em núcleos urbanos, sedes de municípios e distritos, para eles afluindo parte dos excedentes comercializáveis. Em período mais recente, constatou-se maior participação dos mercados de Salvador, Feira de Santana, Zona Cacaueira e da própria Micro-Região no consumo dos cereais produzidos [...], em detrimento do mercado nordestino, fenômeno atribuído à frustração de safras e à influência da recém-construída “estrada do feijão” 571.

Acrescenta o documento ainda que a mamona produzida no Platô destinava-se a

industrias localizadas em Feira de Santana (INCOVEG S/A), Salvador (CIA Industrial da

Bahia), Pernambuco (Ind. Coelho e Sanbra) e, a partir da década de 1970, Minas Gerais

(VALSA) e que a produção dessa oleaginosa era comercializada pelos mesmos revendedores

dos demais produtos, “todos eles intermediários entre o produtor e o agente comprador da

indústria, que tanto pode ser uma representação das firmas de beneficiamento e exportação

como também um entreposto, com escritório regional e depósitos localizados nas zonas

produtoras”572.

A presença acentuada de atravessadores no sistema produtivo-comercial implantado

pela modernização conservadora no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas é sinal da

vigência do mecanismo de controle da renda da terra e da transferência de capitais dos

pequenos produtores aos grandes centros e grupos empresariais a baixos custos. Em 1980,

período considerado avançado no processo de modernização rural do Platô, a empresa pública

570 CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos..., p. 13-16. Exclui-se aqui os dados referentes ao município de Cafarnaum, os quais não foram identificados. 571 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.5 – Comercialização Agrícola. 572 Idem, Ibidem, loc. cit.

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217

de assistência técnica e extensão rural atuante na área diagnosticou que “os pequenos

produtores em sua grande maioria desconhecem as condições de mercado além da sua região,

o que contribui para um maior poder de barganha dos intermediários, desde quando são estes

quem determinam os preços dos produtos agrícolas regionais”573.

A maior parte da produção dos municípios do Platô terminava por chegar à cidade de

Irecê. Respondendo a rápida elevação demográfica, à chegada das agências financeiras e de

assistência técnica, dos órgãos privados e a expansão das relações produtivas e mercantis, esta

cidade passou a se destacar como centro comercial de máquinas, de produtos agropecuários e

“praça regional” de recepção e venda da produção agrícola dos municípios vizinhos para

outras áreas da Bahia e do Brasil. Aí se encontravam os maiores negociantes, compradores e

as representações regionais das grandes empresas.

Essa condição centralizadora, tanto no sentido administrativo quanto comercial,

exercida pela cidade de Irecê rendeu-lhe o título de “Capital do Feijão”, uma expressão

síntese que deixa claro o interesse das elites locais e estaduais em anexar urbanidade e

produtividade agrícola sob um símbolo único. A importância dessa cidade para o projeto de

modernização rural do Platô Norte Diamantino, exigiu do Governo Estadual, em alinhamento

com as determinações federais, a elaboração de iniciativas modernizadoras especificamente

voltadas para o meio urbano. A partir da segunda metade da década de 1970 a cidade de Irecê

sofreu modificações estruturais e sistemáticas que visaram prepará-la para expansão das

relações comerciais. Em menor proporção, essas ações urbanísticas recaíram também sobre as

demais cidades do Platô.

A urbanidade articulada: Irecê - uma Capital

A chegada das primeiras mudanças e tecnologias urbanas na cidade de Irecê remonta a

década de 1950. Nesse ano, o já referido Donald Pierson registrou: “em Irecê, esperava-se a

luz elétrica até o fim do ano. Um motor já fôra comprado a ser alimentado à lenha”574, além

disso,

ocasionalmente, o viajante encontra um refrigerador, quase sempre a querosene nas bodegas ou bases das cidades e mesmo nos maiores vilarejos. Por ocasião de nossa

573 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola..., p. 29. 574 PIERSON, D. O homem no Vale do São Francisco..., p. 122.

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218

primeira visita ao vale (1950), o proprietário do bar em Central, por exemplo, possuía um refrigerador a querosene trazido de caminhão de Salvador. Em um bar em Irecê havia também um refrigerador e outro numa bodega em Sertão Novo575.

Seguindo o padrão dos demais sertões nordestinos até a interferência governamental,

em meados do século XX, as cidades e povoações do Sertão de Irecê também se destacavam

por serem nelas sediadas as feiras livres. Era a partir destas que se tornava possível às

comunidades a troca de mercadorias e a aquisição de produtos não gerados nas pequenas

unidades rurais locais. A importância desses pequenos mercados para os sertanejos do espaço

estudado, pode ser ilustrada pelo embate que se travou no município de Irecê em torno do dia

oficial de realização da feira livre. De encontro à solicitação de alguns moradores que haviam

reivindicado do prefeito municipal o retorno da feira livre da cidade aos dias de sábado, o

intitulado “representante” da “população da Vila de Lapão”, afirmou: Irecê em peso conheceu e deve lembrar que o povo desta cidade em sua (trecho danificado) fazia feira no Lapão em virtude da minguada feira que realizava nesta cidade. Com a transferência para o dia de 2ª feira, notamos um aumento de (trecho danificado) 50% para mais, e, esta vem aumentando dia a dia dado a afluência dos moradores da Vila de Lapão e outros povoados circunvizinhos [...] pois, o que não puder resolver os seus (trecho danificado) (palavra ilegível) pela manhã, poderão resolver a tarde. O que devemos considerar na causa em tela, e justamente aquilo que venha de encontro a bem estar do povo, este é o aumento de cereais, que não são produzidos na cidade e sim nos povoados onde também tem feiras. Ora Srº Prefeito, se os povoados mais importantes do Município como sejam Lapão e Gabriel, deixarem de (palavra ilegível) para a feira da cidade por motivo de coincidência do dia, qual será o resultado desta feira (?)576

O autor do texto relata ainda que a proposição para mudança do dia de realização da

feira de Irecê ameaçava os “interesses da coletividade”, que os elaboradores da solicitação

não refletiram sobre as conseqüências do ato e que, caso houvesse dúvidas das suas queixas, o

“povo” iria “evocar” a presença do prefeito na Vila de Lapão. A feira livre emerge do

documento acima como um elemento suficientemente importante para mover as forças

públicas, e as linhas acima deixam transparecer o peso social, econômico e até espacial que

envolvia a disputa.

A redação do autor demonstra muito mais do que uma preocupação com o

abastecimento da população. Ela faz emergir uma preocupação com a funcionalidade do local

urbano, uma vez que a alteração do dia oficial para promoção da feira poderia abrir

precedentes para um novo desenvolvimento das feiras dos povoados e junto com ele, a

575 Idem, Ibidem, p. 120. 576 CMI. Arquivo da Secretaria – Ofícios – 1955 (principiado em 7 de abril). Correspondência não assinada ao Prefeito de Irecê. [1950 à 1970]. Irecê.

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219

reorientação do fluxo de pessoas, ficando a cidade abandonada. Em síntese, até meados do

século XX nos sertões nordestinos, a feira livre justificava em grande parte a função de ser

das povoações e até das cidades.

Em 1963, Aluízio Capdeville Duarte e sua equipe registraram momento corriqueiro da

vida da pequena cidade de Irecê.

Imagem 12: Carro-de-boi nas ruas de Irecê, 1963

Fonte: DUARTE, Aluizio Capdeville. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano. In: Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, out/dez. 1963, p. 58.

Acrescentam os visitantes:

A cidade de Irecê é um centro urbano que se vem desenvolvendo, mas ainda não apresenta condições de serviços condignos com a sua importância econômica. As ruas em geral não são calçadas e, como podemos notar, são de terra batida. Só uma artéria se apresenta pavimentada com pedras irregulares. O casario é baixo, apesar de haver construções novas, reflexo de sua expansão577.

O templo da Igreja Católica ao fundo da imagem não deixa dúvida: estamos em uma

das principais vias de circulação da cidade e a vivência que hora se processa tem o ritmo

cantado do carro-de-boi, da circulação livre dos animais (sabiam eles que nenhum carro iria

lhes atropelar!), da caminhada “proseada” dos passantes. Rua de poucas pessoas e de terra

batida - “como podemos notar”. A imagem nos induz a pensar que apesar da expansão das

577 DUARTE, A. C. Irecê: uma área “insulada” no sertão baiano..., p.58.

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220

iniciativas de modernização agrícola no Platô Norte Diamantino e nos espaços vizinhos, que

ocorria na década de 1960, prevalecia ainda nas cidades sertanejas uma forma não

cronológica ou ruralizada de viver e sentir o urbano.

No texto acima Aluízio Capdeville deixou transparecer seu espanto diante da

disparidade entre a importância econômica da área em visita e as condições “primárias” da

cidade de Irecê, entre o que “ouvia dizer” e o que “via acontecer”. Não deixa, porém, de

registrar a chegada de construções novas como resultado da expansão da dinâmica produtiva.

Sendo esta a realidade avistada em Irecê, com certeza não era diferente a vida nos povoados e

cidades circunvizinhas.

A política de interiorização do País e o crescimento da importância das cidades a nível

nacional na segunda metade do século XX, puxada pelo avanço da industrialização, cujo ápice

é a construção de Brasília, ressoou no interior baiano por meio da criação de municípios e da

utilização econômica das áreas. Nesse roteiro, não por acaso, a expansão numérica e física das

cidades do Platô Norte Diamantino e das áreas próximas, ocorreu paralela a implantação dos

processos de modernização rural. O quadro abaixo sintetiza a emergência das municipalidades

no espaço em estudo.

Tabela 11: Ano da criação dos municípios do Platô Norte Diamantino e áreas próximas, e municípios de origem

Município Data Município de Origem

Irecê 02/08/1926 Morro do Chapéu Central 12/08/1958 Xique-xique Barra do Mendes 14/08/1958 Brotas de Macaúbas Uibaí 22/09/1961 Central Ibipeba 17/10/1961 Irecê Ibititá 17/10/1961 Irecê Presidente Dutra 12/04/1962 Central Cafarnaum 16/07/1962 Morro do Chapéu Canarana 16/07/1962 Morro do Chapéu Jussara 27/07/1962 Central América Dourada 25/02/1985 Irecê São Gabriel 25/02/1985 Irecê Barro Alto 09/05/1985 Canarana João Dourado 09/05/1985 Irecê Lapão 09/05/1985 Irecê Itaguaçu da Bahia 24/02/1989 Xique-xique Mulungu do Morro 13/06/1989 Cafarnaum e Morro do

Chapéu

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221

De acordo com os dados acima, 12 dos 17 municípios surgiram no período auge da

ação do Estado no Platô Norte Diamantino e nas suas proximidades, ou seja, de 1960 à 1985.

A tabela 13 demonstra a distribuição populacional em alguns municípios localizados no Platô

Norte Diamantino, ou próximos a este.

Tabela 12: Divisão espaço-populacional nos municípios de Barra do Mendes, Canarana, Central, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Presidente Dutra e Uibaí

Período População urbana População rural População Total

1950 9.383 56.028

65.411

1980 73.871 129.312

203.183 Fonte: CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 13-16 (adaptado)

As cifras acima indicam que apesar do surgimento de novas cidades, a partir do final

de 1950, a população rural predominou na área durante a segunda metade do século XX,

situação que só se inverteu na década de 1990. Esse fato, contudo, não impediu que a partir de

1950 a população urbana apresentasse altos índices de crescimento. Entre os municípios

destacados o número de habitantes citadinos cresceu 687,2% entre 1950 e 1980, enquanto a

população rural foi elevada em apenas 130,7%.

Diante desse crescimento, o Governo Baiano sintetizou em seu Documento de Irecê

(1971) algumas medidas que visaram atender as cidades e distritos do Platô Setentrional

Diamantino e dos seus arredores, foram elas: a “construção de sistemas de abastecimento de

água nas 13 sedes municipais”, implantação de rede de telecomunicações, ampliação do

serviço de energia elétrica por meio da construção ou substituição de redes de distribuição e

da implantação de geradores. O documento ainda destacou a ampliação do número de salas de

aula, a instalação de um ginásio em Irecê, a recuperação de escolas e a distribuição de

material didático, a realização de orientações para aplicação de recursos orçamentários e

prestação de assistência técnica e contábil às prefeituras, apoio técnico-legislativo às

autoridades, no sentido da “divulgação e interpretação dos textos legais”, a criação de setor

fiscal móvel e implantação de arrecadação fiscal através de rede bancária578. A grandeza das

medidas planejadas pelo Governo Baiano se antagoniza às restritas 17 páginas do referido

documento e pouco se sabe das formas como esses objetivos seriam alcançados, restando

apenas um resumido conjunto de intenções ou propostas. 578 BAHIA. S. do P., C. e T. Documento de Irecê..., p. 9, passim.

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222

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) oficializou uma política para as

cidades em nível nacional, que impôs o desenvolvimento econômico local como critério para

realização de modificações urbanísticas. Nessas condições, afirmou que para cada cidade

dever-se-ia esclarecer prioritariamente o seu papel dentro do “planejamento do pólo

econômico em que se encontra, definindo-se a sua função econômica e social e, só então,

passando a definir-se sua configuração físico-urbanística”579. Para o contexto nordestino, o

Governo Federal destacou a necessidade de “reforço das atividades produtivas e dos

equipamentos sociais dos pólos urbanos interiorizados”580. O POLONORDESTE é um

grande exemplo dessas determinações “articuladas” (econômico-urbano), uma vez que suas

ações recaíam também sobre as cidades através de propostas de modificação de suas infra-

estruturas sociais e urbanas.

A partir de meados da década de 1970 as dimensões urbano-administrativas das

cidades do Platô Diamantino Setentrional e proximidades, foram alvo de diversos

diagnósticos oficiais e propostas. Destaca um dos relatórios:

Das 13 prefeituras581 da Micro-Região, 10 não possuem Lei de Estrutura e 8 não dispõe de Regimento Interno, carecendo, assim, de legislação específica que defina as competências de seus órgãos e discipline as atribuições e responsabilidades [...]. Embora 10 Prefeituras tenham Códigos Tributários e de Posturas, estes quase não são utilizados. Apenas 1 Prefeitura tem Código de Obras. Em nenhum município existe Lei de Loteamento e Zoneamento ou Plano Urbanístico. As Leis do Quadro de Pessoal ou de reestruturação foram encontradas em 8 municípios, mas, em vários casos, são anteriores a 1964582.

Acrescenta o texto acima que a ausência ou o papel obsoleto das normas legais

administrativas, concentrava sobre o Chefe do Executivo “toda a orientação das atividades

públicas”, destacando que em 12 municípios os Gabinetes funcionavam apenas como “local

de despachos”, sendo que apenas 3 possuíam Secretarias, sem que houvesse entre elas real

divisão de funções e que seus “titulares são os substitutos eventuais dos Prefeitos”. O

documento cita ainda que os raros serviços de contadoria eram ainda realizados de forma

ilegal e ultrapassada, que em muitos municípios os recursos eram geridos por tesourarias

“informais”, ressalta os precários serviços de tributação (presentes em apenas 4 prefeituras), a

579 BRASIL. P. R. da. II Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 87. 580 Idem, Ibidem, loc. cit. 581 Refere-se a Morro do Chapéu, Gentio do Ouro, Irecê, Ibipeba, Canarana, Barra do Mendes, Cafarnaum, Souto Soares, Ibititá, Jussara, Central, Uibaí e Presidente Dutra. 582 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.8 – Aspectos institucionais.

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223

“difícil identificação” do regime jurídico dos servidores e expõe que “quase todas as

Prefeituras estão em dívida com o INPS”583 (Instituto Nacional de Previdência Social).

Os problemas não pararam por aí. O relatório afirma também que as prefeituras “não

realizam licitações nem fazem inventários dos bens existentes, o que impossibilita o

conhecimento do patrimônio municipal”, destaca ainda que não existem arquivos, que, devido

às condições climáticas, “a poeira penetra nos locais de trabalho, causando transtornos” e que

as “Prefeituras sobrevivem, quase que exclusivamente, graças às transferências feitas pelos

poderes públicos estadual e federal”. Por fim, para além das críticas feitas a ausência de

planos urbanísticos, às condições precárias de abastecimento de água, de limpeza pública e do

serviço médico-sanitário, o documento conclui que até mesmo os prefeitos “desconhecem as

disponibilidades financeiras e orçamentárias para a execução de projetos ou desenvolvimento

de serviços” em seus municípios e que nem se quer existe, “formalmente estruturado, o

partido oposicionista”584.

O diagnóstico acima aponta para uma questão substancial no caminho da

modernização rural do Sertão de Irecê: as cidades podiam ser ameaçadoras e obstanculizar os

projetos oficiais, convinha, portanto, a realização de mudanças emergenciais para resolução

ou minimização do grave quadro urbanístico, fiscal, social e administrativo urbano do Platô.

Os problemas ressaltados, todavia, se faziam mais amenos na cidade de Irecê. Esse fato não a

excluiu de um contexto de precariedade pública, pelo contrário, a sua importância como

centro funcional, comercial e financeiro do projeto de modernização rural e área urbana mais

populosa, definiu a urgência da correção dos seus entraves público-administrativos.

Analisemos, pois, as condições e ações oficiais projetadas para esse espaço.

A escolha de Irecê como centro urbano regional, referencial e irradiador das ações

governamentais sobre o Sertão de Irecê baseou-se: 1) no fato de ser esta a única cidade do

Platô Norte Diamantino até 1958; 2) na presença de grupos familiares de influência política,

destacando-se a família Dourado, possuidora de grande patrimônio; 3) pela sua localização

centralizada no Platô, sobre as terras comprovadamente mais férteis. Lembrando os momentos

anteriores a estruturação de Irecê como epicentro do projeto de modernização lembra

Reinaldo de Lôro: “Uma verdade que eu digo, que Irecê não tinha, quando eu era minino até

583 Idem, Ibidem, loc. cit. 584 Idem, Ibidem, loc. cit.

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224

rapizim novo, ninguém se falava em Irecê! Quem tinha nome aqui era Jacobina e Miguel

Calmon!”585. Os dados apontam para o seu rápido crescimento populacional.

Tabela 13: Crescimento populacional da cidade de Irecê

Fonte: CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES (BA). Aspectos demográficos regionais: VIII região de planejamento Irecê. Salvador: CEI, 1985, p. 14-16.

De acordo com os números acima, o total de habitantes da cidade de Irecê cresceu

mais de 93% a cada década entre 1950 e 1980, com destaque para o período entre 1950 e

1960, quando o acréscimo populacional atingiu quase 400%. Em 1980 Irecê ultrapassou em

população cidades como Jacobina e Xique-xique, tornando-se a área urbana mais povoada da

parte norte da Chapada Diamantina.

O Plano de Ação Municipal de Irecê, elaborado em 1974, revisou as temáticas

abordadas pelo Governo Estadual no Documento de Irecê, apontando os “problemas locais” e

estabelecendo “métodos” de resolução para o “melhor aproveitamento” dos espaços da

cidade. Nele lê-se:

A grande feira semanal realiza-se às segundas-feiras e se ramifica pelas ruas adjacentes [...] tomando como centro a Praça Justiniano Lopes Ribeiro. O seu funcionamento causa obstrução de ruas, congestionando o tráfego, precariedade das condições higiênicas dos produtos comercializados e acúmulo de detritos por toda área ocupada. Em decorrência desses problemas, impõe-se o seu remanejamento para local que propicie melhor funcionamento (?)586.

A não existência de um matadouro faz com que o abate se processe em locais não apropriados, geralmente desprovidos de condições higiênicas. Por outro lado, a dispersão de locais dificulta a fiscalização sanitária e arrecadadora [...]587.

Além da feira, o documento também discrimina e diagnostica as moradias, afirmando

que a casa “tipo B”

585 Entrevista Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de janeiro 2012. 586 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal de Irecê-Ba. Salvador: IURAM, 1974a, p. 49. 587 Idem, Ibidem, p. 87, (grifo nosso).

Ano População

1950 1.930

1960 9.629

1970 19.248

1980 37.413

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225

predomina na cidade e cobre quase toda a área urbanizada completamente desprovida de infra-estrutura urbana e comunitária. [...] em adobe sem revestimento [...] desprovida de serviços urbanos, [...] algumas com luz, possuem área construída bastante reduzida, conjugadas a fachada média de 4m sem recuo frontal ou lateral.[...] constata-se a carência de normas urbanísticas que disciplinem o “habitat” urbano588.

O relatório citado aponta para urgência de disciplinarização dos espaços, tanto

públicos como privados, ocupados “indevidamente”589 pelos populares. A feira livre, ainda

segundo as determinações do Plano de Ação, deveria agora ser implantada em local

delimitado (7.900 m²), possuindo apenas “barracas desmontáveis” e dividida por tipos de

produtos590. O abate de animais deveria ser realizado em local único, 1.500m afastado da zona

urbana, como forma de “promover o controle sanitário do gado abatido e facilitar a cobrança

de impostos”591. Outro documento destinado às reformulações urbanas na cidade de Irecê,

define que as casas deveriam seguir medidas e até mesmo os pisos das residências haveriam

de possuir espessuras pré-determinadas oficialmente. Segundo a “tabela de multas” “habitar

sala, residência ou compartimento por pavimento sem o respectivo ‘habite-se”, custaria uma

taxa de “100 à 150% do salário mínimo”. Muitas outras eram as sanções estabelecidas para o

descumprimento das “normas”592.

Entre as ações propostas nesses relatórios, ainda se encontrava a criação de

estacionamentos, a abertura de novas linhas de circulação, com o objetivo de “proporcionar

melhor escoamento e facilidade de trânsito através da hierarquização das vias, ao mesmo

tempo contribuir para o maior conforto da população”593, e a pavimentação de ruas e avenidas

como forma de “oferecer melhores condições de acesso e tráfego aos veículos,

principalmente àqueles em demanda ao centro urbano”594. A organização da estrutura urbana

de Irecê ainda incluia a construção de um terminal rodoviário, com o intuito de facilitar a

588 Idem, Ibidem, p. 82, (grifo nosso). 589 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO E ARTICULAÇAO MUNICIPAL (BA). Plano de Ação Integrada- PAI: Irecê. Salvador: INTERURB, 1984, [s.p.] 10.1 Programa Prioritário de Investimentos. 590 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 89. 591 Idem, Ibidem, p. 87. 592 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA). Anteprojeto institui o código de urbanismo de Irecê. Salvador: IURAM, 1974b, Tabela de Multas, artigo 8º. 593 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 99. (grifo nosso). 594 Idem, Ibidem, p. 108. (grifo nosso).

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226

chegada e saída de pessoas (leia-se migrantes) e “sistematizar a ocupação das áreas livres

existentes”595.

O setor educacional não escapou a essas mudanças e restou às escolas incluírem no

currículo pedagógico a “prática agrícola”, como meio de incentivo à freqüência dos alunos596.

Em 1976 foi instalada nas proximidades da cidade a Escola Agrícola de Irecê (ESAGRI), que

passou a formar técnicos agrícolas para atuar em todo o Platô. Outros “equipamentos

urbanos” foram ainda propostos como praças, sinalizações, serviços de turismo, arborização,

complexo policial, quadras poliesportivas, asilo para idosos e até um “parque zoobotânico”597.

Como resultado dessas novas demandas urbano-administrativas, foi realizada em

novembro de 1978 na Câmara Municipal de Irecê uma longa reunião que aprovou o projeto de

lei número 225 (de 21/11/1978). Esse projeto esclareceu os princípios gerais e hierárquicos da

gestão municipal e reformou a organização administrativa local por meio da delimitação

objetiva da responsabilidade e função cabível a cada órgão público598. As determinações

legais, todavia, não resolveram os problemas e a efetivação das normas foi barrada, muitas

vezes, por uma estrutura social em intensa mudança.

A chegada constante dos migrantes impôs dificuldades às autoridades locais em

“ordenar” a conduta social e a ocupação dos espaços na cidade, deixando transparecer certo

nível de insegurança. No início dos anos 1980 o poder legislativo (assustado) denunciava que

na cidade de Irecê “a população está intranquila, pois os crimes não muito freqüentes”599, que

o pequeno número de policiais torna o “crime” “coisa comum” e que a falta de realização de

júris na cidade deixa “claro e patente, que os ladrões e assassinos, são soltos e não fugidos, e

cabe ao poder judiciário a (palavra ilegível) destas solturas”600.

Além da preocupação com a disciplina social, o projeto de modernização da cidade de

Irecê, tanto estrutural como administrativa, pôs em pauta a necessidade de adequar a cidade

aos novos ritmos comerciais/produtivos e às novas formas de transporte, efetivando assim a

sua condição de centro urbano regional. A cidade de Irecê precisava ser redesenhada, tornar-

se uma “Capital”, “fixar e controlar os usos dos terrenos, o volume das edificações e seus usos

específicos, orientar e/ou disciplinar a densidade populacional líquida e bruta, a fim de que os 595 Idem, Ibidem, p. 113. 596 Idem, Ibidem, p. 116. 597 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO E ARTICULAÇAO MUNICIPAL (BA). Plano de Ação Integrada..., [s. p] X. Proposta de Ação Integrada. 598 CMI, Ata nº 191 da Câmara Municipal de Irecê, de 21 de novembro de 1978, p. 16-20. 599 CMI. Ata nº 269 da Câmara Municipal de Irecê, de 17 de novembro de 1981, p. 62. 600 CMI. Ata nº 270 da Câmara Municipal de Irecê, de 24 de novembro de 1981, p.64.

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227

vários setores venham corresponder com aqueles de conformidade com os indicados,

assegurando condições favoráveis de habitação, recreação e trabalho”601. Precisava

transformar o poder público em um setor ativo e racional que garantisse a segurança e as

rendas fiscais adequadas ao seu porte econômico.

É certo que a maior parte dessas medidas nunca foi efetivada, contudo, as ações

implantadas não deixaram de atingir a forma de vida das populações locais, especialmente a

dos empobrecidos. Estes passaram a ser removidos do centro (agora um espaço comercial)

juntamente com as “casas tipo B”, tiveram suas condições de trabalho ameaçadas pelas

possibilidades de mudança do lugar da feira livre e tornaram-se alvos a atuação dos fiscais

públicos.

Analisando os processos de modernização urbana, Clóvis Frederico Ramaina Moraes

Oliveira afirma que após os embates que culminaram na destruição de Canudos (a “tapera

colossal” protagonizada pelos pobres), o Estado brasileiro passou a assumir o papel de agente

urbanizador, na tentativa de bloquear o surgimento de formas não racionalizadas do “urbano”.

Essa estratégia atingiu o seu ápice com a construção de Brasília, a cidade planejada de ruas

retas. Brasília, ainda segundo Moraes Oliveira, foi produzida a partir de uma lógica

sincronizada, funcionalista e racionalista que sintetizou os anseios de “civilidade”, “ordem”,

“novas formas de sociabilidade”, “trabalho” e “trabalhador” em uma perspectiva

desenvolvimentista, transformando-se em um modelo para a interiorização das práticas

urbanizadoras no País602.

Focando as mudanças ocorridas na cidade de Feira de Santana, Oliveira demonstra

como o processo de modernização capitalista dos meios urbanos do interior baiano já se

processava desde o início do período republicano603 e se afunilou entre as décadas de 1920 e

1960. Nesse período, destaca o autor, esta cidade foi alvo de uma reconfiguração sócio-

urbanística e memorial organizada por representantes da imprensa, intelectuais e o poder

público. Conclui Moraes Oliveira que a implantação de formas ditas “civilizadas” em Feira de

Santana objetivou a disciplinarização do uso dos espaços, a partir da produção de um aparato

discursivo criminalizante e ordenador. Esse discurso associou as práticas, sentidos e 601 INSTITUTO DE URBANISMO E ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (BA); SERFHAU. Plano de Ação Municipal..., p. 130. 602 OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. Canudos/Brasília: anotações de uma viagem sertanizadora. In: KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (Org.). Semeando cidades e sertões: Brasília e o Centro-Oeste. Goiânia (GO): Ed. da PUC, 2010. 603 Idem, De Empório à princesa do Sertão: utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893-1937). Salvador: UFBA, 2000. [Dissertação de Mestrado].

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228

ambientes populares (como os festejos e manifestações religiosas de matriz africana, o

comércio e a circulação do gado nas vias centrais, a presença de vaqueiros nas ruas, o trabalho

dos aguadeiros, os saberes médicos populares, os casebres e moradias) à imagens negativas,

divulgadas como indesejáveis e incompatíveis como o nível de urbanização da cidade604.

Esse processo, ao tempo em que excluiu formas de ser e lugares do estar baseados na

prática cotidiana do trabalho dos empobrecidos, buscou introduzir novas sociabilidades e

novos espaços ditos “modernos” como o futebol, o cinema, as avenidas retas de fluxo

legalmente determinado, os carros, casas feitas com novos materiais e novos estilos. Na base

dessas mudanças, nos ensina ainda Oliveira, estava o conflito entre o direito dos trabalhadores

de anunciarem o seu espaço da forma como o vivenciavam e as concepções urbanísticas

modernas, que produziam um discurso de cunho civilizatório605.

No contexto traçado por Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira, compreendemos

as mudanças realizadas na cidade de Irecê a partir da década de 1970, sem perder de vista as

especificidades agrárias as fundamentaram. Como tentaremos demonstrar tais mudanças, não

impediram a continuidade das vivências rurais e até a ruralização de certos espaços, mas

exigiram a sua adequação sobre novas bases. As alterações operadas em Irecê se

reproduziram de diversas formas, tempos e intensidades nas demais cidades do Platô Norte

Diamantino e proximidades; refletiram e se articularam às mudanças ocorridas no meio

agrário, transformando o Sertão de Irecê em um arranjo urbano-rural de intensa mudança.

Enquanto se expandia o uso das máquinas e as relações assalariadas, enquanto a

caatinga tombava pela ação do “correntão”/fogo, os arames recortavam a terra e a produção se

elevava, as avenidas eram abertas, calçadas, os serviços públicos eram repensados e

racionalizados, o comércio se expandia, possibilitando um fluxo maior das relações mercantis

e o deslocamento dos caminhões carregados de grãos aos grandes centros urbanos. Esses

novos ritmos alteraram de modo irreversível o modo de vida costumeiro do Sertão de Irecê e

atingiram diretamente a prática laboral dos vaqueiros.

604 OLIVEIRA, Clóvis Frederico Ramaiana Moraes. “Canções da Cidade amanhecente”: urbanização, memórias urbanas e silenciamentos em Feira de Santana, 1920-1960. Brasília: UNB, 2011 [Tese de Doutorado], p.17-122. 605 Idem, Ibidem, loc. cit.

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229

CAPÍTULO IV

Ser vaqueiro na Região

Diga você me conhece, eu já fui boiadeiro Conheço estas trilhas quilômetros, milhas Quem vem e que vão, pelo alto sertão Que agora se chama não mais se sertão Mas de terra vendida, civilização [...] Andando ligeiro, um abraço apertado Suspiro dobrado, não tem mais sertão

(Almir Sater/Renato Teixeira) Peão

Região de Irecê: uma “especificidade regional”

O projeto de modernização rural e urbana que foi implantado sobre o Sertão de Irecê,

representou, em escala reduzida, o arranjo econômico-sócio-espacial que se processava desde

os anos 1930, e com maior ênfase no pós-guerra, em diversas partes do Brasil. Como foi

demonstrado no capítulo anterior, esse processo baseou-se no controle das relações rurais de

produção pelo capital e garantiu a expansão das relações capitalistas no País a partir da

transferência de grande volume de riqueza para os setores urbano-industriais.

Dentro da dinâmica de modernização do Sertão de Irecê, coube ao espaço agrário a

elevação da produtividade de alimentos e matérias-primas a baixo custo, para atender a

demanda de crescimento das grandes cidades. Na prática, a produção agrícola gerada no Platô

Norte Diamantino e nas áreas próximas, foi incorporada aos mercados dos centros urbanos

maiores como fator limitador dos custos da mão-de-obra (salários), na medida em que os

produtos disponibilizados geravam o equilíbrio da oferta de alimentos primários e matérias-

primas nesses centros, evitando assim o encarecimento das condições de sobrevivência e a

elevação das despesas nos setores de geração de mercadorias.

No caso do feijão esse mecanismo se torna mais claro, tanto por sua importância

alimentar para a população brasileira como devido ao fato da produção nordestina dessa

leguminosa provir principalmente na chamada “safra da seca” (realizada entre janeiro e

julho), período de baixa produtividade em outras áreas como o Paraná e Minas Gerais, e de

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230

riscos de elevação dos custos de vida. A entrada do feijão do Sertão de Irecê nos grandes

centros, pois, reduzia esses riscos e estabilizava o mercado de alimentos.

Para a garantia desse esquema comercial (alimento, matéria-prima, área produtora e

área consumidora) na Bahia, muito contribuiu a elevação das taxas de produção no Platô

Norte Diamantino e nas áreas circunvizinhas. Como vimos, essa elevação deu-se através do

uso intensivo de máquinas e outras tecnologias (como sementes selecionadas e cercas de

arame farpado para proteção das lavouras), do uso do sistema de crédito público, da oferta

elástica de terras e da presença marcante do sistema de controle da renda da terra, incorporado

nos diversos níveis interligados de atravessadores (na vila, na cidade, no centro regional) que

rebaixavam o preço das mercadorias dos trabalhadores rurais, obrigando-os a precarizar suas

condições sociais de produção.

Paralelo às dinâmicas operadas no espaço rural, as cidades do Platô tornaram-se

centros receptores e direcionadores de capitais. Irecê, em especial, a Capital do Feijão,

destacou-se por meio da construção de um sistema de serviços financeiros e agropecuários

especializados, da reestruturação urbanística e administrativa e da composição da principal

praça agrícola-comercial do Platô, centro intermediador entre o mercado local e o nacional.

Em Irecê encontravam-se os maiores compradores e revendedores da produção agrícola dos

municípios vizinhos, e daí partiam os caminhões carregados em direção a cidades como Feira

de Santana e Salvador. Por fim, a elevação populacional, fortemente marcada pela chegada de

migrantes, manteve os salários rebaixados, tanto no meio rural como urbano, enquanto o

Estado promovia o “encontro desses fatores” via produção de infraestrutura606, com destaque

para a expansão do crédito público e a criação de uma via central de escoamento, a Estrada do

Feijão.

Assim articulados, impossível é explicar os processos que se desenvolviam nas

dimensões rurais do Sertão de Irecê sem observar suas interrelações com as demandas e

determinações provindas das cidades, especialmente de Irecê. Essa articulação urbano-rural

resultou na estruturação de um pólo agromercantil de alta produtividade nacionalmente

interligado. Esse pólo agromercantil correspondeu a uma “região econômica” - nos termos

abordados por Francisco de Oliveira – erguida sobre o Platô Setentrional Diamantino e áreas

circunvizinhas. Na verdade, sendo este território interno a “Região Econômica do Nordeste”,

606 OLIVEIRA. F. de. A Economia Brasileira..., p. 21-25.

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231

o entendemos como uma “especificidade regional”, um espaço especial de produção do

capital dentro de uma região econômica, noção proposta por esse mesmo autor607.

Apesar das primeiras iniciativas de modernização rural nessa área remontarem à

década de 1940, essa “especificidade regional” só foi consolidada na década de 1960 a partir

de dois fatores: 1) da adoção do planejamento pelo Governo Baiano, fator que produziu a

fixação de todos os elementos governamentais, tecnológicos, financeiros, políticos,

econômicos e agrários sobre o Platô Norte Diamantino e proximidades, e possibilitou nas

décadas seguintes a expansão do capital como relação social predominante; 2) da reprodução

desse espaço econômico em termos administrativos a partir da Nova Regionalização

Econômica do Brasil de 1969.

Esta regionalização se baseou no conceito de “espaço homogêneo” como “forma de

organização em tôrno da produção”608 e gerou um novo mapeamento econômico das áreas do

País com o propósito de reorganizar a política agrícola nacional. A partir dessa oficialização o

termo Região de Irecê, “Micro-região” ou ainda “Micro Região Programa 12” passou a

designar oficialmente o conjunto e municípios formados por Barra do Mendes, Cafarnaum,

Canarana, Central, Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu,

Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí609. Nesse sentido, os limites econômicos e políticos

foram associados aos limites territoriais dos municípios com vistas na produção de uma nova

dimensão administrativa. Como lembra Francisco de Oliveira, no Nordeste, os limites

territoriais-administrativos estão carregados da própria história da formação econômico-

política nacional e de suas diferenciações610.

O período entre 1970 e 1983 pode ser entendido como momento de expansão da

“especificidade regional”, que a partir de agora chamaremos apenas de Região de Irecê. Essa

etapa foi marcada pela difusão efetiva do crédito rural público e subsidiado e dos serviços de

apoio agropecuário, pela chegada dos grandes projetos como o POLONORDESTE, pela

quase extinção das áreas de campo, pelo cercamento maciço das terras, pela elevação ímpar

das taxas de produção, pela concretização de uma malha comercial que pôs em

funcionamento o controle amplo da renda fundiária, pelo asfaltamento da via central de

607 Idem, Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 145-164, 228. 608 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões homogêneas 1968. Rio de Janeiro, 1970. p. VIII. 609 Segundo as divisões político-administrativas da época. 610 OLIVEIRA, F. Noiva da revolução; Elegia para uma Re(li)gião..., p. 152.

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232

escoamento da produção - concretizando a interligação da Região de Irecê com os mercados

externo - e pela produção articulada de um centro urbano referencial, a Capital do Feijão.

O período pós-1983, embora ainda apresente taxas significativas de produção, marca a

crise e a desmontagem da Região de Irecê, devido a extinção do subsídio ao crédito rural, ao

endividamento em massa dos trabalhadores - fortemente agravado pela ocorrência de

estiagens e baixas produções (1981-1982) – e ao surgimento de novas “regiões” com maior

produtividade no interior baiano – o oeste baiano e o pólo irrigado Juazeiro-Petrolina. Atesta

a agência de apoio agropecuário e de extensão rural já em 1980 que

O elevado percentual de produtores não usuários do Crédito [...] é decorrente da condição de frustração da safra do ano agrícola anterior [...], situação esta que determinou um nível de endividamento do produtor junto ao agente financeiro, impossibilitando uma grande parcela da população trabalhada pela EMATERBA, de obter o financiamento necessário ao custeio da lavoura no período agrícola subsequente ao da frustração611.

Enquanto “especificidade regional”, a Região de Irecê se estruturou sobre o domínio

do capital comercial sobre as outras formas de capital, como o industrial e o financeiro. Foi

ele que passou a determinar as relações de produção do espaço, tendo como agentes o Estado

e um grupo estratificado de atravessadores que concentrou os maiores volumes de capital, a

partir do controle sobre as condições de inserção dos produtos na esfera da circulação. Esses

agentes direcionaram os recursos no sentido de reproduzir os mecanismos de geração das

mercadorias a baixo custo por meio do rebaixamento dos preços. O controle do capital

comercial sobre as demais formas de capital na Região de Irecê compõe natureza ontológica

da sua própria condição enquanto região, uma vez que, como defende Francisco de Oliveira, a

região é o espaço onde um determinado tipo de capital domina os demais612.

Um melhor entendimento da Região de Irecê como “especificidade” da “Região

Econômica do Nordeste”, pode ser alcançado a partir da noção de “monopolização do

território”, abordada por Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Segundo este autor o capital

“monopoliza o território” quando produz suas condições de reprodução ampliada sem efetivar

a exproriação da terra dos trabalhadores rurais, podendo mesmo criar, recriar, redefinir e até

expandir as relações camponesas (de base familiar). A difusão das relações capitalistas de

trabalho, metamorfosea os trabalhadores rurais em consumidores de produtos industrializados,

611 EMPRESA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL DA BAHIA. Levantamento da realidade agrícola..., p. 55. 612 OLIVEIRA, F. de. Noiva da revolução; Elegia para uma re(li)gião..., p. 148-149.

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233

ao mesmo tempo em que age controlando em baixos níveis o preço dos produtos gerados nas

pequenas unidades, metamorfoseando assim a renda da terra em capital e determinando ao

mesmo tempo os custos sociais em que a produção se realiza613.

Acreditamos ter sido este o processo que fundamentou a modernização rural do Sertão

de Irecê na segunda metade do século XX, uma vez que a expansão das relações capitalistas

nesse espaço trouxe consigo a ênfase no trabalho agrícola familiar, especialmente a partir da

implantação do POLONORDESTE, e agiu controlando o uso da terra e sua renda, embora

tenham sido comuns os casos de expropriação direta.

Em síntese defendemos a emergência de uma “especificidade regional” sobre o Sertão

de Irecê a partir de três pressupostos centrais: 1) do modelo desenvolvimento capitalista

brasileiro, capaz de garantir sua expansão a partir da produção capitalista de relações não-

capitalistas no meio rural, - o que José de Souza Martins define como “capitalismo de origem

colonial”614 - e se apropriar de forma desigual e combinada das condições humanas e

materiais do espaço; 2) da defesa do protagonismo do Estado como agente racionalizador

desse modelo, a partir do uso do planejamento como estratégia de atualização das condições

de reprodução ampliada do capital e produção de uma divisão regional do trabalho no País; 3)

do “lugar” como dimensão sócio-espacial central para as dinâmicas históricas recentes do

mundo, pois, como ensina Milton Santos, compreender os processos humanos que se

desenvolvem no “lugar” é hoje um pressuposto para compreendermos os processos históricos

do nosso tempo615.

Nesse sentido, a concepção aqui defendida - da produção de uma “especificidade

regional” dentro da “região de planejamento Nordeste”, localizada sobre o Platô Norte da

Chapada Diamantina - firma-se na tese de que o condicionamento das forças produtivas do

Sertão de Irecê pelo capital desempenhou papel importante no processo maior de

desenvolvimento capitalista urbano-industrial no Brasil pós-guerra, uma vez que viabilizou o

fornecimento de alimentos e matérias-primas a baixo custo.

No âmbito cotidiano, a “regionalização” deu-se pelo controle do capital sobre a

técnica. Como esclarece Milton Santos, a técnica é uma categoria totalizadora que explica o

meio pelo qual o homem se relaciona com a natureza, fator definidor e produtor do espaço. 613 OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs.). O Campo no Século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Editora Casa Amarela e Editora Paz e Terra, 2004, p. 42-43. 614 MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1993, p. 144. 615 SANTOS, M. A natureza do espaço..., p. 212-220.

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234

Santos destaca que as técnicas tem referência direta com o seu tempo e a emergência de novas

técnicas impõe novas formas de percepção do tempo e do espaço, um novo uso, um novo

ritmo. A técnica é, pois, para Santos, a referência comum entre o espaço e o tempo. Afirma

ele que é por intermédio da técnica que o homem, no processo de trabalho, une essas duas

dimensões. A técnica, enquanto, forma de fazer, envolve objetos e ações e produz as

diferenciações de cada época e de cada lugar. O seu estudo revela o encontro, em cada lugar,

dos fatores (sociais, culturais, econômicos, políticos e geográficos) que permitiram o acesso

ou a produção dos objetos e o seu uso lógico em um dado meio social. Nesse sentido, o autor

entende a técnica como um fator historico e espacialmente determinado e seu “estado” se

define pela relação direta com as características sociais e espaciais do contexto no qual se

insere616.

O avanço do capital sobre o Sertão de Irecê não reconfigurou apenas as técnicas de

produção existentes, ele alterou as técnicas de viver, as técnicas de uso da terra e dos recursos

naturais, as técnicas de comercialização, as técnicas de moradia, as técnicas de criação de

animais, as experiências urbanas, o espaço urbano, as técnicas de transporte, as formas de

sentir o espaço e vivenciar os lazeres. A ação “regionalizadora” do capital construiu um novo

sentido para as técnicas dos habitantes do Platô Norte Diamantino e das áreas próximas,

alterou suas bases, as selecionou, inseriu novas técnicas e às interligou ao sistema mercantil

moderno. Essa ação deslegitimou o costume como fator organizador das formas de produção,

de reprodução social e de sociabilidades até então vigentes.

Nesse sentido, entendemos que o processo de modernização rural do Sertão de Irecê,

implantado sob a égide do capital e o protagonismo do Estado e cujas fronteiras foram dadas

pelo planejamento de uma “especificidade regional”, gestou novas formas de viver, usar e

produzir os espaços, reconfigurando o próprio espaço e as suas condições de reprodução. Em

outras palavras, o processo de erguimento da Região de Irecê des-sertanejou o espaço,

eliminando o Sertão de Irecê.

A pequena unidade agrária de natureza poliagropecuária que predominava na parte

norte da Chapada Diamantina, e que até meados do século XX estava voltada para o

provimento das necessidades familiares, se condicionou, nas décadas seguintes, às demandas

externas do mercado por meio da ênfase em culturas mais valorizadas, tornando-se cada vez

mais dependente do crédito, dos serviços e das máquinas que chegaram a reboque das

616 SANTOS, M. A natureza do espaço..., p. 16-37, 111, 115, 121.

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iniciativas governamentais ou privadas. As áreas de uso comum, o campo, foram inseridas em

um mercado de terras, cercadas, desmatadas e usadas para fins agrícolas e a própria prática de

uso comum das áreas deu lugar à propriedade privada de uso exclusivo. As moradias

passaram a ser produzidas de outras formas e por meio de outros materiais, enquanto as

formas comunitárias de trabalho foram substituídas pelo assalariamento.

O centro urbano ganhou dinâmicas comerciais complexas, muito além da feira livre

semanal. Os transportes motores reduziram o tempo de deslocamento e elevaram a capacidade

de produção e escoamento, alcançando áreas distantes, antes, remotamente visitadas,

desenhando um emaranhado fluxo de caminhões e tratores pelas estradas do Platô. Enfim, a

região des-sertanejou o espaço ao excluir as práticas, os sentidos, a materialidade, as formas

laborais e os modos de vivência que garantiam a reprodução do costume, ao substituir a

técnica que permitia aos sertanejos a relação com o seu meio e a produção do seu espaço por

outra, portadora de outros sentidos, voltada para dinâmicas urbanas e comerciais e

condicionada por instâncias de poder, alheias à dinâmica do lugar.

O processo de erguimento da Região de Irecê e o consequente des-sertanejamento do

Platô Norte Diamantino e circunvizinhança, não se deu, contudo, de forma linear, tendo sido

marcado por diversas disputas, conflitos e resistências, no geral, silenciosas e cotidianas. Em

momento nenhum se comportaram as comunidades sertanejas como sujeitos passivos.

Agentes do governo, “projetos”, órgãos, reuniões, medições de terra, visita de autoridades, as

diferenças entre o preço das dívidas contraídas no banco e o preço de venda dos seus

produtos... nada disso deixou de ser visto com desconfiança.

Não desconheciam os sertanejos do Sertão de Irecê a característica autoritária das

mudanças que operavam em seus espaços de vivência, desconsiderando seus conhecimentos e

lhes atribuindo um papel de mero executor. A dureza do cotidiano, de que nos fala James C.

Scott, todavia, por muitas vezes, os obrigou a se ajustar às possibilidades diárias e a entender

as propostas oficiais como oportunidades de sobrevivência617. Diante desse papel ativo das

massas trabalhadoras, o erguimento da Região de Irecê exigiu do Estado uma produção

discursiva e imagética que afirmou uma “vocação agrícola” para o Platô Norte Diamantino,

suas áreas marginais e suas populações, e legitimou as novas ações, os novos agentes, os

novos objetos, ritmos e sentidos expandidos pelo capital. Nesse passo, o discurso vocacional

617 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência camponesa..., p. 18.

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agrícola agiu também censurando, apagando e silenciando as referências culturais e

simbólicas do Sertão de Irecê.

Como nos afirma Eni Puccineli, a censura, em sua materialidade histórica e

linguística, portanto, discursiva (e, acrescentemos, memorial!), corresponde a uma das

dimensões do “por em silêncio” – silenciamento – que garante a interdição da fala do “outro”

por meio de um poder de palavra regulado e regulador. A censura impede a circulação do

sujeito na rede dialógica de discursos - identidade-alteridade - a partir da qual ele próprio se

define enquanto sujeito. Esse impedimento não visa excluir o sujeito, mas disciplinar

localmente o seu discurso, evitando que o mesmo ocupe espaços diferentes nessa rede e

assim, pluralize suas possibilidades de fala. A censura restringe o indivíduo à certos lugares,

certas posições, define o que “do dizível” não deve ou não pode ser dito, quando da

construção de sua fala618. Ao anunciar a modernidade e a agricultura comercial, o Estado,

posto na condição de “salvador” da terra e das comunidades, produziu uma forma dominante

e homogênea de se contar a história das mudanças sócio-econômicas e espaciais recentes do

Platô Norte Diamantino e áreas vizinhas, censurando a diversidade do rural e as falas de seus

trabalhadores, como meio de dizer novas representações sobre o homem, o espaço, o tempo e

o trabalho.

A “vocação agrícola”: um chamado da ciência para o “tempo da integração”

Em um dos documentos consultados encontramos a seguinte declaração:

A combinação desses dois fatores (sistema viário e crédito agrícola subsidiado) possibilitou a viabilização de potencialidades produtivas até então represadas. Conforme salientam diversos estudos sobre a região, a boa qualidade do solo daquela área (sobre tudo da fatia do território pertencente ao planalto cárstico) mantinha-se à margem da agricultura comercial, em virtude, principalmente, da precariedade – senão da absoluta ausência – de uma rede viária capaz de tornar possível a integração produtiva da Região de Irecê com o resto do estado ou do país. Por outro lado, a fragilidade econômica dos agricultores locais (fruto, entre outras coisas do próprio isolamento físico a que estavam submetidos), impedia-os, nas condições normais de mercado, de ter acesso a crédito bancário [...] Em resumo, a boa qualidade do solo da Região de Irecê, associada a políticas, a um só tempo, desbloquearam física e financeiramente as suas potencialidades agrícolas, tornaram possíveis movimentos expansivos, tanto da economia quando da população619.

618 ORLANDI, Eni Pucinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª Ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1997, p. 75-81. 619 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Mudanças sociodemográficas recentes..., p. 22-23 (grifo nosso).

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A partir do texto o leitor tem conhecimento de um “espaço-ermo”, opaco, isolado,

precário, cujas forças produtivas se encontravam bloqueadas e represadas, condicionando os

frágeis agricultores a uma vida de trabalho e privações. Esse lugar não tem nome, não tem

cheiro, é potencialmente rico e miserável. É importante observarmos como o relato evita

definir esse espaço “outro”, ao tempo em que toma a noção de Região de Irecê como uma

referência espacial sempre existente, portanto, atemporal.

O emergir da condição letárgica desse território dá-se, ainda segundo o texto, a partir

de um agente externo: o Estado, que percebendo suas possibilidades produtivas e o descaso

em que viviam os trabalhadores, o despertou por meio da implantação de uma linha viária e

do uso racional de seus recursos naturais. O Estado se define como elemento salvador, que

arrebenta as correntes de um espaço oprimido – submetido -, mostrando-lhe o mundo. A sua

ação produz uma nova lógica temporal marcada pela chegada do tempo da tecnologia, da

política e da economia de mercado. Ao fim do relato, é possível até imaginarmos os risos dos

agricultores, agora fartos e felizes por terem acesso às redes comerciais e ao crédito.

O texto acima não mereceria maior destaque que os demais por nós analisados se não

fosse o seu ano de publicação: 2000. Por que e como essas imagens perduram por tanto

tempo? A quem serviu e serve essa abordagem discursiva? Que silêncios a fundamentam?

Que silenciamentos impôs? Responder a essas questões requer uma análise dos elementos que

compuseram o discurso oficial anunciador da Região de Irecê, de forma que possibilite o

entendimento das dizibilidades e censuras sobre o “outro”.

Até meados do século XX, poucos eram os relatórios e pesquisas científicas realizadas

sobre as potencialidades produtivas das áreas semi-áridas nordestinas. Esses estudos se

tornam numerosos, específicos e diversificados a partir criação dos órgãos de

desenvolvimento do Nordeste, principalmente da SUDENE, e contou com a participação de

diversas instituições e centros de pesquisa, de técnicos e/ou estudiosos acadêmicos.

Metodologicamente, essas análises se baseram em abordagens experimentais e quantitativas.

O Platô Norte da Chapada Diamantina e suas cercanias se tornaram alvo dessas

pesquisas especialmente a partir da década de 1970. Aí, nada escapou aos olhares dos técnicos

e agentes: recursos naturais e humanos foram diagnosticados, medidos, cronometrados,

selecionados e pesados, os diversos estudos sobre a terra apontaram suas composições

químicas, físicas e geológicas, potencialidades e deficiências agrícolas, hídricas e minerais.

As culturas, o tempo de vida de cada planta, os insetos, o número de grãos por vagem, o peso

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238

e a genética das sementes, os métodos de cultivo, a profundidade e a velocidade adequada ao

plantio de cada espécie, a raça dos animais e as formas de manejo, as áreas de campo, o clima,

a pluviosidade, a mão-de-obra familiar, o número de horas/família de trabalho, as máquinas

usadas, o calendário agrícola, as estradas, o transporte, as taxas de crescimento populacional,

os poderes públicos, o alinhamento das ruas, a função de cada avenida...

Essas ações diagnósticas visaram responder uma pergunta: como produzir o

convencimento social em torno das ações implantadas pela modernização rural sobre o Sertão

de Irecê? A resposta a essa questão deu-se por meio de um elaborado discurso oficial de base

agromercantil, que afirmou, por um lado, a existência de uma “vocação agrícola”, uma

ontologia “natural” para o solo e os homens do Platô Norte Diamantino e proximidades, e a

existência de um novo tempo: “o tempo da integração”, sinônimo do progresso, da ciência, do

desenvolvimento e da civilização, do Estado e do capital; e por outro, estigmatizou as formas

costumeiras de vida e trabalho do Sertão de Irecê, classificando-as como “rudimentares” e

“primitivas”, situadas no “tempo da estagnação”, assim chamado o período anterior a

presença das ações de modernização rural na área.

Esse discurso bilateral (negação-exaltação) se fundamentou na narrativa científica e

tecnológica como mecanismos de geração de legitimação social e de imposição de uma

“verdade”: a verdade agrícola comercial. À medida que as iniciativas de modernização

apontaram para a elevação da produção e garantiram a chegada de novas técnicas e recursos,

especialmente a partir da década de 1970, esse discurso se tornou mais intenso e sistemático.

Por sua vez, essa intensificação possibilitou justificar a integração das relações de produção

do Platô Norte Diamantino e arredores na engrenagem da divisão regional do trabalho em

nível nacional.

Ao afirmar a existência de um discurso como instrumento de perpetuação das relações

de dominação econômico-políticas e sócio-espaciais sobre o Platô Norte Diamantino e áreas

próximas, nos convém as observações de Foucault. Segundo o “filósofo-historiador”, um

discurso não é apenas uma expressão verbal, é um produto do desejo e do poder, não só o que

define os sistemas de dominação, mas aquilo “com o qual e pelo qual” se luta, o poder que

desejamos ter. Enquanto prática, o discurso age constrangendo outros discursos, disputando o

poder da palavra para si e buscando bloquear o poder da palavra para os outros620. Nesse

620 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 10; ver também: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

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239

sentido, o discurso científico-tecnológico-oficial que fundamentou a construção da Região de

Irecê, deve ser entendido como uma estratégia intencional de produção de uma verdade que se

autoafirma única como forma de acionar um poder.

O exercício desse poder deu-se já na construção de novas nomeclaturas para o espaço

alvo. Aproveitando a Nova Regionalização do Brasil, os agentes de desenvolvimento

passaram a exaltar o termo Região de Irecê, anunciando-o como “novo lugar”. O termo foi

incorporado aos contratos bancários, aos discursos públicos, às orientações técnicas, às

reuniões, palestras, cartilhas, cursos, escolas, aos meios de comunicação, à memória local, ao

cotidiano dos trabalhadores. Na medida em que a Região de Irecê se tornou elemento

comunicativo comum, as formas tradicionais de referência espacial usadas pelas comunidades

sertanejas caíram em desuso, como a expressão “Caatingas de Xique-Xique” ou “sertão”, que

definiam extensa área entre Morro do Chapéu e Xique-Xique. Roxinho, narrando a chegada

de sua família ao Sertão de Irecê, afirma: “meu pai incutiu pra vim pro sertão né, aí no ano de

(19)50 ele andava pr’aqui, [...]. Ele trouxe lote de burro e achô bom aqui e disse: _“Vamo pro

sertão!”621. Até meados do século XX, as populações do Sertão de Irecê não usavam uma

categoria discursiva espacial para definir o conjunto de povoações e áreas de produção do

Platô Norte Diamantino, ou próximas a este.

No final da década de 1960, a Região de Irecê surgiu dos registros oficiais classificada

pela seguinte declaração: “o que caracteriza, [...], o sistema agrícola desta micro-região são os

métodos rudimentares de cultivo. A lavoura é consorciada mas não há adubação”622, nos

períodos seguintes afirmou-se que essa área vivia em “estado de estagnação produtiva”623.

Diagnósticos dessa natureza se tornaram cada vez mais comuns, se expandindo também sobre

as condições de vida das comunidades sertanejas do Platô Diamantino Setentrional e áreas

próximas. Acusa um dos relatórios oficiais: “A MRP – 12 Irecê ressente-se dos problemas

comuns a todas as áreas subdesenvolvidas: baixa renda ‘per capta’, alto índice de

analfabetismo, padrão deficiente de nutrição, elevadas taxas de mortalidade infantil, precárias

condições sanitárias, carência de capital social básico”624.

Em uma rápida associação, os documentos acima citados destacam a sociedade e as

condições laborais do Sertão de Irecê a partir de uma abordagem inferiorizadora. Nesse 621 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 622 IBGE. Divisão do Brasil em micro-regiões... p. 233. 623 BAHIA. Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado de Irecê – Pró – Irecê. Vol II – Plano Operativo 1978. Salvador: SEPLAN/M. A./M.I./SUDENE/Gov. Estado BA., 1977, p. 14. 624 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., p. 1, (grifo nosso).

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240

sentido, o discurso sócio-espacial da Região de Irecê nasceu apoiado na negação do modo de

vida vigente, ou seja, do modo de vida costumeiro do Sertão de Irecê. A esse foi atribuído o

sentido de “não moderno”, de atrasado, precário, portador de valores, práticas e sentidos

rudimentares. Mas a anunciação da precariedade social e econômica, contudo, não deixou de

vir acompanhada de proposições para sua correção:

Todavia, tendo em vista o dinamismo e as notáveis possibilidades de sua agricultura a micro-região, mediante uma ação eficaz que limite gradualmente os problemas mencionados, terá condições de consolidar sua posição de grande abastecedora dos centros urbanos da Bahia e do Nordeste, conquistando, ademais, meios para competir no mercado nacional625.

O trecho do relatório acima aponta a solução para os problemas identificados no Platô

Norte Diamantino e em sua circunvizinhança sem disfarçar: as condições precárias de

trabalho e vida não deveriam ser amenizadas por representarem em si necessidades das

populações, mas, por possuir a área grandes possibilidades de atendimento das necessidades

do mercado nacional de produtos agrícolas. Afirma-se resolver os problemas sociais locais a

reboque das demandas mercantis dos grandes centros. Nesse caminho, negar o Sertão foi o

primeiro passo para exaltar a Região.

Em meio a esse processo foi de fundamental importância a realização de estudos que

comprovassem as potencialidades naturais e as qualidades agrícolas da área, e

fundamentassem as mudanças agrárias que se processavam. O solo da região corresponde a um bacia calcária, assentada em terrenos algonquianos referido ao período siluriano com composição uniforme. Justifica-se a intensa utilização da terra na região dois elementos naturais se apresentam como responsáveis pela ocorrência: o solo e a água subterrânea. Os solos são de grande fertilidade, pois além de permeáveis apresentam predominância de argila coagulada fina, rica em carbonato de cálcio. Quanto a água, considera-se o lençol freático formado pela infiltração das águas pluviais através das fissuras do solo, de maior ou menor profundidade, determinando no segundo caso melhores condições para as lavouras e, de um modo geral, responsável pela mais ou menos constante umidade do mesmo. A topografia é suave, mantendo-se quase uniformimente em tôrno da cota de 700 metros para quase todos os municípios que compõem a MRP – 12 - Irecê626

Ainda podemos ler, nas linhas seguintes desse mesmo relatório menção à “exuberante

fertilidade daquêles solos”627. Esses diagnósticos se repetiram maciçamente e em 1971 afima

o Governo Baiano: “prosseguindo no seu programa micro-regional, instala-se o Govêrno na

625 Idem, Ibidem, p. 1, (grifo nosso). 626 Idem, Ibidem, p. 2. 627 Idem, Ibidem, p. 13.

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241

Cidade de Irecê, sede da MRP-12, dando estímulo assim, à ação desenvolvimentista que,

calcada na comprovada vocação agrícola da área, aqui se realizará”628. Anos depois, o mesmo

governo destaca: “considerando a localização geográfica de Irecê (no Noroeste Baiano), de

excelente vocação agrícola, verificou-se a sua extraordinária importância no que concerne a

uma política destinada a incrementar o desenvolvimento de toda a região”629. Acrescenta

ainda o documento que Irecê possuía uma “extraordinária produção cerealífera”630.

A afirmação da existência de uma “vocação agrícola” para o Platô Norte Diamantino e

áreas próximas, durante a década de 1970, se fazia em consonância com as políticas de

modernização rural em nível nacional. O II PND definiu de forma clara a necessidade de

“efetivar a vocação do Brasil como supridor mundial de alimentos, matérias-primas agrícolas

e produtos agrícolas industrializados”, a partir do empenho em “consolidar a diversificação e

especialização regional do desenvolvimento agropecuário, tendo em vista as diferentes

vocações naturais das diversas regiões e a diversidade na dotação de fatores de produção”631.

A presença do termo “vocação”, ou de expressões semelhantes nos documentos de todas as

esferas políticas (locais, estaduais, federais), demonstram o alinhamento discursivo e político-

econômico das elites nacionais.

Quanto ao uso do termo, sabemos que no final do século XIX e início do século XX,

ele já era constantemente relatado pelos políticos e barões no Sudeste, como argumento de

defesa e afirmação da importância do café em relação à expansão industrial, para o

desenvolvimento do Brasil. Durante o Estado Novo falou-se do Brasil como “celeiro do

mundo”, uma espécie de equivalente semântico. O termo vocação é de origem cristã e remete

a um chamado de origem “extraterreno” ou “divino”, do qual não se pode fugir. Essa

expressão se tornou um conceito bastante difundido a partir das análises do sociólogo alemão

Max Weber (1864-1920).

Argumentando sobre os recursos naturais do Platô Norte Diamantino e de suas áreas

marginais, como símbolos irrefutáveis de uma vocação agrícola, o Estado elaborou uma

forma narrativa que associa diretamente as qualidades físicas desses recursos aos potenciais

de uso e elevação da produtividade. Preocupa-se em afirmar que “o planalto de Irecê tem

628 BAHIA. Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia. Documento de Irecê..., p. 1. 629 ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros..., p. 11. 630 Idem, Ibidem, p. 06. 631 BRASIL. P. R. da. II Plano Nacional de Desenvolvimento..., p. 41- 42 (grifo nosso).

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700.000 ha de muito bom solo, rigorosamente planos e apto, portanto, para a agricultura

mecanizada”632. Em outro documento podemos ler:

A fertilidade dos solos, a topografia natural que facilita a mecanização agrícola, o índice elevado de aceitação das novas práticas agrícolas e a disponibilidade de crédito, principalmente para os grandes e médios produtores, firmam-se como fatores favoráveis ao crescimento e rendimento físico das lavouras e à expansão das fronteiras agrícolas, na Micro-região633.

Além dessa associação, o discurso científico-tecnológico-oficial da vocação agrícola

fundou representações sociais que foram exaltadas e difundidas, com destaque para o técnico

agrícola e o trabalhador rural. O boletim comemorativo dos 10 anos da Empresa de Pesquisa

Agropecuária da Bahia S. A., nos informa em meados dos anos 1980 que “há desafios em que

um pesquisador se lança, com a coragem de um desbravador, mas tem a íntima certeza de que

somente um outro ou outros, companheiros, muito tempo depois, poderão completar o seu

trabalho. E isto talvez seja o que de maior existe na alma de um verdadeiro pesquisador”634.

A partir do texto, observamos que o técnico agrícola foi representado como um

“cientista paciente” e a tecnologia como sua ferramenta. Os discursos dos relatórios oficiais

sobre o trabalhador rural se apresentavam um pouco mais complexos, ora surgem como

vítimas anacrônicas, ora como sujeito idealizado, empreendedor e familiarizado com a

tecnologia. Um dos subprojetos locais do POLONORDESTE define seu público alvo como

“constituído de produtores de baixa-renda, com níveis insuficientes de educação, saúde e

nutrição. [...] Face exigências do sistema, não tem acesso a crédito, nem são assistidos com

novas técnicas de produção”635. Afirmou-se ainda que a mão-de-obra rural se destacava por

um “quase total despreparo profissional”636. Em um texto de abordagem geral, intitulado

Extensão Rural e Objetivos, e encontrado na biblioteca regional da EBDA, em Irecê, datado

de 1979, podemos ler:

Agora, recebendo informações técnicas, possuidor de necessidades, da essência de condicionamentos do ambiente sócio-histórico e econômico em relação a ele, como indivíduo, e em relação a totalidade do universo em que vive ou percebe, o homem

632 BRASIL. Secretaria de Planejamento. Planos de identificação e aproveitamento de projetos - fase III: zona Pólo de Irecê - texto. Recife: IPEA, 1975a. v. 5 (Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), p. 14. 633 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p] ver: 1.3.1.4 – Produção Agrícola. 634 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. EPABA 10 anos: mais pesquisa, mais alimento. Salvador: EPABA, ano I, n. 2, p. 2, 4-6, mar/ago. 1986b (Boletim informativo EPABA), p. 2. 635 BAHIA. Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado de Irecê – Pró – Irecê..., p. 14. 636 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 1.3.1.2 Mão-de-obra rural.

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processa as informações e situações e gera resultado, que pode ser o esperado pela Extensão Rural: adoção dos conteúdos técnicos na sua prática diária637.

Sob a rápida ontologia laboral do homem rural podemos captar a síntese discursiva do

autor do texto: o produtor age no seu meio a partir da absorção dos conteúdos técnicos que

lhes são externos e o encontro desses elementos deve ser provido pela Extensão Rural. Em

outras palavras, o autor do texto anuncia o trabalhador rural como um sujeito que necessita

das novas técnicas para se realizar e se tornar efetivamente um produtor638. Na análise dos

folhetos e panfletos das empresas de extensão rural, que atuaram no processo de instauração

da Região de Irecê, salta aos olhos a informação:

Este sistema destina-se a produtores que cultivam feijão e milho consorciados, que tem acesso ao Crédito rural e se mostram receptíveis à adoção de novas tecnologias. Apresentam razoável conhecimento sobre a exploração e são proprietários de terra [...] Utilizam tração mecânica para preparo do solo com o uso do arado e grade [...]. Para contrôle das pragas, empregam inseticidas [...] A colheita é realizada manualmente e o beneficiamento é feito com o uso de trilhadeiras mecânicas. Comercializam a produção imediatamente após a colheita, não efetuando o armazenamento à nível de propriedade639.

Muito além de uma mera descrição, o texto acima descortina um “modelo” de ser

produtor, estabelecendo patamares comportamentais, sociais (e por que não psicológicos!) e

de trabalho para os indivíduos. O trabalhador rural emerge dos documentos analisados como

uma imagem em trânsito vertical: ora tem destaque por sua pobreza, em outro momento se

torna relevante pela sua potencial assimilação de novas tecnologias, é lembrado pela sua

carência, mas, só tem importância real se acender ao de modelo produtor.

A transformação do “trabalhador anacrônico” e pobre no “trabalhador tecnológico”

requeria estratégias, a mais difundida delas parece ter sido a realização de “campanhas”,

entendidas como ações diretas de divulgação e convencimento junto aos trabalhadores. As

reuniões e cursos coordenados pelos agentes da modernização rural, especialmente técnicos

agropecuários, nas diversas comunidades norte diamantinas, enfatizavam as vantagens do uso

de sementes selecionadas, orientavam a introdução de novas técnicas, justificavam a

importância da ampliação dos serviços extensionistas e da elevação da produtividade. Essas

637 BARBOSA, Astrogildo Regis. Extensão Rural e Objetivos. Salvador: EMATERBA, 1979, p. 15 (grifo nosso). 638 Idem, Ibidem, passim. 639EMPRESA BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL/EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA. Sistema de produção para Feijão e Milho. Irecê: EMATER-BA, 1980a (Série Sistema de Produção. Circular, 225), p. 9 (grifo nosso).

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atividades não se restringiram aos trabalhadores rurais, em um dos documentos propõe-se:

“Estabelecer um processo de mentalização regional sobre o uso da energia elétrica de forma

generalizada e promoção de Encontros das lideranças locais, a fim de despertá-los para as

iniciativas” agro-industriais640.

O contato entre agentes e trabalhadores, ao contrário do que nos induzem a pensar as

afirmativas e propostas acima, nem sempre se deram de forma pacífica e harmônica. Esses

agentes nunca deixaram de ser recebidos com certa desconfiança pelas comunidades rurais do

Sertão de Irecê, na medida em que eles representavam, localmente, órgãos como “o banco” ou

“o governo”. Uma pequena crônica intitulada Jeito de agricultor, exposta em um dos boletins

informativos da EPABA, é ilustrativo para entendermos o grau de tensão que envolvia essa

relação: Imagem 13: Crônica “Jeito de Agricultor”

Fonte: EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. EPABA 10 anos: desempenho e perspectiva. Salvador – BA: 1986a (EPABA. Documentos, 12), p. 2.

Para além da abordagem ambiental, o texto demonstra um conflito entre formas de

conhecimento, um conflito entre sujeitos situados em pontos opostos do sistema produtivo,

marcados por diferenças culturais e sociais, envolvidos em uma relação hierárquica e 640 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 3.2 Programa – Agropecuária (grifo nosso).

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discursiva desigual. O ponto alto da narrativa dá-se no momento em que o conhecimento do

“Doutor” passa a ser questionado pelos saberes tradicionais do agricultor. Outro texto,

publicado pela mesma empresa, denuncia, de forma geral, a existência de uma ação diretiva e

verticalizada do órgão de apoio e extensão agropecuária, a ocorrência de práticas

assistencialistas voltadas para os trabalhadores rurais, a incompatibilidade entre os pacotes

tecnológicos e a “filosofia de vida” policultora das comunidades, a falta de “integração entre

os órgãos”, a precarização dos serviços do órgão de extensão rural e a necessidade da ATER

agir de forma positiva junto aos órgãos classistas rurais641.

A existência dessas vozes distoantes dentro dos órgãos de extensão rural, também

responsáveis pelo contato direto com as populações, a “inculcação” dos novos valores e

técnicas e a inclusão dos indivíduos no sistema de crédito rural, nos permite visualizar

dissensos quanto ao papel dos agentes ténicos no processo de difusão das novas tecnologias e

quanto as formas e poderes que determinavam o contato entre esses dois grupos. A tabela

abaixo nos ajuda a entender as proximidades e distâncias dos entrevistados em relação ao

crédito agrícola rural, e consequetemente, aos agentes de modernização.

Tabela 15: Aquisição de empréstimos agrícolas entre os vaqueiros

Entrevistado Relação com empréstimos agrícola

Sinobilino Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “minha roça era só aquela que eu pudia fazer, que pudia trabalhar, nunca tirei dinhêro de banco pra tocar roça não”.

Zé dos Morrinhos Nunca adquiriu empréstimo agrícola: Não, nunca mixi em banco. Foi só na foice mermo, roçano. [...] Nunca fui não! Nunca gostei de dever. [...] Esse negoço de tá chegano carta e chegano...”

Almir Vaqueiro Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “Até hoje eu nunca fui num banco! [...] nunca gostei! Nunca gostei daquilo”.

Gilson Nunca adquiriu empréstimo agrícola

Juarez Nunca adquiriu empréstimo agrícola: “Eu nunca fui no banco, foi minha bestaje! (risos) Foi. Porque quem pegô hoje tá rico”.

Licuri Nunca adquiriu empréstimo agrícola Luis Vaqueiro Nunca adquiriu empréstimo agrícola

Roxinho Adquiriu empréstimo a partir de 1993. Afirma que anterior a esse período “já [existia empréstimo], mas eu num tinha cunhicimento não”.

Zizinho Adquiriu 2 contratos de empréstimo agrícola no início dos anos 1980

Jairo “Ainda cumecei fazer uns negóço (plantar via aquisição de empréstimo), mas, depois num deu certo, parei.”

Hermes Adquiriu alguns empréstimos entre 1980 e 1988. Chico França Adquiriu empréstimos agrícola na década de 1980

Viana Vaqueiro Adquiriu empréstimos comerciais (aquisição de gado) na década de 1970: “eu tirava era a letra do banco pra 90 dia, aí ia mexê com boi, vendê aos assoguêro, tirar pra Jacobina, né”. Adquiriu empréstimos agrícolas a partir da década de 1980

641 CÂMARA, Jorge da Silva. Reflexões sobre a presença da Extensão Rural no Nordeste. Salvador: EMATERBA, 1979, p. 1-13.

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Reinaldo de Lôro Adquiriu empréstimo agrícola a partir do final da década de 1970. Samuel Não identificado Reinaldo de Zé Pedro

Não identificado

Fonte: Narrativas orais.

Observando os dados percebemos que 8 dos depoentes nunca adquiriram empréstimos

agrícolas junto aos bancos, até pelo menos 1990642, momento de crise do projeto Região de

Irecê, mesmo possuindo terras. As explicações dadas por eles para esse comportamento são as

mais diversas, entre elas evitar dívidas, evitar cartas de cobrança ou o “desconhecimento”.

Dois (Zizinho e Jairo), trabalharam com empréstimos agrícolas por curtos períodos e apenas 3

usaram os financiamentos com maior frequência, todos eles, no entanto, na década de 1980,

momento auge do processo de devastação das caatingas e rompimento de suas antigas

relações de trabalho.

A conclusão que nos induz a análise dos dados é a de que os vaqueiros, de forma

geral, evitaram sempre que possível o uso do crédito agrícola oficial. Os que não puderam

manter-se afastados totalmente tardaram ao máximo a elaboração de contratos. Essa atitude

demonstra a criação de outras estratégias de produção da sobrevivência e um nível

significativo de desconfiança para com as iniciativas de modernização implantadas pelo

Estado.

Explica Hermes que “pra trás (antigamente) (as pessoas) tinha o medo de dever (se

endividar)! Achava que ia pegar esse dinhêro e num ia pagar! Ia atrasar e ia o banco todo

tomar a área... que tudo a gente pensava, num tinha o custume de trabalhar (usando crédito

bancário)!”643 . Almir Vaqueiro destaca: “Até hoje eu nunca fui num banco! Nunca abri xxx

em banco, Graças a Deus! [...] E se eu lhe devo alguma coisa eu quero pagar (risos). E o

dinhêro do banco hoje não produz mais nada pra você pagar!”644. Luiz Vaqueiro não nega:

o que acabô a região todinha foi banco! Porque o banco invistiu dinhêro pro cara trabalhar, muitos trabaiaro e muitos tem a terra, e muitos num tem mais, tem muitas terra aí que é tudo do banco né, que o banco tomô [...]. Chegava uma firma grande como a Pioneira, invadia o mundo todo sem comprar nada! [...] pegava o dinhêro no banco, pra dismatar 3 mil tarefa, aí prantava um ano, num tirava quais nada, largava de mão645.

642 A década de 1990 marca a entrada de novos tipos de financiamento rural, de menor porte e revestidos de uma perspectiva mais social, voltados para o convívio com o semi-árido, as ações cooperativistas e as temáticas em torno da sustentabilidade do homem rural. 643 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 644 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 645 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010.

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A constatação de certo nível de distanciamento entre os trabalhadores e os agentes de

modernização rural, todavia, não impede que alguns dos nossos entrevistados tenham, por

vezes, uma imagem positiva de muitas das ações do governo. Hermes, que usou por oito anos

o crédito agrícola, afirma:

pra mim mesmo, me ajudô muito [...]. Porque um coitado que não podia, que vinha ganhando “macaco” (diarista), [...] e então pegar uma área de terra e escriturar ela, “incrar” ela e botar no banco e ai trabalhar por conta própria e se beneficiar como muitos que fez assim, hoje tem as coisa dele, foi bom, foi ajudado, foi uma ajuda boa. [...] Primêro de Deus e segundo é dinhêro do governo646.

Chico França acha que “o governo tem ajudado muito os pobre, o negócio é que todo

órgão de governo [...] vem de lá com o dinhêro, vem de lá pra cá e os ladrão vai passano a

mão aí, quando chega em sua mão, já viu!”647. Mesmo Juarez, que nunca obteve empréstimos

agrícolas, afirma com certa lamentação que, caso tivesse recorrido aos financiamentos,

poderia hoje possuir seu próprio “maquináro pra trabalhar, num pagava maquináro

dos’ôto!”648. É comum aos entrevistados explicarem a suspensão do crédito agrícola, na

segunda metade da década de 1980, como resultado do não pagamento da dívida por parte de

agricultores mal intencionados. Essa visão chega mesmo a ser personalizada e, por vezes,

representa o “banco” na condição de vítima da situação. Zizinho diz que: “o banco disgostô

também, mais eles num são besta de ficar só soltano dinhêro pra gente num fazer nada. Uns

tirava dinhêro lá e num fazia nada!”649.

A relação entre a positivação narrativa das iniciativas governamentais e a existência de

um certo padrão de comportamento baseado na cautela e na desconfiança das intenções dos

órgãos governamentais denunciam o trabalho da memória dos vaqueiros do Sertão de Irecê. A

positivação da imagem do “banco” no momento atual fundamenta-se no contexto sócio-

econômico no qual vivem os entrevistados, marcado pela crise financeira e agropecuária do

Platô, pela impossibilidade da continuação das práticas costumeiras de trato com o gado e

pela presença marcante do Estado na vida cotidiana das populações, via programas

assistenciais de cunho social, econômico e previdenciário (Ex: Bolsa Família, serviços

646 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 647 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 1º momento, 13 de out/2010. 648 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 649 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011.

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médico-sanitários de atendimento domiciliar, pequenos projetos de produção rural,

aposentadoria).

Como ensina Alistair Thomson, a manipulação das lembranças passadas visa elaborar

explicações mais significativas para com as demandas do presente em que se vive por meio do

processo de composição das reminiscências650. Verena Alberti também destaca que a vida não

é composta por uma “trajetória progressiva” e isso nos exige o entendimento de que as falas

sobre ações e escolhas do passado são determinadas pelo sentido existente no momento de em

que foram narradas651. Voltemos ao discurso científico-tecnológico-oficial da vocação

agrícola e suas representações.

Censurando as vozes divergentes, os relatórios oficiais afirmaram uma genérica

“operosidade” da população local, ou mesmo, como viso, um suspeito “índice elevado de

aceitação” das novas tecnologias entre as comunidades rurais do Platô Norte Diamantino e

das áreas vizinhas. Sendo bem vistos ou não, os técnicos representavam a dimensão científica

sobre a qual se sentou o projeto Região de Irecê, cabendo a eles a produção, incorporação,

difusão e acompanhamento das novas experiências, técnicas e produtos entre os trabalhadores.

O material analisado demonstra a dimensão e a especificidade com que a ciência, enquanto

prática sistemática de análise, foi incluída nos sistemas de produção e usada para justificar o

potencial produtivo do Planalto Norte Diamantino. Um dos relatórios destaca:

No ano agrícola 1978/1979 a EPABA (UEP/Irecê) através de seus pesquisadores procurou realizar trabalhos de consórcio na fazenda do agricultor, usando todas as técnicas e informações disponíveis, obtidas através da pesquisa básica, para uma melhor distribuição das culturas em consórcio. [...] Em síntese, as vantagens deste método de plantio consorciado são tantas, que permitem à pesquisa recomendá-lo como um sistema viável economicamente para os agricultores da Micro-Região de Irecê652

Diversos experimentos voltados para o cultivo de mamona, milho, feijão, sorgo, soja e

fruticultura, foram realizados e descritos de forma detalhada. Em pesquisa comparativa sobre

o processo de adaptação de cultivares de feijão aos sistemas consorciados e exclusivos

conclui-se:

650 THOMSON, A. Recompondo a memória..., p. 57-58. 651 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 70-71. 652 BERGER, Paulo Geraldo. Consorciação - um sistema de plantio muito usado pelos agricultores da Micro-região de Irecê. Irecê: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S.A. [s.p.], [entre 1980 e 1985] (UEP Irecê Informa) (grifo nosso).

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Em todos os parâmetros avaliados houve um decréscimo significativo entre as médias do sistema exclusivo e consorciado. O rendimento de grãos foi o caráter que mais sofreu esse decréscimo (26%). Para número de vagens/planta, número de sementes/vagem e rendimento de grãos, as cultivares se comportaram de forma diferente nos sistemas estudados, em relação ao peso de 100 sementes porém, as cultivares mantiveram o mesmo padrão de comportamento653.

Por meio dos experimentos, os técnicos agropecuários descobriram e registraram o

“comportamento” das plantas, o peso das sementes, o número de vagens por planta. Os

resultados desses estudos passaram a ser ‘receitados’ em suas particularidades e ‘metragens’.

Deve-se proceder uma aração mecanizada 30 a 60 dias antes do plantio, com arado de disco a uma profundidade de 15 a 20 cm. Deve ser realizada uma gradagem no sentido transversal ao da aração as vésperas do plantio com a finalidade de destorroar o solo e eliminar as plantas invasoras germinadas654.

Diversos métodos de irrigação (canalizada, por inundação com sulcos, por infiltração)

foram também testados e registrados detalhadamente. As doenças das plantas e as pragas não

deixaram de ser estudadas e entre uma série de panfletos e informações sobre os agrotóxicos

recomendados, lê-se sobre o gorgulho das vagens (chaldocermus angulicollis Fahreeus,

1873): “O adulto mede de 5 a 6mm de comprimento por 3mm de largura, é de cor preta-

brilhante, com pontilhações finas na parte anterior do tórax e patas, sendo mais grossas nos

élitros (asas endurecidas) e na parte ventral do abdome”655.

A presença de grande quantidade de relatórios e documentos de outras unidades de

pesquisa nos arquivos da biblioteca regional da empresa de assistência técnica e extensão

rural responsável pelo atendimento ao município de Irecê e circunvizinhos, demonstra uma

intensa circulação de informações e a realização de esforços dos agentes locais em construir

sistemas de referenciamento para os seus estudos. Os técnicos agrícolas incorporaram a

imagem da ciência, como os governantes à do capital. O intitulado “operário rural” simboliza

bem essa associação em um poema reproduzido entre os boletins informativos da EPABA.

Quando não houver mais floresta? Quando não houver Mais floresta O que será desta nação

653 OLIVEIRA FILHO, Elias. Adaptação de cultivares de feijão (P. vulgaris, L.) ao sistema de cultivo consorciado. Salvador: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S/A, 1982 (EPABA, Boletim de Pesquisa, 1), p. 17. 654 EMPRESA BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL/EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA. Sistema de produção para Feijão e Milho..., p. 11. 655 COSTA, Jonas Machado da. Pragas do feijoeiro na Bahia e meios de combate. Salvador: Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S.A., 1986 (EPABA. Circular Técnica, 13), p. 13.

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Quando o solo rico e fértil Transformar-se erosão Quando não houver mais caatinga E secarem as cacimbas O que será do meu sertão É a vez da agronomia Lutar com muita bravura E com tecnologia Defender a agricultura É hora de se lutar Vamos todos semear E colher muita fartura656.

A construção artística do autor, cujo nome real é Eufrásio F. de Farias, anuncia a

possibilidade de continuar produzindo mesmo que nas mais adversas condições, bastando

para isso, o acionamento da ciência e da tecnologia, especialmente da Agronomia. O trecho de

outro documento da mesma natureza anuncia também a relação agricultura-tecnologia:

“Lembramos ao leitor que o processo de geração de tecnologia agropecuária é moroso porque

deve ser criterioso e abarca uma soma considerável de variáveis que devem ser analisadas em

todos os seus aspectos, até que a tecnologia esteja pronta para ser “semeada”657. Aqui, a

tecnologia chega mesmo a nascer, como uma planta, a qual, para que produza bons frutos,

deveria ser cultivada pela cautela e a análise.

O processo de construção da estrutura discursiva científico-tecnológico-oficial

reservou também uma imagem especial ao Estado. Este é constantemente afirmado como o

agente provedor, responsável pela chegada de novos tempos e pelo fim do isolamento dos

homens e dos territórios do Platô Norte Diamantino e circunvizinhanças. Muitas vezes, essa

imagem chegou a ser personificada pelos seus governantes como exemplifica um dos textos

analisados ao afirmar que: “o Governador Antônio Carlos Magalhães desperta a vocação

econômica de regiões antes esquecidas que agora ressurgem como celeiros agrícolas e

pastoris”658. O governo assume o lugar de interlocutor da natureza e do trabalho, concedendo

ao homem as condições materiais para realizar o chamado da “vocação agrícola”.

Como temos acompanhado, as ações oficiais se interligaram diretamente com a

chegada das novas tecnologias, dentre estas, o trator é o maior representante.

656 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. SEMEAR: Boletim informativo da UEP/Irecê. Irecê, ano 2, n. 1, [de 1980-1990]b, p. 7. 657 Idem, SEMEAR: Boletim informativo da UEP/Irecê. Irecê, ano 1, n. 2, [de 1980-1990]a, p. 1 658 ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros..., p. 6.

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251

Imagem14: Instalação do Governo do Estado da Bahia em Irecê

Datada de 1971, a foto acima nos foi doada e representa um momento símbolo da

instalação de novas agências de desenvolvimento do Governo Baiano na cidade de Irecê. A

imagem impressiona tanto pela quantidade de máquinas, quanto pela multidão que as

acompanha. A imagem aponta para o protagonismo da tecnologia ao mesmo tempo em que

demonstra como o trator consubstanciou-se no próprio Estado, ambos apresentados à

multidão como “modernos” e “modernizantes”. No decorrer do evento, a praça pública foi

territorializada como lugar do discurso oficial, palco de união entre o campo, a cidade e o

governo. Fato de destaque relativo aos tratores foi narrado por Guilhermino:

En: [...] todo mundo quis porque daí pra frente aumentô as coisa, foi como avoluir o lugar, né. Aqui teve gente de pissuir 10, 12, 15 trator, né! E: Foi mesmo?! Pr’aqui?! O sinhô cunhece assim alguém? En: Conheço! Aqui teve gente aqui em João Dourado que tinha 10 trator, tinha 15 trator! Ali em Canarana, aí na América mesmo tinha um que tinha 12 trator [...]659

Busquemos outra imagem para refoçarmos a importância dessa máquina para as

propostas de modernização rural do Platô Diamantino Setentrional e do seu entorno.

659 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 2º momento, 18 de ago/2011.

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252

Imagem 15: Governo inicia plantio do feijão em Irecê, 1980 (SECOM).

Fonte: <http://www.institutoacm.com.br/geral/fotos-historicas.html> Acesso em 07 de fevereiro 2010.

Não é preciso muito esforço para entendermos a união dos elementos da foto. O

Governador Antônio Carlos Magalhães, em pessoa, se põe à direção de um trator Massey

Ferguson MF – 265, fabricado no final da década de 1970 (portanto, uma das máquinas mais

modernas para a época em que foi registrada a imagem) e entre aplausos e risos dos

populares, anuncia a chegada de uma nova etapa agrícola. Momento síntese da união desses

elementos (Estado, máquina e vocação agrícola) pode ser analisado também a partir do trecho

narrado por um dos memorialistas da cidade de Irecê:

A primeira festa nacional da mamona foi realizada em Irecê em dia 29 de junho de 1985, dia de “São Pedro”. Houve um desfile de tratores agrícolas, com máquinas enfeitadas com galhos de mamona, desfilavam em frente ao palanque, onde estavam autoridades federais, estaduais e municipais. O objetivo do prefeito, Hildebrando Seixas, era mostrar as potencialidades agropecuárias da microrregião de Irecê660.

A citação demonstra como o discurso científico-técnológico-oficial da “vocação

agrícola” da Região de Irecê encarnava práticas e produzia formas legitimadoras para os

novos elementos simbólicos trazidos pelo processo de modernização rural. No texto, as

máquinas, a política, o capital e a agricultura comercial se encontraram em ato solene em que

se faziam presentes os trabalhadores e suas instâncias político-representativas. Até mesmo o

dia escolhido tem uma função e um peso na narrativa: até São Pedro parece referendar o ato!

660 RUBEM, J. Irecê: história..., p. 197.

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253

Como vimos no caso da imagem 13, as praças e ruas das cidades e povoações do

Planalto Norte Diamantino, serviram de meio para produção de estratégias de difusão e

convencimento social da “vocação agrícola” da Região de Irecê, assim como das mudanças

urbanas que se processaram no trajeto da modernização agrícola.

Imagem 16: Desfile cívico na cidade de Irecê (1970-1980)

Fonte: Arquivo do Colégio Polivalente Governador Antônio Carlos Magalhães.

A foto acima demonstra a realização de um desfile cívico na cidade de Irecê entre as

décadas de 1970 e 1980, enfocando a participação de estudantes. Para além da estampada

temática que representava a comitiva de discentes, chama atenção os trajes escolhidos para

representação do ato. Os macacões são roupas associadas ao exercício de trabalhos manuais,

especialmente os voltados para o trato com a terra. Completa a indumentária o clássico

chapéu de palha tão comum entre os trabalhadores rurais locais. Embora não disponhamos de

outras imagens relativas aos desfiles e festejos, a deduzir pela presença das escolas e seu

caráter cívico, supomos serem esses momentos anualmente esperados no contexto da pequena

cidade. Aí, os sujeitos populares não apenas aplaudiam as autoridades, tornam-se eles mesmos

veículos de difusão do discurso da “vocação agrícola”.

A cidade ainda foi palco de uma nova forma de produção discursiva que legitimava

essa “vocação”, dessa vez, não mais formas em movimento, mas, sim formas estáticas.

Complementando as intensas mudanças urbanísticas que ocorriam na cidade de Irecê, o

Governo Estadual implantou monumentos de referência ao potencial agrícola da região.

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Font

e: A

cerv

o do

aut

or, 2

010.

Foto 6-7: Monumento dedicado a agricultura em frente ao Banco do Brasil (coincidência?). Data desconhecida. Lê-se em um dos lados: “O Brasil cresce e Irecê abastece”, no outro: “Nesta terra em se plantando tudo da”.

Font

e: A

cerv

o do

aut

or, 2

010.

Foto 5: Arado de tração animal, monumento dedicado a agricultura na “Praça do Feijão” em Irecê. Em sua placa de inauguração (outubro de 1971) lê-se: “Aquí, governo e povo irmanados, plantam a semente do progresso”.

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Font

e: A

cerv

o do

aut

or, 2

010.

Certas áreas da cidade também foram denominadas com nomeclaturas relacionadas à

prática agrícola, como a “Praça do Feijão”, local de concentração dos comércios de grãos, por

onde geralmente passava a produção dos municípios vizinhos e de onde partiam os caminhões

para os grandes centros. Em uma das calçadas desta praça está cravada em ladrilhos a

expressão “Capital do Feijão”. Na década de 1990, um dos governos municipais implantou na

cidade de Irecê lixeiras em formato de grãos de feijão e espigas de milho, o que demonstra

uma clara tentativa de alimentação e uso das representações agrícolas produzidas nas décadas

anteriores.

Vê-se que a produção do discurso de “vocação agrícola” moveu um grande aparato

formado por instituições e agentes (agências financeiras e de desenvolvimento agrícola,

poderes governamentais, escolas, técnicos agropecuários), envolveu variados espaços (a rua, a

praça, a roça, o laboratório) e recursos (pesquisas, máquinas, roupas, eventos festivos,

discursos públicos, a mídia), atingiu e incorporou diversos grupos populares como estudantes

e trabalhadores. Todos esses fatores articulados em um discurso agrícola homogeneizador de

base científica-tecnológica-oficial, tinha como foco maior a geração de formas de aceitação e

reprodução social dos interesses do capital incorporados pelos governos. Ao tempo em que

produzia um “dizer”, esse discurso gerava também o silenciamento das formas costumeiras de

vivência e trabalho do Sertão de Irecê.

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256

O discurso de uma “vocação agrícola” para os homens, a terra e as cidades do Platô

Norte Diamantino e das áreas vizinhas, destacou ainda um recorte temporal que antagonizou o

tempo das modernidades, afirmado como o “tempo da integração”, à forma costumeira de

sobrevivência dos trabalhadores do Sertão de Irecê, esta agora definida como “tempo da

estagnação”. Na base dessa estratégia, esteve a apropriação política dos tão persistentes

binômios explicativos (atrasado x moderno; civilizado x bárbaro), que por muito tempo

marcaram as versões históricas no pensamento social brasileiro, gerando interpretações

reducionistas e polarizadas.

A “vocação agrícola” tornou-se a forma de se narrar e cantar a história dos territórios e

das populações alvo das ações modernizadoras. O hino da cidade de Irecê, criado em 1968,

ainda hoje exalta: Irecê dos meus amores Terra boa do sertão [...] Tuas terras dilaceradas Pelo arado benfeitor São orgulho e a esperança Desse povo trabalhador Os verdes das tuas roças Lindas flores de algodão Lembram garças revoando Os campos do meu sertão Campos verdes florejantes [...]661

Um dos mais destacados memorialistas dessa cidade, Jackson Rubem, narra na voz

ritmada do cordel.

[...] Vila de Irecê cresceu muito Para orgulho da nação Seu povo trabalhador Sustentado no feijão Plantava outra cultura Dentro da agricultura Para libertar o seu chão [...] O seu povo calejado Queria se dominar Com uma mão no arado E a outra a bradar [...] 662

661 IRECÊ, Prefeitura Municipal de. Hino de Irecê (autoria: Carmosina Lopes), 1968. Disponível em <http://irece.ba.gov.br/simbolos>. Acesso 10 de mar/2012.

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257

Novamente a terra, o homem trabalhador, o arado, a roça são invocados em uma fala

uníssona, que busca definir o passado de uma forma alinhada e agrícola. A esses, alguns

outros símbolos se juntaram no sentido de ampliar e positivar as novas referências imagéticas

que serviram de base para a afirmação da chegada de um “novo tempo” e que permitiram a

internalização social dos interesses do Estado. Em tempos de Ditadura Militar, exaltou um

dos vereadores do município de Irecê em documento datado de 09 de abril de 1979 e

direcionado ao então Ministro da Agricultura, Delfim Neto:

Prontos como soldados, para lutar no campo da produção! Temos a terra fértil, alguns tratores e outros instrumentos rudimentares, queremo (sic) em primeiro lugar o Vosso Comando, queremos crédito a juros baixos, preços compensadores para nossa produção. Machamos pois unidos, confiante nas Palavras do nosso SUPLEMO (sic). COMANDANTE! O PRESIDENTE JOÃO BATISTA DE FIGUEIREDO, que: ‘Enquanto o Nordeste for pobre o Brasil não será rico663

A agricultura torna-se aí uma missão, para qual o exército já se encontra posto,

faltando-lhes as “armas agrícolas” para alimentar o Brasil. Novamente aqui, à terra fértil e a

mão-de-obra (“soldados da produção”) unem-se em uma narrativa onde o Estado é enfatizado

como portador do poder de produção das condições do “novo tempo”.

A face mais dura do processo de estruturação da Região de Irecê para os trabalhadores

rurais, tanto em sua dimensão discursiva quanto em suas dimensões materiais, se delineava

silenciosamente, ou melhor, no silenciamento. O enfoque agrícola da política oficial buscou

eliminar outras formas rurais de ser, homogeneizando formas de trabalho e uso da terra nas

comunidades rurais, noções de espaço e de cultivo relacionadas ao mundo poli-agropecuário

do Sertão de Irecê, censurando dizeres, ações e sociabilidades. Se aos agricultores restou a

possibilidade de continuarem suas atividades apesar do cruel sistema de controle da renda da

terra, da precarização de suas condições de vida, da dependência de novas tecnologias, da

perda da autonomia sobre sua própria terra - agora usada segundo os critérios dos agentes de

modernização, fiscalizada e controlada -, da constante tensão diante das dívidas adquiridas, do

medo da perca da propriedade e da dificuldade de compreensão dos processos burocráticos

nos quais se viram imersos, aos vaqueiros menos ainda sobrou.

662 RUBEM, Jackson. Aniversário de Irecê: “a história de nossa independência”. Irecê - Ba: Print Fox, 2007, p. 30-31. 663 CMI. Documentos Diversos 1978 – Biografias, abaixo-assinado – Decretos Legislativo de 1977. Carta direcionada ao Ministro da Agricultura Delfin Neto informando as potencialidades agrícolas da região e as condições precárias do ano corrente. 1979, p. 3.

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Ao enfocar a agricultura comercial, o Estado excluiu o vaqueiro física e

discursivamente como categoria de trabalhador rural. O discurso homogeneizador da

“vocação agrícola” omitiu o fato de que, muitas vezes, o agricultor e o vaqueiro eram a

mesma pessoa, e processou um corte entre eles como forma de incorporar e divulgar apenas

as características laborais que lhes era de interesse no Sertão de Irecê.

“A mode qui isso tudo qué dizê então, que de agora por diente, pelas terra do sertão, nóis num vai mais campiá”?664

Em nenhum dos relatórios analisados, mesmo entre aqueles que fazem menção às

categorias laborais do Sertão de Irecê, encontra-se o termo “vaqueiro”. Refletindo ainda nos

termos de Eni Orlandi, enxergamos nesse fato a ação da política do silenciamento e uma

pergunta nos induz a religar os pontos entre a alteridade e a identidade, rompidos pela

censura665: Por quê? Como é possível que o vaqueiro, em uma sociedade que tinha na

pecuária uma de suas formas matriciais de sobrevivência, não tenha sido visto e registrado?

Esse questionamento nos leva a entender a prática da pecuária à solta e seus trabalhadores

como um entrave aos interesses da modernização rural do Sertão de Irecê e à consequente

construção da “especificidade regional” Região de Irecê.

Outro fator reforça a nossa hipótese: a forma negativizada pela qual o Estado buscou

demonstrar a prática da pecuária à solta nos documentos oficiais. Um dos relatórios afirma no

final da década de 1960, que a pecuária do, até então Sertão de Irecê, não tinha “nenhuma

conceituação de raças, os rebanhos (eram) constituídos na sua maioria de animais do tipo

chamado ‘pé-duro’ e ‘mestiços azebuados’ [...] de baixa rentabilidade [...] produzindo

carcaças de inferior qualidade e carnes fibrosas de baixa digestibilidade”666. Outro documento

destaca que aí “a atividade exclusivamente pecuária apresenta-se com expressividade

mínima”667. De forma geral, entre os relatos oficiais analisados, a prática da pecuária à solta é

sempre classificada como atividade complementar à agricultura, secundária, insignificante ou

em vias de extinção. Essa concepção se reforça à medida em que ganha corpo o discurso

científico-técnológico-oficial da “vocação agrícola”.

664 MELLO, Elomar Figueira de. A terra qui nóis pissui, In: Árias Sertânicas. (CD), 1992. 665 ORLANDI, E. P. As formas do silêncio..., p. 75-81. 666 FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê..., [de 1969 a 1972]. p. 12. 667 Idem. Micro-região programa 12 Irecê... [s.p.] ver: 1.3.1.1. Estrutura Agrária (grifo nosso).

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259

A pecuária em si, como atividade produtiva, todavia, possuía uma forma de sobreviver

dentro do processo de modernização rural, bastando para tanto a adoção de um “elenco de

tecnologias que asseguram ao agropecuarista, mesmo do semi-árido, [...] (a) utilização mais

racional dos seus rebanhos bovinos, ovinos e caprinos, oferta de um crescente aumento de

material genético de melhor qualidade, melhores condições sócio-econômicas, além da

prestação de uma gama de serviços diretos ao produtos rural”668. Em boletim de 1983 a

unidade regional da Empresa de Pesquisa Agropecuária da Bahia S. A. (EPABA), responsável

pelo serviço de assistência técnica e extensão rural local, informa que “foram implantados dez

trabalhos direcionados para a produção animal (pecuária leiteira, corte e manejo extensivo),

na fazenda ‘Baixa Grande’, localizada no município de Ibititá, no km 25 da rodovia Irecê-

Ibititá669”.

A forma proposta para a continuidade da atividade pecuária dentro do projeto de

modernização rural, exigia a sua inclusão nas dinâmicas mercantis e tecnológicas que se

instalavam. Com excessão do uso do sistema intensivo de criação, essas iniciativas

modernizantes ficaram restritas aos grandes criadores, que tinham acesso a informação e

influência nos meios políticos e institucionais. Na verdade, ideias como a de melhoramento

genético, adoção de técnicas intensivas e novas formas de manejo, soavam estranhas entre

comunidades rurais. A modernização das atividades pecuárias do Sertão de Irecê, não passou

de um experimento limitado.

Avaliando o impacto dos recursos do Projeto Sertanejo destinado aos criadores do

Platô Diamantino, o Centro de Planejamento da Bahia reconhece que “o Projeto Sertanejo

orienta-se principalmente para a pecuária, com rendimentos mais seguros, e cujos

investimentos tem maior segurança de retorno. É claro que, deste modo, serão os estratos

maiores os principais beneficiados”670. A continuidade das práticas tradicionais de criação e

cuidado com os animais no campo, foi afirmada como inviável e rudimentar e seus

diagnósticos não pouparam críticas: 3.7 Perfil Tecnológico Pecuário Aspectos positivos: nenhum Aspectos negativos: Não existe um mínimo manejo para bovinos, ovinos e caprinos

668 EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA DA BAHIA S.A. Relatório 1979-1983: versão resumida. Salvador, 1983b (EPABA. Documentos, 3), apresentação. 669 Idem. UEP Irecê Informa: Irecê: EPABA, 04 de maio de 1983c, [s.p.]. Mais uma forrageira para a região de Irecê. Primeira página. 670 CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA. O pequeno produtor e a política..., [s. p.] ver: Cap. III - O Projeto Sertanejo – Recursos e Créditos.

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260

Grande parte não vacina. Não realizam castração. Não fazem tratamento do umbigo. Não realizam concentração de nascimentos671.

Como vimos, a pecuária era uma das fontes de sobrevivência essenciais à vida das

comunidades do Sertão de Irecê e exigia delas razoável mão de obra e tempo de trabalho. Não

era apenas a empreitada em busca da captura de um boi que se iniciava sem a previsão de fim.

Dessedentar os animais de qualquer porte, a depender da distância das fontes de água,

poderia, por exemplo, levar quase o dia inteiro. A emergência de qualquer imprevisto, como a

presença de um animal ferido, a ausência de um deles ou a necessidade de realização de um

parto, tardava ainda mais a atividade e exigia maior atenção do seu executor. Como apontado

páginas atrás, estamos diante de uma sociedade cujo tempo é marcado pela tarefa a ser

executada, minutos e segundos tinham aí pouca importância.

Em virtude da própria natureza dos animais, o cuidado com os bovinos exigia maior

atenção e fiscalização de seus zeladores, uma vez que esses animais se deslocavam por

distâncias maiores, exigindo muitas vezes trabalho diário e integral. Mais intensa ainda ficava

a atividade quando se tratava do cuidado com rebanhos alheios. Chico França nos explica

como costumava revezar com seu irmão as tarefas do campo e da roça.

eu dava água ao gado uma semana e ele ôta, agora, em minha semana eu ia relar mandioca e dava água ao gado. Eu dava água ao gado até mêi dia e de tarde eu ia relar mandioca, na ôta semana, eu ia pra roça e ele (Arlindo, seu irmão, também vaqueiro) ficava pra relar mandioca de tarde e dar água ao gado de manhã até mêi dia. Ele dava ao de minha intrega (o gado pelo qual ele era responsável) e da dele!672

Como demonstrado, a “profissão de gado” era função almejada no Sertão de Irecê (na

verdade, em todo o Nordeste) e atraia muitos jovens, os quais, mesmo não se “especializando”

terminavam por possuir uma afinidade maior com essa atividade. Essa afinidade, ou

especialização laboral, fazia com que esses sujeitos dedicassem grande parte do seu tempo ao

cuidado com o gado bovino em detrimento das atividades agrícolas. Guilhermino relata um

caso exemplar para entendermos a atração que a função de vaqueiro exercia sobre os jovens.

En: Nós tem uma turminha aí que era muito farrista, nós ia muito pra festa, às vez nós dexava os cavalo e ia de à pé, pra festa, né, as moça tudo cunhecia qu’era... tinha o gadím, tinha coisa, tudo... todo mundo quiria a gente, né.

671 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Projeto de Pesquisa PDRI – Irecê – resumo de resultados, conclusões e sugestões. Salvador, CAR/EMATER-BA, 1985, p. 16, (grifo nosso). 672 Entrevista do senhor Francisco Mendes Batista (Francisquinho do Véi Otílio ou Chico França)..., 2º momento, 01 de dez/2010.

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261

E: Namorava muito. En: Levava pra longe! (risos) E: É um tempo bom, né? En: É bom. Você só namorava com moça feia e vagabundinha se você quisesse, né, você esculhia as que você queria né, qu’era as que dava em riba mesmo!(risos)673

De acordo com a narrativa, a conhecida proximidade entre o indivíduo, o cavalo e o “gadím”,

ou seja, o mundo da pecuária bovina, o permitia ser visto como possuidor de certo status

social entre seus amigos e até mesmo servir de “ferramenta” para concretização de objetivos

amorosos.

A ocupação dessa mão-de-obra em torno do trato com os animais, de forma

especializada ou não, foi um dos grandes obstáculos enfrentados pelos construtores da

economia agrícola regional mercantil que sustentava a Região de Irecê. Ao mesmo tempo em

que absorvia uma força de trabalho preciosa – o capital também faz escolhas etárias, nesse

sentido o jovem corresponde a força de trabalho mais ativa e mais cobiçada – à expansão das

relações agrícolas, o trabalho com o gado representava também uma ameaça disciplinar, uma

vez que e as relações laborais que aí se processavam tinham caracter mais flexível, permitia

grande controle do trabalhador sobre a sua ação, seu saber e seu tempo. Poderíamos mesmo

dizer que, como tendência, a maior especialização do indivíduo quanto às atividades pecuárias

tradicionais, correspondia a uma possibilidade de ascensão social – via formação de micro-

patrimônios - distante do controle do Estado.

Para além da ocupação da mão-de-obra, a prática da pecuária à solta ocupava também

as tão desejadas terras do Platô Norte Diamantino e outras áreas férteis que se localizam à

suas margens. É coerente pensarmos que sobre as terras mais férteis também nasciam as

melhores pastagens, portanto, o Estado, os pequenos criadores e os vaqueiros compuseram

uma arena de disputa em torno das mesmas áreas. Do ponto de vista oficial da produtividade,

a presença dos animais ameaçava os potenciais agrícolas, pois, além de comer as plantações e

arrebentar as cercas, a sua inquietude alimentícia cotidiana terminava por prejudicar ou retirar

a cobertura vegetal de certas áreas, expondo a terra aos efeitos da erosão e à perda de sua

fertilidade. Por outro lado, seu deslocamento constante atingia novas áreas, fator agravado

pelo rápido crescimento dos rebanhos. Embora acreditemos que a pequena proporção dos

rebanhos do Sertão de Irecê permitisse a recomposição natural da maior parte das áreas, aos

olhos do Estado, os prejuízos à fertilidade do solo eram possibilidades sempre ativas devido à

constante reprodução dos animais. 673 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011.

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262

Entre os documentos oficiais encontrarmos a seguinte afirmativa: “A pecuária de corte

extensiva constitui a única valorização possível das zonas desfavorecidas do Norte (área

localizada fora do Platô, considerada mais árida) [...] As fracas potencialidades das áreas

cobertas não merecem propor um sistema mais intensivo e de melhor renda”674. A afirmativa

demonstra a pecuária à solta como a solução para as áreas de menor interesse agrícola por

parte dos agentes de modernização rural, o que significa que os poderes governamentais

atuantes sobre o Sertão de Irecê, não visavam combater a prática da pecuária à solta em si,

mas, evitar que ela continuasse existindo sobre o Platô Norte Diamantino e as áreas

circunvizinhas que apresentassem qualidades agrícolas. Para as áreas menos produtivas, a

pecuária tradicional poderia mesmo significar formas de valorização e uso.

A introdução da cerca de arame farpado, o desmatamento acelerado e as proibições

legais quanto ao sistema de cria dos animais à solta impuseram mudanças rápidas no modo de

vida dos trabalhadores rurais. Hermes relata que a entrada de animais nas roças alheias era

comum mesmo antes da implantação das cercas de arame farpado e da expansão da lavoura,

no entanto, ...

Entrava! Mas, o campo tinha mais direito porque era mais era campo né, a roça já era menos, mas depois a roça passô ser mais e o campo menos e o próprio agricultor, dono da roça, dizia: _“Não o fazendêro tá errado, que nossa roça tá mais! Num tem mais onde eles crie! Eles tá tentando a criar sem puder mais, porque num tem mais campo!” E então, o cabra ia compreendendo e saia mesmo, né! É onde a roça, a lavôra, ganhô do gado! (risos)675

A fala acima nos remete a um contexto de rompimento, ou, no mínimo alteração, das

regras morais que regiam a convivência das atividades pecuárias e agrícolas no Sertão de

Irecê, devido a ocorrência de alterações em suas dimensões. A predominância do campo

obrigava o agricultor a providenciar cercas para suas propriedades e, em ocasiões que estas

viessem a apresentar defeitos, até tolerar invasões de animais à sua roça. A expansão da

agricultura comercial inverteu o “lado da razão”, obrigando o criador a aceitar sua própria

expulsão em virtude de não mais existir campo. Bem fora dessa linearidade se davam as

relações cotidianas e não difícil foi ocorrer problemas de convivência entre vizinhos.

Guilhermino exemplifica a situação:

674 BRASIL. Secretaria de Planejamento. Planos de identificação e aproveitamento de projetos - fase III: zona Pólo de Irecê - texto. Recife: IPEA, 1975a. v. 5 (Programa de Desenvolvimento das Áreas Integradas do Nordeste), p. 19 e 24. 675 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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263

se você tinha um rebanho de criação, você tava com ela aqui, aí quando pensar que num diz: _“Ah! A criação tava na roça de fulano!” Ôtas hora fulano chegava: _“Moço, sua criação tá acabano minha roça lá” Né?! Era, ou você acabava ou brigava, ficava inimigo uns dos ôto, né. Portanto, então o povo foi disgostano, foi acabano, acabano, até acabô tudo676.

Roxinho explica como a redução e até eliminação dos rebanhos atingiu as formas de

sobrevivência das populações pobres do Sertão de Irecê.

Acabô ovelha, acabô bode, tudo, acabô mais o sertão, né! E aí, quem tinha a capacidade de comprar o arame, cercava, quem num tinha num pudia nem criar uma vaca! Como é que criava? É pra criar preso e você tinha só uma vaca, num pudia comprar 2 bola de arame pra fazer a cerca, né! Acabô com o mais fraco, né.677

De acordo com Jairo, “antigamente” “todo mundo tinha criação miúda e por causa da

cerca de arame foi obrigado acabar tudo! Fraquiô o povo, porque acabô as coisa!”678. As falas

apresentadas nos demonstram como o processo de avanço da modernização rural sobre o

Platô Norte Diamantino e cercanias, condicionou a forma de vida dos trabalhadores. Uma

observação atenta às narrativas mostra mesmo que o arame funcionou como critério de

decisão entre quem continuava e que não continuava criando.679

O cercamento, contudo, nem sempre funcionava para os animais de menor porte e de

dentro de uma caixa de papelão velha, nos surge um texto manuscrito datado de 1978,

redigido por alguns “proprietários” do povoado de Gameleira, município de Irecê, e enviado à

Câmara de Vereadores esclarecendo os embates em torno da continuidade da presença de

cabras e porcos dentro das lavouras e solicitando providências.

Os infra assinados, maiores, proprietários, residentes e domiciliados em Gameleira do Distrito [...] Município de Irecê Estado da Bahia, vem pela presente representação solicitar dessa Egrégia Câmara de Vereadores de Irecê o cumprimento por quem de direito, da Lei Municipal, amparada no Código de Postura deste Município, na parte que controla e regulamenta a criação de animais de pequeno porte soltos nas ruas fora dos cercados ou pastos dos seus legítimos donos. Os que firmam este documento se sentem prejudicado com a invasão de cabras e porcos, em suas lavouras nos quintais que circulam esta vizinhança nesta Localidade, cujas cercas são construídas para animais de grande porte

676 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 677 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 678 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 679 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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264

Apelamos pois, para o espírito de comprieção (sic) de Vossas Exelencias, no sentido de solucionar o problema solicitado680.

A persistência da presença dos rebanhos “miúdos”, contudo, não impediram a sua

quase extinção. Na essência desse combate à prática da pecuária à solta, estava a instituição

da forma privada e exclusiva de uso e propriedade da terra. Como temos acompanhado, essa

nova forma de uso no Sertão de Irecê iniciou-se pela abertura de um mercado de terras, pela

obrigatoriedade dos cercamentos e pela inclusão das áreas no sistema de crédito, fato que

requeria a emissão de títulos de propriedade. Por esse se instituía a figura do “dono” da terra,

categoria de posse bem diferente das “terras da nação” de que nos falam os vaqueiros ao se

referirem ao campo. Não é de se estranhar que entre as “campanhas” previstas pelos órgãos

oficiais para instruir os trabalhadores rurais sobre as novas “mentalizações regionais”, se

encontrassem também planos de assistência para legalização fundiária681.

A produção da propriedade privada de uso exclusivo é mesmo umas das dimensões

genéticas da existência do capitalismo. Suas gêneses já foram demonstradas por Marx e

retomadas por E. P. Thompson a partir da análise dos cercamentos das florestas na Inglaterra

do século XVIII. Como demonstrado, a origem desse processo no Brasil dá-se com a lei de

terras de 1850 e continua até hoje. Dessa forma o processo de construção da propriedade

privada exclusiva no Sertão de Irecê em meados do século XX, era apenas a ponta de um

processo extenso que já se estendia pelo mundo desde a Revolução Industrial, não deixava

contudo, de ser vista como um “estranho” pelas comunidades sertanejas atingidas.

Embora atingisse a população no geral, o cercamento e o desmatamento das terras

recaíram com maior intensidade sobre os vaqueiros, uma vez que a pecuária bovina à solta

precisava de grandes áreas de pastagens e que a adoção do sistema intensivo de cria exigia

recursos nem sempre acessíveis aos trabalhadores rurais. Por outro lado, a exclusão dos bois

correspondia também à exclusão da principal fonte de renda dos vaqueiros do Sertão de Irecê.

Esse fato exigiu desses homens estratégias de sobrevivência que visassem a continuidade das

suas atividades com os rebanhos. Hermes explica que muitos criadores passaram a retirar o

gado para áreas mais distantes do Sertão de Irecê: “tiraro uma parte pra o Riacho do Ferreira,

ôtros tiraro pra essa Vereda (do Jacaré) aqui da Manga, ôtro pro lado do Brejão, pro bêiço de

680 CMI. Documentos Diversos 1978 – biografias, abaixo-assinado, decretos legislativo d 1977. Abaixo assinado dos produtores do povoado de Gameleira encaminhado à Câmara de Vereadores de Irecê. 28 de novembro de 1978. Irecê. 681 FUNDAÇÃO DE PLANEJAMENTO (BA). Micro-região programa 12 Irecê..., [s.p.] ver: 3.2 Programa – Agropecuária.

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265

vereda aí que sempre, toda vida foi solto, tiraro pra aí.”682 Aos que assim não procederam

restou, enquanto possível, a tentativa de continuar cuidando o gado nas áreas de intermeio

entre as roças.

Soltava naqueles campo pequeno, aquela área mais pequena, porque cada um cercava uma área aqui, nesse meio, mas pra cá ficava solto e prá cá né, então o trem pastava aqui de um lado e de ôtro, depois vinha o ôtro fechava ôtra coisa, foi fechando, foi, até encostar tudo, e acabô, mas dá pra perceber que o campo ia acabar mesmo683.

A fala do vaqueiro não nega: continuar usando o “campo pequeno” era uma medida

temporária. Sobraram ainda opções como alugar pastos cercados, medida essa nem sempre

possível para as comunidades do Sertão de Irecê. Guilhermino afirma mesmo que muitos

trabalhadores buscaram empréstimos no banco para cercamento de áreas de cria “e no fim

num guentô, né, desfez, acabô”684. O caso mais corriqueiro, porém, foi a venda dos animais.

Luiz Vaqueiro resume bem as condições impostas pelo dia-a-dia aos que se ariscavam a

continuar possuindo rebanhos em áreas cercadas: “foi ficô sem pudê criar, foi acabano, foi

vendeno... ôtos [...] ficô com seu bichinho preso, [...] passano fome, era o jeito disfazer!685 A impossibilidade do uso costumeiro da terra em sua localidade de moradia impunha

ao vaqueiros uma constante peregrinação conduzindo os rebanhos em busca de pastagens.

Gilson afirma que “quando os tempo fôro apertano a gente cumeçô tirar para fora. Ai eu

fiquei trabalhano por fora. [...] De um lugar para ôto, [...] trabalhei no Brejão da Gruta,

trabalhei na Lagoa Grande”686. Afirma ainda que em 1981 levou o rebanho do seu patrão para

as margens do rio São Francisco, em uma localidade denominada Riacho do Ferreira, distante

cerca de 90 km da cidade de Jussara. Em 2001, retirou esse mesmo rebanho para a Fazenda

Pioneira, a cerca de 50km do ponto anterior. A análise mais detalhada da trajetória de um dos

entrevistados, exemplifica bem o ir e vir desses homens.

Em virtude do fim do campo em São Gabriel, Juarez, juntamente com seu irmão

Hermes, deslocou o gado da família para o povoado de Recife de Jussara em 1961, área que,

no período, ainda não estava integrada ao processo de horizontalização agrícola das terras. Os

animais ficaram aí sob a guarda de um dos seus conhecidos pelo sistema de sorte. O intenso

desmatamento não tardou a chegar ao povoado de Recife e em 1967, Juarez e seu irmão

682 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010. 683 Idem, 1º momento, 11 de out/2010. 684 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 685 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 686 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011.

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receberam o rebanho de volta sob a alegação da ausência de pastagens. Em parceria com seu

pai, Juarez resolveu cercar “uns pedaço de mato que tinha incostado” às terras da família para

por o “moizim de gado”, o qual necessitou ser reduzido de “cento e pôcas cabeça” para 30,

como forma de se adequar às condições financeiras e espaciais disponíveis no momento. Os

animais aí permaneceram por mais 9 anos sendo criados entre as pequenas áreas de campo e a

área cercada da família. Em 1976, como ele mesmo afirma, “a sêca pegô nós”, e junto com

outros companheiros, entre eles mais um dos entrevistados, Jairo, fizeram uma longa e

aventureira jornada em um fusca, com o intuito de descobrir, a partir da observação da direção

dos relâmpagos da noite anterior, “onde é que tá chuveno, pra nós levar o gado”.

Tendo saído da cidade de São Gabriel ainda de madrugada, os viajantes

encaminharam-se também para o Riacho do Ferreira, chegando aí no final da tarde. Um dos

chegantes questionou ao morador local: “Onde é que aquele relâmpo tá relampiano aqui?” e

ouviu em seguida a dura resposta: “Daqui a muitas légua!”. A viagem, contudo, não foi

frustrada e dias depois Juarez e seus companheiros deslocaram seus rebanhos para o Riacho

do Ferreira por ter ali boas pastagens e campo. Juarez permaneceu fazendo o trajeto entre São

Gabriel e o Riacho do Ferreira constantemente por mais 7 anos, só que, desta vez, a cavalo.

Em virtude da ocorrência de roubos, resolveu retornar o gado novamente para São Gabriel em

1983. O rebanho de 22 cabeças que encaminhara à beira do rio, tinha agora se reduzido a 15

animais. Quatro anos depois, esse mesmo rebanho realizaria outra viagem ao Riacho do

Ferreira, agora sob a guarda de Hermes, que para lá havia se deslocado a trabalho como

vaqueiro de um criador local. Em finais dos anos 1990, em decorrência do cercamento das

terras do Riacho, Juarez recebeu novamente o seu gado em São Gabriel. Conclui ele: “E aí tô

teimano até hoje nessa vida, agora quando... quando não achei mais pra onde tirar eu pago o

alugué, eu tiro pro Imbuzerão, ôtas vez tiro pro Cruel, pagano pasto! Compro... vez eu compro

o pasto ôta vez alugo, é, agora mesmo nós truxemo, eu mais esse irmão truxemo de lá do

Imbuzerão”687

O rápido intinerário da vida do entrevistado nos mostra o esforço de um homem em

manter sua opção de vida, apesar das adversidades. A cerca de 50 anos Juarez enfrenta as

consequências provindas do cercamento das terras e do fim do campo do Platô Norte

Diamantino e áreas circunvizinhas. As estratégias que o possibilitaram manter-se

687 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010; e 2º momento, 15 de out/2010.

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criador/vaqueiro, contudo, não impediram o processo de decomposição do patrimônio

familiar no decorrer dos anos. Juarez afirma que mantém o seu pequeno rebanho por uma

“teimosia”, em termos teóricos diríamos: uma resistência.

Como demonstrado no caso acima, o interesse em manter-se ligado às atividades com

o gado está na base motivadora desses deslocamentos. O próprio Hermes, que passou a residir

na Vila de Recife a partir de 1968, quando convidado a explicar os motivos da sua saída de

São Gabriel nos fala:

Sobre o interesse da luta de gado mermo! Trabalhar de vaqueiro e criar, porque lá (São Gabriel) é bom para lavoura, para se trabalhar com lavoura, mas foi indo e fechou que não deu mais para criar os animal solto e aqui dava. Tiramo o gado para aqui e eu mudei para aqui para lutar com o gado e criar uma criação, umas coisa, no interesse de criar, que tinha vasto né, para se criar.688

A fala de Hermes descortina mais do que uma mudança de ambiente de vida e

trabalho, em suas linhas podemos perceber a sua busca por uma dada forma de trabalho que

estava diretamente ligada a existência do campo, e alimentada por uma convicção de como

deve ser a atividade pecuária. Para esses trabalhadores, criar o gado queria dizer “criar à

solta”, segundo a prática costumeira. A constante migração tinha impactos sobre as dinâmicas

familiares dos vaqueiros, explica Roxinho Vaqueiro:

À vez era pôcos tempo, a família num ficava, mas, se fosse de ano a frente a família ia! Vamo dizer, esse povo mudava daqui pro Rio Verde, lá tinha capacidade de passar um ano e tanto, a família ia! Agora, se fosse só 6 mês ou 3 mês, ficava por aqui a família. De vez em quando você vinha cá ou ela (a esposa) ia lá visitar e pronto!689

Lugares mais distantes buscaram outros vaqueiros no afã de manterem-se ativos em

suas funções. Juarez, lembrando-se dos companheiros de trabalho afirma:

O primêro vaquêro de Minelvino chamava Arlindo, este, o campo foi acabano, antes do campo acabar ele intregô o gado e foi imbora, [...] e aí botô esse José, esse José, quando o campo acabô aqui o José tomém foi imbora. E tem foi muitos aqui que foram imbora! [...] teve muito vaquêro que foi imbora daqui do Gabriel porquê o campo acabô! Eles foi pr’essas terra onde tinha gado, aí pra Goiás, pra esse mundo aí, Minas! Foram imbora690.

O deslocamento para terras distantes tornava mais difícil a defesa de suas convicções

sobre a “forma adequada de ser vaqueiro”, uma vez que nesses lugares as formas de manejo

dos animais e as relações de trabalho possuíam dinâmicas diferentes. Diante do fim do campo 688 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 689 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 1º momento, 21 de ago/2011. 690 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010.

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e da retirada do gado do seu patrão para áreas à margem do Platô Norte Diamantino em 1961,

Roxinho optou por ir para Minas Gerais e aí trabalhou em duas fazendas e retornando em

1963. Explica ele que nesse tempo “era infuluído (influenciado) a trabaiar com gado”. O

velho vaqueiro, vestido em seu inseparável jaleco e chapéu de couro na cabeça, contou em

uma tarde de domingo, o seu susto diante da forma de trabalho com o gado nas fazendas de

Minas.

O trabai danado, num perde 1 minuto! Trabaia demais rapaz! [...] É. Eu era gerente lá, (o dono da fazenda) disse: _“Ó Amado! Tem que fazer o cigarro, aqui ó! Lá, 30 pião, 10 minuto, vai quanto, né? Ó o tanto!” (o entrevistado se refere a possibilidade de cada peão parar o serviço por 10 minutos para fazer e fumar um cigarro) Tinha que fazer o cigarro e levar feito aqui ó: _“Num pode demorar lá... no máximo 1 minuto!” _ “Tá certo!” Digo: _“Ó, rapaz, faz o cigarro de vocês aqui, se não lá num fume não! Tem que fumar o cigarro e levar feito!” Era assim! [...] Pra num perder tempo! Lá num perde tempo não! Lá trabaia! Lá trabaia! [...]

Ocupando a função de coordenador do grupo de trabalhadores, Roxinho fora obrigado

a dar ordens, ordens essas que assustavam a ele próprio. A matemática temporal envolvendo

a feitura dos cigarros não possuía adeptos no campo do Sertão de Irecê e não poderia ser

menos assustadora para quem dormia à sombra das árvores em pleno trabalho, esperando o

vento bater para ouvir o som dos badalos dos chocalhos. Luiz, após trabalhar em várias

fazendas do Platô, foi para Goiás em 1990, e afirma: “eu só num tive um saláro alto lá, dento,

porquê eu num sabia a leitura, porque se eu subesse a leitura! Ave Maria! Eu tinha tomado de

conta de tudo!”691. A estadia em terras alheias cobrou tachas elevadas dos entrevistados. Se o

uso do tempo cronológico como parâmetro para o trabalho assustava Roxinho, Luiz sabia bem

que seus conhecimentos práticos, baseados na experiência cotidiana de vida adquirida no

Sertão de Irecê, sempre seriam subvalorizados em um ambiente letrado e formal, composto

por veterinários e fazendeiros.

Diante da impossibilidade de realização desses deslocamentos, os vaqueiros

recorreram a outras possibilidades de manutenção da função. Esclarece Hermes que muitos

vaqueiros “ficaro trabalhando mais o mesmo patrão, ele com o gado preso nas roça, nos circo,

que nós chamava era ‘circo’ e ele trabaiando ali dento com o gado também”.692. A chegada de

691 Entrevista do senhor do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 692 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 3º momento, 16 de out/2010.

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grandes fazendas cercadas no Platô Norte Diamantino e nas áreas próximas, representou por

um momento fonte de trabalho para os vaqueiros. Ainda Hermes explica que “quem era

vaquêro, era pôcos que tinha trabalho deles [...] o emprego era de vaquêro mesmo, já ia

trabalhar nas fazenda”693. Ele próprio afirma ter recebido convite para trabalhar em fazendas,

mas explica:

En: Fui, fui chamado. Não aceitei não. E: Por quê? En: Porque eu tinha minha condiçãozinha de trabalhar no meu, minha roça, e ôtra, que eu nunca gostei de trabalhar assim por mensalidade (salário), não é, que hoje o vaquêro de fazenda só ganha por mês, não é, aquela quantia, e no tempo do campo era solto, você ganhava o quarto do bizêrro694.

Novamente aqui presenciamos o conflito entre as noções de “criar”, “trabalhar” e “ser

vaqueiro” dos trabalhadores do Sertão de Irecê e as novas dinâmicas laborais impostas pelo

projeto de modernização rural. O entrevistado deixa claro em sua narrativa que não bastava

trabalhar com o gado, era preciso trabalhar nas condições por ele consideradas corretas. Outra

estratégia dos vaqueiros do Sertão de Irecê se manterem em suas funções foi a realização de

atividades rápidas de condução, manejo ou captura de animais para os fazendeiros e criadores

que conseguiram manter seus rebanhos presos, função geralmente conhecida como “vaqueiro

de ganho”. Essa possibilidade, todavia, incluiu os vaqueiros em um paradoxo: ao mesmo

tempo em que a “função de ganho” lhes garantia trabalho e até certo nível de valorização, o

encaminhamento dos rebanhos para áreas distantes do Platô, ou mesmo o trabalho dentro das

fazendas, anunciava o fim da trajetória como “vaqueiros de campo”.

Aí tem que tirar pra Vereda e na vereda tem muita rama né, tinha ispaço pro gado, a gente tirava pra lá, aí cumeçava aqui. Aí, cada vez complicano mais, botano mais roça e acabano o campo, até acabô![...] Muito dismatamento, foi, muito dismatamento! Até 60 ainda tinha um gadinho por lá (São Gabriel) [...]. É por que eu fiquei... você sabe que a pessoa que tem aquela arte sempre vai procurado! Nuns lugar tinha, me chamava pra ir: _“Vai buscar um gado pra mim ou vai levar né!” Aí eu fiquei nessa vida, nunca faltava pra mim né. Um ia tirar um gado pra um canto, me chamava aí eu ia, era assim, num faltava695.

Zizinho, que muito peregrinou com o rebanho do seu tio em busca de campo, também

compartilhou dessa forma de trabalho após a extinção do rebanho em 1983. Afirma que

existiu um “período de compra daqueles grande, comprano gado e pagano a gente pra tirar de

693 Idem, 2º momento, 14 de out/2010. 694 Idem, Ibidem, loc. cit. 695 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.

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um canto pra ôto, de ôto pra ôto, e ficô assim nessa vida, agente viveno daquilo, eu mesmo

tava de terça-fêra até domingo [...] É, depois foi ino, foi ino, até isso acabô, e pronto”696.

Quase todos os vaqueiros entrevistados realizaram essa atividade em algum momento. Luiz

Vaqueiro relembra que

trabaiava direto! Panhano gado de Jussara, panhava daqui (Irecê) pra Jussara, panhava daqui de Lapão, panhava daqui de, de Canal (atual João Dourado), panhava, panhava daqui, do povo daqui pra levar pras roça lá, panhava de lá pra trazê pra cá, desse povo todo[...] tudo era, só quem puxava era eu, todo mundo diz: _“Não, vai atrás de Luiz!” Era.697

A fala acima demonstra o ir e vir de rebanhos, conseqüência do sistema intensivo de

cria. Em áreas cercadas as pastagens se degastavam com maior rapidez, necessitando assim o

deslocamento dos animais para outras áreas. Nesse sentido, a fala de Luiz nos induz a ver um

falso “sucesso” do vaqueiro em tempos de mudanças acentuadas de suas relações de trabalho,

na medida em que sua mão-de-obra se tornava necessária à realização dessa condução. Nesse

contexto, a fama e o controle do saber se tornaram para os trabalhadores ferramentas

importantes de sobrevivência. É ainda Luiz que exemplifica. Em tempos recentes, relata o

vaqueiro, fora procurado por um fazendeiro conhecido que lhe solicitou a realização de

captura e transporte de um rebanho entre duas fazendas. Prossegue-se o diálogo:

[o fazendeiro]: “Ê rapaz! Eu vim aqui lhe buscar pra ajuntar um gado na Quixaba (fazenda pertencente ao município de São Gabriel), que os vaquêro lá disse que num vai... disse que num, num dá conta de ajuntar o gado!” [Luiz]: “Quantos gado é Seu ‘fulano’?” [o fazendeiro]: “É 320 gado! E eu só quero tirar o gado de lá todo junto, tirar pra Pioneira (fazenda no município de Jussara)” (...) [Luiz]: “Eu vô!”, eu digo: “É eu vô!” [o fazendeiro]: “Lá já tem animal!” [Luiz]: “Já?” [o fazendeiro]: “Já! A cuma é que você vai o dia?” [Luiz]: “Eu só vô a 10 conto!” (...) [o fazendeiro]: “Só vai a 10 conto?” [Luiz]: “Só!” [o fazendeiro]: “Ê moço! Vaquêro caro, Ave Maria! É dinhêro de pagar 3 vaquêro moço!” [Luiz]:“É, então, então tá bom!”

Não tendo aceitado a proposta do vaqueiro a princípio, retorna o fazendeiro horas depois:

[o fazendeiro]: “Êi moço! Se ajeite que amanhã 6 hora eu tô aqui pra lhe panhá!” [Luiz]: “Pode vim 4! Qu’eu tô pronto!”

696 Entrevista do senhor José da Silva Neto (Seu Zizinho)..., 2º momento, 24 de set/2011. 697 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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Após a realização do serviço reconhece o fazendeiro:

[o fazendeiro]: “Êi moço! É por isso que o home é caro! Que o home sabe trabaiar e o home é vaquêro! (...) Você trabaiô 2 dia rapaz! Agora foi 2 dia bom! Eu vô lhe pagar 3! Vô lhe pagá 3 dia, que eu fiquei sastifeito demais!” [Luiz]: “É por isso que o sinhô diz que eu sô caro.” [o fazendeiro]: “Por que sabe fazer o sirviço! Sabe trabaiá”.

Ser conhecido e respeitado nos tempos em que a modernização rural do Sertão de

Irecê impunha suas conseqüências, garantia condições de continuidade da atividade laboral e

poder de barganha aos vaqueiros. É importante observarmos como o vaqueiro usa o seu saber

como ferramenta de negociação, do outro lado, o fazendeiro, na condição de cliente, termina

por se sujeitar ao acordo uma vez que só Luiz era capaz de resolver seu problema. Sem

dúvida o elogio final valeu a Luiz muito mais do que o dinheiro recebido, foi o símbolo de

que se mantinha na ativa e de que sua fama e habilidade continuavam prestigiadas.

Os vaqueiros tinham consciência das mudanças que o avanço do capital impunha à

seus modos de vida e buscavam usar as ferramentas disponíveis como forma de ressitência.

Roxinho relembra de suas conversas com companheiros de campo:

Eles falava, diz: _“É mano véi! Nós vamo ispindurá as pernêra, porque o campo vai acabar, num tem pra onde né, pra ir pra Minas nós num pode com tanto filho né e aqui, quem tem um circo vai criar seu gado preso, quarquer um pode carregar o gado dele! Campo pra nós acabô, num tem mais campo! Nós vamo viver quando achar um pra pegar um boi de um fora e carregar, pra nós pegar mais por aqui nos campo num tem mais, já acabô! Acabô os campo, né!” Sentiu foi isso, cunversava isso, sentava tudo, cunversava: _“É moço! Acabô! Tristeza né moço?! Fazer o quê né!”.698

A narrativa desenha um sentimento de tristeza que nos remete às certezas pessoais de

que “vive-se momentos de fim”. Imaginamos esses homens em sua conversa ao fim do

trabalho, em meio à qual alguns “batem o pó” de seus “ternos de couro” como se pela última

vez. A fala de Roxinho demonstra uma tensão entre o grupo de trabalhadores ao perceberem a

vulgarização de sua função. Estando o gado do fazendeiro preso, afirmam, “quarquer um pode

carregar o gado dele!”. O maior dos valores laborais dos vaqueiros, a sua “especialidade” no

trato com o gado, passava a ser questionado e desmoronava-se no ritmo da queda das árvores,

do arrastão das correntes, da expansão das lavouras e do esticar dos arames.

Um dos relatórios analisados afirma categoricamente que

698 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.

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Tabela 15: Rebanho bovino total (1964/1981), referente aos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí

a pecuária, enquanto atividade capaz de contribuir na forma da criação de renda para a região, vem desde os anos 50 perdendo posição para a agricultura que, cada vez mais, ocupa espaço na economia regional. A pecuária vai, aos poucos, sendo empurrada, tornando-se mais localizada (fazendas?) na medida em que aqueles terrenos favoráveis ao plantio vão sendo ocupados, ampliando, portanto, a área agrícola. Entre 1950 e 1960, por exemplo, a área destinada à lavoura no município de Irecê apresentou um incremento de mais de 300%, o que constitui um indicador de que a agricultura vem ocupando terras antes destinadas ao pastoreio699.

As narrativas expostas e a análise dos documentos oficiais nos induzem a pensar em

um processo de esvaziamento dos rebanhos bovinos do Platô Norte Diamantino e das áreas

próximas, uma vez que o avanço dos cercamentos, o desmatamento e a ênfase agrícola que

norteou o projeto de modernização rural do Sertão de Irecê, dificultava a prática da criação de

animais por parte das populações empobrecidas exigindo-lhes a eliminação ou o

deslocamento dos animais para áreas distantes. Busquemos, pois, analisar essa hipótese a

partir dos dados quantitativos oficiais.

699 COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO E AÇÃO REGIONAL. Diagnóstico parâmetro para avaliação do PDRI Irecê: 1ª etapa. Salvador: CAR, 1984. Vol. 2: O Sertão da Bahia: (Aproximações para análise de sua formação histórica), p. 152 (grifo nosso).

Ano Número total de

cabeças 1964 123.000 1965 221.000 1966 177.000 1967 187.000 1968 209.513 1969 222.083 1970 238.070 1973 162.880 1974 169.281 1975 144.159 1977 144.363 1978 156.045 1979 165.965 1980 169.713 1981 174.032

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273

Gráfico 5: Rebanho bovino total (1964/1981) dos municípios de B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí.

Fontes: FUNDAÇAO DE PLANEJAMENTO (BA). Irecê. Salvador: [s.n.], p. 2-32 [de 1969 a 1972], tabela 3.1.3.3-I (dados de 1964 à 1967); Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem. 78/79 e Idem, Ibidem, 1983, (dados de 1968 à 1981).700

Os dados acima demonstram que o período entre 1970 e 1975, interrompeu o

crescimento do tamanho dos rebanhos, acumulando perdas de 75.190 animais (31,5%).

Analisemos de forma específica as variações apresentadas por cada município nesse período

quanto ao número de bovinos em seus territórios.

700 Em virtude da impossibilidade do acesso às informações em um único documento, optamos pelo uso das fontes que apresentavam menor diferença numérica entre os dados.

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Tabela 16: Número de bovinos por município (1968/1981), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e

Uibaí.

Gráfico 6: Número total de bovinos por município (1968/1975), referente a B. do Mendes, Cafarnaum, Canarana, Central Gentio do Ouro, Ibipeba, Ibititá, Irecê, Jussara, Morro do Chapéu, Presidente Dutra, Souto Soares e Uibaí.

Fonte: BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1973; Idem, Ibidem, 1975; Ibidem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1980 e Idem, Ibidem, 1983.

Embora não possamos buscar exatidão das quantificações oficiais, o gráfico acima

aponta para a existência de particularidades internas ao território de cada município quanto a

presença dos animais bovinos. São aí apresentadas 3 realidades diferentes; 1) o conjunto

1968 1969

1970 1973 1974 1975 1977 1978 1979 1980

1981 B. do Mendes 7.720 7.447

7.241 12.530 13.211 7.238 6.631 7.700 8.085 8.522

8.765

Cafarnaum 13.120 14.707 16.090 6.265 6.205 5.156 5.011 4.746 4.983 6.392 6.645

Canarana 12.720 14.512 15.631 11.903 12.311 8.417 8.060 9.828 10.319 11.000 10.850

Central 17.844 19.471 22.181 5.638 5.966 4.830 4.784 5.200 6.516 3.749 3.719

G. do Ouro 18.370 20.808 22.723 8.771 8.967 8.539 8.638 9.194 9.654 11.119 12.230

Ibipeba 6.932 6.710 8.904 10.024 10.224 11.776 11.330 11.896 12.490 12.850 13.240

Ibititá 10.900 11.849 12.324 10.640 10.870 7.536 7.237 7.644 8.026 6.554 6.880

Irecê 46.376 43.800 48.431 51.374 53.022 39.559 38.549 42.000 43.260 39.971 43.968

Jussara 13.942 16.680 18.219 1.253 1.196 2.688 3.455 3.617 3.798 1.637 1.800 M. do Chapéu 18.280 17.833

14.807 33.832 36.280 38.024 39.980 42.000 46.000 55.320

52.703

P. Dutra 19.759 22.266 24.236 3.132 3.197 2.467 2.420 3.151 3.308 2.140 2.252 Souto Soares 5.615 6.296

5.818 2.506 2.892 3.726 4.042 4.244 4.460 5.239

5.500

Uibaí 17.935 19.704 21.465 5.012 4.940 4.203 4.226 4.825 5.066 5.220 5.480

Total 209.513 222.083 238.070 162.880 169.281 144.159 144.363 156.045 165.965 169.713 174.032

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275

formado pelos municípios de Cafarnaum, Central, Gentio do Ouro, Jussara, Uibaí, Presidente

Dutra, Canarana, Ibititá, Souto Soares e Irecê. Estes sofreram redução de seus rebanhos,

alguns drasticamente, após 1975; 2) os municípios de Barra do Mendes e Ibipeba, que

apresentaram pequenas oscilações em seus rebanhos no período analisado, não se

apresentando como fator relevante para vias de entendimento da dinâmica interna de

circulação dos rebanhos na área estudada. É importante notarmos sobre esses dois grupos que,

a partir de 1975, com exceção do município de Irecê, que apresenta uma elevação mais

significativa do número de animais bovinos em seu território, os demais municípios

mantiveram pequenas variações em seus rebanhos até 1981, ora crescendo, ora diminuindo.

O fator de destaque nos dados apresentados fica por conta do município de Morro do

Chapéu, a 3ª das realidades apontadas. Situado quase que totalmente fora do Platô, esse

município, a partir dos anos 1970, passou a apresentar um exponencial crescimento dos seus

rebanhos bovinos que se estendeu até 1980. O acompanhamento comparativo mais detido de

suas particularidades nos ajuda a entender o fato.

Gráfico 7: Número de bovinos por município (1968/1980), referente a Irecê e Morro do Chapéu.

Fonte: BAHIA. Anuário Estatístico da Bahia. Salvador: SEI, 1972; Idem, Ibidem, 1973; Idem, Ibidem, 1975; Ibidem, Ibidem, 1976/77; Idem, Ibidem, 78/79; Idem, Ibidem, 1980 e Idem, Ibidem, 1983.

O gráfico acima contrapõe as variações do rebanho bovino nos municípios de Irecê e

Morro do Chapéu entre os anos de 1968 e 1980. Nota-se de antemão o rápido crescimento dos

rebanhos nesse segundo município entre os anos de 1970 e 1973, período marcado por

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276

grandes perdas numéricas na maior parte dos demais municípios apresentados, e sua constante

dilatação até 1980. Os dados catalogados demonstram que entre os anos de 1973 e 1974 os

municípios de Irecê e Morro do Chapéu absorveram grande parte dos rebanhos dos demais

municípios. O triênio seguinte (1975/1977), marcado pela estiagem e pela chegada dos

grandes projetos de modernização agrária no Platô, obrigou o deslocamento dos rebanhos para

áreas como Morro do Chapéu, elevando assim o número de animais nesse território. Outra

área de possível escoamento dos rebanhos doertão de Irecê foram às áreas próximas a beira do

rio São Francisco. O Riacho do Ferreira, defluente desse grande rio, por exemplo, é uma área

citada e reconhecida pela maioria dos trabalhadores entrevistados.

Esses dados se assemelham às informações das entrevistas colhidas, na medida em que

os vaqueiros fazem referência à década de 1970 como o momento em que se tornararam mais

intensas as peregrinações como os rebanhos em busca de áreas de campo. Muitos vaqueiros e

criadores, no entanto, buscaram se antecipar ao projeto de modernização rural e a

horizontalização agrícola das terras, buscando áreas distantes assim que perceberam os

primeiros sinais de finalização do campo em seus locais de vivência. É nesse sentido que

devemos entender a preocupação aparentemente “precoce” de Juarez e Hermes em

encaminhar, ainda em 1961, os rebanhos da família para a Vila de Recife, no município de

Jussara, ou mesmo a migração de Roxinho para as fazendas mineiras.

Além das idas e vindas, o erguimento da Região de Irecê sobre o Sertão de Irecê,

impôs outra dificuldade ao exercício dos vaqueiros: as mudanças operadas nas relações de

trabalho. Juarez explica pormenorizadamente as condições atuais do trabalho dos vaqueiros

nas fazendas.

E o vaquêro hoje trabaia mais do que aquele daquele tempo! Porque fica com o gado preso, porque aquele tempo o gado criava no campo, o vaquêro num dava cumida a gado! [...] e hoje o vaquêro que trabaia em fazenda vai cortar palma, dar ração a gado toda tarde. O vaquêro num trabaia em campo, é dento da propriedade, mas, é mais pesado de que o vaquêro... que era de primêro, porque o vaquêro de primêro soltava o gado no campo, num tinha negóço de desleitar gado pra vender leite! Naquele tempo tirava leite, fazia era quejo, requejão... essas coisa, num era... agora hoje é pra vender leite. O vaquêro sofre muito701.

O narrador descreve o processo de sobreposição de funções e obrigações que foram

atribuídas aos vaqueiros no decorrer do processo de modernização rural do Platô. Se no

campo bastava a eles serem responsáveis pela manutenção da saúde e segurança dos animais,

701 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010.

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nas fazendas cercadas, os vaqueiros foram obrigados a realizar a ordenha, cumprir prazos para

entrega do leite aos revendedores na cidade e a alimentar o gado diariamente. “Presos” na

fazenda, os trabalhadores passaram a estar acessíveis aos olhos dos criadores e expostos à

fiscalização e cobranças. Destaca ainda o entrevistado:

o vaquêro hoje trabaia sozinho dento da propriedade, é difici até o colega ir lá fazer uma visita! É tudo diferente hoje. Aquele tempo era uma coisa boa, aqui ajuntava seu grupozinho de 8, 10 vaquêro e ia pegar boi brabo no mato, e hoje não! Hoje o vaquêro trabaia lá sozinho, na propriedade do patrão. Nem visita o ôto vaquêro num faz, que à vez o patrão... ele num tem tempo de receber o colega702.

A narrativa demonstra como o trabalho nas fazendas controlou até mesmo as

sociabilidades dos vaqueiros, rompendo a prática da atividade coletiva que era marca do

trabalho no campo. Outra dimensão das relações de trabalho drasticamente alterada foi a

forma de pagamento pelos serviços prestados, devido a difusão das relações assalariadas.

Como vimos, o uso do assalariamento não era estranho às dimensões laborais do Sertão de

Irecê, embora não fosse predominante.

No caso dos vaqueiros, o uso do dinheiro dava-se geralmente como forma de

pagamento pela execução de tarefas rápidas como captura ou condução de animais,

poderíamos dizer: em sistema de empreita. Corriqueiramente, o sistema de sorte regia

relações de trabalho mais duradouras. A modernização rural, contudo, inverteu esse quadro ao

impor a adoção do assalariamento como critério de seleção dos grupos alvo das iniciativas

modernizadoras e difundir o dinheiro como mecanismo mediador das relações de trabalho e

de troca.

A chegada do assalariamento impôs a extinção do antigo sistema de sorte, o que

dificultou o acesso aos pequenos rebanhos por parte dos vaqueiros, precarizou as condições

de vida e trabalho e até o seu sistema de produção de representações sociais. Juarez explica:

todo mês você recebe aquele ordenado quando você for pagar seus débito você volta pra casa puro, aí já vai trabaiá deveno. E você trabaiano [...] pra tirar bizêrro, quando você fazer a ferra mais o patrão você [...] tira sua parte de bizêrro. Você faz pagamento o patrão e sobra, toda vida sobrô. Todos vaquêro que trabaiava assim nenhum saiu sem nada! Eu sempre reparava os vaquêro que trabaiava assim. E o que trabaiava ganhano dinhêro só sai limpo! Sem nada!703

Jairo afirma que “você trabalhano por mês, no dia que você sair o dinhêro que você

tinha era aquele que você recebeu, cabô! Você ali só leva a mulher e os filho, mais nada!

702 Idem, Ibidem, loc. cit. 703 Idem, 1º momento, 09 de out/2010.

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278

Talvez nem o cavalo da fazenda num leva!704. Segundo Gilson, “hoje ninguém quer dar mais

na sorte não, porque pegaro uma sabedoria que não quer que o vaquêro vá para frente só quer

ganhar... pagar aquele total”705. Essa situação se agravou ainda mais diante do controle da

terra e da diminuição dos rebanhos.

Mesmo recebido com ressalvas entre os vaqueiros, o assalariamento se consolidou

como realidade dominante das relações de trabalho e tornou-se fator decisivo entre continuar

ou não continuar na “profissão de gado”. Ainda Gilson explica que, tendo trabalhado por

cerca de 40 anos pelo sistema de sorte, “aderiu” ao pagamento por mês em 2001, quando

deslocou o rebanho que se encontrava na beira do rio São Francisco, novamente para as

proximidades do Platô:

depois que eu vim para a Pioneira (fazenda) que eu ganho de porcentagem, aí eu olho a dois reais por cabeça. [...] eu mesmo quis, os ôtos todos (vaqueiros) era assim, então eu disse a ele (patrão): _“Moço aqui é pagano aluguel, você vai pagar do mesmo jeito dos ôtos se não aí lhe aperta mais”. Aí nós ficamo lutano, e tô lutano706.

O texto acima não relata um mero acordo entre amigos. Gilson, vaqueiro experiente,

sabia que, caso não aceitasse a forma assalariada de pagamento não teria muitas chances de

continuar na função, obrigou-se, pois, a abrir mão de uma de suas principais fontes de renda a

décadas como forma de manter-se no trato com o gado, rebaixando assim suas condições de

sobrevivência. Luiz problematiza bem a situação apresentada quando questiona: “quem vai

vivê pr’um saláro, trabaiano pr’us ôto, com a família grande....?”707 A chegada de grandes fazendas, ao mesmo tempo em que representava o controle da

terra e o fim do campo, tornou-se também fonte de emprego para muitos vaqueiros como nos

explica Almir:

de qualquer manêra, se botar o gado na fazenda tem que ir o vaquêro sempre, num tem jeito! É a mesma coisa! Tem que botar o vaquêro junto. Se é obrigado a tar com o gado lá onde ele... o gado pode ter um xxx ali, lá tem o vaquêro, se botô lá em Alemão (referência a uma fazenda localizada nas bordas do platô, distante cerca de 55 km da sede do município de Jussara), tem o vaquêro! Todo canto tem, os vaquêro tá aí.708

704 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 705 Entrevista do senhor Wilson José da Silva (Gilson Vaqueiro)..., momento único, 15 de jan/2011. 706 Idem, Ibidem, loc. cit. 707 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 708 Entrevista do senhor (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.

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A presença dos rebanhos exigia a presença do vaqueiro. Seu exercício profissional,

todavia, agora se dava sob outras relações de trabalho como o assalariamento e o sistema

intensivo de cria. Nesse sentido conclui o entrevistado: “Num tem aquele trabalho que’nem

tinha de primêro, pra ir pegar o boi no mato, que’nem era né, mas tem os vaquêro”709.

A permanência no Platô nem sempre foi acompanhada de possibilidades de trabalho

com o gado, o que obrigou os vaqueiros a buscarem diversas outras formas de produção de

renda, a principal delas foi o trabalho nas roças. Jairo conta que quando não havia mais

trabalho com o gado “ia quetano! Ia caçar um taquim de roça também pra plantar!”710.

Hermes afirma que a partir de 1980

ninguém pode criar mais solto [...] ai fui trabalhar de açôguêro de porco, matar porco (risos). Matei porco um bocado de ano, trabalhando na fêra [...] Então eu gostava muito de lutar com o gado, foi quando o finado Miguel me chamô ôtra vez para eu ir trabalhar com um gado lá no Riacho do Ferreira, para tirar sorte ôtra vez com o gado, que lá tinha campo solto ôtra vez pra criar solto e ai eu deixei a fêra e fui [...] lá passei 10 anos, lá no Riacho do Ferreira711.

Permanecendo por 8 anos como açougueiro e lavrador, Hermes sentiu-se tentado a

voltar ao mundo da “vaquerama”, uma vez que a proposta que lhe fora feita envolvia o

trabalho no campo e o sistema de sorte, da forma como mais gostava. Diante da ausência de

áreas de campo, Reinaldo de Lôro encontrou na aquisição consorciada de um trator em 1977,

uma fonte segura de sobrevivência. Embora tenha entregado o gado do seu sogro, pelo qual

era responsável, nunca deixou de criar os seus animais.

A estratégia de Reinaldo de Lôro em manter-se criador, mesmo de pequenos rebanhos

ou de apenas algumas unidades, foi uma forma de conservação patrimonial e identitária

generalizada entre os vaqueiros entrevistados. Alguns vaqueiros ainda permanecem criando

seus animais até hoje. Zé dos Morrinhos explica: “hoje tô com 66 ano assim mesmo na luta do

campo, eu pego uma vaca no campo, bota numa roça, vaca pari e ingancha um bizêrro, a

gente vai tirar, qu’é o que vaquêro véi sabe fazer.”712. Ainda são criadores como Zé dos

Morrinhos e Reinaldo de Lôro: Juarez, Jairo, Hermes, Licuri, Luiz Vaqueiro, Zizinho,

Reinaldo de Zé Pedro e Roxinho Vaqueiro. Almir vendeu o gado recentemente, mas ainda

realiza trabalhos de condução e captura. Sinobilino, Samuel e Guilhermino afirmam também

ter vendido seus animais, justificando falta de condições físicas para realização das tarefas de

709 Idem, Ibidem, loc. cit. 710 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 711 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 712 Entrevista do senhor José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos)..., 2º momento, 24 de jan/2012.

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cuidado com gado. Viana continua criando ovelhas. Gilson não possui gado, mas permanece

trabalhando em uma fazenda.

Esse levantamento demonstra que os vaqueiros buscaram cuidar dos seus pequenos

rebanhos, mantendo-os da maneira possível, ou permanecendo no cuidado de rebanhos de

terceiros, como forma de se manterem ativos em suas funções, ainda que de forma mais

simbólica do que prática. A proximidade com o gado permitiu a esses trabalhadores a

atualização constante de suas memórias e de seus saberes, fator essencial no seu exercício de

afirmação laboral-identitária. Analisemos de forma mais específica alguns dos casos, na

tentativa de melhor exemplificar o debate acima: Foto 8: Luiz Vaqueiro ordenha diariamente suas vacas

É só mais um dia de trabalho e logo cedo Luiz já está presente no curral (200m²) ao

lado da sua residência, realizando a ordenha de suas poucas vacas. Cada uma tem seu próprio

nome: Laranjinha, Craúna, Fortaleza, Princesa, Preguiça, Estrelinha, Cardeal.... De algumas

delas o velho vaqueiro chega a discorrer uma “biografia”: de onde vieram, quantos bezerros já

pariu, por onde andou. Esse curral, segundo Luiz, já comportou 60 animais, atualmente

existem apenas 20, que são diariamente deslocados para as roças próximas, retornando no fim

da tarde. Nada de diferente há nesse caso, a não ser o fato de que o curral de Luiz está situado

dentro do perímetro urbano da cidade de Irecê. O entrevistao afirma ter adquirido o terreno no

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Foto 9: Zizinho alimenta seus animais diariamenete no quintal da sua casa.

início em 1992, na época, pouco habitado. Com a expansão da cidade o vaqueiro passou a

sofrer pressões dos órgãos públicos de vigilância sanitária e de parte da população local,

contudo, mantém-se aí ainda hoje.

Zizinho também possui um pequeno curral nos fundos da sua residência, no povoado

de Tanquinho de Lapão. Pôr alimento, ordenhar os animais, retira-los para as roças próximas,

são tarefas diárias que até hoje regulam as formas temporais próprias do entrevistado viver o

seu cotidiano.

Os casos analisados descortinam novas estratégias de vida, formas possíveis pelas

quais esses homens tentaram e têm tentado defender o seu direito de viver sua ruralidade,

construir seus micro-territórios e reproduzir os referenciais simbólicos, materiais e identitários

do seu mundo. Vista pelos órgãos públicos como uma anomalia ou um “costume”

incompatível como o modo de vida urbano, essas estratégias existem em arenas de conflitos,

são combatidas, reprimidas, porém, presentes e possuidoras de grande capacidade de

adaptação.

Márcia de Melo Martins Kuyumjian demonstra em seu artigo intitulado O

espaço/mundo do Sertão Moderno, como o processo de urbanização da parte central do País

que culminou na construção racionalizada de Brasília, foi incapaz de eliminar formas

ruralizadas de viver. Segundo a autora, o sertão continua a emergir e circular entre os

monumentos da capital planejada a partir do linguajar, das práticas de trabalho, dos hábitos,

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da aparência, dos improvisos dos migrantes de todas as partes que a ela chegam. A

modernidade, destaca ainda Kuyumjian, terminou por produzir um “sertão moderno”713.

Refletindo nesse sentido, entendemos que as mudanças urbanas e agrárias implantadas

sobre o Sertão de Irecê, ao almejarem o fim do modo costumeiro de vida do Sertão de Irecê,

induziram esse a adquirir formas adaptadas de sobrevivência, presentes na oralidade, na lida

constante dos vaqueiros por manterem seus pequenos rebanhos, na pequena policultura, nos

povoados, nas ferramentas de trabalho, nos pequenos currais. O uso dos quintais, como nos

casos de Luiz e Zizinho, é representativo para compreendermos o poder de adaptação desse

modo de vida e a defesa dos sentidos por ele gestados.

Como vimos, os vaqueiros tem usado as áreas de quintais em espaços urbanos ou

urbanizados como espaços de criação de seus pequenos rebanhos, “lugar de defesa” de sua

prática. Essa atitude expõe o poder público a uma contradição, na medida em que este busca

disciplinar a forma de uso de uma área considerada por ele mesmo como “residencial”,

portanto, privada, de uso exclusivo e livre, inviolável pelas normas jurídicas. Claro está que

os vaqueiros tem reconstruído seus pequenos “Sertões de Irecê” nas brechas contraditórias do

próprio aparato legal que lhes reprime.

Outros exemplos que ilustram a convivência de modos ruralizados de vida nos espaços

racionalizados da área em estudo, emergem de uma rápida observação sobre a dinâmica de

vida recente da cidade de Irecê. A polêmica feira-livre de Irecê, por exemplo, criticada desde

a década de 1970, só foi retirada do centro da cidade em 1999714. Em diversos locais da

cidade podemos encontrar os tradicionais carroceiros, que trabalham carregando produtos e

materiais em troca de pequenos pagamentos, fazendo de espaços “totalmente urbanos”, como

as praças, seus locais de trabalho. Por ocasião das pesquisas nos arquivos da Câmara

Municipal de Irecê, no primeiro semestre de 2011, presenciamos uma sessão legislativa em 713 KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins. O espaço/mundo do sertão moderno. In: KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (Org.). Semeando cidades e sertões: Brasília e o Centro-Oeste. Goiânia (GO): Ed. da PUC, 2010, passim. 714 Sobre os conflitos entre a reorganização urbana e as experiências de trabalhadores feirantes ver PACHECO, Larissa Penelu B. Trabalho e costume de feirantes de alimentos: pequenos comerciantes e regulamentações do mercado em Feira de Santana (1960/1990). Feira de Santana: UEFS, 2009 [Dissertação de Mestrado]. Citamos aqui apenas algumas referências cujo recorte temporal mais se aproxima do nosso, é importante, porém, destacar que o processo de urbanização capitalista, expansão dos ideais “civilizatórios” e seus conflitos com as práticas populares de vida já foi tema de diversos estudos que abordaram tanto o contexto imperial quanto as primeiras décadas do regime republicano no Brasil, a exemplo de CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006. Para o contexto baiano ver: OLIVEIRA, C. F. R. M. De Empório à princesa do Sertão..., e LEITE. Rinaldo César Nascimento. E a Bahia civiliza-se... ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização urbana. Salvador 1912/1916. Salvador: UFBA. [Dissertação de Mestrado em História], 1996.

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que se debateu o incômodo hábito de soltar animais nas áreas baldias e nas ruas da cidade o

que, segundo alguns vereadores, correspondia a uma situação incompatível com o nível de

urbanização de Irecê.

A resistência dos trabalhadores vaqueiros às imposições da modernização rural do

Sertão de Irecê pode ainda ser encontrada nas artes. Embora não se defina mais como criador,

Almir, além realizar serviços de empreita, desenvolveu outras práticas que o garante

permanecer e continuar compartilhando do mundo da vaquerama: o artesanato em couro.

Fotos 10-11: Instrumentos de couro produzidos por Almir Vaqueiro

Para além das artes, a casa de Almir é um ponto de encontro semanal para seus

sobrinhos e amigos, os quais se reunem para ouvir vaquejadas e contar histórias de bois,

sempre irrigadas com alguma cachaça. Os modos pelos quais os vaqueiros buscaram, e

buscam, se manter próximos às atividades do trato com o gado são, pois, os mais diversos.

O traço comum que une essas formas de resistência é a instabilidade. Diante do

avanço das relações capitalistas sobre o Sertão de Irecê, os vaqueiros foram obrigados a fazer

escolhas: permanecer ou sair do Platô, ir para longe ou para perto, aceitar o trabalho nas

fazendas, abrir mão do sistema de sorte, abandonar a função para dedicar-se à agricultura,

adaptar seus quintais como lugares de criação, obter empréstimos para cercamento de áreas,

deslocar seus rebanhos constantemente. Cada uma dessas opções tinha suas consequências e

estas foram vividas de forma intensa cotidianamente como disputas pelas condições de vida e

por formas de trabalho consideradas coerentes por eles, pela manutenção de suas identidades

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laborais e representações sociais, pelo direito ao seu saber e seu tempo, em um palco agrário

de ressonância urbana em franca mudança.

Segundo Agnes Heller, a vida cotidiana é a dimensão a partir da qual os homens

experimentam o mundo. É nela que, convivendo com seu grupo, os sujeitos produzem

concepções de normalidade da produção, reprodução e intercâmbio social que lhes garante a

participação no compartilhamento de normas, na assimilação das relações sociais e a

consciência do “eu” e do “nós” de forma socialmente referendada. Enquanto dimensão maior

da existência, a vida cotidiana se produz a partir da unidade imediata do pensamento e da ação

e nela os indivíduos produzem suas vivências como sujeitos “inteiros”, compostos por todos

os aspectos de sua individualidade e personalidade, seus sentidos e capacidades, seus

sentimentos, paixões, ideias e ideologias.

A vida cotidiana, ainda segundo Heller, está diretamente relacionada à vivência

pragmática dos homens, a escolha de ideias concretas, a construção de finalidades, a

necessidade de resolução dos problemas concretos, ao cumprimento do papel social, ao uso de

alternativas concretas determinadas pelas condições previamente dadas, pela tendência

espontânea (voltada para o mundo prático, medida pela fé e a confiança) e pelo pensamento

ultrageneralizador (juízos de natureza pragmática). Enquanto categoria da sobrevivência a

vida cotidiana é heterogênea - composta pelas dimensões da organização do trabalho, da vida

privada, das sociabilidades, das atividades sistemáticas e do intercâmbio - e hierárquica, na

medida em que organiza essas dimensões pelo critério da importância.

Enquanto categoria da existência, a vida cotidiana é composta ao mesmo tempo pela

individualidade produzida, pelas possibilidades de liberdade disponíveis aos sujeitos e pela

dimensão “humano-genérica” inerente a todos os humanos (acessível pela realização dos

valores do trabalho – objetivação – a socialidade, a universalidade, a consciência e a

liberdade). Nesse sentido, dialeticamente, toda ação do homem deve ser entendida como ação

individual e manifestação axiológica do ser humano. No meio cotidiano, porém, essa

dimensão humano-genérica se manifesta apenas como tendência, sua realização universal só é

possível, diz Heller, mediante a superação da alienação715.

Embora concordemos com as noções de “vida cotidiana” e “cotidianidade” produzidas

por essa autora, evitamos nos apropriar de suas reflexões no tocante às possíveis formas de

715 Sobre as idéias de Agnes Heller aqui expostas ver: HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 4ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 2-45.

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elevação da cotidianidade, ou seja, dos meios pelos quais os indivíduos tem acesso aos

valores humano-genéricos. Parece-nos aqui que Heller atribui papel excessivo à ciência, à

teoria e, subliminarmente, ao “letramento” (o contato com o mundo via formas escritas e

códigos comunicativos modernos, compartilhados pelos indivíduos em espaços formais e

informais ainda que involuntariamente) como meio de acesso ao conhecimento sistemático

das essências humanas apontadas por Marx e a intensificação consciente de suas tendências

de realização, em suma, o acesso a práxis. Heller afirma que a maior parte da humanidade

permanece como “muda unidade vital de particularidade e genericidade”, uma vez que a vida

cotidiana é a esfera que “mais se presta à alienação”, o que não quer dizer que seja

necessariamente alienada. Nesse sentido, continua a autora, a possibilidade de elevação da

cotidianidade senta-se sobre “personalidades representativas”716.

No nosso entendimento, a luta dos vaqueiros pela manutenção da sua função, pelo uso

coletivo da terra e por condições de trabalho menos alienadas, não pode ser entendida senão

como uma luta clara, consciente e até duradoura pelos valores “genérico-humanos”, portanto,

uma práxis, sem que, para tanto, necessitem esses indivíduos de conhecimentos letrados sobre

“consciência”, “valor”, “particularidade-genericidade”, “alienação”, “teoria”, “ciência”.

Thompson já demonstrou, a partir do conceito de experiência humana, como o

comportamento dos homens comuns está diretamente ligado à consciência sobre as condições

de exploração em que vivem. Para o autor, em meio às circunstâncias diárias de vida, os

sujeitos experimentam suas situações e relações produtivas como necessidades e interesses e

como antagonismos, a partir de suas referências e padrões culturais, voltando a agir sobre as

realidades vividas717. O sujeito thompisiano vivencia a experiência humana quando, diante da

faina rotineira de provimento da sobrevivência, vivencia condições conflituosas concretas que

o permite reconhecer a sua posição nas relações de produção estabelecidas, os mecanismos de

exploração que lhes atinge, suas formas e possibilidades de ação e defesa de seus interesses

diante de outros grupos em um dado tempo e espaço. A experiência é assim o exercício da

práxis, dentro da dimensão pragmática do cotidiano, acessível a todos os homens. Dessa

perspectiva, emergem sujeitos da história, pensantes e ativos, que arquitetam suas vidas na

relação com os projetos hegemônicos e não sob eles.

716 Idem, Ibidem, p. 22-39. 717 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria..., p. 182.

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286

Foi, pois, a partir do trabalho diário no campo, da leitura das mudanças impostas às

suas relações de trabalho, do entendimento do seu lugar nas relações de produção, de suas

concepções de mundo, do sentir os mecanismos de exploração que se instalavam e das suas

condições e possibilidades concretas de atuação que agiram os vaqueiros na busca pela

manutenção de suas condições materiais e identitárias de sobrevivência. Se o cotidiano é a

dimensão a partir da qual o homem experimenta o mundo, são os desafios nele existentes que

compõem “o real”.

Lembra James Scott que a “dureza do cotidiano” – a dependência do trabalho como

forma de sobrevivência – obriga uma adaptação pragmática dos trabalhadores à realidade

vivida. Para o autor, compreender esse pressuposto requer dois posicionamentos: 1) a certeza

de que essa “adaptação”, embora imponha limites à atuação dos trabalhadores diante de

condições de exploração, não excluem formas de resistência; 2) que o seu compartilhamento

não significa um consentimento normativo das realidades impostas, uma vez que a adaptação

tem em si um caráter pragmático718.

Imaginar a passividade dos vaqueiros diante do avanço de um projeto de

modernização excludente, que lhes tirava práticas, sentidos, formas de vida e recursos

materiais de sobrevivência é um pensamento superficial. Os estudos de Thompson sobre os

camponeses ingleses do século XVIII, já demonstrou que é equivocado acharmos que os

pobres sempre perderam suas disputas719. Por outro lado, esperar grandes revoltas e

composição de formas institucionais de luta por parte dos trabalhadores em destaque é

deslocá-los de suas condições e possibilidades reais de vivência. Como pontua James Scott, as

ações políticas formais devem ser pensadas como padrões de conduta das elites, dos

intelectuais e da classe média. Negar, porém, a possibilidade dos sujeitos comuns, como os

vaqueiros, produzirem formas de “resistência” e defenderem seus próprios interesses diante

do processo de modernização agrícola é pautar-se nas categorias dominantes sobre o que vem

a ser “resistir”720.

Ainda segundo Scott, a abordagem da resistência como ato institucional silenciou e

desconsiderou formas cotidianas de luta usadas pelos camponeses, muitas vezes, as únicas

disponíveis aos sujeitos. Scott define como resistência cotidiana qualquer ato provindo dos

oprimidos, fundamentado em um “padrão coletivo” de ação – ainda que sem uma

718 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência..., p. 18. 719 THOMPSON, E. P. Costumes em comum...; THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores... 720 SCOTT, J. C. Formas cotidianas da resistência..., p. 28-29.

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coordenação definida -, que tenha por intenção corromper, aumentar seu poder de

reivindicação, negar obrigações e práticas que sobre eles recaem advindo das classes

opressoras. As resistências cotidianas geralmente assumem formas anônimas, flexíveis e

persistentes, silenciosas, podem assumir caracteres simbólicos, podem ou não elevar-se a

situações mais “abertas” de confronto e estão diretamente relacionadas com a produção das

condições de sobrevivência dos trabalhadores721. Estão nesse conjunto: a fofoca, a sabotagem,

o roubo de grãos, a ameaça, a fuga, o não pagamento de impostos, o silêncio...

A resistência cotidiana, diz ainda James Scott, não visa romper o sistema, mas testa

constantemente as normatizações das relações de produção, compõem a arena mais durável

dos conflitos de classe e expõe os trabalhadores como sujeitos políticos. Esse autor nos

desafia a pensar as formas cotidianas de resistência como uma regra - e não como uma

exceção – advinda da necessidade de resistir722. Também no contexto das relações agrárias,

José de Souza Martins já demonstrou como as comunidades camponesas e indígenas

brasileiras tem imposto limitações ao processo de expansão capitalista, por meio da

constituição de mediações, pela sua capacidade de recriação e até mesmo pela sua presença

política na sociedade723.

Nesse sentido, os sujeitos de nossa pesquisa acompanhavam, refletiam e resistiam

diariamente às realidades vividas, no contexto do avanço das relações capitalistas que lhes

tiraram os espaços de trabalho e vivência. Sobre esse contexto conflituoso, agiram (e agem)

na defesa de suas convicções de mundo e de trabalho, de sua identidade laboral, de seu direito

de permanência sobre o Platô ou áreas circunvizinhas, da manutenção da sua relação com o

gado. O campo se fez espaço de experiência e a partir do trabalho os vaqueiros produziram

suas próprias formas de entendimento dos processos que se decorriam, do modo que ele os

atingia e das suas possibilidades de ação e resistência.

Luiz sabe muito bem explicar o processo de controle que o Estado impôs sobre as

práticas da pecuária.

O Estado num aceita mais criar solto, você tem que criar preso! Você tem que... hoje você tem, você tem o seu rebainho de gado, tá todo na EBDA (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, agência de Extensão Rural e Assistência Técnica que atua na Região de Irecê) pra sabê quandos bizêrro nasce, saber quantos você tem,

721 Idem, Ibidem, 24-29. 722 Idem, Ibidem, p. 18-25. 723 MARTINS, J. de S. A chegada do estranho..., p. 64-65; 71.

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saber pr’onde você vai tirar, [...]... e você antigamente não! Você vindia, você dava, você... (tosse), você ia pr’onde quiria! E hoje é difici o negóço724.

Este entrevistado também define as mudanças espaciais e paisagísticas pelas quais

passou o antigo território do Sertão de Irecê: “Cunheci na catinga, cunheci dismatada e

cunheci só por terra agora! (riso) Só tem a terra”725. Hermes relata bem o processo de

deslegitimação do costume que o capital produziu a partir do controle da terra, das práticas e

do trabalho quando afirma: “A terra está, mas não o campo solto!”726. Roxinho sintetiza os

impactos desse processo: “Acabô ovelha, acabô bode, tudo, acabô mais o sertão, né!”727 Juarez também analisa as consequências espaciais e sócio-econômicas das iniciativas

modernizantes: Milhorô muito pra cidade porque tinha renda, deu renda! O pessoal cercô tudo [...], naquela época produzia muito fejão e aí milhorô pro lugar, mas pra o vaquêro não! Pro vaquêro fez foi arruinar. E o coitado do vaquêro que tinha, que trabaiava pra tirar sorte, quando acabô o campo ele vendeu as 4 vaquinha que tinha e foi imbora e ôtos ficô, foi plantar roça. [...] Tinha que disistir, o patrão vendia o gado, como era que ficava?!728

Luiz tem claro conhecimento das mudanças operadas nos ritmos de vida quando afirma que

o muvimento de gado acabô né, mas, o muvimento de ôtas, de ôtas parte de coisa aumentô né, o muvimento de gente, o muvimento de carro, o muvimento de uma obra, o muvimento de casa e aí... a gente vê que o negóço tá aumentano né, gente aumentano dimais, você contava as pessoa, hoje você num tem condições de contá mais nem de uma rua!

E completa: “a civilidade mudô né, passô tudo, tudo a sê civilizado. Hoje, quem tinha

vontade de tê uma rês, tem um carro novo”729. As mudanças ambientais não passam

despercebidas pelos vaqueiros. Roxinho lamenta: “Em são Gabriel foi, foi um disastre [...] a

catinga era da altura dessa casa, hoje você chega lá, você num diz que lá tinha catinga! Acabô

tudo!730. Guilhermino produz suas próprias análises sobre o impacto ecológico e climático

resultante do processo de modernização rural:

Dismatô esse mundo todo aí, hoje, você vê, a chuva retirô, afastô tudo, num chuveu mais e aí acabô a agricultura, você vê, hoje aqui tá a região nossa todinha tá um fracasso, né! Virô um sertãozão gerais aí! [...] Todo mundo danô a furar poço nessa região todinha, então, isso aí é o fracasso da chuva, porque, se puxa essas água

724 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 725 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 726 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 2º momento, 14 de out/2010. 727 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011. 728 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010. 729 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 2º momento, 14 de nov/2010. 730 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.

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debaxo da terra todinha, como é que faz a temperatura, puxar a chuva e chover?! Hoje num tem mais porque as água debaixo do chão o povo tá puxano tudo e soltano inriba do pó da terra, aí acaba! 731

Guilhermino sabe que as modernidades tem seu preço e afirma: “Nós hoje come é

veneno e a verdura é o veneno todo! A criação é o veneno! Tudo, tudo é invenenado!”732.

Almir Vaqueiro, mesmo afirmando não gostar do trabalho na roça, se preocupa com a

fertilidade dos solos e destaca: “a terra adoeceu”733. Roxinho conhece bem o resultado do

processo de modernização rural e seus impactos sobre os diferentes grupos sociais: “Do mêi

pro fim acabô a chuva e nem fejão e nem catinga! Aí ficô tudo na mão! E nem gado! Hoje,

quem criava 200, cria 5, 10! E o pobre de jeito nenhum, porque num tem onde prender né”734.

O poeta, vaqueiro e repentista Licuri delineia sua reflexão sobre o futuro alimentício do

Brasil, e quicá, do mundo:

Os probrizim que num tem nada, [...] aluga um barraco na cidade, leva a família pra lá e fica vendeno o dia, se lascano, passano até fome [...] E os filho? _ “Ah! Meus filho tem que istudar, que tem que se formar!” _ Tudo bem! Concordo plenamente com o istudo, que vale tudo na vida o istudo! Agora, por que naqueles tempo num ixistia um certos tipo de fome?! [...] Porque tá faltano quem plante! Todo mundo tá na cidade, quereno se formar. Agora eu lhe digo assim a você [...]: A cidade já é completa de gente de dento da cidade, não tem imprego pra todo mundo, vai ter pra todos que vem da roça?! [...] Então, vai fazer o que esse povo formado?

Das falas acima emerge a vivência e a consciência de quem compreende bem os

processos econômicos recentes que recaíram sobre seus espaços de vida, afinal, como defende

Walter Benjamin, é a experiência a fonte da narração, e esta é uma forma comunicativa

artesanal, móvel, forjada pelo traço da vida e no acervo de vivências. A narração exige uma

interpretação dos seus ouvintes. O que significa para um vaqueiro afirmar que o campo

acabou? Quantos sentimentos e lembranças estão aí guardados? É a experiência que afirma:

“cunheci”.

A experiência é um processo da práxis e como, tal possibilita a transformação

consciente da circunstância vivida através da interferência dialética sobre a relação contextual

firmada entre os fins buscados e as limitações postas pela cotidianidade. Diariamente em meio

às caatingas, à medida que a finalização do campo se tornou mais evidente e suas relações de

trabalho e sociabilidades alteradas e deslegitimadas, os vaqueiros foram forçados a buscar

731 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 732 Idem, Ibidem, loc. cit. 733 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 734 Entrevista do senhor Amado Alves Pinto (Roxinho Vaqueiro)..., 2º momento, 28 de ago/2011.

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suas condições de sobrevivência e leituras de mundo nas brechas do projeto de modernização

rural e ainda hoje recriam essas estratégias em seus quintais, nas zonas afastadas, nas

capoeiras que crescem nas áreas abandonadas pela agricultura. Os matos se refazem, mas as

estruturas sociais, simbólicas e econômicas sobre as quais se sentavam a reprodução social do

costume no Platô Norte Diamantino e áreas circunvizinhas, já não existem.

A vivência em tempos de mudança deixou consequências e organizou formas de narrar

na consciência dos vaqueiros. Comumente os vaqueiros usam os verbos “fechar” ou “prender”

para indicar o processo de finalização do campo. Juarez nos diz que hoje “tá tudo fechado!

Num tá mais aberto não”735, para Jairo “o campo aqui fechô, aqui o povo priziô dimais! Foi

obrigado sair pra criá fora!”736. Hermes diz que “a terra tá toda presa”737. As expressões

usadas para indicar o cercamento das terras remetem diretamente a um processo de

“disciplinarização” do uso, impedimento das práticas comuns e a presença de um poder

normatizador. Fechar ou prender simboliza reter algo para si e se antagoniza a expressões

como “solto”, “vasto”, “aberto”, corriqueiramente usadas para classificar o campo ou expor a

existência de um tempo diferente do presente.

Os relatos dos vaqueiros são temporalmente recortados em dois momentos: “o tempo

do campo”, também chamado de “naquele tempo”, “antigamente”, “de primêro”, “tempo

nosso”, “o tempo véi”, “naquele tempão antigo”, símbolo de valorização profissional,

associado a liberdade, ao domínio dos saberes do manejo, às formas coletivas de trabalho, às

pequenas roças, tempo devagar, no passo do cavalo, tempo rápido no grito do vaqueiro em

meio à caatinga, tempo da honestidade, do respeito aos bens alheios, tempo da terra solta,

tempo da aprendizagem pelo exercício prático, tempo da coragem, da macheza, da honra, da

destreza de laçar, do gibão, do boi bravo, da saudade, da reunião da vaquerada na feira. É o

tempo em que uma viagem poderia durar “3 dia c’umas parte de noite!”738, que a sombra e os

cantados das aves funcionavam como marcadores temporais. Em outra dimensão das narrativas dos entrevistados encontramos o “tempo de hoje”

ou “tempo do banco”. Este é associado à chegada das novas tecnologias, do desenvolvimento,

da agricultura comercial, da presença do banco, do governo, do crédito, do desmatamento, da

escola, da abertura das estradas, do trator, tempo dos ladrões, da falta de respeito, da solidão

735 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 736 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo)..., momento único, 07 de out/2010. 737 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 3º momento, 16 de out/2010. 738 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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das fazendas, do arame, dos benefícios da modernidade, do crescimento da cidade, da

aposentadoria, da proteção contra a fome, dos vaqueiros de bicicleta e de moto. Como afirma

Tânia Risério Gandon, a memória de uma comunidade tradicional se expõe por meio de

discursos multitemporalizados que transitam entre o mítico, o vivido e o mitificado, sendo

cada uma dessas dimensões portadora de uma “qualidade” própria739.

A reflexão multitemporal dos vaqueiros os permite o exercício da alteridade

(ontem/hoje) e a produção de estruturas narrativas que buscam reforçar a sua importância no

contexto atual a partir da diferenciação entre o “eu” e o “outro”. A narrativa dos vaqueiros

deixa transparecer a existência de três grupos de trabalhadores. O primeiro grupo é formado

pelos “vaqueiros de campo”, considerados os reais vaqueiros, geralmente homens com mais

de 50 anos, que lidaram por algum tempo com o gado à solta. São os detentores dos saberes,

das artes do trabalho no campo e vistos como símbolo de coragem. Almir afirma: “O vaquêro

é aquele homem como eu fui vaquêro, (...) o vaquêro é aquele que pega o boi no mato”740.

O segundo grupo é formado por trabalhadores mais jovens, homens entre 35 e 50 anos.

Estes, geralmente, vivenciaram por pouco tempo o campo e o sistema de sorte, estão ainda na

ativa e trabalham nas fazendas cercadas dentro e fora do Platô. Muitas dessas fazendas ainda

possuem áreas de caatinga, o que os permite, ainda que parcialmente, contato as formas e

saberes tradicionais de trabalho com o gado. Os entrevistados se referem a eles como

“vaqueiro de fazenda”, “empregado”, “zeladô” ou “pião”. Lembrando-se de dois dos seus

conhecidos que trabalham nas fazendas próximas ao Platô fala Samuel: “Ele é menino, é

muderno! Amilton! E Almir também trabaia no campo, é muderno também. É sobrinho de

Juarêz, mas num é na idade dele não, é novo, 30 e tantos ano. [...] eles trabaia e sabe trabaiar,

e sabe quem trabaia!”741. Nos repassando informações sobre um dos seus sobrinhos, também

“vaqueiro de fazenda”, diz Juarez: “ele mora aqui tomém, é vaquêro”742.

Embora reconheçam no “vaqueiro de fazenda” aptidão e conhecimento no trato com o

gado, os “vaqueiros de campo” os tratam com certa ressalva. Hermes nos diz que; “Hoje a

gente chama de vaquêro porque tá lutando com o gado, não é? É lutador de gado, é vaquêro,

mas já é um vaquêro que não é de confiança que nem era de primêro (antigamente)! De

739 GANDON, T. R. D’A. Entre história e memória..., p. 139-155. 740 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010. 741 Entrevista do senhor Samuel Juvêncio Rocha (Seu Samuel)..., momento único, 20 de out/2010. 742 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Seu Juarez)..., 1º momento, 09 de out/2010.

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primêro você lutava no campo, era obrigado ser cabra bom, não era todo mundo não!”743.

Almir completa: “todo mundo é vaquêro hoje né. Todo mundo tange o gado que é tudo

corredô né! Num é que’nem aquele tempo que só era carrêro (caminho estreito que corta a

mata, normalmente feito pelos animais)! Aí era mais difici né. [...]744.

Um dos fatores decisivos dessa diferenciação é o uso do sistema assalariado e o local

de trabalho. Viana explica: “O vaquêro é quem óia pra tirar sorte! [...] Esse vaquêro que é

impregado, ele só botô a vaca no cocho de tardinha, ou a hora, tirô leite bem cedo, soltô, mais

tarde, da de’cumê... isso né vaquêro, esse é impregado né! [...] Que’le ganha seu saláro, ele é

um... num veste côro pra ir em canto ninhum, né!”745. O “côro” é aqui sinônimo do campo,

sua ausência remete ao trabalho na fazenda e serve de fator determinante para o narrador

definir a diferença entre ser vaqueiro e ser empregado.

O terceiro grupo é formado pela “mudernage”, são os sujeitos mais jovens que não

tiveram acesso ao trabalho no campo, mas que, mesmo realizando apenas serviços

esporádicos com o gado, ou mesmo não realizando, se identificam com as práticas das

cavalgadas, festas de vaquejada, toadas e aboios. Nesse conjunto, as representações da

pecuária local se misturam à influência da cultura country norte-americana. Luiz diz: “hoje

todo vaquêro quer sê vaquêro, nas capoêra, dento dos pasto, correno em pista de vaquejada e

dizeno que é vaquêro, mas o vaquêro antigamente era incorado!”746. Guilhermino explica:

“muita hora o cara bota a sela no cavalo e tudo mais, muito vai fazê riscote no mundo intêro e

tudo mais, como vaquêro, mas num é vaquêro!”747. Esse grupo é visto pelos “vaqueiros de

campo” com ressalvas ainda maiores que às direcionadas aos “vaqueiros de fazenda”:

Essas porra quer mais nada moço! Num sabe fazer nada moço! Quer é beber cachaça e vagabundar xxx! Muitos tem a influênça de muntar no cavalo, mas, vai mandar laçar uma rês num sabe, quando é botar uma careta, numa sabe! Então num sabe fazer nada!748

Os integrantes dessa categoria são geralmente denominados de “vaqueiros de hoje”,

outros nomes, porém, lhes são atribuídos de forma irônica ou inferiorizante: “imbrulha côro”,

“imprenha sela”, “tiradô de leite”. O uso de símbolos e instrumentos estranhos ao trabalho

743 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Hermes)..., 1º momento, 11 de out/2010. 744 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010. 745 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011. 746 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010. 747 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Seu Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 748 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010.

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tradicional, aumenta ainda mais o distanciamento entre este grupo e os “vaqueiros de campo”.

Reinaldo de Lôro explica:

Hoje a coisa tá tão mudada, que eu vejo gente ai tangeno gado de moto! E não tem mais aqueles gado brabo! E nem que o gado for brabo não tem pra onde o gado correr, as vez corre num corredor, o cara bota a moto atrás rebate logo! [...] Ôtos de bicicleta! E os vaquêro não usa mais nem jaleco, nem chapéu de côro! Pra gende dizer: _“Ó lá um vaquêro.” [...] E o cavalo também num sabe fazer o serviço, num sabe pra que é que vai correr atrás d’um boi749.

A falta do saber, o uso da moto ou da bicicleta, a falta do gado bravo, do jaleco, do

chapéu... torna o “vaqueiro de hoje” o sujeito negado. É pensando nos elementos simbólicos e

representativos que caracterizam o “vaqueiro de campo”, ou melhor, na falta deles, que

exclama Reinaldo de Zé Pedro:

Hoje num tem mais vaquêro, não! O povo ver assim: _“Lá vem um aculá muntado num cavalo.” De primêro quando vinha um vaquêro: _“Oh, um vaquêro aculá.”750

Intercalando o perfil dos três grupos observamos que as diferenças que os marcam, são

explicadas pela posição que ocupam em relação ao trabalho no campo. Sendo os “vaqueiros

de campo” o ponto de referência a partir dos quais de julga o que é “saber” ou “não saber”, os

grupos mais distantes do seu padrão de trabalho são definidos de forma inferiorizada. Isso,

contudo, não simboliza um conflito de grupos, o jogo que se coloca é o da disputa

representativa pelo direito e o poder de dizer e classificar os outros. A presença de um

“vaqueiro de campo” nas cavalgadas ou eventos organizados pelos “vaqueiros de hoje”, por

exemplo, é visto como um fato marcante e apreciada por todos os participantes.

Estamos aqui diante de uma memória que delineia um modelo de ser vaqueiro baseada

na rotina de trabalho e nos ensinamentos que foram repassados aos entrevistados pelos seus

antecedentes e que não encontra mais subsídios no tempo presente. As mudanças ocorridas no

mundo simbólico e laboral dos vaqueiros, como a expansão do assalariamento e uso das

motos na condução do gado, possibilitam aos “vaqueiros de campo” auto-atribuir-se uma

originalidade.

Michel Pollak já demostrou como uma memória herdada fundamenta um sentimento

de identidade tendo por base a unidade física dos indivíduos, (no caso dos entrevistados, as 749 Entrevista do senhor Reinaldo Oliveira Santos (Reinaldo de Lôro)..., momento único, 07 de jan/2012. 750 Entrevista do senhor Reinaldo Pedro de Souza (Reinaldo de Zé Pedro)..., momento único, 07 de jan/2012.

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fronteiras grupais), o sentimento de continuidade dentro de um tempo e um sentimento de

coerência, ou seja, de um compartilhamento real dos diferentes elementos que compõem o

sujeito no meio do grupo. Esses elementos, acrescenta Pollak, são sempre testados em relação

ao “outro”, por meio dos critérios de aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade, como

forma de se produzir uma auto-imagem. Nesse sentido, a memória deixa de ser vista como

essência dos grupos para se tornar “um fenômeno seletivo e construído” a partir de disputas e

conflitos sociais intergrupais751.

Por se tratar de uma representação social em risco, dialeticamente, o “vaqueiro de

campo” necessita do “vaqueiro de hoje” para afirmar seu próprio lugar de emissor do discurso

do “modo de ser vaqueiro”. Novamente recorremos a Pierre Nora quando destaca que a

necessidade de memória é um sinal do fim dos meios de memória752. Nesse caminho os

entrevistados evitam negar aos “vaqueiros de hoje” uma vez que, sem eles, seu exercício de

alteridade não se completa. Essa estratégia narrativa demonstra que os entrevistados têm

consciência de que, ainda que vistos como incompletos, os “vaqueiros de hoje” correspondem

concretamente a uma das poucas formas de manutenção de algumas das simbologias e

práticas por eles referendadas, principalmente o trato com o gado, o uso dos cavalos, das

indumentárias de couro ou das músicas de vaquejada.

O fim de uma região...

Bem distante dos vaqueiros e de sua lida pela sobrevivência, as autoridades regionais

debateram acaloradamente em meados dos anos 1980 a crise que ameaçava a Região de Irecê.

A ocorrência de estiagens no início desse decênio interrompeu o crescimento produtivo

novamente, reforçando as queixas sobre os prejuízos causados pela irregularidade das chuvas

e anunciando os limites do processo de expansão das relações capitalistas no antigo território

do Sertão de Irecê. Nesse momento, as agências financeiras reforçaram o argumento da

impossibilidade de manutenção das altas taxas de crédito.

Tal ideia assustou os políticos locais, que buscaram contatos e explicações viáveis

para contornar a situação. A sessão legislativa da Câmara de Vereadores de Irecê, datada de

04 de abril de 1979, dá conta da presença de uma comitiva política formada pelo Ministro do

751 POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, vol. 5, nº 10, 1992, p. 203-204. 752 NORA, P. Entre memória e história..., p. 7.

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Interior, Ministro da Agricultura, Governador do Estado, Secretários de Estado, Senadores,

Deputados, Prefeitos e Vereadores de outros municípios, de passagem pela cidade. Nessa

ocasião foram entregues documentos relatando a crise agrícola vivenciada na Região de Irecê

e solicitando medidas para que a “produção seja mais valorizada”753.

A partir de 1983, com o fim do subsídio agrícola, a situação tornou-se menos cordial.

Em outubro desse ano um dos vereadores “condena a decisão dos agentes financeiros em não

financiar [...] os agricultores da região de Irecê no período agrícola 82/83”, afirma ainda que

tal decisão foi “um crime”754. Uma nova sessão realizada nesse mesmo mês exigiu “a vinda

do representante do Banco do Brasil S/A, para esclarecer as dúvidas com referência ao custeio

agrícola” em caráter de urgência755. A referida solicitação não tardou a ser atendida e no

início de novembro o superintendente do Banco do Brasil fez-se presente. Após longo

discurso sobre os critérios adotados pela instituição e o papel social que ela representa na

região sentencia o visitante: “não é possível se reinvestir em qualquer região sem que tenha

retorno”. A fala do discursista parece ter pesado aos ouvidos do público e, buscando amenizar

o contexto afirma: “Irecê tem potencial”, “não faltará recursos para a Bahia”756.

Após a declaração do representante financeiro, assiste-se a uma avalanche de críticas

dos representantes legislativos de Irecê ao Banco do Brasil, questionando sua estrutura

burocrática e o descaso com os agricultores. Tais críticas podem ser sintetizadas na sessão de

21 de novembro, onde um dos vereadores desabafa, ao afirmar que os representantes do

Banco do Brasil “não estão levando a sério o atendimento”, solicitando em seguida o “apoio

do Legislativo para ajudar os agricultores de Irecê resolverem seus problemas com os agentes

financeiros”. O edil ainda destaca que o referido banco, embora público, “se transformou em

uma instituição comercial”. Outro vereador, conclui ainda nessa sessão que “isto é

consequência de uma Política Agrícola desastrosa vigente no Brasil”, acrescentando: “Irecê

não tem nenhum Deputado Federal que o represente”757.

A inércia dos representantes políticos dos níveis federal e estadual diante da crise

agrícola, foi motivo de diversas outras críticas nas sessões seguintes. A ata 314, de março de

1984, registra uma nova denuncia: “Volta a falar sobre a transferência da Gerência Regional

753 CMI. Ata nº 195 da Câmara Municipal de Irecê, 10 de abril de 1979 (datilografada). 754 CMI. Ata nº 303 da Câmara Municipal de Irecê, 04 de outubro de 1983, p. 106. 755 CMI. Ata nº 306 da Câmara Municipal de Irecê, outubro de 1983, p. 112. 756 CMI. Ata nº 307 da Câmara Municipal de Irecê, 01 de novembro de 1983, p. 112. 757 CMI. Ata nº 310 da Câmara Municipal de Irecê, 21 de novembro de 1983, p. 119.

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do PDRI – Irecê para Jacobina e pede que seja encaminhado documento ao Deputado Manoel

Novaes para que esta Gerência seja transferida para Irecê”758.

Um dos debates travados em outubro de 1984 afirma que “a Agricultura de Irecê está

condenada a extinção pois além dos tratamentos injustos já conhecidos agora recebemos a

notícia de que a partir de hoje o Agricultor vai pagar Correção Monetária”. A sessão não se

encerra antes que o mesmo representante relate: “o Banco do Brasil quer escurecer a

produtividade de Irecê e classificar em faixas inferiores” a de outros municípios759 menores.

Em reunião posterior, conclui os representantes legislativos de Irecê: “nossa agricultura está

falindo por falta de vozes representativas no Congresso Nacional”760.

O outrora “celeiro do Nordeste”761 era agora uma estrutura em ruínas e suas

autoridades tentaram dar voz às pressões sociais, descortinando um processo de abandono

político da Região de Irecê. As instituições públicas de desenvolvimento rural passaram a ser

retiradas, deslocadas ou caíram no puro abandono e tentou-se até mesmo, produzir chuva

artificial em meados de 1980 através de uma frustrada iniciativa de bombardeamento de

cloreto de sódio sobre as nuvens. A crise foi agravada pela recuperação produtiva do feijão

em outros estados como o Paraná, e os debates seguintes enfocaram a importância da mamona

como nova cultura comercial para o Platô. Tentativa de curto sucesso.

Muito fácil era comprar tratores no Planalto Norte Diamantino no início da década de

1990. Sem recursos para manter o cultivo, muitos agricultores e proprietários puseram suas

máquinas à venda a preços baixos. Como marcas de outro tempo, até recentemente,

amontoados de ferros e peças de equipamentos agrícolas se encontravam abandonados em

alguns pontos da cidade de Irecê. Pelas áreas rurais, muitas delas ainda se erguem como

monumentos de silêncios e ferrugem.

O ponto crucial de finalização da Região de Irecê foi a fragmentação do território do

município de Irecê, dando origem aos municípios de São Gabriel, João Dourado, Lapão e

América Dourada em 1985, após caloroso debate entre os representantes políticos locais.

Diante da pressão social decorrente da crise agrícola, as instâncias políticas estaduais e

federais consentiram a citada divisão como forma de contenção das críticas e negação do

abandono político, e presenteou as populações com cidades que nasceram da noite para o dia,

758 CMI. Ata nº 314 da Câmara Municipal de Irecê, 20 de março de 1984, p. 129. 759 CMI. Ata nº 336 da Câmara Municipal de Irecê, 01 de outubro de 1984, p. 184 (grifo nosso). 760 CMI. Ata nº 340 da Câmara Municipal de Irecê, 29 de outubro de 1984, p. 191. 761 CMI. Ata nº 323 da Câmara Municipal de Irecê, de 23 de maio de 1984, p. 147.

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sem que nenhum investimento ou equipamento público fosse instalado, além dos que já

possuiam.

A Região de Irecê, uma “especificidade regional” dentro da Região Econômica do

Nordeste, forjada pelo planejamento, entrou em ruínas na segunda metade de 1980. Claro

ficou que o Platô e as áreas vizinhas não correspondia mais ao interesse do capital. As

estruturas de uma nova “região econômica” passaram a ser erguidas, agora no oeste baiano, a

“região da soja”. Nos anos 1990, assistiu-se a uma migração em massa dos jovens de todas as

cidades do Platô em direção aos grandes centros, especialmente São Paulo, e o migrar sazonal

frenético de trabalhadores para o oeste baiano e para as zonas produtivas de outros estados da

federação em busca de trabalho.

O Sertão de Irecê já não existe mais como espaço-vivência, lugar de produção das

relações sociais de produção, lugar de sociabilidades, de trabalho. O Sertão de Irecê sobrevive

nos lugares de memória de que nos fala Pierre Nora: nos quintais, no jaleco que Roxinho se

orgulha em usar até hoje, na teimosia de Juarez em continuar criando gado, nos aboios de

Almir Vaqueiro, no chapéu de couro que emerge na feira, no gibão e peças de trabalho

guardadas com carinho sob a poeira, na conversa despreocupada ainda presente nas pequenas

cidades, nas poucas casas de enchimento que resistem, nos gestos, nos hábitos, no

comportamento dos velhos vaqueiros, nas carroças que circulam, nos animais que pastam nos

terrenos baldios...

No mundo atual, onde a lembrança e a História foram dessacralizadas, nos diz Nora,

os lugares de memória são sinais de outro tempo, funcionais, simbólicos e materiais,

cristalizam uma lembrança passada permitindo sua transmissão no hoje. São produtos da

experiência vivida por remanescentes impelidos por uma vontade de memória. São espaços

híbridos e mutantes que visam parar o tempo, bloquear o esquecimento, manter sentidos. No

caso dos entrevistados, são lugares dos dominados, lugares de refúgio, mas também, lugares

de resistência. Lugares de memória são restos, onde se unem a morte e o presente762.

Se a região se desfez, permanecem ainda os seus impactos: um modo “regionalizado”

de viver, urbanizante e capitalizado. A imagem da pujança agrícola, hoje falida, ainda é

exaltada pelas elites locais enquanto os pequenos trechos de caatinga ainda tombam.

Dialeticamente, o passado reaparece consubstanciado na retomada de práticas policultoras,

762 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

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danças, festejos, na ação de certos grupos artístico-culturais, na manutenção das velhas casas

de farinha, no emergir de vozes autodenominadas sertanejas, como a apontar para um

“ressertanejamento”. Reconstrução em novas bases, de natureza bem diferente, movida pela

vontade de lembrar e não mais pela ação do existir. Sabiamente exemplifica Guilhermino:

“muitos aí que representa como vaquêro por negócio de festa, mas vem tudo naquela

influênça do que era o passado”763.

Em meio ao processo de estruturação e ruína de uma região estava uma prática secular

das populações sertanejas: criar animais à solta em áreas de uso comum, e um sujeito: o

vaqueiro. Considerados pelo Estado e pelas elites locais como entraves rudimentares ao

processo de modernização rural, passaram eles a ser eliminados, disciplinados, coagidos,

“regionalizados”, decompostos de sua natureza rural, mas, das artes de viver dos

trabalhadores emergiram outras formas de reexperimentar o Sertão de Irecê. As

consequências sociais desse processo de desconstrução e tentativas de reconstrução, no

entanto, são inegáveis e a saudade emerge da fala do velho vaqueiro, legitimada que está pela

experiência vivida, como alma de um tempo e de um lugar que não mais existe quando

exclama: “Quantas vez nós ia pegar gado ali naquelas queimada véa! [...] Ave Maria!

Diversão boa danada!”764

Almir fala da saudade dos seus amigos: “Naquele tempo meu! Queta moço! Às vez

tinha um boi brabo aí, pra reunir a vaquerada pra gente ir pegar... é, queta moço, é uma

diversão boa!”765. Hermes tem saudade do lugar de trabalho e assume:

Uma saudade de, (risos) desse trabalho do campo e tenho saudade lá do Riacho (do Ferreira)... quando eu vejo um relâmpo ou uma chuva pra lá eu digo: _“Ó! tá chovendo lá em casa!” É o mesmo que eu ver eu lá de dentro de casa e a vacada na malhada766.

São os lugares também que trazem lembranças a Luiz, lugares de memória:

A soudade é grande! Inté hoje... você já cumeça tê soudade de quando você chega num canto e diz: _“Aqui eu já trabaiei muito de vaquêro aqui nesse canto, e hoje tá tudo no limpo aí!” (voz com entonação sentimental) [...] chega dá aquele choque na gente!767

763 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., momento único, 18 de ago/2011. 764 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 2º momento, 13 de nov/2010 765 Idem, Ibidem, loc. cit. 766 Entrevista do senhor Hermes José da Silva (Véi Herme)..., 1º momento, 11 de out/2010. 767 Entrevista do senhor Luiz Batista de Oliveira (Luiz Vaqueiro)..., 1º momento, 07 de nov/2010.

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Olhando a caatinga devastada Guillhermino se questiona:_“Quem foi eu? [...] Fiz

tudo, hoje, acabô tudo, num deu pra fazer mais nada. E tamém acabô aquele tempo, né”768.

Refletindo sobre o duro e solitário trabalho nas fazendas destaca Juarez: “vaquêro hoje num

tem mais aligria”769. A saudade, por fim, brota das lágrimas de Jairo enquanto a mente busca

no hoje os sentidos possíveis para a vida. Afirma ele: “Tem dia que chega choro! [...] O

trabalho que a gente faz é bom demais! [...] eu num vendo (ver) o gado, fico apaxonado a vida

toda!”770. Quando as lembranças doem o esquecimento alia seu peso, Viana afirma: “Larguei

isso de mão, tirei do juízo que num... tem dia, quando eu vejo vaquêro aboiar, se eu pudesse

eu num via nem ele raiar um bicho! Acredita?!”771

768 Entrevista do senhor Guilhermino Pereira da Silva (Guilhermino)..., 2º momento único, 18 de ago/2011. 769 Entrevista do senhor Juarez José de Brito (Véi Juarez)..., 2º momento, 15 de out/2010. 770 Entrevista do senhor Jairo José Benício (Jairo Fininho)..., momento único, 07 de out/2010. 771 Entrevista do senhor Viana Batista de Oliveira (Viana Vaqueiro)..., momento único, 10 de nov/2011.

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Considerando o dito e o não dito...

Era só mais um dia no campo e Almir Vaqueiro repetia a peleja entre a caatinga: A vaca era braba, [...]... espantei o cavalão nela! Ôh! Meu irmão! [...] na quebração de trator, a madêra deitada, o cavalão caiu e caiu por cima de mim e me pegô a perna aqui debaixo, debaixo do pescoço, ficô eu agora fungano para tirar esse musuê de cavalo (refere-se ao tamanho do cavalo) de cima de mim772.

A prática tantas vezes certeira desta vez não funcionou, restando ao vaqueiro mais um

acidente. O obstáculo encontrado nesse dia, contudo, era diferente dos anteriores. Não era

uma armadilha natural, não estava inscrito na experiência como um dos perigos do campo. O

saber do cavaleiro foi traído pelo imprevisível: a quebração do trator. A narrativa acima situa-

se muito além da aventura, dos percalços e da necessidade que movia o vaqueiro dia-a-dia por

entre as caatingas. Ela sintetiza o processo amplo e complexo de encontro entre o modo de

vida costumeiro do Sertão de Irecê e modernização rural que se espalhou pelo Brasil na

segunda metade do século XX.

O estudo desse encontro permite entender como o modelo político brasileiro do pós-

guerra, orientado pela difusão da pauta do “desenvolvimento nacional”, reconfigurou os

espaços e as relações de produção com vista na difusão do capital no Brasil. Esse modelo se

expandiu durante os governos militares e consolidou numa política econômica autoritária,

elitista e tecnológica, que subordinou as relações agrárias aos setores urbano-industriais por

meio da imposição das relações de mercado sobre as formas/funções de produção e modos de

vida das populações rurais. Esse processo ficou conhecido como modernização conservadora.

A modernização conservadora baseou-se na expansão do crédito oficial, no incentivo a

mecanização das relações de produção, na difusão do assalariamento, na horizontalização e

cercamento das terras, na estruturação de serviços e estudos votados para elevação da

produtividade agrícola e na construção, por parte do Estado, da infra-estrutura básica

(estradas, eletrificação, armazéns, órgãos de desenvolvimento). Essas medidas, porém, não

ficaram restritas ao meio rural e tiveram impacto direto sobre as cidades, alterando sua

estrutura e estabelecendo nossos usos para seus espaços. Paralelo a essas dinâmicas, os

governos militares brasileiros impuseram o silenciamento aos movimentos sociais rurais e

772 Entrevista do senhor Almir Mendes Batista (Almir Vaqueiro)..., 1º momento, 11 de nov/2010.

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301

intelectuais que debatiam propostas para o espaço agrário brasileiro e afirmavam a reforma

agrária como uma necessidade.

As primeiras iniciativas de modernização agrária e urbana do Sertão de Irecê deram-se

ainda nas décadas de 1940 e 1950 e se aprofundaram até a segunda metade da década de

1980. Nesse espaço do interior baiano o capital fez emergir, a partir da década de 1970, um

pólo agrário-urbano e agromercantil de alta produtividade, (baseado na produção de feijão,

milho e mamona) voltado para o abastecimento interno e centralizado na “Capital do Feijão”,

como passou a ser denominada a cidade de Irecê. Da perspectiva da divisão regional do

trabalho, a emersão desse complexo produtivo correspondeu a estruturação de uma

“especificidade regional”, um espaço especial de produção do capital dentro da Região

Econômica do Nordeste, da qual nos fala Francisco de Oliveira, e ficou conhecida como

Região de Irecê.

Como vimos, o Sertão de Irecê era um espaço de povoamento tardio (meados do

século XIX até 1970) localizado sobre o Platô Norte da Chapada Diamantina e suas áreas

próximas. O modo de vida aí desenvolvido se referenciava no costume, na prática imemorial

do trabalho direto com a natureza, no convívio comunitário, na mão-de-obra familiar e no uso

comum da terra. Sua base econômica era essencialmente poliagropecuária de

aprovisionamento e tinha no campo a sua dimensão espacializadora. O campo marcava a

fronteira do Sertão de Irecê. Esse termo, apresentado pelos entrevistados, é carregado de

significado e define para os narradores o estar dentro ou o estar fora de seus espaços de

pertencimento e dos sentidos neles gestados. O campo era resultado da união entre terras de

uso comum e prática comum de uso da terra. Era espaço de vivência e experiência do qual os

sertanejos retiravam parte dos recursos que garantiam o seu sustento e sobre o qual ser

erguiam a roça, as vilas, o curral, a moradia, as pastagens. Era o espaço de trabalho dos

vaqueiros.

Os estudos historiográficos sobre esse tipo de trabalhador têm, ainda hoje, reproduzido

as representações literárias, memorialísticas e folclóricas advindas especialmente do século

XIX e primeira metade do século XX. Nessa abordagem os vaqueiros são definidos como

sujeitos do passado, atrelados ao processo de colonização e expansão das fazendas de gado

pelo interior do Brasil, sujeitos rudes, inexistentes no presente. Predomina sobre sua imagem

a abordagem polarizada do herói miserável. Ora é visto como um desbravador, luso-indígena,

corajoso, livre e conhecedor do mato. Ora emerge como um homem resignado e ignorante,

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pobre, atrasado, subserviente, produto de uma relação de trabalho centralizada pelo “patrão”

ou “fazendeiro”, sem o qual não existe. Atravessamos aqui alguns estudos historiográficos

recentes que criticam essas representações, sem, contudo, superá-las em seu conjunto.

Buscando entender as especificidades desses sujeitos no contexto em destaque,

propusemos a relativização de algumas noções, entre elas, a própria categoria de vaqueiro. A

diversidade laboral dos entrevistados nos conduziu a defender o vaqueiro como uma categoria

social, laboral e identitária. Nesse sentido, muito além de um produto da relação empregado-

empregador, vaqueiro é um “querer ser” dos indivíduos. É uma opção de vida

contextualmente definida, diretamente ligada às relações de trabalho, mas que nunca se reduz

a elas. O estudo sobre as especificidades da pecuária e de seus trabalhadores no Sertão de

Irecê nos permitiu também questionar as categorias de patrão e fazenda.

Acreditamos que essas noções estão ainda hoje impregnadas do discurso euclidiano.

Como vimos, patrão é um termo usado pelos entrevistados para se referir a qualquer criador

contratante, não estando o vocábulo relacionado à existência de um acordo de trabalho fixo.

Entrevistamos vaqueiros que passaram a maior parte da vida cuidando dos rebanhos da

família sem conhecerem um “patrão” – um fazendeiro empregador – no sentido comumente

abordado na bibliografia consultada, outros trabalharam para diversos criadores ao mesmo

tempo.

Por outro lado, os vaqueiros do Sertão de Irecê só passaram a vivenciar efetivamente o

trabalho nas fazendas, vista aqui como espaço particular de criação, a partir da expansão da

modernização rural sobre o Platô. Anterior a esse período era normal que assumissem a

responsabilidade de um rebanho e cuidassem dele de forma quase autônoma em meio ao

campo. Era o campo, e não a fazenda, a referência espacial de trabalho para os vaqueiros do

Sertão de Irecê.

Como na maior parte dos sertões nordestinos, os vaqueiros do Sertão de Irecê eram

sujeitos de grande destaque social. Sua relação costumeira de trabalho, conhecida localmente

como ‘sorte’, permitia-lhes formar significativo patrimônio, por outro lado, o trabalho no

campo lhe garantia autonomia sobre o seu saber, seu tempo, suas sociabilidades e

representações sociais. Esses dois fatores fundamentam o “ser vaqueiro” apresentado pelos

entrevistados. Se o primeiro lhe garantia o acesso às ‘sementes’ de gado, o segundo garantia

sua reprodução. Do ponto de vista do trabalho, as caatingas legitimavam a necessidade da sua

mão-de-obra e a sua natureza especializada, expondo ao mesmo tempo a importância do seu

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303

saber. Era o campo que permitia o desenvolvimento da habilidade e até os acidentes que

comprovavam a prática.

Esses fatores garantiam a sobrevivência dos vaqueiros e ajudavam a delimitar o grupo,

na medida em que permitiam as condições rituais de teste e julgamento público das

habilidades necessárias ao trabalho. Mas, os vaqueiros não sobreviviam unicamente do trato

com o gado. O trabalho no campo era uma das fontes de sobrevivência desses trabalhadores e

deve sempre ser entendido como parte integrante de uma renda familiar que se constituía

também por meio do trabalho nas roças e das pequenas economias domésticas, como a criação

de cabras, porcos, aves e ovelhas.

Por outro lado, os vaqueiros do Sertão de Irecê não eram sujeitos unicamente rurais. O

uso dos espaços urbanos, especialmente a feira livre, era parte essencial do processo de

composição de suas representações sociais. Era aí que firmavam suas amizades,

demonstravam suas habilidades, trocavam notícias, ostentavam suas simbologias (cavalos

bem arrumados, arreios novos, a música, a cachaça) e permitiam ser vistos.

A chegada das novas tecnologias ao Sertão de Irecê, em meados do século XX,

alterouo modo de vida e trabalho vigente, especialmente dos vaqueiros. Os tratores e

caminhões, técnicas de cultivo, a expansão do crédito público agrícola e as relações de

mercado; as agências financeiras e de desenvolvimento agrícola, a abertura e asfaltamento da

Estrada do Feijão, a dilatação das áreas de cultivo e as mudanças urbanas operadas na cidade

de Irecê, elevaram a produção e dinamizaram o escoamento da produção em uma rapidez

ainda não conhecida pelos habitantes locais.

Buscando legitimar essas ações, os governos produziram um discurso científico-

tecnológico-oficial que afirmou a existência de uma “vocação agrícola” para terra e os

homens do Sertão e exaltou a chegada de um novo tempo: o “tempo da integração”, sinônimo

de progresso e produtividade. Esse discurso difundiu novos símbolos (o caminhão, o trator, o

banco, a ciência, o agricultor, o feijão, o técnico agrícola) e anunciou um futuro moderno,

marcado pela presença do Estado e o interligamento com os mercados externos, como forma

de classificar o passado como atrasado e retrógrado.

Essas mudanças atingiram diretamente o modo de vida costumeiro das populações do

Sertão de Irecê, na medida em que obstaculizaram as práticas tradicionais de trabalho,

impedindo também a reprodução de seus sentidos. A forma autoritária com que foram

implantadas essas mudanças desconsiderou seus saberes e suas noções de propriedade,

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304

subtraiu-lhes a autonomia sobre a terra e muitas vezes a própria terra, esquadrinhou e

mercantilizou antigas áreas de uso comum, impôs-lhe novas referências de tempo, posse e

propriedade. Os custos desse processo foram mais elevados para os vaqueiros, uma vez que

esses trabalhadores possuíam uma especificidade laboral e de relação com a terra que os

distanciavam da ênfase agrícola afirmada nas políticas do Estado.

O surgimento de um mercado de terras, a derrubada da caatinga para expansão das

lavouras e o cercamento eliminou o campo, seu espaço de trabalho, causou a redução dos

rebanhos ou o deslocamento dos animais para áreas mais distantes do Platô e impôs a fazenda

cercada como uma das poucas opções de emprego, diminuindo assim as possibilidades de

renda e sustento dos vaqueiros. Ainda nessa linha, o assalariamento substituiu o antigo

sistema de ‘sorte’ dificultando a formação de patrimônio. Os vaqueiros do Sertão de Irecê

passaram a conviver com novas formas de trabalho, agora marcadas pela restrição da

liberdade, pelo controle sobre sua mão-de-obra, seu saber, seu tempo e seu lazer. Essas

alterações proletarizaram o vaqueiro e romperam a engrenagem que dava sustentação às

representações sociais desses trabalhadores.

Dividir a terra e transformá-la em mercadoria foi a estratégia principal que garantiu ao

capital a disciplinarização da mão-de-obra e a elevação da produção, em síntese, o erguimento

da Região de Irecê sobre o Platô Norte Diamantino e espaços vizinhos. Essa estratégia

representou a inclusão da natureza nas instâncias burocráticas do Estado e a

institucionalização de uma forma única de propriedade para o solo e demais recursos: a forma

privada exclusiva. O arame farpado garantiu esse processo e consolidou sobre a estrutura

fundiária a separação de classes que se estruturava no meio social e produtivo. Ele garantiu a

proteção das lavouras e efetivou a separação entre trabalhadores e meio de produção.

Completando esse contexto, a ênfase sobre a agricultura comercial excluiu outras

formas econômicas de sobrevivência rural e deslegitimou outras formas de trabalho que não a

exploração direta do solo. Por meio desses mecanismos, o capital limitou e/ou eliminou a

prática da pecuária à solta, reduziu os rebanhos e condicionou a mão-de-obra das famílias ao

trabalho agrícola. Esses processos impuseram aos vaqueiros a necessidade de elaborar

estratégias que garantissem a continuidade do seu ofício.

Conhecemos trabalhadores que buscaram essa continuidade por meio do deslocamento

constante com os rebanhos em busca de novas áreas de campo. Alguns desistiram da função

temporariamente, por não aceitarem o trabalho em áreas cercadas, outros migraram para áreas

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pecuárias distantes, como Goiás ou Minas Gerais, vivendo aí experiências diferenciadas de

trabalho. Existiram ainda aqueles que tentaram se manter realizando trabalhos esporádicos de

condução dos rebanhos para fora do Platô, ou cuidando dos pequenos rebanhos que

permaneciam em áreas cercadas.

Entre os entrevistados identificamos ainda alguns que organizaram em seus quintais

pequenos currais e até hoje cuidam de suas poucas vacas. Um deles se dedica a produzir

artesanato em couro como cordas e peças de trabalho para os vaqueiros de fazenda, outro

ainda hoje mantém um curral em plena área urbana. Há ainda os que aceitaram o

assalariamento e buscaram trabalho nas fazendas cercadas. O traço que une a história de vida

desses homens é o esforço contra o processo de marginalização social ao qual foram

submetidos, a partir da luta por se manterem próximos à prática que lhes dá sentido à vida: a

lida com o gado.

Em nosso exercício de ouvir esses trabalhadores, encontramos a vida cotidiana

como a dimensão da existência a partir da qual o homem sente e experimenta o mundo,

determinada por fatores internos e externos aos indivíduos. As experiências vivenciadas no

momento conflituoso de expansão das relações capitalistas sobre o Sertão de Irecê,

descortinam outras versões históricas que tanto negociam como questionam o texto oficial. As

versões históricas dos trabalhadores se fundamentam em outros modos de trabalho e de

tempo, outras relações de vizinhança, em sentidos diferentes para a terra, para as plantas, para

os animais, para o homem.

As narrativas orais não apresentam heróis, não se situam entre o bem e o mal,

apenas relatam o vivido entre o real e o desejo, entre o que foi e o que deveria ter sido. São

elas que nos mostram a importância do “saber” as artes do trato com o gado, de um terno de

couro bem vestido, de reconhecer um rastro, de laçar ou mesmo, a importância do grito do

vaqueiro. Suas referências espaciais estão ancoradas na lida diária do trabalho nos quintais, no

campo, nos currais, nas fazendas cercadas, nas roças, na feira livre, nas pequenas casas de

enchimento, no “o Morro do Calango”, “no Riacho do Ferreira”, “na capuêra”, “na

queimada”, “no Tanque Velho”. Lugares de lembranças que emergem sob formas narradoras

de outra história, com outros protagonistas, sem, contudo, deixar de reconhecer os benefícios

trazidos pela modernidade.

Delas não deixou de emergir a saudade da beira da aguada, dos amigos falecidos ou

dispersos pelo mundo devido ao cruel processo de cercamento das terras. Mas, também elas

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nos mostraram as elaboradas “formas de suportar” o “estranho” no presente, as artes de

significar a memória por meio dos objetos e lugares. Dessa incursão orientada pela voz,

enquanto veículo da história do vivido, surgiram sujeitos de história, homens que buscaram

silenciosamente defender (e continuam defendendo) suas práticas e convicções de mundo a

partir das condições de sobrevivência que lhes estão disponíveis, em um momento de grandes

mudanças em suas relações de trabalho. O trato com essas narrativas e o os sentidos por elas

gestados, demonstram uma memória essencialmente coletiva e laboral, autônoma e resistente,

produto de uma manipulação intencional das lembranças. Nela se fazem presentes o hoje e o

ontem.

A memória dos vaqueiros do Sertão de Irecê ancora-se no trabalho com o gado no

campo como referência de liberdade, de autonomia, de coletividade e lazer, de saber e de

originalidade grupal. Ao se definirem, negam para si as condições atuais do “ser vaqueiro”

como o salário, o tempo cronológico, a ausência do lazer, a fazenda, a super exploração e a

ausência de prestígio social. Esse exercício de alteridade está em consonância com a produção

de uma leitura temporal recortada entre o “antigamente”, ou “de primêro”, e o “hoje em dia”.

O tempo passado é visto pelos entrevistados como momento original, moral e laboralmente

positivo. O “de premêro” é o tempo do respeito e da união entre os colegas e vizinhos, tempo

das relações comunitárias, tempo do campo, da ausência do medo e da violência, tempo da

juventude, tempo em que a natureza não tinha preço. É o tempo em que o viver no Sertão

oscila entre a fartura e a fome.

O tempo presente dos vaqueiros entrevistados se define como tempo das facilidades

materiais e de sobrevivência, da presença das máquinas, da aposentadoria, das facilidades de

transporte, da falta de respeito e da violência. É também o tempo deslegitimador (mas não

eliminador) do ser vaqueiro, devido a presença das fazendas cercadas e o fim do campo. O

trabalho nas fazendas não exige dos trabalhadores atuais o saber e a coragem de outrora,

facilitou a lida com os animais ao mesmo tempo em que sobrecarregou o trabalhador de

funções. O tempo presente é marcado pela saudade e pela chegada das limitações físicas,

embora não possamos atribuir às narrativas uma característica saudosista. Para a maior parte

dos vaqueiros, a expansão da agricultura comercial trouxe benefícios para a vida das

comunidades, como a abertura das estradas, o crescimento das cidades, a chegada dos

serviços médicos e educacionais.

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O avanço da modernização conservadora eliminou o Sertão de Irecê como realidade

espacial vivenciada. A chegada das relações capitalistas substituiu o costume como referência

social de uso dos espaços por novas dinâmicas de base urbana e redefiniu o próprio espaço. O

Sertão, no entanto, teimosamente resiste nos fragmentos materiais e memoriais e seus antigos

habitantes, lugares de memória a partir dos quais ele se recria e se redesenha. O Sertão de

Irecê é hoje um resto material, simbólico e funcional, que explica o passado na medida em

que representa um fragmento dele, que bloqueia o trabalho natural do esquecimento,

construindo uma lembrança que remonta a um sentido não mais vivido em sua totalidade.

Esse sentido, como que lutando contra o tempo, marca presença nos pequenos espaços, nas

práticas, nos quintais, no artesanato, na oralidade, no uso comum das pequenas áreas ainda

não desmatadas, no zelo pelas antigas ferramentas de trabalho, no jaleco ou mesmo no chapéu

que teima em não sair do corpo.

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Lista de Fontes

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Antônio Corrêa Araújo – “Licuri” – Morador da Vila Amaniú, município de Sento-Sé. 61 anos, vaqueiro, poeta e agricultor. Entrevista concedida em Jussara na residência de José Estevão dos Santos (Zé dos Morrinhos) no dia 03 de novembro de 2010, totalizando 1h, 10min, 17seg.

Francisco Mendes Batista – “Francisquinho do Véi Otílio” ou “Chico França” – Morador da Vila de Recife, município de Jussara. 77 anos, antigo vaqueiro, artesão e agricultor. Entrevista concedida na Vila de Recife: 1º momento realizado na residência de Almir Mendes Batista

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(Almir Vaqueiro) no dia 13 de outubro de 2010; 2º momento realizado na sua residência no dia 01 de novembro de 2010, totalizando 2h, 28min, 32seg.

Guilhermino Pereira da Silva – “Guilhermino” – Morador da cidade de João Dourado. 81 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 18 de agosto de 2011, totalizando 2h, 58min, 05seg.

Hermes José da Silva – “Véi Herme” – Morador da Vila de Recife, município de Jussara. 71 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado no dia 11 de outubro de 2010; 2º momento realizado no dia 14 de outubro de 2010; 3º momento realizado no dia 16 de outubro de 2010, totalizando 3h, 21min, 24seg.

Jairo José Benício – “Benício” ou “Jairo Finim” – Morador da cidade de São Gabriel. 71 anos, vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência no dia 07 de outubro de 2010, totalizando 1h, 29min, 56seg.

José da Silva Neto – “Zizinho” – Morador do povoado de Tanquinho, município de Lapão. 66 anos, vaqueiro, matador de boi, agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 13 de setembro de 2011; 2º momento realizado em 24 de setembro de 2011, totalizando 3h, 52min, 01seg.

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Juarez José de Brito – “Véi Juarez” – Morador da cidade de São Gabriel. 73 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência: 1º momento realizado em 09 de outubro de 2010; 2º momento realizado em 15 de outubro de 2010, totalizando 2h, 43min, 55seg.

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Reinaldo Oliveira Santos – “Reinaldo de Lôro” – Morador do povoado de Lagoinha, município de Canarana. 67 anos, vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 07 de janeiro de 2012, totalizando 1h, 41min, 07seg.

Reinaldo Pedro de Souza – “Reinaldo de Zé Pedro” – Morador do povoado de Lagoa Velha, município de Canarana. 72 anos, criador de gado. Entrevista concedida em sua residência no dia 07 de janeiro de 2012, totalizando 59min.

Samuel Juvêncio Rocha – “Samuel” – Morador da cidade de São Gabriel. 85 anos, aposentado. Entrevista concedida em sua residência no dia 20 de outubro de 2010, totalizando 49min, 50seg.

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Sinobilino Francisco Nunes – “Sinó” – Morador do povoado de Poço, município de Uibaí. 86 anos, antigo vaqueiro e agricultor. Entrevista concedida em sua residência no dia 26 de agosto de 2011, totalizando 1h, 53min, 27seg.

Viana Batista de Oliveira – “Viana Vaqueiro” – Morador da cidade de Jussara. 75 anos, agricultor e criador, antigo vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência no dia 10 de novembro de 2011, totalizando 1h, 19min, 35seg.

Wilson José da Silva – “Gilson Vaqueiro” – Morador da cidade de Jussara. 65 anos, vaqueiro. Entrevista concedida em sua residência no dia 15 de janeiro de 2011, totalizando 36min, 57seg.

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THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História. São Paulo: EDUC, vol. 15, abr. 1997, p. 51-84. VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. VIANNA, Urbino. Bandeiras e Sertanistas baianos. 1ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. Disponível em: <http//:www.brasiliana.com.br/obras/bandeiras-e-sertanistas-baianos>. Acesso em 20 de abril de 2011.

VIEIRA, Natã Silva. O cotidiano dos vaqueiros do sertão nordestino nas músicas dos cantadores aboiadores. Salvador: UFBA, 2006 [Monografia de Graduação].

VILLA, Marco Antônio. Vida e morte no sertão: história das secas no nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, Instituto Teotônio Vilela, 2000.

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Caderno de Fontes e Documentos Complementares

Romance Cara Preta Alvaçam e o Novilho da Serra773

Leitores leiam este caso E prestem bastante atenção É o caso de um touro bravo “Cara preta alvação” Que venderam para Viana Mas serviu de confusão No céu não tinha luar A noite era muito escura Foi quando apareceu Osvaldo Querendo pegar uma mula Que só pegava na bebida Ou então vaqueiro azula Então o dia amanhecendo Os vaqueiro se ajudaram Foram atrás de mulinha Logo perto entraram Mas correram o dia todo Por muita sorte pegaram Luis ficou na fazenda E os outro juntos viajaram Quando chegaram na manga Os vaqueiros combinaram Para pegar o “cara preta” Mas a ele não avisaram Quando o outro dia chegou Se ajudaram os vaqueiros Arrearam seus cavalos Tomaram pinga primeiro No arrojo da altiva 773 Escrito por: Luis Alves dos Santos. “O original deste romance foi escrito no dia 30 de Agosto de 1970, em Manga (povoado) de Irecê”. Reproduz-se aqui a versão digitada deste nome à qual tivemos acesso, acreditamos, no entanto, que exista uma cópia escrita original que pode apresentar alterações em alguns termos.

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Cavalo ficou ligeiro Seguiu o vaqueiro Adalberto Mais Manoel de Maria Osvaldo foi mais Almir Bem cheio de cana fria Silvério foi mais Viana Anízínho também ia Chegaram em Lagoa Nova Procuraram logo saber Então disseram :Vaqueiros, Tá duro de resolver Já tem mais de quinze dias Que ele aqui não vem beber Depois falou aos vaqueiros Vou dar minha opinião Vocês procuram os carreiros Da lagoa do João Se não passou por ali Tá bebendo é no grotão Seguiu toda a vaqueirama Com esta nova noticia Procuraram os carreiros Logo encontraram a pista Puxaram pelos cavalos Até que puseram a vista Almir botou o senteiro Com vontade de pegar Mas levou uma romada Que não pode enxergar Tirou o cavalo fora Deixou Viana passar Viana entrou calado Caboclo sem coração Deixando pau arrancado Entendido o touro de vista Montado em seu alazão

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Desceram de serra abaixo Em procura do baixo O cavalo encostado Empurrando o novio Passaram em lugares quentes E depois em outros frios No passar de um apertado O “cara preta” virou Viana tirou o cavalo O touro se acampou Esperava os companheiros Mais ninguém lhe acompanhou O vaqueiro aboiava Mas o touro acampava O novio dava cada tudo turro E depois se amoderava Porém ninguém chegava Nos versos do aboiador Ele aboiando dizia: “Na estrada em que eu viajo Também viaja Maria Deus menino e São José Santo Antônio é o meu guia” Entonce ficou pensando Tá na hora de matar Mas eu me acho sozinho Não convém me arriscar Deixo para outra vez Quando agente te encontrar Viana afastou o cavalo E ficou pensando ali: Eu não sei quem é que teve Com Osvaldo e Valmir Se não fosse uma atrapalha Estava comigo aqui

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Assim tirou o cavalo A procura de um carreiro Quando caminhou um pouco Entrou com os vaqueiros Que disseram: atrapalhamos Por que perdemos o aceiro E ficou assim combinado Deixando um dia no meio Vamos fazer outro campo Daqui até o riacho feio A gente entre entra pelo Recife Com os cachorros no reio Quando foi no dia marcado Entraram pelo Batista Procurando os carreiros Para fazer uma revista Rastejaram o dia todo Mais nunca botaram as vista Chegaram em Riacho feio Encontraram ali com Ramilo Com vinte e cinco cachorros Uma coisa sem estilo Ficando quinze no mato Que os vaqueiros não viram Ramilo mora sozinho Criação por lá na berra Mora dentro de uns cafundó Em um buquerão de serra Está com as pernas finas De cavar e não tirar terra E pode ficar lá mesmo Que ninguém vai por reparo Morando nos cafundó Sozinho este canáro No meio da cachorrada Galo lá nunca cântaro

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Ele estava zangado Com a cara da barra funda Disse: aqui hoje chegou Uma turma de vagabunda Eu não gosto de vaqueiro Que tem cantiga imunda Entramos em conversação Para o índio amassar Demos uma tora de fumo Que ele adora fumar Então ele veio as boas Fez café para nos tomar Depois disse: o “cara preta” Esta noite andou aqui Turrando pela malhada Turro igual eu nunca vi Eu pensei que era o cão Tive medo até de sair Almir disse a Viana: Amanhã nós vamos embora Deixa este marruá Que a gente pega outra hora Já tem muito gado preso Nós estamos com demora Viana disse: isso ai ta certo A gente não pode demorar Vamos arrumar a viagem Até amanhã não da pra ficar Vamos deixar, outra hora Nós pegamos o marruá Disseram vamos embora Enquanto os cavalos sara Vai ficando uns em Recife Viana vai pra Jussara Cuidar lá dos seus trabalhos Que hoje a vida é cara

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Almir mora em Recife E os outros moram por perto Tem um que chamam negão Mas o nome é Adalberto Osvaldo mora na Toca E o nego é no deserto Anizinho mora na ilha Silvério mora na manga Luís no pé de tábua Manoel Rocho na pandanga Por que no tange dos versos Meus colegas não se zanga Viana chegando em Jussara Convidou Luís, seu irmão Para lhe ajudar a pegar O “cara preta” alvaçam E Luís logo lhe respondeu: Não me falta imaginação Já na hora da viajem Viana tornou convidar Então Luís respondeu: Resolvi, não vou mais lá Quem pega peso é balança É quem pega marruá Viana seguiu sozinho Mas tem seu colegas certo Quando chegou no recife Convidou logo Adalberto Que mora no outro lado Na fazenda do deserto Adalberto disse a Viana: Eu já estava esperando Para mim já demorava Eu já estava avechado Arriou o seu cavalo E foram logo viajando

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Quando chegaram na Manga Convidaram então Silvério Mandaram chamar Luís Montado no amarelo Luís mandou lhe dizer: Lá na Salina eu espero Seguiu este pessoal Viana e os companheiros Uma turma de homens sério Somente quatro vaqueiros Todos eles bem montados Vestido em coro mateiro Chegaram num carrasco velho De umburana rasteira O “cara preta” espantou Que eles viram a poeira Botaram logo os cavalos Ficou só a bagaceira Correram no giro norte Depois deram pro nascente O “cara preta” alvançam Tá ficando diferente Todo pintado de sangue Da rabada até os dentes Deram uma volta por baixo Subiram para o poente O navio se vendo apertado Foi quebrando pau pela frente Os vaqueiros todos sãos Não tinha ninguém doente A farra tava era boa A gente até admirava Esperando correr bem mais Já o “cara preta” virava Dirigiu pro lado de Viana E com o punhal se encontrava

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Levou muitas punhaladas E ferido se retirou Viana falou pros outros: “Cara preta” admirou Tornou dizer: venha cá E o novio valente voltou Foi pro lado de Silvério Como onça verdadeira Baixou para pegar o cavalo Encontrou uma juremeira O boi saiu se torcendo Pra cima da catingueira “Cara preta” quando viu Os vaqueiros reunidos Reparou bem reparado Se Daniel tinha vindo Eu não estou vendo ele Mas pode estar escondido Os vaqueiros combinaram Não é bom a gente matar No meio desta montanha Fica ruim carregar Saltaram todos de vez E resolveram pegar Pegaram o “cara preta” Uns nos pés, outros nas mãos Uns na venta, outros no chifre Botaram o boi no chão Amarraram pelo pescoço E chegaram no mourão Cara preta amarrado Começou a lastimar Não tenho raiva de ninguém Por que não posso matar O culpado foi meu dono Que não soube me criar

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Estava um dia amarrado Lá pelas vargem do me Quando passou um gordão Disseram: é Danié! Se eu soubesse disso agora Tinha passado e pé Eu vivia as minhas mensagens Sem dever nada a ninguém Comendo no pé da serra Bebendo e passando bem E até mesmo a Daniel Eu não devo um vintém No meio da vacaria Quando eu saía por lá Ele vinha com silada Com jeito pra me pegar Como nunca dava certo, ele disse: Vou deixar meu marruá Nunca me tirou vingança Mais agora ele vinga Me tirando lá da serra Pra eu morrer lá na caatinga Sem ter feito malvadeza Até mesmo mulher me xinga Deve estar bem satisfeito Não precisa trabalhar Já vendeu o “cara preta” Vai acabar de enricar Por quem tem muito negócio Dinheiro pouco não dá Deixamos ele amarrado E fomos pro Riacho Feio Pegar outro touro bravo Que tinha naquele meio Que nunca viu um curral E nem conhecia reio

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Morava em cima da serra Sem conhecer benefício Confiado em ser valente Aí na lei de Maurício Vivendo na liberdade Sem toca e sem serviço Chegamos em Riacho Feio Dormimos para o outro dia Quando foi na madrugada O touro bravo bebia Nós ficamos avechados Que amanhecesse o dia Arriamos os cavalos Logo de manhã bem cedo Falando tudo baixinho No sistema de segredo Pro novio não espantar Se tivesse nos rochedo Seguimos acima, reunidos Nos carreiros procuramos Luís foi mais Adalberto Silvério e Viana andando No meio dum baixado O touro ia passando Viana correu na frente E nós corremos atrás Ele disse: Adalberto, Segue o pode rapaz! A caatinga aqui é dura. E o touro corre demais Botamos os cavalos neles Como botaram em Alfredo Os vaqueiros tudo animado Não ia ninguém com medo Quando o touro acampou Nós desmanchemos o enredo

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Deu pro lado de Viana Querendo fazer injustiça Mais encontrou um punhal Naquelas carnes maciça Do pescoço para o mamilo Que logo entrou sem preguiça Viana disse aos outros Cuida, pega o marruá As palavras nem foram ditas Já via a turma fechar Botaram ele no chão Trataram de amarrar Deixamos ele ali E fomos pro alvação Quando nós chegamos lá Estava feito um leão Andou lá uns vaqueirinhos Futucaram de ferro Mas nós dissemos nada Atendendo a educação Considerando aos pais E a alguns dos irmãos E onde tem homem sério Deve ter mais atenção Assim mesmo arriamos De carreta e cambão Tiramos o laço dele Com as guiada na mão Cara preta foi a manga Rebocado no ferrão Passamos ali um dia Demos lá pro pé da serra Buscar outro barbatão Para acabar com a guerra Enquanto não aparece Outro bravo na terra

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Quando nós chegamos lá O novilho estava deitado Nós todos opiniamos O bicho está enfezado Mais não senhor, foi engano Ele estava acomodado Arriamos o novilho De careta e chocalho E ficamos preparados Para ver o desbandalho Os vaqueiros todos alegres Como jandaia no galho Soltamos o barbatão E botamos no aceiro Ele fez uma furinha Mais depois saiu ligeiro Só nos deu muito trabalho Nas entradas dos carreiro O romance é popular Por favor ninguém reclama O novilho derradeiro Era do se André Gama Assim trata quem conhece E é dever, ninguém reclama Resolvemos este campo Com poderes de Jesus Cristo O homem quando resolve Acostuma fazer isto Fizeram muita anarquia Que eu mesmo não tinha visto Demos por resolvido Viana e os companheiros Com os poderes de Jesus Cristo O bom Jesus verdadeiro Saimos todos em paz Esta turma de vaqueiros

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Leitores vão desculpando Se algum erro encontrar Que eu sou muito ocupado Não tenho tempo de estudar Mais conheço bem assim E agora vou terminar Deixando aqui o meu nome De falar ninguém me priva Por que no tanger dos versos A minha memória é viva Mais embaixo está assentado É Luis Alves da Silva.

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Toada Casa Velha774 Êê êi! Ôôô Ôôô! Ôôô Ôôô! (vocalização) Saudade! Abraço o gado! Ôô boi! Êêê! Ô gado! Ôôô! E, já! Voltei pra rever uma casa Que fui nascido e criado Nada vi do que dexei Tava tudo transformado Chorei buscando a lembrança E as emoções do passado Ôô vida de gado! Ôô! Também chorei maguado Vendo a casinha singela Nem meu pai, nem meus irmão Moravam mais dento dela É triste entrar ne’uma casa Sem ninguém morando nela Ôô vida de gado! Ôôi! Senti um chêro de vela Quando eu cruzei o batente Vi um oratório sem santo E as flores mucha na frente Às vez querendo dizer Que aqui não mora mais gente Ôô vida de gado! Ôôi! Achei o taco (pedaço) do pente Que mamãe se pentiava Vi o rusário e a santa E altar qu’ela rezava Chorei perguntando a santa Se mamãe inda voltava 774 Recitado pelo vaqueiro Antônio Correia Araújo, popular Licuri, durante a entrevista.

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Ôô vida de gado! Ôôi! Na parede ainda estava A marca do paio (paiol) do milho E o lugar do pote velho E o forno de assar setilho E o papêro que mãe Fazia o mingau do filho Ôô vida de gado! Ôôi! Vi um ispêio (espelho) sem brilho E os pano velho na mala E um retrato disbotado Fui oiar (olhar) perdi a fala Gritei ninguém respondeu Voltei chorando pra sala Ôô vida de gado! Ôôi! Ôôô! Ôô Ôô! Ainda vi a bengala E um pedaço do sapato E o cupim rueno o resto Da muldura de um retrato Parei pra pensar comigo O quanto o tempo é ingrado Parei pra pensar comigo O quanto o tempo é ingrado Vida de gado! Ôô Ôôêê! Uh! Chá!

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Propaganda produzida pela SUDENE

Fonte: SUDENE. Sudene informa. Recife – PE: Indústria Gráfica de Recife, v. 14, n. 1, jan/mar., 1976, p. 17.

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Revista ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros

Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 11.

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Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 5.

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Fonte: ALFA – Revista dos Municípios Brasileiros. Salvador: Editora Clodomiro Alves Ltda. Ano IV, nº 21, 2º Trimestre de 1974, p. 7.

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Maciço do Feijão

Fonte: SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONOMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Evolução territorial e administrativa do Estado da Bahia: um breve histórico. Salvador: SEI, 2003, p. 15 (Série Estudos e Pesquisas, nº 56).

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Imagens utilizadas durante a realização das entrevistas

IMAGEM 1

Seu Grande, vaqueiro, s/d. Uibaí, Ba. Fonte: ROCHA, Osvaldo de Alencar; MACHADO, Edimário Oliveira. Canabrava do Gonçalo: uma vila do Baixo Médio São Francisco. Brasília: Ed. do Autor, 1988.

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IMAGEM 2

Fonte: Revista Brasileira de Geografia, Abril-Junho 1941, v. 3 n.2 p. 433.

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Ficha de dados básicos dos entrevistados

Entrevistado: ___________________________________________________

Nome popular do entrevistado:_____________________________________

Idade:_____________________Estado Civil: _________________________

Números de filhos: ________________________________

Quantos residem com ele? __________________________

Início da profissão de vaqueiro:______________________

Ainda trabalha como vaqueiro? _____________________

Rendas atuais:___________________________________

Outras profissões:

________________________ano___________

________________________ano___________

Escolaridade: _____________________________________________________________

Local de origem: __________________________________________________________

Endereço atual: ___________________________________________________________

Telefone: ________________________________________________________________

A quanto tempo mora nesse endereço?: _________________________________________

Já morou em outros lugares (cidades, povoados, fazendas)?

_______________________________________________de __________até __________

________________________________________________de__________até___________

Participação social do entrevistado com a comunidade: (trabalhos realizados com a comunidade, festejos, eventos, etc.)

___________________________________________________________________________

___________________________________________________________________________

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Roteiro de entrevistas

MOMENTO 1

Ser vaqueiro

1 – O senhor pode me falar um pouco sobre sua profissão?

Como assim? Importância dada a profissão

2 – Para o senhor o que significa ser um vaqueiro?

Trajetória

3- Como o senhor começou o trabalho de vaqueiro?

Quando? Onde?

4 – O senhor já trabalhou em outros “serviços” além de vaqueiro?

Quais? Quando? Onde? Já possuiu (possui) ou cultivou (cultiva) terra? O que acha do trabalho na roça?

Procedimento inicial: Esclarecimento e assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Objetivo – Compreender os elementos (simbólicos, temáticos e materiais) significadores do cotidiano dos trabalhadores vaqueiros.

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Espaço e Costume

5- Como era a vida das pessoas antigamente aqui na Região de Irecê? (Caso necessário usar referência local)

Formas de vida e trabalho (trabalhos comuns, relações de vizinhança e parentesco) Uso das terras e da caatinga Criação do gado e geografia social Importância do campo para o vaqueiro Até onde ia o campo?

Trabalho, campo e cotidiano

6- E sobre o trabalho do vaqueiro?

Ferramentas de trabalho (o gibão, o cavalo, o ferrão, o cachorro, etc) Horários de trabalho Formas de trabalho (funcionário, aluguel de mão de obra, trabalho “por conta”, etc) Patrões x empregados: autonomias e obrigações Serviços realizados e obstáculos do dia-a-dia Migração com rebanhos (novos locais de moradia, montagem do curral, da casa,

alimentação) As “ciências” do vaqueiro na “pega do boi” Bois valentes (biografia de vaqueiros e bois) As ferras: o momento do trabalho Doenças nos animais (práticas de cura) Alimentação “Seres” do mato (imaginário) Exemplos ou histórias de “pegas de boi” ou transporte de boiadas Trabalhos individuais e coletivos dos vaqueiros: relações de solidariedade As farras

7 – E o pagamento?

Formas de pagamento (a “sorte”, o salário): diferenças e vantagens As ferras: o processo de “pagamento” Registros dos animais nascidos Mudanças nas formas de pagamento

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Tempo da memória

8 - O que o senhor sente quando lembra do tempo em que trabalhava no campo ?

Saudades Lembranças marcantes

MOMENTO 2

“Campos”: sinais do fim

Sinais do fim do campo

1 - O senhor pode me falar um pouco mais sobre o campo? (retomar características centrais do tema “campo” para aprofundamento no decorrer da conversa)

Existem campos hoje?

2 – Por que o campo acabou/diminuiu?

3- Como o senhor sabia que o campo estava acabando?

Estratégias de permanência: como os vaqueiros faziam para continuar trabalhando no campo?

Os primeiros sinais de instalação de uma fazenda ou área de cultivo Exemplos de fazendas instaladas em antigas áreas de pastoreio na região O acesso a água para os rebanhos com a chegada das fazendas ou áreas de cultivo Quem se beneficiava com o fim dos campos? As cercas de arame farpado e o trabalho do vaqueiro

O território dos campos: práticas da sobrevivência

4- Como ficou o vaqueiro sem o campo?

Formas de sobrevivência e outros trabalhos

Objetivo: Compreender as formas de uso dos campos pelos trabalhadores, as relações de disputa entre os vaqueiros e os agentes da modernização rural em torno dos territórios dos campos e os reflexos dessas disputas sobre as formas “costumeiras” de vida e trabalho em torno da pecuária.

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Como permanecer como vaqueiro apesar do fim dos campos? O fim dos campos trouxe algum benefício para os vaqueiros? Anos finais do campo

5 - Como os vaqueiros faziam para continuar cuidando do gado mesmo com a diminuição dos campos?

Estratégias

6 - E o gado foi levado pra onde?

Locais e formas de deslocamento dos rebanhos e dos trabalhadores Levavam as famílias?

7- Como o senhor sabia que era hora de mudar o rebanho?

Como o senhor fazia para sair de um lugar para outro? Como sabia os melhores lugares para onde levar o gado?

Os “novos agentes”

8 - O que o senhor lembra sobre os gaúchos775?

9- E o banco?

Os empréstimos O senhor pegou empréstimo? Tinha empréstimo para criação de gado? O que o senhor plantou? Como pagou? Contato do Banco com as comunidades (reuniões, informações sobre a venda ou

necessidade de registrar as propriedades, etc) A EBDA – Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola: função e controle técnico O “incramento” e a prática de registro das propriedades: processo e sentido Fim dos empréstimos. Por que? Tipos de produção

10- E depois do “incramento” das terras, como é que se fazia para poder botar uma roça?

775 Se refere a grupos familiares e empresariais, especialmente, das regiões Sul e Sudeste do Brasil, que migraram para Região de Irecê no período de modernização do campo, adquiriram terras, geralmente grandes áreas, ou integraram a malha comercial. Algumas famílias permaneceram na região após o auge do feijão, outras retornaram para seus lugares de origem ou migraram para outras regiões.

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Posse x propriedade Quem ficou com as grandes áreas ? Quem ficou com as pequenas áreas?

11- Os “gaúchos” conversavam com as pessoas para saber se alguém trabalhava numa área antes de comprar as terras?

O convívio entre as comunidades locais e os “gaúchos” Exemplo de algum conflito sobre desocupação de terra

12- O que mudou na região de Irecê depois dos empréstimos do banco?

Na vida dos agricultores locais e das comunidades. Sobreviver na/da roça hoje. Endividamento

13- O que o senhor fez depois que acabou os campos?

Ser vaqueiro hoje

14- O que o senhor acha de ser um vaqueiro hoje em dia?

15 - Existe diferença entre vaqueiros de campo e os vaqueiros de hoje em dia (vaqueiro de fazenda cercada)? Qual?

16- O senhor acha que os vaqueiros “vão se acabar” um dia?

O vaqueiro está sendo esquecido? Como assim? O que é preciso fazer para que o vaqueiro não seja esquecido?

17- O que o senhor sente hoje sabendo que trabalhou tantos anos como vaqueiro?

Finalização da entrevista Esclarecimentos sobre o processo pós-transcrição – Termo de Doação Agradecimentos

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezado Senhor ______________________________________________________

O senhor está sendo convidado a participar, como entrevistado, do projeto O que farpa

o boi, farpa o homem: campo das memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985),

coordenado pelo pesquisador Alécio Gama dos Reis e desenvolvido no Programa de Pós-

Graduação em História Mestrado do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da UEFS

– Universidade Estadual de Feira de Santana.

O projeto tem a intenção de entrevistar 20 (vinte) vaqueiros da Região de Irecê, com

idade superior a 50 (cinqüenta) anos. A partir dessas entrevistas buscaremos estudar as

experiências vividas por esses vaqueiros durante o processo de finalização do campo

(derrubada da caatinga para plantio), entre os anos de 1943 e 1985, período de grandes

mudanças na forma “antiga” de lida com o gado. Acreditamos que ao fim da pesquisa

poderemos ajudar a esclarecer as práticas, estratégias e sentidos produzidos por esses

trabalhadores na luta diária pela manutenção do seu modo de trabalho, assim como as

memórias desse grupo social sobre esse momento histórico.

A participação nesse projeto é voluntária e não está condicionada a nenhuma espécie

de retorno financeiro ou material. O objetivo maior dele é valorizar as formas de vida e

trabalho, experiências e práticas dos vaqueiros da Região de Irecê e registrá-las em uma obra

(dissertação) para que possam ser conhecidas por outras pessoas. Caso sinta-se a vontade

para conosco, o senhor poderá marcar os dias, locais e horários para a realização da entrevista,

podendo estes ser alterados a qualquer momento de acordo com as suas necessidades. A

entrevista é desenvolvida em forma de conversa, com questões abertas baseadas em temas

que tenham a ver com a forma de trabalho e de vida dos vaqueiros, com a pecuária e os

campos. Desta forma, é importante destacarmos que a entrevista não tem o objetivo de

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analisar se existem respostas “verdadeiras” ou “não verdadeiras”, buscamos apenas ouvir

do senhor o que tem a nos dizer sobre os temas acima. Caso necessário a conversa pode ser

realizada em um ou mais momentos. Caso o senhor nos autorize, por meio da assinatura da

Autorização para gravação de entrevista, o seu relato será gravado e transcrito (escrito no

papel da forma como foi gravada), em seguida, o texto (transcrição) e a gravação serão

apresentados ao senhor para que verifique se o documento escrito está de acordo com a

gravação.

Em todo e qualquer momento da pesquisa poderá o senhor:

1) solicitar esclarecimentos sobre a forma como serão feitas as entrevistas, usos e

paradeiros de depoimentos, objetivos, período de desenvolvimento da pesquisa ou quaisquer

outros fatores não tenha dúvidas.

2) recusar-se a participar, retirar ou incluir partes, dados ou informações; solicitar

correções, refazer trechos ou retirar seu consentimento de uso dos depoimentos; proibir ou

autorizar a publicação de todo o texto ou partes dele.

Para que isso aconteça basta sua manifestação, sem penalização ou prejuízo algum

para o senhor. Somente após a sua permissão, a partir da assinatura do Termo de Doação, os

depoimentos ou trechos dos depoimentos, poderão ser colocados em publicações, artigos, no

texto parcial ou final da dissertação.

As entrevistas gravadas, as transcrições, termos, autorizações e fichas produzidas no

decorrer dos trabalhos e análise de seu depoimento, serão guardados conosco pelo período de

10 (dez) anos (contados a partir da dada da realização da entrevista) e considerados de caráter

sigiloso. A partir desse período essa documentação poderá, desde que autorizada pelo senhor,

ser transferidas ou doada para alguma instituição cultural ou de pesquisa

(museu/arquivo/fundação) que se interesse, aceite e se responsabilize pela conservação dos

registros. Caso isso não ocorra, os documentos referidos permanecerão sobre a nossa guarda

por tempo indeterminado. Enquanto estiverem sobre nossa responsabilidade, o acesso às

gravações, transcrições, termos, relatos, autorizações e fichas, assim como seu uso (exposição

de trechos, citações, referências de qualquer natureza) em ensaios, textos, artigos, folhetos,

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TCCs – Trabalhos de Conclusão de Curso – ou monografias, será restrito a pesquisadores

acadêmicos, devidamente identificados. Para esse acesso estes pesquisadores deverão nos

apresentar por escrito seus interesses, objetivos e formas de trabalho com a documentação

acima citada.

Em todos os casos, garantimos que em nenhum momento (durante ou após a

pesquisa), texto ou produção serão expostos seus dados pessoais ou nomes, a menos que seja

da sua vontade. Quando necessário, optaremos por usar nomes inventados nos textos e artigos

produzidos. Desta forma, acreditamos estar reforçando a segurança dos dados e das

informações prestadas pelo senhor.

No entanto, apesar destes cuidados, não excluímos o risco de que pessoas, entidades

ou instituições, por meio de roubo, furto, fraude de informações ou invasão dos espaços

privados alheios, se apossem integralmente ou de partes das entrevistas gravadas ou

transcritas, das fichas, termos ou autorizações e tentem usá-los de forma indevida com a

finalidade de causar danos de diferentes naturezas, retaliações, acusações, calúnias ou outros

prejuízos contra pessoas ou instituições mencionadas nos seus depoimentos, inclusive o

senhor. Vindo a ocorrer qualquer das situações acima, nos comprometemos e nos colocamos

a disposição para fornecer todas as informações (escritas ou orais) e/ou documentos que

ajudem no esclarecimento dos fatos e na preservação da privacidade, honra e imagem do

senhor e de seus familiares, inclusive judicialmente, caso necessário.

É possível ainda que durante a realização da (s) entrevista (s) algumas questões ou

temas venham a produzir situações como constrangimento ou lembranças ruins, ou ainda que

sensações como saudade, choro, tristeza ou recordações surjam involuntariamente, ou seja,

sem que tenham sido planejadas. De qualquer forma, nos comprometemos em usar o bom

senso e o respeito às decisões e solicitações do senhor, ouvir/registrar o que o senhor se sentir

a vontade para nos falar. Os temas ou questões não adequadas, ou que vierem a produzir

sensações desagradáveis, poderão ser retirados a qualquer momento.

Tendo apresentado todas essas esclarecimentos, acreditamos que o projeto O que farpa

o boi farpa o homem ajuda a valorizar a história e o trabalho dos vaqueiros, não só da região

de Irecê, mas de todo o Nordeste. É por isso que convidamos o senhor para participar desse

projeto na condição de entrevistado. Seu depoimento nos ajudará a registrar, a conhecer e a

Page 359: o que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias dos ...

359

escrever uma obra histórica (dissertação) sobre um momento da vida e o trabalho dos

vaqueiros, que servirá de base para outras pesquisas e para o próprio uso por parte de sua

comunidade. Sua participação permitirá que as memórias e experiências desses trabalhadores

não sejam esquecidas e que possam ser conhecidas por outras pessoas futuramente, gerando,

por fim, um reconhecimento da importância dos vaqueiros para a Região de Irecê.

Se o senhor se sente esclarecido quanto aos procedimentos, objetivos, riscos e

benefícios que podem trazer sua participação nessa pesquisa, e concorda em participar a partir

do fornecimento do seu relato, por favor, se identifique no local abaixo reservado. Para maior

segurança este documento será assinado em duas vias, uma das quais ficará sob sua posse.

Por fim, nos comprometemos em dar ao senhor um exemplar da dissertação em versão final.

_________________________ ______/______/_______

____________________________ ______________________________

Identificação do entrevistado Identificação do pesquisador responsável

Informações para contato com o pesquisador:

Pesquisador responsável: _____________________________________________

Endereço Residencial: ________________________________________________

Endereço no campo de pesquisa: _______________________________________

Telefones para contato: _________________________________________________

E-mail: ______________________________________________________________

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360

TERMO DE DOAÇÃO DE GRAVAÇÃO (ÕES)

Pelo presente termo eu, ___________________________________________________, dôo

ao pesquisador Alécio Gama dos Reis, responsável pelo projeto de pesquisa O que farpa o

boi, farpa o homem: campo das memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985),

estudante do curso de mestrado História do Programa de Pós-Graduação da UEFS, do

Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, a(s) gravação(ões) produzida(s) a partir

do(s) depoimento(s) feito(s) por mim no(s) dia(s)

_______________________________________em ________________________________

com duração de ________________________________________________, para que possa

ser transcrito e utilizado pelo pesquisador acima referido na elaboração da sua dissertação

de mestrado. Tenho ciência de que as informações por mim prestadas poderão ser incluídas,

excluídas, usadas integralmente ou em partes em produções escritas (textos, artigos,

dissertação) publicadas ou não, ou citadas oralmente em congressos, seminários ou quaisquer

outros eventos que o referido pesquisador venha a participar, resguardadas identificações

(nomes) e dados pessoais. Estou ciente ainda de que todos os documentos produzidos serão

arquivados sobre a responsabilidade do pesquisador Alécio Gama dos Reis e mantido à

disposição de outros estudiosos acadêmicos interessados no estudo da pecuária, da vida e do

trabalho dos vaqueiros dos sertões nordestinos, desde que devidamente identificados seus

interesses, objetivos e formas de trabalho com a documentação. Conheço o conteúdo do

referido documento e confirmo sua fidelidade ao depoimento que concedi.

_________________________ ______/________/_________

_________________________________

Identificação do entrevistado.

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361

AUTORIZAÇÃO PARA GRAVAÇÃO DE ENTREVISTA(S)

Pelo presente documento, eu, _______________________________________________

autorizo o pesquisador Alécio Gama dos Reis, a gravar a(s) entrevista(s) que por mim

será(ão) concedida(s) e integrá-la(s) ao projeto O que farpa o boi farpa o homem: campo das

memórias dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985), do qual participo na condição de

depoente voluntário.

________________ ___/____/_____

_______________________________________

Identificação

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362

AUTORIZAÇÃO DE IDENTIFICAÇÃO

Pelo presente documento, eu, _______________________________________________,

participante voluntário do projeto O que farpa o boi farpa o homem: campo das memórias

dos vaqueiros do Sertão de Irecê (1943-1985), de responsabilidade do pesquisador Alécio

Gama dos Reis, autorizo o mesmo a IDENTIFICAR a(s) entrevista(s) por mim concedida(s),

ou trechos desta(s) com meus dados, inclusive nome jurídico, social ou apelido e a

PUBLICA-LOS, sempre que necessário, em sua dissertação, artigos, seminários ou

congêneres. Estou ciente de que estes dados serão de acesso e reprodução livre, desde que

citada a fonte.

________________ ___/____/_____

_______________________________________

Identificação

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Alguns dos vaqueiros entrevistados

Almir Vaqueiro Guilhermino

Jairo Fininho Luiz Vaqueiro

Reinaldo de Lôro Véi Juarez

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Reinaldo de Zé Pedro Roxinho Vaqueiro

Zé dos Morrinhos Zizinho