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O que é o Património Ferroviário? 1. Lugar do Património Ferroviário no contexto dos novos patrimónios. Depois da 2.ª Guerra Mundial, o reconhecimento internacional das diferenças sociais e culturais das comunidades nacionais e mundiais fez emergir outros tantos vestígios, identidades e sinais da herança colectiva. É a época da afirmação do conceito de bens culturais, que a UNESCO e os países emergentes da 2.ª Grande Guerra acabaram por sancionar, com a Convenção de Haia (1954). Como consequência integraram-se mais tipologias identitárias e memórias colectivas na construção do património cultural. Cresceu o leque de valores: naturais, científicos, técnicos, sociais, industriais e intangíveis ou imateriais. O património passava a ter uma função social acumulada às suas exigências técnicas: procurava harmonizar conflitos entre passado e futuro, entre ocidente e oriente e entre elites culturais e classes trabalhadoras, isto é, a afirmar-se como um património inclusivo. As atitudes de salvaguarda e conservação afirmam-se, embora num mundo em mudança, onde as próprias identidades, memórias e valores são postos em causa pela evolução da sociedade e pelo ritmo da transformação tecnológica. As questões da salvaguarda e conservação do património histórico-artístico dominaram as preocupações dos técnicos e dos governos até à Convenção de Haia e à Carta de Veneza (1964). A partir dessa charneira temporal, o surto internacional dos novos patrimónios exigiu uma constante actualização de conceitos, a identificação das características específicas das novidades patrimoniais e dos instrumentos modernos de conservação e de valorização. Afirmavam-se valores mais amplos – sítios da natureza e paisagens, jardins históricos, património urbanístico, vestígios de indústrias antigas e objectos industriais, arquitecturas contemporâneas e vernáculas, património ferroviário, património intangível, etc. Tantos patrimónios quantas as realidades económicas, sociais e culturais do Planeta Terra. A descoberta do património como «recurso cultural», a partir dos Anos 80 e 90 do século XX, contribuiu para harmonizar, numa sociedade cada vez mais global, o património com a modernidade, impondo-se a salvaguarda dos bens culturais no contexto de conceitos como o de desenvolvimento e da defesa do ambiente, promovendo-se o usufruto social e humano da diversidade dos bens culturais, estimulando a produção de emprego nos sectores do património cultural e a valorização económica dos referidos recursos. Novas estratégias passaram a ser utilizadas para garantir a perpetuação dos bens culturais herdados do passado e da sua transmissão ao futuro. A própria educação muda as suas estratégias quanto à forma de lidar com o património cultural, apropriando-se e estimulando a investigação e a interpretação dos bens culturais, procurando gerar sintonias com os diferentes grupos etários e modos de vivência dos valores conservados na paisagem ou expostos em museus. Refira-se, no entanto, que a mudança de cenário do património cultural, nos últimos cinquenta anos, não foi uniforme em todos os países e continentes, tendo dependido também, pelo menos até às intenções da Convenção de Faro (2005), do estádio de desenvolvimento das diferentes realidades mundiais: assimetrias Norte-Sul; países desenvolvidos / países

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O que é o Património Ferroviário?

1. Lugar do Património Ferroviário no contexto dos novos patrimónios.

Depois da 2.ª Guerra Mundial, o reconhecimento internacional das diferenças sociais e

culturais das comunidades nacionais e mundiais fez emergir outros tantos vestígios,

identidades e sinais da herança colectiva. É a época da afirmação do conceito de bens

culturais, que a UNESCO e os países emergentes da 2.ª Grande Guerra acabaram por

sancionar, com a Convenção de Haia (1954). Como consequência integraram-se mais tipologias

identitárias e memórias colectivas na construção do património cultural. Cresceu o leque de

valores: naturais, científicos, técnicos, sociais, industriais e intangíveis ou imateriais. O

património passava a ter uma função social acumulada às suas exigências técnicas: procurava

harmonizar conflitos entre passado e futuro, entre ocidente e oriente e entre elites culturais e

classes trabalhadoras, isto é, a afirmar-se como um património inclusivo. As atitudes de

salvaguarda e conservação afirmam-se, embora num mundo em mudança, onde as próprias

identidades, memórias e valores são postos em causa pela evolução da sociedade e pelo ritmo

da transformação tecnológica.

As questões da salvaguarda e conservação do património histórico-artístico dominaram as

preocupações dos técnicos e dos governos até à Convenção de Haia e à Carta de Veneza

(1964). A partir dessa charneira temporal, o surto internacional dos novos patrimónios exigiu

uma constante actualização de conceitos, a identificação das características específicas das

novidades patrimoniais e dos instrumentos modernos de conservação e de valorização.

Afirmavam-se valores mais amplos – sítios da natureza e paisagens, jardins históricos,

património urbanístico, vestígios de indústrias antigas e objectos industriais, arquitecturas

contemporâneas e vernáculas, património ferroviário, património intangível, etc. Tantos

patrimónios quantas as realidades económicas, sociais e culturais do Planeta Terra.

A descoberta do património como «recurso cultural», a partir dos Anos 80 e 90 do século XX,

contribuiu para harmonizar, numa sociedade cada vez mais global, o património com a

modernidade, impondo-se a salvaguarda dos bens culturais no contexto de conceitos como o

de desenvolvimento e da defesa do ambiente, promovendo-se o usufruto social e humano da

diversidade dos bens culturais, estimulando a produção de emprego nos sectores do

património cultural e a valorização económica dos referidos recursos. Novas estratégias

passaram a ser utilizadas para garantir a perpetuação dos bens culturais herdados do passado

e da sua transmissão ao futuro. A própria educação muda as suas estratégias quanto à forma

de lidar com o património cultural, apropriando-se e estimulando a investigação e a

interpretação dos bens culturais, procurando gerar sintonias com os diferentes grupos etários

e modos de vivência dos valores conservados na paisagem ou expostos em museus.

Refira-se, no entanto, que a mudança de cenário do património cultural, nos últimos cinquenta

anos, não foi uniforme em todos os países e continentes, tendo dependido também, pelo

menos até às intenções da Convenção de Faro (2005), do estádio de desenvolvimento das

diferentes realidades mundiais: assimetrias Norte-Sul; países desenvolvidos / países

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subdesenvolvidos; ritmos e velocidades de desenvolvimento dos diferentes países. No caso

das instituições patrimoniais portuguesas deve reconhecer-se um desenvolvimento mais

retardatário em relação ao surto europeu dos novos patrimónios. Dificuldades de afirmação

dos novos valores entraram em conflito, frequentes vezes, com o prestígio social alcançado

pelos «objectos-relíquia» do património histórico-artístico, que em Portugal dominou,

efectivamente, até meados da década de 90 do século passado.

Todavia, o reconhecimento e a divulgação dos novos patrimónios e da sua importância

estratégica para a cultura e para a sociedade portuguesa irrompem, enquanto movimento

social, sobretudo a partir de 1980, por via do associativismo de defesa do património e do

debate público que conduziu à reforma das instituições (criação do Instituto Português do

Património Cultural e organizações subsequentes). Encontram-se neste caso, a emergência dos

patrimónios industrial e ferroviário, no nosso país.

Antes da consagração internacional do Património Industrial (1976), houve o surto da

Arqueologia Industrial. A sua génese encontra-se relacionada com a transformação da Europa

do pós-guerra, na sequência do Plano Marshall (1947) e da 3.ª Revolução Industrial

(automatização, programação, cibernética e teletécnica). Nessa altura, houve relações muito

profundas entre a Arqueologia Industrial, os investigadores e os promotores da salvaguarda e

conservação do património ferroviário, dadas as relações ambivalentes entre a indústria, a

industrialização e o sistema ferroviário dos diferentes países europeus.

Em Portugal, tanto a arqueologia como o património industrial afirmam-se por via do

movimento associativo e por exposições temáticas, uma das quais, realizada na Central Tejo,

em 1985, contribuiu para a difusão das iniciativas de salvamento e musealização de estruturas

fabris e mineiras, um pouco por todo o país. Nesse mesmo local, realizou-se uma exposição

geral sobre as diferentes vertentes da história e do património ferroviário em Portugal, reflexo

da musealização de bens ferroviários de valor cultural, iniciada, uns anos antes, por via das

Secções Museológicas da CP. Associações relacionadas com os caminhos-de-ferro davam os

seus primeiros passos, como a Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro

(APAC), fundada em 1977.

Note-se que o Património Industrial, enquanto nova categoria patrimonial abrangente,

também se cindiu, a dado momento. A partir da década de 1990, emancipam-se daquele

tronco comum novos valores e bens culturais associados às obras públicas, aos portos, às

minas e aos transportes. Um dos mais consequentes movimentos de emancipação foi a

“invenção” do Património Ferroviário. Nos meados da primeira década do século XXI, tanto o

Património Industrial, como o Ferroviário, estavam a exigir instrumentos de consenso entre os

promotores, os museus e os especialistas. Surge então a Carta do Património Industrial (Nizhny

Tagil, 2003) e a Carta de Riga para o Património Ferroviário (2005), com recomendações de

carácter internacional, destinadas a servir de orientação às políticas de salvaguarda,

conservação e valorização destes dois “universos” da herança cultural mundial.

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Em Portugal, a percepção do valor do património ferroviário também tardou a afirmar-se,

dado que os novos patrimónios só ganharam audiência social e pública a partir do 25 de Abril

de 1974, com a instauração da 2.ª República. Mas tal como na Grã-Bretanha e no estrangeiro,

também em Portugal “The railway captured the imagination of the people as did no other form

of industrial technology”1 – como referiu o director do Science Museum, de Londres (1986-

2000) e Presidente do English Heritage, Neil Cossons – quer pelo “misticismo” da locomotiva a

vapor como forma universal de transporte de grandes massas populacionais, quer pela atitude

de investigação crítica ou amadorística das grandes questões da história e do património

ferroviário (“pré-história” dos caminhos-de-ferro, locomotivas, composições, ferrovias,

equipamento de segurança, regularidade e sinalização, velocidade e conforto, economia em

diferentes contextos históricos, eleição dos caminhos-de-ferro como transporte ecológico do

futuro, capacidade ou volume de transporte).

2. Génese, crescimento e afirmação do Património Ferroviário

A defesa e a conservação do património ferroviário ocorreram, inicialmente, no seio dos

próprios ferroviários (engenheiros, técnicos e operários), como resultado dos acontecimentos

da economia, da sociedade e do ritmo de transformação tecnológica, ocorridos no sector dos

caminhos-de-ferro, depois da 2.ª Guerra Mundial. A identidade e a memória dos caminhos-de-

ferro, desenvolvidas nos anos heróicos da ferrovia eram colocadas, pela primeira vez, em

causa. Na realidade, o Plano Marshall implicou profundas mudanças nos conceitos de

transporte por via-férrea, determinando a modernização das estações e das redes de

circulação, com o advento da cadeia de montagem nas oficinas fabris e da electrificação das

linhas ferroviárias, enquanto organização industrial e sistema de transporte do futuro. O

material circulante encontrava-se, desde os Anos de 1930, perante o impacte da concorrência

rodoviária e, desde o fim da 2.ª Grande Guerra, da aviação comercial.

Se entre 1930 e 1960, se assiste a uma fase de afirmação dos valores históricos da ferrovia, em

geral promovidos pela comemoração dos diversos centenários da abertura das primeiras

linhas ferroviárias europeias, americanas e asiáticas, entre 1960 e 1990 – nesses trinta anos –,

nasce e afirma-se o património ferroviário, ainda sob a influência das atitudes rudimentares de

defesa, salvaguarda e conservação de material circulante ou objectos industriais postos a

recato, em estações ou depósitos desactivados. Nesta fase, tiveram papel relevante

engenheiros dos caminhos-de-ferro, especialistas do património industrial, associações e

grupos de amigos. O surto inicial de museus ferroviários garante uma primeira vaga de

técnicos do património ferroviário.

A partir de 1990, à medida que o património ferroviário consolida a sua afirmação pública,

autonomiza-se como um campo de especialidade multidisciplinar, cujos fundamentos e

coerência interna passam a requerer um maior grau de teorização, enquanto domínio

patrimonial e uma consolidação estratégica, quanto ao papel que possa vir a desempenhar nas

1 COSSONS, Neil, The BP Book of Industrial Archaeology, 3.ª Edição, London: David & Charles, 1975, p. 366

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sociedades do futuro. Os estudos históricos sobre a ferrovia contribuíram para o

destacamento deste novo ramo do saber. A defesa de veículos impôs-se, com especial

relevância, para o universo da tracção a vapor, implicando o desenvolvimento de técnicas de

restauro e de conservação, apenas com um elevado padrão de intervenção em alguns países,

como a Grã-Bretanha2.

A década de 1990 é também a época do envolvimento social dos utentes da ferrovia,

animados por movimentos que recuam aos Anos 60 e 70 do século XX. Manifestam-se contra o

encerramento de linhas ferroviárias e pela defesa dos comboios históricos, enquanto museus

vivos, em linhas preservadas para o turismo ferroviário, quer de carácter lúdico, quer cultural.

A identidade e a memória que até então andou vinculada aos ferroviários transcendem o

universo social restrito dos cultores dos caminhos-de-ferro, afirmando-se no seio das

populações onde os benefícios da circulação ferroviária são postos em causa e, por reflexo dos

debates de opinião pública, no interesse cultural pelo material circulante e pelos museus

ferroviários. Assim, os novos contributos para a consolidação do património ferroviário

provieram da selecção, identificação, incorporação e conservação de diferentes tipos de

veículos nas colecções nacionais, regionais, associativas e dos museus. Houve necessidade de

criar sistemas científicos de classificação para a diversidade dos veículos caídos em desuso,

articulando a informação patente nas organizações ferroviárias com as exigências científicas da

preservação do património, integrando-os no seu novo ciclo cultural de vida, quer se

destinassem aos museus, quer se lhe impusessem pelo dinamismo postulado pela construção

de comboios de valor histórico ou turístico.

Os museus, enquanto instituições emergentes de exposição e investigação do património,

sentiram, por sua vez, a necessidade de responder com outra acção aos novos desafios,

situação que passou a ser evidente, com a renovação do Museu Nacional de York. As próprias

estratégias de conservação do material circulante tendem a mudar, acompanhando o processo

de valorização e de investigação dos veículos. A inventariação impõe-se associada, cada vez

mais, à sociedade da informática. A salvaguarda de linhas históricas e ainda a valorização de

antigas estações (Quai d’Orsay, em Paris, a Estación de Delicias de Madrid ou a estação antiga

de Utrecht) e de oficinas ferroviárias (como aconteceu com o caso da Oficina de Lousado,

integrada no Núcleo Museológico respectivo), constituem-se como agenda para o património

ferroviário, associando contentores (edifícios de arquitectura ferroviária e industrial) e

conteúdos (os bens culturais ferroviários móveis). Desenvolvem-se os estudos da arquitectura

dos caminhos-de-ferro, como uma vertente especializada da arquitectura industrial3.

3. Para uma visão integrada do Património Ferroviário

2 Veja-se a obra clássica de HARVEY, David William, A Manual of Steam Locomtive Restoration and

Preservation, London: David & Charles, 1980. 3 Cf. SOBRINO, Julián, Arquitectura Industrial en España, 1830-1990, Madrid: Catedra, 1996, pp. 159-169.

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Do ponto de vista teórico importa considerar que o Património Ferroviário é um conceito

abrangente dado articular-se com o sistema ferroviário geográfico e territorial e a sua

evolução no tempo histórico (isto é, entre os inícios do século XIX e a actualidade)4. Da fase da

salvaguarda da tracção a vapor evoluiu-se para a conservação do material circulante como um

todo homogéneo, importando a sua representatividade nos museus, enquanto exemplos das

mutações históricas, sociais, técnicas e industriais. As primitivas preocupações desta nova fase,

através das quais se procurou estabelecer a evolução do campo das energias (tracção a vapor,

a diesel e a electricidade), alargaram-se, recentemente, às soluções de transporte das

diferentes fases da sociedade industrial, aos comboios da emigração e da exclusão, ao

conforto ferroviário da sociedade de consumo, às soluções históricas da curta e longa distância

e da pequena e alta velocidade no tempo. Interessa aos tempos actuais as formas históricas da

própria organização e gestão dos caminhos-de-ferro.

O “Património Ferroviário” constitui, por isso tudo, um tipo de herança cultural construído a

partir da história e dos bens da actividade ferroviária, desenvolvidos à escala mundial, desde a

emergência dos caminhos-de-ferro enquanto sistema de transporte. Se em relação à matéria

patrimonial o que está em causa são todos os bens resultantes da actividade ferroviária, cujo

valor se reconheceu socialmente, a questão que urge responder é saber quais os instrumentos

que deve utilizar para a sua inequívoca afirmação como o património ferroviário de valor

cultural.

Tendo, pois, em conta esta ambivalência entre património ferroviário em uso (inerente à

actividade do sistema ferroviário) e a sua valorização enquanto património cultural – aquilo

que definimos como “ciclo cultural” dos bens que entram em desuso – urge dizer que o

património cultural da ferrovia não se esgota em tudo aquilo que se incorporou num museu

ferroviário ou que se definiu como sendo “património museológico ferroviário” (Rosa Gomes5).

O Património Ferroviário, como qualquer outro património cultural, tem uma estrutura

tipológica semelhante à desenvolvida nos restantes campos patrimoniais, dado que se trata de

uma disciplina científica complexa, desenvolvida nas instituições da tutela e estudada por

investigadores especializados, universitários ou não. Em termos de esquema sintético (dada a

natureza deste artigo), podemos dizer que o património ferroviário é tanto o património

tangível, como o intangível ou imaterial. O seu objecto central é a cultura material e imaterial

da ferrovia, enquanto sistema de transporte específico sobre carris, estudada de forma

integrada e contextualizada.

O património tangível, tanto imóvel como móvel, permite a análise histórica e arqueológica da

cultural material. No imóvel incorporam-se as estações de caminhos-de-ferro e as obras de

arte (taludes, túneis, pontes, etc.). Estes objectos afirmaram-se, desde muito cedo, no

4 Cf. HUMBERT, G., Traité Complet des Chemins de Fer, 3 tomes, Paris : Librairie Polytechnique, Ch. Béranger, Éditeur, 1908 e SILVA, Augusto Vieira da, Material das Linhas Ferreas Portuguezas, Lisboa, 1898. 5 GOMES, Rosa, Museu Nacional Ferroviário. Programa Museológico Preliminar, Entroncamento: Comissão Instaladora, Setembro de 2004 (documento dactilografado).

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contexto da defesa e salvaguarda do património cultural, sobretudo os imóveis e monumentos

significativos das mudanças técnicas e arquitectónicas das diferentes fases da industrialização.

Todavia, as implicações financeiras da sua conservação e restauro ou a própria continuidade e

uso das infra-estruturas têm travado a consagração dos valores mais eminentes dessas

notáveis obras públicas e arquitecturas ferroviárias6.

Material das vias-férreas portuguesas

Atendendo à especificidade dos transportes ferroviários, enquanto tal, começou a chamar-se à

atenção para o ramo das infra-estruturas ferroviárias, um dos objectos da arqueologia

ferroviária, que assenta a sua metodologia no estudo da construção da ferrovia e da

estratigrafia dessa evolução, em correspondência e articulação com a organização do trabalho,

com as oficinas e indústrias associadas e com os meios técnicos para garantir a circulação e a

segurança ferroviárias. Neste contexto, saliento o valor patrimonial da Oficina da Creosotagem

do Entroncamento, equipada com tecnologia alemã, inglesa e portuguesa (está última

desenvolvida na Fundição de Belém e instalada no Entroncamento em 1907).

6 A FMNF pretende que os parceiros ferroviários se envolvam na Carta Nacional do Património Ferroviário de Interesse Cultural, como forma de alargamento da sua esfera de acção quanto à identificação e salvaguarda dos valores ferroviários ainda existentes no país, alguns dos quais se encontram classificados como Monumentos e Imóveis de Interesse Nacional e de Interesse Municipal (exemplos: Estação do Rossio; Estação de São Bento; Ponte Maria Pia, no Porto). Cf. FMNF, Programa de Actividades Trianual, Entroncamento, 2010-2013.

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Oficina de Creosotagem - Entroncamento

O monopólio de estudo do material circulante, pelo facto de constituir o centro e o culto

principal dos amigos dos caminhos-de-ferro, ou ainda por ser o aspecto mais vistoso dos

museus, não deve fazer esquecer o papel essencial da conservação e manutenção das linhas

férreas antigas, sobretudo quando elas fazem parte da estrutura dos edifícios ou complexos

museológicos (como é o caso do Núcleo Museológico de Arco de Baúlhe ou do Museu do

Entroncamento).

No campo do património móvel, três grandes áreas tem merecido a atenção dos

investigadores e especialistas: 1.º O planeamento e a conservação do material circulante

(veículos de diferentes sistemas, tracções, épocas e tipologias); 2.º O património integrado das

estações, das oficinas e dos próprios veículos motores e rebocados, esse património encontra-

se integrado em contexto e como resultado do equipamento que lhe foi distribuído e

incorporado, em função das características específicas dos referidos veículos; 3.º o universo da

mecânica (estática e cinética) da organização ferroviária, logística e gestão dos transportes

ferroviários (implicando neste caso informação complementar fornecida pelos arquivos

ferroviários, históricos e correntes).

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Carruagens da Hungria

Dada a especificidade e a dimensão deste património móvel, a opção estratégica da sua

salvaguarda e conservação tem incidido na sua incorporação nos museus É o “património

museológico ferroviário”. O universo destes objectos é gritante e preocupante, pois a sua

escala é desmesurada em função do carácter nacional dos museus, necessitando de uma

revisão – pelo menos no que diz respeito a Portugal – para se iniciar uma classificação

sistemática integrada nas diferentes épocas das ferrovias nacionais e regionais.

Embora, no passado, coubesse aos escritores e artistas a representação dos estados de

vivência e de cultura que os caminhos-de-ferro suscitaram7, tal não significou uma mudança

quanto à percepção da sociologia, da psicologia, da cultura imaterial, das ideologias e das

mentalidades subjacentes à sua história e património. Este recentíssimo campo começou a

desenvolver-se pelo registo das histórias de vida8, sem as metodologias que se impõem no

campo do património intangível, atendendo à memória oral dos participantes vivos da gesta

ferroviária. A Convenção do Património Imaterial da UNESCO data somente de 2003,

afirmando-se como um novo domínio para a interligação dos aspectos da cultura material com

as vivências sociais dos operadores e dos utilizadores dos caminhos-de-ferro, assunto que

7 Sobre este assunto ver a obra clássica de Frederico de Quadros Abragão, Cem Anos de Caminho de

Ferro na Literatura Portuguesa, Lisboa: CCFP, 1956. 8 A Associação de Amigos do Museu Nacional Ferroviário (AMF), através da sua revista O Foguete, tem procurado fazer o registo de histórias de vida de antigos ferroviários, publicando em geral, as suas fotografias e deixando-os falar no discurso directo.

Imagem 1 – “Material das vias-férreas portuguesas” (1898). In SILVA: 1898, Estampa I (parcial)

Imagem 2 – Oficina de Creosotagem. Entroncamento. Foto do autor, 2009

Imagem 3 – Exemplificação do património integrado em viaturas de 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª classe, através de

um desenho do “Material para viajantes do Estado da Hungria”. Cortes longitudinais. Esc: 0,015/m. In

HUMBERT: 1908-T2, 265.

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importa desenvolver no Museu Nacional Ferroviário, no processo de construção actual (nos

casos em que tal é possível) e após a sua instalação a médio prazo, dando azo à uma

investigação apropriada e centrada no conhecimento das pessoas e vivências ligadas à

ferrovia.

Jorge Custódio