O Rádio Como Aparato de Comunicação

6
ESTUDOS AVANçADOS 21 (60), 2007 227 NOSSA organização social, que é anárquica – se é que se pode imaginar uma anarquia da organização, ou seja, uma confusão mecânica e despro- vida de significados, largamente ordenada em torno da complexidade da vida pública –, a nossa organização social, nesse sentido, anárquica, possibilita que se façam e se desenvolvam invenções, que ainda estão por conquistar o seu mercado e por demonstrar a justificativa de sua existência; estamos falando, em resumo, de invenções que não são encomendadas. Assim, a técnica pôde adiantar-se a tal ponto que engendrou o rádio numa época em que a sociedade não estava madura para acolhê-lo. Não era o público que aguardava o rádio, senão o rádio que aguardava o público, e para melhor caracterizar a situação do rádio: não era a matéria-prima que esperava pelos métodos de produção com O rádio como aparato de comunicação Discurso sobre a função do rádio BERTOLT BRECHT A Bailarina do Teatro da Madeleine dança ao som do rádio na praia de Deauville, França, 1926. Foto Agência France Presse

description

Bertolt BrechtRevista Estudos Avançados 21 (60), 2007p. 227-232Tradução de Tercio Redondo

Transcript of O Rádio Como Aparato de Comunicação

  • estudos avanados 21 (60), 2007 227

    nossa organizao social, que anrquica se que se pode imaginar uma anarquia da organizao, ou seja, uma confuso mecnica e despro-vida de significados, largamente ordenada em torno da complexidade da

    vida pblica , a nossa organizao social, nesse sentido, anrquica, possibilita que se faam e se desenvolvam invenes, que ainda esto por conquistar o seu mercado e por demonstrar a justificativa de sua existncia; estamos falando, em resumo, de invenes que no so encomendadas. assim, a tcnica pde adiantar-se a tal ponto que engendrou o rdio numa poca em que a sociedade no estava madura para acolh-lo. no era o pblico que aguardava o rdio, seno o rdio que aguardava o pblico, e para melhor caracterizar a situao do rdio: no era a matria-prima que esperava pelos mtodos de produo com

    o rdiocomo aparato de comunicaoDiscurso sobre a funo do rdioBertolt Brecht

    aBailarina do teatro da Madeleine dana ao som do rdio na praia de Deauville, Frana, 1926.

    Foto agncia France Presse

  • estudos avanados 21 (60), 2007228

    base numa necessidade pblica; eram os mtodos de produo que procuravam ansiosamente pela matria-prima. tinha-se, repentinamente, a possibilidade de dizer tudo a todos, mas, pensando bem, no havia nada a ser dito. e quem seriam esses todos ?

    no comeo, o homem contentou-se com a ausncia de reflexo em torno do assunto. ele olhava em torno de si, procurando por algum lugar onde algo era dito a algum, e buscava imiscuir-se ali e, concorrencialmente, dizer algo a algum. Foi esse papel de representante que o rdio desempenhou em sua pri-meira fase representante do teatro, da pera, da audio musical, de palestras, do caf-concerto, da imprensa local etc.

    desde o incio, o rdio imitou quase todas as instituies existentes que se relacionavam com a difuso do que era falado ou cantado: produziram-se confuso e atritos incontornveis na construo de uma torre de Babel. nesse armazm acstico, podia-se aprender a criar galinhas em ingls e ao som do Coro dos Peregrinos e a lio era barata como a gua encanada. essa foi a juventude dourada de nosso paciente. no sei se ela j acabou, mas, se de fato acabou, esse jovem, que para nascer no teve de apresentar nenhum atestado de competncia, ter de procurar, ao menos doravante, um objetivo na vida. como o homem que se encontra em seus anos de maturidade, quando j perdeu a inocncia, e que se pergunta para que, afinal de contas, ele est no mundo.

    no que diz respeito a esse objetivo de vida do rdio, ele no poder, em minha opinio, consistir simplesmente no embelezamento da vida pblica. Para isso, ele no apenas j se revelou pouco adequado, como tambm a nos-sa vida pblica mostra, infelizmente, pouca aptido para ser embelezada. no fao objees introduo de aparelhos receptores de rdio nos albergues dos desempregados e nas prises (pensa-se evidentemente que, por seu intermdio, poder-se- prolongar a baixo custo o tempo de vida dessas instituies), mas essa no pode ser a tarefa precpua do rdio, a de instalar receptores sob os arcos das pontes, mesmo quando ela traduz um gesto nobre, o de prover aqueles que iro passar a noite ali com o mnimo necessrio, ou seja, com a apresentao dos Mestres-Cantores. aqui preciso tato. tambm, como mtodo para restabe-lecer a afeio ao lar e possibilitar mais uma vez a vida em famlia, o rdio no , at onde eu possa ver, suficiente, cabendo ainda perguntar se o que ele no pode alcanar seria, ao menos, desejvel. Contudo, abstraindo-se a sua funo duvidosa (quem muito traz acaba por nada trazer), o rdio tem uma face, quan-do deveria ter duas. ele um mero aparato de distribuio, ele simplesmente reparte algo.

    e, agora, para ser positivo, ou, em outras palavras, para encontrar o que positivo no rdio, apresento uma proposta para a modificao de seu funcio-namento: o rdio deve deixar de ser um aparato de distribuio para se trans-formar num aparato de comunicao. o rdio seria o mais admirvel aparato de comunicao que se poderia conceber na vida pblica, um enorme sistema de canais; quer dizer, seria, caso ele se propusesse no somente a emitir, mas tam-

  • estudos avanados 21 (60), 2007 229

    bm a receber; ou, no apenas deixar o ouvinte escutar, mas faz-lo falar; e no isol-lo, mas coloc-lo numa relao. o rdio deveria, portanto, sair da esfera do fornecimento e organizar o ouvinte como fornecedor. Por isso, so absolu-tamente positivos todos os esforos do rdio quanto a imprimir nos assuntos pblicos um carter realmente pblico. o nosso governo precisa, tanto quanto a nossa justia, dos servios do rdio. se o governo ou a justia opem-se a tais servios do rdio, agem assim por receio e mostram que se ajustam somente poca em que no havia rdio, para no dizer poca que antecedeu a inveno da plvora. Conheo to pouco quanto os senhores as obrigaes do primeiro- ministro; funo do rdio esclarec-las para mim; entre essas obrigaes dos altos escales do governo, inclui-se a seguinte: fazer uso regular do rdio para inteirar a nao de suas atividades e da justificativa dessas atividades. a tarefa do rdio no se esgota, contudo, na transmisso desses relatos.

    o rdio deve organizar, alm disso, a recepo dos relatos, quer dizer, deve transformar os relatos dos governantes em respostas a questes dos governados. misso do rdio possibilitar o intercmbio. ele, sozinho, pode promover as grandes discusses das empresas e dos consumidores sobre a normatizao dos artigos de consumo, os debates em torno do aumento do preo do po, as dis-putas nos municpios.

    se os senhores tomam isso por utpico, peo-lhes ento que ponderem por que isso utpico.

    no importando o que esteja a empreender, o esforo do rdio deve ser o de se contrapor falta de propsito que torna risveis quase todas as nossas instituies pblicas.

    temos uma literatura despropositada, que no apenas se esfora por no ter nenhum propsito, como tambm se empenha ao mximo na tarefa de neu-tralizar os seus leitores na medida em que ela apresenta todas as coisas e situa-es sem as suas respectivas conseqncias. temos institutos de formao incon-seqentes, que se esforam ansiosamente por oferecer uma formao desprovida de quaisquer propsitos e que tambm no a conseqncia de nada. todas as nossas instituies formadoras de ideologia consideram que a sua principal tarefa a de manter despropositado o papel da ideologia, em consonncia com um conceito de cultura, segundo o qual a formao cultural j estaria concluda e a cultura no careceria de nenhum esforo criativo continuado. no cabe aqui in-vestigar em razo de que interesses essas instituies so inconseqentes; mas, se um invento tcnico, dotado de uma aptido to natural para as decisivas funes sociais, prope-se um esforo to desesperado para permanecer inconseqente, envolvido no entretenimento mais inofensivo, ento surge de modo incontor-nvel a questo sobre a possibilidade de se defrontarem as foras da desconexo por meio da organizao dos desconectados. todo avano nessa direo, por menor que seja, deveria produzir forosamente um resultado natural, que ul-trapassaria o efeito resultante de todas as realizaes de carter simplesmente culinrio. toda campanha com um programa definido, ou seja, toda campanha

  • estudos avanados 21 (60), 2007230

    Para B. Brecht, o rdio deveria sair da esfera do fornecimento e organizar o ouvinte como fornecedor.

    Foto

    ag

    ncia

    Fra

    nce

    Pre

    sse

  • estudos avanados 21 (60), 2007 231

    que intervm efetivamente na realidade, que tem por objetivo a mudana da realidade, mesmo que em pontos de menor importncia, como a destinao que se deva dar aos prdios pblicos, garantiria ao rdio uma atuao incompara-velmente mais eficaz e lhe conferiria um significado social totalmente diverso se comparado com a sua atual postura meramente decorativa. no que diz respeito tcnica que se desenvolve em todos esses empreendimentos, ela se pauta pela tarefa principal de permitir que o pblico no apenas seja ensinado, mas que ele tambm ensine.

    atribuir um carter interessante a esses empreendimentos educativos, ou seja, tornar interessante o que interessa, constitui uma tarefa formal do rdio. ele pode realizar artisticamente uma parte disso, especialmente a parte destinada juventude. ao encontro desse empenho do rdio em configurar artisticamente aquilo que se ensina, viriam ento os esforos da arte moderna, os quais almejam emprestar um carter educativo arte.

    Como exemplo desses possveis exerccios que se utilizam do rdio como aparato de comunicao, fiz comentrios, na semana musical de Baden-Baden, de 1929, sobre o vo de Lindbergh. esse um modelo para um novo empre-go do aparato dos senhores. um outro modelo seria a Pea didtica de Baden sobre o entendimento. trata-se da parte1 pedaggica desempenhada pelo ou-vinte: a da tripulao do avio e a da multido. ele se comunica com a parte do coro instrudo, dos clowns e do enunciador apresentados pelo rdio. atenho-me propositadamente discusso de princpios, porque a confuso no mbito da esttica no a causa da confuso sem precedentes na sua funo fundamental, seno o seu resultado. no se pode, por meio do juzo esttico, eliminar a con-fuso uma confuso muito til para alguns em torno da verdadeira funo do rdio. Posso dizer-lhes que o emprego dos conhecimentos tericos do teatro moderno, isto , do teatro pico, haveria de produzir resultados muito auspi-ciosos.

    nada menos adequado que a velha pera, a qual objetiva a produo de situaes extticas, pois ela depara no ouvinte o homem isolado, e dentre todos os excessos alcolicos nenhum mais pernicioso que a embriaguez taciturna.

    o velho drama da dramaturgia shakespeariana , tambm, praticamente intil no rdio, pois diante do espectador no a multido, o sujeito s e isolado que levado a investir sentimentos, simpatias e esperanas em intrigas cujo nico objetivo ensejar ao indivduo dramtico a oportunidade de se ex-pressar.

    o teatro pico, com o seu carter numrico, com a separao dos elemen-tos, quer dizer, com a separao entre imagem e palavra, e entre as palavras e a msica, e, particularmente, com a sua postura didtica, teria a oferecer ao rdio uma infinidade de sugestes prticas. Contudo, o seu emprego meramente es-ttico, assim como uma nova moda, de nada serviria, e de velhas modas j esta-mos fartos! se a instituio teatral se dedicasse ao teatro pico, representao

  • estudos avanados 21 (60), 2007232

    pedagogicamente documentria, ento o rdio poderia desenvolver uma forma absolutamente nova de propaganda para o teatro, isto , poderia desenvolver in-formao real uma informao imprescindvel. um comentrio assim, intima-mente ligado ao teatro, um valioso e legtimo complemento do prprio drama, poderia desenvolver formas inteiramente novas. seria ainda possvel organizar um trabalho conjunto das organizaes teatrais e radiodifusoras. o rdio pode-ria transmitir o coro ao teatro, bem como levar ao espao pblico as decises e produes oriundas da vontade do pblico que se reuniu em organizaes coletivas das peas didticas etc.

    no vou discorrer sobre esse etc. de propsito, no vou falar das possibili-dades de separar a pera do drama, e ambos do rdio, ou solucionar semelhantes questes estticas, embora eu saiba que os senhores talvez esperem isso de mim, uma vez que os senhores tencionam vender a arte por meio de seu aparato. Mas, para ser vendvel, a arte, hoje, precisa primeiro ser comprvel. e eu prefiro no lhes vender nada; quero to-somente formular a proposta fundamental em tor-no da transformao do rdio num aparelho de comunicao da vida pblica. Isso uma inovao, uma proposta que parece utpica e que eu mesmo caracte-rizo como utpica quando digo: o rdio poderia, ou o teatro poderia; sei que as grandes instituies no podem fazer tudo aquilo que seriam capazes de fazer, tambm no podem tudo o que querem. elas desejam ser abastecidas por ns, ser renovadas, mantidas vivas por meio de inovaes.

    no nos cabe, contudo, absolutamente, restaurar por meio de inovaes as instituies ideolgicas, que tm por base a ordem social vigente. Cabe-nos, antes, lev-las entrega de sua base por meio de inovaes. assim sendo, pelas inovaes! Contra a restaurao! Por meio de propostas que sempre avanam e nunca cessam, visando promover um melhor emprego do aparato em razo do in-teresse pblico, temos de abalar a base social desse aparato, e desacreditar o seu emprego em funo do interesse de poucos.

    Irrealizveis nessa ordem social, realizveis numa outra, essas propostas, que constituem apenas uma conseqncia natural do desenvolvimento tcnico, servem propagao e formao dessa outra ordem.

    nota

    1 Parte, na acepo de componente de uma composio musical, nesse caso, de uma das vozes de um coro. (n.t.)

    Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemo, nasceu em augsburg, alemanha, em 1898, e morreu em Berlim, em 1956.

    traduo de tercio Redondo. o original em alemo Der rundfunk als Kommu-nikationsapparat encontra-se disposio do leitor no Iea-usP para eventual con-sulta.