O rap e a aula: tocando nas diferenças… Sônia Tereza da Silva Ribeiro

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     A proposta de investigação tem perspectivasno campo da formação de professores de música eestudos intermulticulturais, uma temática que temassumido um espaço importante no âmbito do seu

    significado não apenas pedagógico, mas social, cul-tural e político dentro das discussões da área deeducação musical.

    Em setembro de 2007 o grupo citado, dentrode uma de suas atividades formativas, assistiu ecomentou o filme Escritores da Liberdade, dirigidopor Richard Lagravenese. Naquele momento, foramenfocadas questões em diferentes abordagens. Asaber: heterogeneidade cultural, prática educativamusical, reconhecimento e respeito às diferenças,centralidade da cultura, espaços de fronteira,

    multiculturalismo, pedagogia crítica, metodologias deensino, condições de trabalho, valorização do pro-fessor, entre outras. Na dimensão do enfoque des-sas discussões, considerei as experiências vividasno Curso de Música da Universidade Federal deUberlândia e no Núcleo de Estudos de EducaçãoMusical (Nemus), do qual faço parte.

    Este artigo dá ênfase a um recorte de ima-gens desse filme. O objetivo do mesmo é descrever um diálogo de cena e refletir sobre ele tendo comobase fundamentos do multiculturalismo crítico. As re-flexões são motivadas além da literatura, por observa-

    ções de realidades vividas na minha prática profissio-nal e no campo relacional entre educação, cultura emúsica na dimensão da formação de professores.

    Parte-se da seguinte questão: em que medi-da a perspectiva multicultural crítica é capaz deproblematizar questões sobre diferenças no momentoem que o rap entrou na discussão da aula do filmeEscritores da Liberdade? As fundamentações sãotecidas por concepções que mostram que as dife-renças produzidas por práticas de realidades musi-cais diferentes, dizem respeito às construções musi-cais e sociais que os sujeitos aprendem e constroemcontinuamente em suas experiências cotidianas.

    O estudo se justifica tendo em vista que osconhecimentos produzidos permitem ser apreendi-dos e se constituírem de significados para o campoda educação musical. O artigo está estruturado emtrês partes. A primeira apresenta o filme, as ques-tões sobre a cultura e o enfoque sobre o multicultu-ralismo. A segunda dá visibilidade ao rap. A terceiradescreve a cena selecionada tecendo as reflexões.

    Os resultados ajudam entender que a convi-

    vência cotidiana em sala de aula vai depender daconcepção em aceitar que se vive em uma socieda-de que é multicultural, heterogênea, e que por isso

    os sujeitos têm pensamentos e práticas diversifi-cadas. Essa maneira de compreender as diferenças,quer musical ou outra, abre frestas para as mudan-ças e transformações que se desejam na educação

    musical e nas sociedades.

    Multiculturalismo e o filme

    Segundo Hall (1997), as pessoas durante suasvidas criam e interpretam sentidos, e estes sãoconstruídos culturalmente em sistemas de códigosde sentidos. Para o autor, são esses sistemas quedão significado às práticas das pessoas e permitemconferir sentido às práticas dessas pessoas e dooutro. No âmbito desse entendimento, o conjunto detodos esses aspectos representa a constituição dacultura.

    Sob essa compreensão, o autor ajuda a ob-servar cenas do filme no momento em que as ima-gens mostram o modo como os estudantes vivem,se expressam, dançam, cantam e agem. O jeito comovivem nos guetos, como discursam sobre suas na-ções de origem e ainda a forma como sonham econstroem suas aspirações para o futuro.

    No período histórico dos anos 1990, Escrito-res da Liberdade desvela cenas sobre os EstadosUnidos passando por situações de violência civil vivi-da em conseqüência da guerra entre habitantes dediferentes raças, moradores nas cidades grandes.Nas ruas de Hollywood e de outras havia pessoasque estavam em disputa por territórios. Nas situa-ções de conflito das ruas, participavam os grupos deestudantes de diferentes origens, como latinos, ne-gros, chineses e outros.

    O filme sublinha esse ambiente de conflitotanto nas ruas quanto na sala de aula. Mostra a pro-fessora Erin, que estava no início da carreira do ma-gistério e tinha ido trabalhar na Escola Wilson. Dávisibilidade aos guetos, locais de vivência dos estu-

    dantes, que volta e meia discutiam e iniciavam bri-gas entre si.

    Nas primeiras cenas vê-se a professora e alu-nos com dificuldades de comunicação por seremdiferentes. A diferença aparecia em variados aspec-tos, existindo também na dimensão das realidadese identidades musicais. As imagens destacam oesforço da professora para transformar a vida delese da instituição.

    McLaren (1997) chama a atenção para regis-trar que nos Estados Unidos os dados mostram que

    a população de imigrantes vem crescendo substan-cialmente. A população que cresce mais rapidamen-te é a de latinos, incluindo os americanos de origem

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    mexicana, porto-riquenha, cubana e outros. Desta-ca que os jovens latinos têm sido duramente atingi-dos pela erosão da igualdade do ensino na América.

    O autor revela que as condições de vida emque se encontram muitos imigrantes nos EstadosUnidos estão longe de ser a representação de umpaís democrático, com boa qualidade de vida e opor-tunidades de emprego. Ressalta que esse ideal,moldado por redes globais de comunicação, nãodeixa de construir ideologias que colaboram para levar muitas pessoas para lá e atrair principalmente umavasta maioria de imigrantes. Segundo ele, essas re-presentações estão servindo de apoio aos novosmodos de dominação.

     A suposição comum de que o padrão de vida americanoé o mais alto do mundo vem sendo desafiada pela Orga-nização para o Desenvolvimento e Cooperação Econô-mica […] Além da crise do planejamento e serviçossociais, existe hoje a séria preocupação com questõescomo a segurança dos nossos cidadãos. Os moradoresdas cidades vivem agora na assustadora hipertrofiade uma fronteira urbana cuja população é de bandidosarmados (geralmente das minorias étnicas pobresexploradas). […] Existe pouca dúvida de que o estilode vida americano continue produzindo uma subclasseentre muitas comunidades de negros, porto-riquenhos,mexicanos, caribenhos, e da América […] concentradasem guetos urbanos. (McLaren, 1997, p. 18-19).

    Essa citação ajuda a esclarecer alguns dos

    motivos que vêm provocando as situações de forma-ção de guetos, bem como os conflitos gerados entreos diversos grupos das grandes cidades para con-quistar territórios nos espaços das ruas e da própriaescola.

    Hall (2003) identifica o multiculturalismo sobdiferentes abordagens. Uma delas, a crítica, consi-dera a importância de questionar a origem das dife-renças, de criticar a exclusão social e política bemcomo as formas de privilégio e de hierarquia existen-tes nas sociedades contemporâneas. Multicultura-lismo, neste trabalho, é orientado segundo os estu-dos desenvolvidos por Lima (2006), na acepçãointercultural que envolve o reconhecimento do outro,o diálogo entre os diferentes grupos sociais/cultu-rais. Também vislumbra a construção de um projetocomum no qual as diferenças sejam reconhecidas econsideradas.

    Sob essa forma de entender o multicultu-ralismo, avalia-se que ele oferece condições parareconhecer, na escola, que existem diferentes indiví-duos e grupos. Por sua vez, que esses variados gru-pos e indivíduos são diferentes entre si e têm direi-

    tos comuns. Que os sujeitos, à medida que tradu-zem e dão significados aos saberes e práticas de-senvolvidas a partir da relação que estabelecem com

    o outro, tecem novas relações e produzem significa-dos de outras práticas e conhecimentos.

    Visando entender a diversidade cultural em

    práticas de sala de aula, os estudos sobre a culturapodem colaborar. O multiculturalismo, nessa con-cepção, vê a cultura através de suas contradições etensões. A questão da diferença “é sempre o produ-to da história, cultura, poder e ideologia. A diferençaocorre entre dois grupos e deve ser compreendidaem termos das especificidades de sua produção”.(McLaren, 2000, p. 124). Para uma educaçãomulticultural, há ainda uma “idéia de que não se estáverdadeiramente só […]”. (Morin, 2002, p. 98). Essaidéia orienta diretrizes para a formação de professo-res. Sugere que os sujeitos procurem aprender a

    conviver no âmbito dos conflitos e das variadas práti-cas culturais.

    Na perspectiva da formação, os Estudos Cul-turais, segundo Oliveira (2007, p. 54), têm influenci-ado programas e processos de ensino de músicadesde o final do século XX. A autora registra quemuitos dos programas artísticos comunitários, infor-mais, livres, hoje são analisados e vistos como sis-temas que geram processos de formação humana emusical.

     Após o exposto, este estudo enfocará alguns

    aspectos sobre o entendimento de que as práticasmusicais têm condições culturais. Que as represen-tações musicais, a exemplo do rap, são geradas por múltiplos significados (muitas vezes contraditórios emóveis). Essas considerações permitem subsidiar atitudes reflexivas no âmbito da formação de profes-sores de música e ações mútuas com o propósitode superar situações contraditórias e tensas que,em geral, são vivenciadas por estudantes e profes-sores na escola do presente.

    Formação de professores, práticas musicais e

    o rap

    Pensar a música na formação de professores junto de reflexões que transitam em diferentes árease conteúdos é um desafio para educadores musi-cais. As práticas musicais são atividades concretasdas culturas, sendo diferentes os contextos de ensi-no e aprendizagem musical onde estas são produzi-das, expressas, consumidas e divulgadas.

    Segundo Souza (2007), há diversas realida-des musicais e o diálogo entre elas precisa ser esti-mulado, promovido e sustentado. Diz a autora que“a música por estar conectada a etnicidade, ideolo-

    gia, religião, sexualidade, pode aumentar nossacompreensão do mundo. Ela pode ajudar a compre-ender quem somos, e assim nos comunicar com

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    outros”; segundo a autora, “é preciso tratar o diferentecom compreensão e não apenas com tolerância” (Sou-za, 2007, p. 19). A autora destaca, ainda, que a áreada educação musical, no âmbito dos pesquisadores e

    professores e também da Associação Brasileira deEducação Musical, vem acompanhando e publicandotrabalhos que tratam das mudanças sociais, bem comoprocurando referências que possam explicar o ritmodas transformações contemporâneas.

    Frega (2007) sublinha que a nova noção depluralismo cultural em educação musical procuraampliar a compreensão estética e funcional da mú-sica. A autora registra que atualmente, tendo em vis-ta a globalização, os movimentos da sociedade, oscomplexos acontecimentos históricos e sociais, as

    diferentes músicas produzidas pelas sociedades plu-rais se revelam como expressões de manifestaçõeshíbridas e interculturais. E Kraemer (2000) analisaque a educação musical se caracteriza como umaárea que se comunica com as ciências sociais.

    Nesse sentido, as práticas musicais desen-volvidas nas escolas, e fora delas, possuem um con- junto diverso de significados conforme a aprendiza-gem que os diferentes grupos as construíram nassuas culturas. Esses múltiplos significados de quea música pode se constituir em diferentes espaçosculturais, inclusive a escola, ajudam a desvelar as-

    pectos para que professores compreendam a diver-sidade como elemento que constitui as culturas.

    Segundo Habermas (1983), quando os sujei-tos dos processos educativos escolares perceberemas diferenças e aí se interessarem em compreender a formação das próprias identidades culturais quedesenvolvem, começarão a dar novos sentidos e sig-nificados sobre essas expressões no âmbito da prá-tica educativa. Isso representa um ponto importantepara ser discutido na dimensão da formação de pro-fessores, no sentido de subsidiar ações pedagógi-

    cas que considerem as diferenças culturais e a di-versidade musical nos contextos escolares cuja ca-racterização se revela como plural e diversa.

    No que diz respeito ao rap, importante citar que como prática musical ele se fez presente emvariadas imagens do filme, não apenas naquela queserá foco da reflexão do presente estudo. O rap serevelou como exemplo de uma representação con-creta de um dos meios materiais e simbólicos deconstituição das culturas.

    Nas imagens observadas, os estudantes, vi-

    vendo em situações de fronteiras, o praticavam e oconsumiam. No âmbito desse exercício iam experi-mentando determinados estilos e formas de ritualizar 

    a realidade e o próprio processo de identificaçãocoletiva e móvel desse estilo.

    Essa maneira de compreender e fazer os sons

    da rua foi influenciada pelos modos de significação epela forma como a música circulou coletivamente oucomo foi consumida por eles e pelos outros. A músi-ca de periferia dos Estados Unidos dos anos 1980provocou uma força dentro da sociedade. O som dosguetos se abriu intensamente com o rap que pediaespaço e voz por meio de um ritmo forte e de umapoesia que narrava considerações sobre a culturadas ruas e da vida nos próprios guetos. Muitos jo-vens passaram a consumir essa música dentro efora dos Estados Unidos.

     As narrativas musicais do rap  destacam a

    poesia sobre uma base rítmica que, naqueles anos1980, em Nova Iorque, era o funk e o soul, segundoDutra (2006). A autora analisa que a poesia recebeuma melodia com extensão próxima da fala e fazdesenhos rítmicos respeitando o compassoquaternário. O refrão marca o tema geral da música.Há utilização de ruídos, colagens de sons e trechosde músicas antigas. As mensagens mostram aopressão que sofrem os indivíduos marginalizados eas lutas com as quais convivem. As idéias das men-sagens sugerem a busca de alternativas para achar caminhos que mudem as condições que perpetuam

    a falta da liberdade.

    O rap, segundo Silva (1998), é um gênero mu-sical muito conhecido. É heterogêneo. Para os gru-pos de jovens de diferentes origens, ele participa deuma desterritorialização que transforma a rua emum não-lugar. Um gênero de muitos e diferentes sons,colagens, vozes e ruídos. Em cada espaço em queé produzido, sincretiza-se com matrizes culturaisvariadas.

    Nas imagens do filme, outra observação foievidenciada. De um lado, os estudantes e a profes-

    sora deram importância ao rap. Por outro, os profis-sionais da educação tinham uma tendência a cons-truir discursos acerca de que os praticantes do gê-nero eram representados por jovens agressivos, compouca capacidade para se concentrar nos estudosou conseguir concluir os cursos que iniciavam.

    Dando seqüência ao estudo, a próxima partetrará para observação o recorte de uma cena tiradado filme Escritores da Liberdade.

    Tocando nas di ferenças…

    Há no cotidiano social e educacional a pre-sença de diferentes realidades musicais. Fundamen-tando-se no multiculturalismo crítico este estudo

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    descreve e observa alguns trechos do diálogo entrea professora e estudantes, tirados de imagens dofilme. São reflexões sobre diferenças quanto ao tipode música, gosto musical, ídolos, músicas ensina-

    das e aprendidas na escola, entre outras. As avalia-ções ajudarão a entender que, por tudo isso, as ques-tões culturais precisam ser consideradas como im-portante na formação de professores. Elas represen-tam elementos para se mudar a prática pedagógicaque se quer mais crítica.

    Disse a professora Erin aos estudantes:

     – Tive uma idéia. Nós vamos estudar poesia. Quemgosta de Tupac Shakur? […] Pensei que haveria maisfãs […] Mandei imprimir a letra desta música. Eu queroque ouçam esta frase que coloquei no quadro […] oque o autor faz é bacana.

     Alguns estudantes começam então a recitar e cantar os versos que já estavammemorizados.

    No entanto o diálogo foi permeado de tensõese conflitos.

     Após essas falas a tensão continuou. Houvetumulto.

     A prática musical do rap representava umaprática concreta, social e cultural conhecida dos gru-

    pos da escola. Constituía-se como uma identidademusical mestiça entre os jovens da sala vivendo emsituações de fronteiras e exclusão social. Represen-tava uma produção que tinha sentido dentro das re-presentações advindas da própria história dos estu-dantes e da formação e divulgação do gênero musical.

     Ao entrar na sala de aula, o rap serviu de opor-tunidade à comunicação entre a professora e os es-tudantes. De um lado, as imagens mostraram queos estudantes conheciam a música. De outro de-monstraram que, do ponto de vista dos estudantes,a professora estaria agindo indevidamente ao trazer 

    para a realidade da escola o rap, que em princípionão era parte da história nem musical nem social daprofessora e escola.

    Houve reação à proposta pedagógica. Elamexeu com as representações concretas e simbóli-cas dos estudantes no local em que essas diferen-ças são geradas e onde os significados sãoconstruídos.

    Segundo os fundamentos do multiculturalismocrítico, é possível examinar que a professora, ao ter a idéia, buscou-a por meio de significados. Um de-

    les diz respeito àqueles inseridos nas representa-ções que a música constrói no âmbito das maneirasde pensar e narrar dos grupos. Por meio do rap os

     jovens expressam e narram sobre o que pensam eagem. É possível refletir que a maneira de narrar obtida pelos ensinamentos de Tupac oferecia aosestudantes uma permissão para divulgar para a so-

    ciedade o quanto desejavam ampliar a consciênciasocial e política acerca das desigualdades nas soci-edades em que se vive. A forma de pensar e narrar dessa prática vem também da história do próprioTupac Amaru Shakur.

    Tupac Shakur (16/6/71–13/9/1996), ou 2Pac, ousimplesmente Pac, foi um rapper , ator, poeta e ativistasocial. O mais influente rapper  dos Estados Unidos da América. Seu primeiro nome foi Lesane Parish Crooks,porém sua mãe alterou logo após o nascimento,mudando para Tupac Amaru, que significa em quéchua“serpente resplandecente” e é uma homenagem ao líder revolucionário Tupac Amaru II. Shakur é palavra árabe

    que significa “grato a Deus”. Suas músicas tratavamda violência, desigualdade racial. (Wikipédia, [s.d.]).

    Mas a professora pergunta: Quem gosta deTupac Shakur?

    Refletir sobre essa indagação permite enten-der que a expressão traz no seu âmbito uma consi-deração que vem do gosto musical daqueles jovens.Nesse sentido, a professora trouxe para a aula es-truturas de sentimento que tornam viável aquela pre-ferência de produção musical. Segundo Bakhtin,(2002) não existe consciência fora de um determina-

    do sistema de signos. Então a relação que a músicaestabelece com os estudantes é mediada pelo con-texto sociocultural no âmbito da construção de suasformas de sentir e gostar.

    Os fundamentos do multiculturalismo críticomostram que as formas de sentir, expressar e gos-tar também produzem significados. Ao ter a idéia deselecionar um rapper importante como 2Pac, a pro-fessora pensou em alguém significativo para o temada aula e para os estudantes em sua maioria. Exa-mino que ela buscou sentido em elementos que serelacionam àqueles inseridos nas representações que

    a música constrói no âmbito das maneiras do jovemgostar, apreciar e consumir as músicas de um ídolo.São representações advindas dos sentimentos depertencer, se identificar e ser fã do músico.

    Uma outra abordagem sobre essa reflexãomostra que o multiculturalismo crítico permite des-velar que as narrativas musicais podem produzir sig-nificados móveis ou diversificados conforme o con-texto em que são abordadas. O rap não significouuma identificação musical única ou homogênea dasala toda. Ele permitiu produzir sentidos variadossobre as imagens, os espaços e narrativas confor-

    me a diversidade existente entre os grupos da sala econforme as maneiras como os estudantes expres-sam as diferenças na cena.

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    Frith (1997) analisa que na ligação entre osconceitos de música e de identidade, o enfoque estácolocado no movimento e no sentido do espaço deidentificação. Essa natureza plural, diversa e móvel

    da música existe por ela estar vinculada à realidademulticultural constantemente em movimento na so-ciedade.

    Visando considerar que as narrativas permi-tem oferecer pistas para os professores conhecer os estudantes, observe a citação:

    Se as narrativas dão significados às nossas vidas,precisamos entender o que são essas narrativas ecomo elas vieram a exercer tal influência sobre nós enossas alunas e alunos. […] toda reivindicação desubjetividade emprega uma narrativa que reconheceaspectos éticos e temporais do saber humano. Ela

    emprega uma sucessão de eventos política, histórica eeticamente significativos. (McLaren, 2000, p. 162).

    Fundamental refletir também sobre uma outraabordagem acerca dos conteúdos curriculares e ti-pos de música que devem ser oferecidos pela esco-la. As imagens do filme tornaram visíveis que as ex-periências iniciais da professora em aulas anterio-res tinham base em práticas pedagógicas advindasdo modelo dos conteúdos prontos. Mas ela podeobservar e entender que o modelo não era significa-tivo para os alunos e que parecia contrário ao mundodeles.

     A idéia de utilizar o conteúdo narrativo-musi-cal do rap para a aula foi uma alternativa mais apro-ximada que a professora buscou para tentar substi-tuir o modelo instrucionista. Mas a reação de estra-nhamento foi imediata.

     – Você não faz a menor idéia do que está fazendo aí nafrente!

     – Você já deu aula antes?

    Nesse momento, essas falas permitem con-siderar os significados já elaborados pelos alunos e

    que dizem respeito às representações que estudan-tes constroem, também histórica e socialmente,acerca dos conteúdos a serem ensinados na esco-la, bem como de metodologias a serem utilizadas.Essa cena oferece visibilidade para se discutir oenfoque teórico e metodológico das disciplinas curri-culares e que são constantemente problematizadose ressignificadas em cursos de formação de profes-sores que pretendem uma formação mais significati-va e crítica.

     – A branquela quer ensinar rap pra gente.

    Quanto à idéia de identificação e processo deapreensão do conhecimento musical, observo que o jovem, ao dizer a frase, tinha a representação de

    que aos jovens o rap pertenceria e só a eles caberiaa caracterização do seu saber e do seu ensino. Taisrepresentações sobre essa fala também dizem res-peito às diferenças. As diferenças entre a marca

    musical dos jovens mestiços e marginalizados re-presentados pelo rap com a de outra marca musicalque é da professora branca, classe média, repre-sentada por tipos musicais diferente deste.

    Finalizando, examino um outro elemento quediz respeito à intenção da professora de dar valor aos sons plurais das culturas. No âmbito dessa in-tenção observo o movimento dos sons de sair dasruas e ir para a instituição oficial escolar. Para analisá-lo é necessário compreender que, no âmbito dessedeslocamento, se desenvolvem possibilidades paraa construção de novos significados musicais, peda-gógicos e culturais. No meu ponto de vista, a signifi-cação e ressignificação que o rap tem enquanto sen-tido de narrativa, de conteúdo, prática musical e pen-samentos, podem ser deslocadas conforme as situ-ações do seu uso, concepção e envolvimento comos estudantes.

    Para encerrar, destaco que o exercício da re-flexão é algo que está sempre em formação e abertoao debate. No presente momento representa um re-corte sobre algumas considerações possíveis quepodem ser apreendidas e se constituírem de signifi-cados para o campo da educação musical.

    Considerações f inais

     Após descrever o diálogo da cena e desenvol-ver reflexões tendo como base fundamentos domulticulturalismo crítico, o estudo permitiu sublinhar que a perspectiva multicultural crítica é capaz deproblematizar questões sobre diferenças nas ima-gens em que o rap entrou na discussão da aula dofilme Escritores da Liberdade.

    Essa concepção, ao enxergar a cultura atra-vés de suas contradições e tensões, pode desvelar 

    que a questão da diferença tem significados advindosdas histórias dos sujeitos e das variadas formas queeles têm de se expressar musicalmente e cultural-mente. Por conseguinte, as diferenças produzidaspor práticas de realidades musicais diferentes dizemrespeito às construções musicais e sociais que ossujeitos e suas histórias produzem e aprendem con-tinuamente em suas experiências e vivências cotidi-anas.

    Nesse aspecto, as reflexões mostraram que,segundo os princípios do multiculturalismo, a dife-rença é produto da história e cultura. Por isso pode

    ser compreendida e observada em termos dasespecificidades de sua produção e dos significadose representações que envolvem essa produção.

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    Na perspectiva da formação de professoresde música, verifico que formar hoje é um exercíciocontínuo, dinâmico e desafiador. No meu ponto devista, um dos desafios maiores continua sendo o deformar para a diversidade, para o multicultural, paraa complexidade. Este estudo deu visibilidade aosdados empíricos observados na cena. De semelhan-te forma é fundamental dar importância aos fatoseducativos vivenciados por professores nos espaçosmais simples e imediatos das experiências com oaprender e ensinar. Não há como descartar o cotidi-ano educativo em suas relações tensas em que pro-fessores e estudantes, enquanto seres sociais, vi-vem. Buscar a inteligibilidade sobre o agir e pensar 

    Referências

    BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vierira. 9. ed. São Paulo: Hucitec: Annablume,2002.

    DUTRA, J. N. Rap e identidade cultural. Trabalho apresentado no XVI Congresso da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Posgraduação em Música). Brasília, 2006.

    FREGA, A. L., Diversidad musical como desafio. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 18, p. 21-26, 2007. Número especial.

    FRITH, S. Music and identity. In: HALL, Stuart; DU GAY, Paul (Ed.). Questions of cultural identity. London: Sage,1997. p. 108-127.

    HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983.

    HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo Tradução e revisão de Ricardo Uebel, MariaIsabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.

    HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil,

    2003.KRAEMER, R. D. Dimensões e funções do conhecimento pedagógico-musical. Trad. Jusamara Souza. Em Pauta, Porto Alegre, n. 16/17, p. 50-53, 2000.

    LIMA, E. F. Multiculturalismo, Ensino e Formação de Professores. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 13.,2006, Recife. Anais… Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2006. p. 263-282.

    McLAREN, P. A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. Tradução Lucia Pellanda Zimmer et al. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

     ______. Multiculturalismo crítico. 3. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2000. (Coleção Prospectiva, v. 3).

    MORIN, Edgar. Articular os saberes: educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Trad.: Edgar de Assis Carvalho. SãoPaulo: Cortez, 2002.

    OLIVEIRA, A. Ações em formação musical no Brasil e reflexões sobre as relações com a cultura. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 18,p. 53-62, 2007. Número especial.

    SILVA, J. C. G. Rap na cidade de São Paulo: música, etnicidade e experiência urbana. 1998. Tese (Doutorado em Filosofia)–Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

    SOUZA, J. Cultura e diversidade na América Latina: o lugar da educação musical. Revista da Abem, Porto Alegre, n. 18, p. 15-20, 2007.Número especial.

    WIKIPÉDIA. Tupac Shakur . [s.d.]. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2008.

    Recebido em 31/01/2008

     Aprovado em 05/03/2008

    pedagógicos e complexos dos sujeitos envolvidosno processo musical e educacional é um caminhoque o multiculturalismo sugere para a formação dosdocentes.

    Por fim, estas considerações, sob os funda-mentos do presente estudo, permitem abrir entendi-mentos aos professores sobre os contextos contem-porâneos, oferecendo reflexões sobre o presente. Aidéia de um multiculturalismo que se quer crítico devevir acompanhada de uma mudança pedagógica naformação inicial e continuada dos docentes. (McLaren,2000, p. 123). É na ação e reflexão que os diferentessaberes dos professores são mobilizados, recriadose ressignificados.