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1 O REAL PADROADO E AS MISSÕES FRANCISCANAS NO PARAGUAI ÉVERTON DALCIN Mestrando em História na PUCRS Bolsista CNPq [email protected] Introdução Durante os primeiros anos de descoberta da América Espanhola, as Ordens Religiosas e o estado espanhol estavam empenhados em colonizar, cristianizar e ocidentalizar o Novo Mundo. Para tanto, seguiram usando de sua estratégia política de aliança Trono-Altar, típicas das monarquias católica. A aliança foi fundamental para o avanço da empresa missionária por parte da igreja, bem como para a ocupação e proteção territorial que o estado espanhol necessitava. O presente trabalho busca analisar a aliança entre o estado espanhol e a Igreja Católica a partir do conflito do bispo e governador do Paraguai Bernardino de Cárdenas com os jesuítas em meados do século XVII. Em 1642, o Governador Hinestrosa e os membros da Companhia de Jesus questionavam a legitimidade de Cárdenas no cargo de Bispo, visto que parte de sua documentação tardou a chegar. Já Cárdenas, com apoio dos cabildantes, acusa os Religioso de não pagarem os devidos tributos, e não realizarem os serviços pessoais. O bispo é expulso de Asunción e recorre a Real Audiência de La Plata, conseguindo reaver seu cargo e volta ao seu bispado. Em 1649 1 , o Cabildo nomeia o Bispo com governador, visto que Hinestrosa e seu sucessor haviam falecido. Cárdenas com centralidade total dos poderes civis e eclesiásticos expulsa os jesuítas. Porém a eleição é desautorizada pelo Vice-Rei e pela Audiência, e os jesuítas organizam as milícias invadindo a cidade de Asunción. Com cerca de quatro mil indígenas, saqueiam a cidade e prendem Cárdenas na Catedral até seu envio a cidade de Santa Fé. (Córdoba, 1937, p.164). A Real Audiência de La Plata, ao estudar o caso, ordena o retorno do bispo a sua igreja porém esse vai a Charcas preparar sua defesa e 1 ANA: Cópia de actas del Cabildo, Carpeta 6, 04/03/1649.

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O REAL PADROADO E AS MISSÕES FRANCISCANAS NO

PARAGUAI

ÉVERTON DALCIN

Mestrando em História na PUCRS

Bolsista CNPq

[email protected]

Introdução

Durante os primeiros anos de descoberta da América Espanhola, as Ordens

Religiosas e o estado espanhol estavam empenhados em colonizar, cristianizar e

ocidentalizar o Novo Mundo. Para tanto, seguiram usando de sua estratégia política de

aliança Trono-Altar, típicas das monarquias católica. A aliança foi fundamental para o

avanço da empresa missionária por parte da igreja, bem como para a ocupação e

proteção territorial que o estado espanhol necessitava.

O presente trabalho busca analisar a aliança entre o estado espanhol e a Igreja

Católica a partir do conflito do bispo e governador do Paraguai Bernardino de Cárdenas

com os jesuítas em meados do século XVII. Em 1642, o Governador Hinestrosa e os

membros da Companhia de Jesus questionavam a legitimidade de Cárdenas no cargo de

Bispo, visto que parte de sua documentação tardou a chegar. Já Cárdenas, com apoio

dos cabildantes, acusa os Religioso de não pagarem os devidos tributos, e não

realizarem os serviços pessoais. O bispo é expulso de Asunción e recorre a Real

Audiência de La Plata, conseguindo reaver seu cargo e volta ao seu bispado. Em 16491,

o Cabildo nomeia o Bispo com governador, visto que Hinestrosa e seu sucessor haviam

falecido. Cárdenas com centralidade total dos poderes civis e eclesiásticos expulsa os

jesuítas. Porém a eleição é desautorizada pelo Vice-Rei e pela Audiência, e os jesuítas

organizam as milícias invadindo a cidade de Asunción. Com cerca de quatro mil

indígenas, saqueiam a cidade e prendem Cárdenas na Catedral até seu envio a cidade de

Santa Fé. (Córdoba, 1937, p.164). A Real Audiência de La Plata, ao estudar o caso,

ordena o retorno do bispo a sua igreja porém esse vai a Charcas preparar sua defesa e

1 ANA: Cópia de actas del Cabildo, Carpeta 6, 04/03/1649.

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envia um procurador a Espanha e Itália para realizar sua defesa. Cárdenas não

reestabelece seu bispado, devido à idade, ficando na região do Alto Peru até sua morte.

Para compreender o conflito, serão utilizados alguns documentes presente na

coleção organizada por Carrillo (1768), sobretudo o segundo tomo onde é verificada a

validade da nomeação do bispo Cárdenas e demais ações Reais e Papais. Cabe ressaltar

que, esses documentos são impressos em Madrid, quase um século após o conflito, o

que sinaliza para uma disputa de poder ainda corrente entre ordens religiosas, estado e

clero após um século dos incidentes. Além desse conjunto, serão utilizadas Cédulas

Reais, encontradas no Archivo de Indias (Espanha), as atas do cabildo de Asunción, no

Archivo General de Asunción (Paraguai) bem como algumas cartas encontradas na

Coleção Biblioteca nacional do Archivo General de la Nación (Argentina) com o

objetivo de, verificar as interferências do real padroado no conflito. As bibliografias de

Córdoba (1937), Estragó (2005), Priewasser (2002) e a dissertação de Avellaneda

(1996) são fundamentas para compreensão dessa disputa política. Através desse conflito

será possível identificar as ações do Real Padroado bem como as distintas formas de

pensar o espaço reducional sobre a administração das ordens de São Francisco e

Companhia de Jesus. Para tanto faz-se necessário compreender esse momento singular

de contato, onde o Velho Mundo encontra o Novo Mundo.

As relações entre os autóctones americanos e os europeus, dentro da perspectiva

reducional, são amplamente analisadas sob a ótica das reduções da ordem jesuítica,

visto que, os jesuítas produzem uma grande quantidade de documentos ao longo dos

séculos XVI, XVII e XVIII. Essa quantidade de documentos decorre de sua estrutura de

organização burocrática, além de desempenhar papéis singulares no processo de

ocidentalização em regiões mais afastadas das zonas mineradoras, como o Paraguai. As

demais Ordens Religiosas: franciscanos, agostinianos, dominicanos, que atuaram no

território, acabam por ocupar um espaço menor na historiografia da América Colonial

espanhola, devido à baixa incidência de documentação. A pouca centralização destas

ordens, ocasiona uma menor circulação e produção de documentos, causando uma

ausência de estudos sobre as reduções administrada por essas, e ou devido ao diferencial

proposto pelos jesuítas, como se verá adiante.

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Todas as Ordens Religiosas tinham o mesmo objetivo, colonizar o novo

território, catequisar os nativos, devido ao avanço do protestantismo na Europa.

Aproximando do que Gruzinski (1999) definiu como ocidentalização.

(...) a ocidentalização também tinha por objetivo transformar os indígenas do

Novo Mundo. Tratava-se de fazer deles cristãos, isto é, ao mesmo tempo

súditos do imperador Carlos V e membros de uma nova cristandade, uma

cristandade semelhante à primitiva e capaz de compensar os efeitos

desastrosos do cisma luterano, que começava a se alastrar pela Europa.

(Gruzinski, 1999, pp. 284-285)

O processo de “ocidentalizar” exige a transposição das dificuldades do contato.

Necessita o conhecimento da estrutura de pensamento indígena, o que faz com que os

missionários estejam atentos aos costumes e hábitos de tais grupos e relatem em seus

diários. A divulgação desses relatos prepara os futuros missionários a pensarem em

estratégias mais eficiente de conquista dos indígenas.

Uma barreira significativa nesse processo de avanço do Velho Mundo sobre o

Novo, foram as dificuldades de comunicação. Os missioneiros franciscanos Frei Luis

Bolaños com ajuda do Frei Gabriel de la Anunciación traduziram o catecismo limense

para o Guarani, aprovado em 1583. O Sínodo de Asunción de 1603 indica esse

catecismo para ser usado nas reduções, sejam elas franciscanas ou jesuíticas. Cabe

ressaltar que este catecismo é reimpresso em Madrid em 1800.

Con la traducción del Catecismo para el guaraní, trabajo efectuado por

Bolaños en 1583, el contenido cristiano se hizo más cercano y comprensible

a los catecúmenos y posibilitó una identificación mayor entre la mística

cristiana y la mística guaraní. (Schallemberg,1989 p. 98)

A criação de catecismos bilíngue ou até mesmo dicionários, além de facilitar a

comunicação entre os clérigos e os indígenas, servia de estudo e propaganda aos futuros

missionários europeus. Porém vai além disso, pois fora necessário uma compreensão

cultural e mística dos indígenas para poder significar e personalizar um deus único,

tendo no religioso seu representante.

Para auxiliar nesse processo de “descoberta” Cruz e Espada unidas, buscam

delibações políticas e religiosas sobre o território. Tal processo é complexo, devido ao

grande aparato burocrático espanhol, e só é possível compreender a partir do contexto

histórico da modernidade e suas contradições.

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A aliança Trono Altar:

Na Idade moderna as relações entre Estado e Igreja Católica seguem fortíssimas,

em especial na Espanha, devido a formação dos Estados, e a nova Igreja, que passa a se

alterar lentamente em decorrência do avanço Luterano, Calvinista e Anglicano. Essa

alteração e aliança com o estado foram necessárias para consolidar a “descoberta” do

novo mundo, e sua colonização. Um dos elementos dessa aliança, Trono-Altar, foi a

utilização do Real Padroado ou Real Patronato no qual J.H Elliot (1998) busca

aprofundar:

O poder do Estado era muito maior nas Índias devido à extraordinária

concentração do poder eclesiástico nas mãos da Coroa. Através de uma bula de

1486 o papado dera à Coroa o patronato (padroado), ou o direito de fazer

nomeações para todos os bispados e benefícios eclesiásticos no reino mourisco

de Granada, que estava então prestes a ser reconquistada. Embora as bulas nada

dissessem sobre essa nomeação, os Reis Católicos tomaram Granada como seu

modelo; em 1508 a posição foi regularizada quando Fernando garantiu aos

governantes de Castela o direito perpétuo de organizar a Igreja e conferir

benefícios eclesiásticos em seus territórios Ultramarinos. O patronato teve por

efeito dar aos monarcas de Castela, durante seu governo das Índias, um grau de

poder eclesiástico de que não havia precedentes na Europa e fora do reino de

Granada. (Ellitot 1998, p. 296)

O Real Padroado é utilizado na América, desde o início do século XVI e se faz

presente ao longo de três séculos de colonização. Como consequência o Estado interfere

diretamente nas ações da Igreja, e vice-versa. Esta aliança foi fundamental para

determinar os rumos da ocupação bem como fornecer os instrumentos necessários para

o estado espanhol se estabelecer nas regiões, agindo como apoio ao processo de

ocidentalização e cristianização proposto pela Igreja Católica através da ação das

Ordens Religiosas.

As Reais Cédulas determinam a atuação dos súditos em território colonial, sobre

o controle das Leis de Índias. Essas decisões vão desde a escolha do Governador,

Bispos, e demais pessoas que irão à América, até mesmo as decisões bem pontuais,

como as que serão analisadas durante o conflito de Bernardino de Cárdenas. Porém

antes de compreender esse conflito, faz-se necessário entender a relação entre os

franciscanos e indígenas, e suas relações com a administração local.

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Os religiosos franciscanos se estabelecem na região do Paraguai por volta de

1575, porém já haviam tido incursões anteriores ao território. A principal característica

da evangelização Franciscana é que respeitou os moldes de organização social dos

guaranis (Salas, 1999 p. 142). Além de buscar proteger o indígena da perseguição e

ambição dos colonizadores, buscando levá-los a vida civilizada, adequando-os ao

trabalho. Tais características são muito semelhantes as adotadas pelos membros da

Companhia de Jesus. O padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, um dos missionários

pioneiros da ordem, em sua Conquista Espiritual define, em 1639, o modelo reducional

adotado pelas Ordens Religiosas:

...chamamos de reduções aos "povos" ou povoados de índios que, vivendo à

sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em três,

quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas,

duas, três ou mais, "reduziu-os" a diligência dos padres a povoações não

pequenas e à vida política e humana, beneficiando algodão com que se vistam,

porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza

ocultou. (MONTOYA, [1639] 1985, p. 34)

A redução proposta pelos franciscanos e jesuítas se assemelha: no respeito aos

moldes de organização autóctone, no protecionismo aos indígenas da ambição dos

demais colonizadores, porém a jesuítica passa, sistematicamente, a afastar o indígena do

restante da sociedade colonial. As reduções propostas pelos franciscanos são mais

conciliadoras, no tan herméticamente cerrada, y que por lo mismo contribuía a que el

indio y el conquistador entren en proceso de un paraguayo nuevo, ni indio ni español,

sino criollo y mestizo. (Salas, 1999 p.141). Acerca da fundação das reduções no

território do Rio da Prata, no Paraguai, o governador Hernandarias destaca, em

documento de 28 de Julho de 1616, que ...solos los de San Francisco son los que

quieren esta provincia, por ser pobre y sustentarse con facilidad, porque los demás

atienden a sus comodidades, de fundar colegios y haciendas con que sustentarse (apud

Necker 1990: 46).

Além de apresentar as dificuldades que os religiosos iriam enfrentar, a fala de

Hernandarias nos apresenta uma forte simpatia pelos religiosos franciscanos, que

certamente influenciou nas suas medidas protetoras aos indígenas, tendo em vistas que o

governador participara ativamente das ações da ordem.

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O modelo reducional avança sobre o território, as formas de evangelizar e

governar parecem estar em harmonia, porém existiam disputas territoriais e políticas

latentes entre as Ordens. Enquanto os jesuítas conseguiam a liberação dos serviços

pessoais, em 1642, como a Encomienda, que:

…significaban que los indios tenían la obligación de trabajar para los

españoles sin recibir compensaciones ni salarios, por no poseer bienes; este

servicio de su mano de obra gratuita sería el único procedimiento para pagar

los impuestos exigidos por la Corona de España a todos su súbditos,

incluyendo a los habitantes de los nuevos territorios descubiertos y

conquistados (Palacios e Zoffoli 1991: 200).

Os franciscanos, sem êxito nas suas liberações, tendem a aceitar e preparar os

indígenas, que já estavam encomendados, em suas reduções. Para a Coroa espanhola, e

a sua administração local os Governadores, a situação estava equilibrada, visto que: Os

jesuítas, por liberação dos serviços pessoais, serviam de proteção ao território, frente ao

avanço bandeirante, através das milícias indígenas; enquanto os franciscanos, serviam

de mão de obra para os Criollos. Essas diferenças são fundamentais entre as Ordens e

geram um dos principais conflitos do Paraguai no século XVII, a disputa de um Bispo,

Franciscano, que se torna Governador, pelo poder e pelo controle do território onde os

jesuítas haviam instalado sua Província. Nesse território, os jesuítas afastaram seus

indígenas da administração colonial e do clero secular, criando uma economia própria,

sendo autônomos em suas reduções. Esse modelo, é o oposto desejado pelos

franciscanos, que visavam a integração, bem como gerava uma disputa interna entre os

governadores e bispos com os religiosos da Companhia. Conhecer Cárdenas é

fundamental para a compreensão do conflito.

Bernardino de Cárdenas nasceu em Chuquiabo, Alto Peru, hoje território

boliviano, em 1579 e ingressou com 15 anos no convento dos franciscanos em Lima.

Devido ao seu trabalho missionário de vinte anos no Alto e Baixo Peru, foi nomeado em

1629 como Predicador y Misionero Apostólico para la conversión de los índios

(Córdoba, 1937, p.158). O que lhe permitiu seguir seu trabalho sobre outros territórios.

Por ser nascido na América e devido ao trabalho missionário, Cárdenas consegue êxito

em seu trabalho ao ponto de falar fluentemente as línguas indígenas da região do Peru.

En esta ocupación obró cosas de grande admiración, llevando el Evangelio

apartes donde hasta entonces no había llegado la palabra de Dios, extirpando

idolatrías y ritos gentílicos, predicando casi todos los días dos y tres sermones a

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españoles y a los indios, en las dos lenguas generales del Perú... (Cariillo,

1768, p.11in: Estragó, 2005, p.283)

A influência de Cárdenas junto as comunidades indígenas já estava consolidada,

e a designação do rei Felipe IV se faz presente impulsionando sua ascensão para bispo

da Sede Episcopal do Paraguai. O Rei apresenta ao Papa Urbano XVIII, em 1638, o

nome do frei para ocupar o cargo vacante em Asunción. Porém o mesmo só será

ocupado em 1640, quando as bulas são emitidas. Aqui fica claro as influencias regias

sobre a igreja, porém a documentação necessária, civil e eclesiástica, para assumir o

cargo tardará a chegar, postergando em mais dois anos até o bispo assumir como tal.

Aproveitando-se da primeira visita apostólica do Bispo, o Governador Gregório

de Hinestrosa já estava disputando o poder local com Cárdenas. Havia descordo do

governador com o sobrinho do bispo, Frei Pedro de Cárdenas y Mendoza. Este acusaba

[o sobrinho] de provalecerse del parentesco del Obispo (Priewasser, 2002, p.144), então

o retira do convento franciscano e após dois dias de castigo o coloca em uma balsa rio

abaixo até Santa Fé. O bispo rege excomungando o governador sob a alegação de

violação da imunidade eclesiástica, Por haber puesto manos violentas em un

sacertode...(Guzmán, 1976, p.29) Porém, a pedido da Real Audiência e do juiz

metropolitano, o bispo volta atrás na sua ação.

As visitas apostólicas são é uma ação religiosa e política, logo o bispo Cárdenas

realiza sua visita pastoral a todos os territórios, incluindo as reduções. Esse

procedimento era recorrente nas reduções. A visita era feita em um ano pelo governador

e em outro pelo bispo da região. Logo, fica evidente não somente a influência do poder

civil e religioso sobre o território, mas também a aliança de bispo e governador ao

dividirem esse trabalho. Essa primeira visita organiza as cobranças das taxas dos

indígenas que eram tributados e que haviam sido transladados do Guairá ao Paraná.

Inicia sua visita pelas reduções franciscanas de Caazapá, Yuty e a jesuítica de San

Ignacio, quando a visita é interrompida por uma nova ação do governador.

O governador Hinestrosa, havia apresentado ao superior do Colégio de Asunción

a expulsão do Bispo, questionando sua consagração ao cargo. Cabe lembrar que o que

estava em cheque eram os interesses políticos, econômicos e territoriais que opunham

franciscanos e jesuítas. Nesse momento, a região do Paraguai estava em crise, devido ao

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avanço paulista e o despovoamento da região do Guaira. Os criollos, próximos a

Asunción, viram no bispo a oportunidade de recuperar o direito de encomienda e de

demais serviços pessoais de mão de obra indígena que lhes era escasso. Porém os

jesuítas tinham como aliado o Governador Hinestroza, que graças às milícias indígenas,

organizadas pelos jesuítas, poderia reafirmar seu poder.

O bispo se refugia na redução de Yaguarón, próximo a Asunción, pois naquele

local havia pois havia a imunidade eclesiástica. O governador utiliza-se de oitocentos

indígenas das milícias jesuíticas e invade a missão. Porém Cárdenas consegue fugir e

chegar a Asunción refugiando-se no Colégio de San Francisco.

Hinestroza munido de dictámenes firmados por los jesuitas y por otros

religiosos, exigió al Cabildo de la ciudad que anunciase públicamente las

irregularidades cometidas en la consagración del obispo y por lo tanto la

nulidad de su nombramiento y pedió su expulsión de la provincia. (Avellaneda,

1996, p.84)

Em 5 de novembro de 1644 é feito uma reunião na praça central de Asunción,

com a presença da milícia indígena, declarando vacante a sede episcopal. Como

resposta Cárdenas publica um édito acusando os religiosos da Companhia de Jesus e o

reitor do colégio, Laureano Sobrino, de serem responsáveis pelos transtornos ocorridos,

e os excomunga. No dia Seguinte o governador expulsa Cárdenas da cidade.

Tanto religiosos franciscanos quanto jesuítas apelam a Real Audiência de La

Plata e ao juiz metropolitano. Cárdenas envia outro sobrinho à audiência de Charcas

buscando realizar sua defesa, argumentar as acusações feitas pelos jesuítas e governador

contra o bispo. Em 15 de outubro de 1647 o bispo Cárdenas acusa os jesuítas da pobreza

de sua diocese, devido ao não pagamento de dizimo2. Fica claro ai que, além de realizar

sua defesa, Cárdenas busca acusar os jesuítas, evidenciando dessa forma a disputa de

ambos pelo controle eclesiástico da região. O dizimo ainda expressa uma função

econômica singular, visto que, tanto Criollos de Asunción como a própria diocese

estavam em crise, enquanto as reduções jesuíticas seguiam sua economia interna

estável. Logo, o que Cárdenas questiona também é, a separação de tais reduções do

restante da economia e sociedade colonial espanhola.

2 AGN: Carta de Bernardino de Cárdenas ao Vice-rei. Colección Biblioteca Nacional 290, nº4453

(15/10/1647).

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Após análise da Real Audiência e do juiz metropolitano, a conduta do

governador é condenada e a consagração de Cárdenas como bispo é retificada. Ele é

ordenado a retorna ao território de Asunción. Dom Diego de Escobar, sucessor no

governo do Paraguai, recebe ao bispo com apoio dos Cabildantes. Porém Escobar

morre, deixando o cargo de governador livre. Devido ao privilégio concedido por Carlos

V, em 1537, é realizado um cabildo aberto, onde em 4 de março de 1649, Bernardino de

Cárdenas é nomeado governador do Paraguai3.

Bernardino de Cárdenas alcança um poder, religioso e civil centralizado nele, ao

se o governador e bispo do Paraguai, e devido a essa autonomia, que é singular, ordena

a expulsão dos jesuítas do território, que não conformados vão até a Real Audiência

buscar retirar o bispo do cargo. O vice-rei e a Audiência concordam com os apelos dos

jesuítas desautorizando a eleição de Cárdenas como Governador. En setiembre de ese

mismo año se alzó un ejército de indios de las reducciones jesuíticas al mando de

Sebastián de León, nuevo gobernador del Paraguay. La entrada en la ciudad fue de

muerte, robo y saqueo. (Estragó, 2005, p.285).

Durante o cerco a Asunción, Cárdenas é preso e enviado a Santa Fé. De lá, parte

para Charcas buscando sua defesa. A Real Audiência de La Plata em 29 de abril de

1651 declara nula a cassação anterior e reestabelece o poder do bispo, que já se

encontrava em Potosí. Com poderes estabelecidos, Cárdenas segue suas ações pastorais

até que sofre uma drástica interferência, do Real-Padroado. O Rei de Espanha, Felipe

IV, solicita ao Bispo do Paraguai, em 1654, que não realize mais de uma missa diária e

não promova novidades em relação aos cânones da Igreja Católica4. As determinações

régias parecem transcender os limites políticos e invadirem o campo da fé. Tal

documento expressa alto teor político de sanção às ações até então desenvolvidas pelo

bispo, que posteriormente se tornará governador. Por outro lado, ao interferir nas

questões religiosas, o rei se coloca favorável ao conflito que está se desenvolvendo na

região, devido a afirmação de poder do bispo, e a busca de autonomia e poder da

província jesuítica do Paraguai. Logo, ao determinar questões religiosas, o Rei está

buscando posicionar-se no conflito político entre o Clero e a Ordem Religiosa mais

3 AGA: Cópia de Actas del Cabildo, Carpeta 6, (04/03/1649)

4 AGI: Real Cédula a don fray Bernardino de Cárdenas, obispo de la iglesia catedral de la ciudad de la

Asunción , de las provincias del Paraguay. BUENOS_AIRES,2,L.6,F.82V-83R.(Buen Retiro 22/05/1654)

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atuante no Paraguai de então. Este conflito é fundamental para compreender não

somente a disputa das Ordens Religiosas no território, mas sim apontar as diferenças e

semelhanças no modelo de redução proposta pelos franciscanos e pelos jesuítas. Através

dele é possível verificar o posicionamento régio antes e após o conflito.

Cárdenas passa três anos preparando sua defesa, e enviou a Europa um

comissário Franciscano, Fray San Diego de Villalón, com amplos poderes, para

defendê-lo nas cortes de Roma e Madrid. Diego se debruça em validar a nomeação

consagrada de Cárdenas como Bispo, o que teria ocasionado o início de tal conflito. O

mesmo recebe resposta em 1660, quando lhe é fornecido um parecer favorável, desde

Roma e de Espanha, indicando que o Bispo deveria retornar ao Paraguai e reestabelecer

seu poder de Bispo.

He tenido por bien de resolver que volváis a residir en vuestra Iglesia, y así os

ruego y encargo, que luego que recibáis este despacho... ejecutéis vuestro viaje

a la dicha Iglesia Catedral del Paraguay a ejercer vuestro oficio pastoral, y

llegado que seáis a ella procederéis como Padre piadoso, olvidando todas las

ocasiones pasadas y admitiendo a vuestra gracia con amistad y amor paternal a

los que en alguna manera se apartaron de ella mediante las dichas inquietudes...

(Córdoba, 1937, p. 165)

Devido a avançada idade, Cárdenas opta por não retornar ao Paraguai, seguindo

seu trabalho no Alto Peru, onde iniciou suas atividades missionárias. Tendo em vista

sua ampla atuação na região é nomeado bispo de Santa Cruz, em 1663, e morre em 20

de outubro de 1668.

Conclusões

O conflito do frei Bernardino de Cárdenas e dos religiosos da Companhia de

Jesus é um fato do qual podemos analisar inúmeros aspectos da administração política

colonial: sua relação entre estado e igreja, a atuação do real padroado, os interesses

distintos de ambas ordens religiosas bem como os interesses dos criollos locais.

O modelo reducional Franciscano e Jesuítico se complementam. Por um lado,

os franciscanos visam uma integração do indígena à comunidade local, sendo esses

tributados e utilizados de mão de obra através dos serviços pessoais. Por outro lado, os

jesuítas se fecham em suas reduções, formam uma economia interna que tem por base a

troca, e além disso, conseguem a liberação dos serviços pessoais dos indígenas,

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podendo assim formar milícias que são solicitadas pelo governador local, quando

necessário, e os pagamentos dos tributos são equivalentes aos soldos dos milicianos.

Ocorre que, quando esses conflitos entrem em choque, como é o caso de

Cárdenas e os jesuítas, as diferenças são ressaltadas, visto que, o único território no qual

os tributos não são cobrados é o Paraguai Nos demais territórios, jesuíticos ou não, o

mesmo segue sendo executado, e Cárdenas, com seu trabalho missionário no Peru,

percebe essa incoerência e esse avanço jesuítico e quer fazer valer seu poder político de

bispo. Com ajuda dos cabildadantes entra em embate com os jesuítas e o governador,

buscando expulsá-los. Porém, da mesma forma, governador e jesuítas questionam a

legitimidade do cargo de bispo, fazendo com que Cárdenas tenha que abandonar a

região. Quando retorna ao Paraguai alcança o título de governador, tendo durante três

meses a centralização do poder civil e religioso. Porém novamente por interferência e

influência dos jesuítas, o governador é declarado ilegal e Asunción vê-se sitiada e

saqueada por indígenas. Tal fato causa espanto a Coroa que busca solucionar a questão

da invasão longe da América. Para tanto, são enviados membros de ambas ordens a

Europa para resolver o conflito.

Durante todo o conflito, além das ordens religiosas, do governador e do bispo, os

Criollos, ou vizinho a Asunción, se destacam enquanto grupo social atuante. São eles

que estabelecem muitas das estratégias desse conflito, como a eleição em Cabildo

Aberto, pois se fosse fechado, certamente a participação indígena seria maior e

possivelmente Cárdenas não teria sido eleito govenador. Os interesses que movem esse

grupo, tem relação direta com a crise econômica que o Paraguai enfrentava, e estes,

viam no bispo uma forma de arrecadar mais tributos para a diocese, mas sobretudo,

adquiri maior mão de obra indígena para suas terras. Pois se o bispo conseguisse

expulsar os jesuítas da região, as outras ordens poderiam liberar os indígenas a novos

serviços pessoais. Mas essa aliança entre Cárdenas e os Criollos não alcança os

interesses desejados para ambos e a cidade de Asunción vem-se sitiadas pelas milícias

indígenas, prendendo o bispo e o expulsando da cidade.

O fato é que o conflito não fora resolvido nem na América e menos ainda na

Europa, e o mesmo segue e serve de argumento para as disputas de poder no Paraguai

por mais de um século. Um conjunto de documentos, organizado por Carrillo (1768),

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acerca do conflito é impresso em Madrid as vésperas da expulsão dos Jesuítas no século

XVIII. Estudos como de Avellaneda (2011) e Cerveira (2014) nos apresenta em

Cárdenas um embrião para as revoluções comuneiras no meio do século XVIII. Tal

conflito é singular e merece maior atenção na historiografia, pois a partir dele pode-se

ampliar os estudos acerca das disputas entre as ordens bem como a atuação regia sobre

esses momentos de crise social e política.

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