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O ROMANCE DE FORMAÇÃO CHILENO E BRASILEIRO DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX: narrativas para uma revolução ANA MARÍA LEA-PLAZA ILLANES Aluna do curso de Doutorado em Letras Vernáculas, Literatura Brasileira Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do Título de Doutorado em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Ronaldes de Melo e Souza (UFRJ) Coorientador : Patricio Lizama Améstica (PUC Chile) Rio de Janeiro, 2014

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O ROMANCE DE FORMAÇÃO CHILENO E BRASILEIRO DA

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX: narrativas para uma revolução

ANA MARÍA LEA-PLAZA ILLANES

Aluna do curso de Doutorado em Letras Vernáculas, Literatura Brasileira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do Título de Doutorado em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Ronaldes de Melo e Souza (UFRJ) Coorientador : Patricio Lizama Améstica (PUC Chile)

Rio de Janeiro,

2014

I27r Illanes, Ana Maria del Rosario Lea-Plaza.

O romance de formação chileno e brasileiro da primeira metade do século XX : narrativas para uma revolução. - Ana Maria del Rosario Lea-Plaza Illanes. – Rio de Janeiro, 2014.

222 f. ; 21 cm.

Orientador: Prof. Dr. Ronaldes de Melo e Souza.

Tese (Doutorado)-Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

1. Bildungsroman. 2. Literatura chilena 3. Literatura brasileira. I. Título. II. Melo e Souza, Ronaldes.

CDD Ch860.9

RESUMO

O ROMANCE DE FORMAÇÃO CHILENO E BRASILEIRO DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX:

NARRATIVAS PARA UMA REVOLUÇÃO

Ana María del Rosario Lea-Plaza Illanes

Orientador: Ronaldes de Melo e Souza

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)

A tese é um estudo sobre o Romance de Formação brasileiro e chileno da primeira metade do século XX. O seu objetivo é responder à pergunta sobre como este gênero inicialmente europeu se transforma e se renova ao surgir nesses novos contextos, configurados por pelo menos duas ordens sociais: a ordem oligárquica (ou República Parlamentar, no caso do Chile; República Velha, no caso do Brasil) e a chamada ordem das classes médias. Particularmente, o que nos interessa é descobrir quais são as novas propostas de formação que surgem de textos centrados em personagens que fazem parte da nova configuração social que se está elaborando: pequeno-burgueses em decadência, negros em processo de emergência, campesinos, mulheres etc. Para isso, partimos de uma fundamentação histórica do Romance de Formação que tenta oferecer uma visão dinâmica, cambiante e não dogmática deste gênero que não se restringe, como a crítica conservadora quis propor em diferentes fases da sua história, a um relato bem-sucedido de inserção social burguesa, masculina e europeia. No nosso corpus brasileiro estão as seguintes obras: O Ateneu, Memórias sentimentais de João Miramar, Angústia/Infância, O Moleque Ricardo e Perto do coração selvagem. Já no que diz respeito ao Chile, estudamos: Martín Rivas (Alberto Blest Gana), Alsino (Pedro Prado), Escritura de Raimundo Contreras (Pablo de Rokha) Punta de rieles (Manuel Rojas) e Soñaba y amaba el adolescente Perces (María Carolina Geel).

Palavras-chave: Romance de Formação – primeira metade do século XX – literatura chilena e brasileira.

RESUMEN

LA NOVELA DE FORMACIÓN CHILENA Y BRASILEÑA DE LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XX : NARRATIVAS PARA UMA REVOLUCIÓN

Ana María del Rosario Lea-Plaza Illanes

Orientador: Ronaldes de Melo e Souza

Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura brasileira)

La tesis es un estudio sobre la Novela de Formación chilena y brasileña de la primera mitad del siglo XX. Su objetivo es responder a la pregunta sobre cómo este género inicialmente europeo se transforma e se renueva al surgir en estos nuevos contextos, configurados por, al menos, dos órdenes sociales: la orden oligárquica (o República Parlamentaria, en el caso de Chile; República Vieja, en el caso de Brasil) y la llamada orden de las clases medias. Particularmente, lo que nos interesa es descubrir cuáles son las nuevas propuesta de formación que surgen de textos centrados en personajes que forman parte de la nueva configuración social que se está elaborando: pequeño burgueses en decadencia, negros en proceso de emergencia, campesinos, mujeres, etc. Para eso, partimos de una comprensión histórica de la Novela de Formación, que intenta ofrecer una visión dinámica, cambiante e no dogmática de este género que no se restringe, como la crítica conservadora quiso hacernos creer en diferentes fases de su historia, a un relato sobre la exitosa inserción social de un sujeto burgués, masculino e europeo. En nuestro corpus brasilero están las siguientes obras: O Ateneu, Memórias sentimentais de João Miramar, Angustia/Infância, O Moleque Ricardo e Perto do coração selvagem. En lo que se refiere a Chile, estudiamos: Martín Rivas (Alberto Blest Gana), Alsino (Pedro Prado), Escritura de Raimundo Contreras (Pablo de Rokha) Punta de rieles (Manuel Rojas) e Soñaba y amaba el adolescente Perces (María Carolina Geel).

Palabras claves: Novela de Formación – primera mitad del siglo XX – literatura chilena y brasilera.

ÍNDICE

Breve explicação..........................................................................................................................1

Introdução..........................................................................................................................5

I. Pressupostos teóricos....................................................................................................14

1. Formação.........................................................................................................................14

Do significado religioso ao sentido secular..........................................................14

Formação e transformação..................................................................................23

2. Bildungsroman........................................................................................................25

O Bildungsroman: um gênero histórico...............................................................25

O Bildungsroman alemão....................................................................................34

Bildungsroman e revolução: outras variedades nacionais...................................37

O Bildungsroman europeu em geral: forma e ideologia......................................40

II. O Bildungsroman brasileiro: rumos contra a casa-grande.......................................45

1. O paradoxo dos “grandes homens”.....................................................................50

a) O Ateneu e a formação do pequeno homem.....................................................56

b) Memórias sentimentais ou o fracasso de uma incipiente subversão................68

c) O Bovarismo e a trama das relações sociais em Perto do coração selvagem..76

2. Decadência e emergência: Infância e O moleque Ricardo..................................93

a) Angústia e Infância: deformação e formação...............................................97

A deformação neurótica de Angústia.......................................................101

Infância ou a formação pela memória.....................................................106

b) O moleque Ricardo: a formação de um sujeito emergente.......................113

III. O Bildungsroman chileno: por um lugar no “novo Chile”...................................126

1. Alsino e Escritura de Raimundo Contreras: poesia e tempo histórico...........130

a) Alsino, de Pedro Prado: percurso simbólico do poeta ocidental..............133

b) Escritura de Raimundo Contreras, de Pablo de Rokha: retorno ao mito

de Sísifo..................................................................................................149

2. Novas perspectivas do romance burguês: Punta de rieles e Soñaba y amaba el adolescente Perces...................................................................................................161

a) Martín Rivas: Bildungsroman masculino e feminino.........................164

b) Punta de rieles, romance de encontro entre mundos.........................171

c) Soñaba y amaba el adolecente Perces..…………………................195

IV. Conclusões..................................................................................................204

Bibliografia.............................................................................................................................213

Ao professor Ronaldes de Melo e Souza, por sua acolhida e sua certeira orientação.

A Flávio de Britto, a quem devo grande parte desta tese.

Aos meus pais, Carmen Gloria e Alfredo, que me educaram em liberdade, a mesma liberdade que me trouxe ao Brasil.

À energia das minhas amigas Alejandra Andueza, Florencia Henríquez, Alejandra Bottinelli, Lígia Protti, Cassiana Lima Cardoso e Magda Pischetola.

Ao inspirador vitalismo do meu irmão Joaquim.

Esta dissertação pôde ser realizada graças ao apoio de Becas Chile – CONICYT, que durante o período de agosto de 2009 e agosto de 2013 concedeu-me uma bolsa de estudos.

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O ROMANCE DE FORMAÇÃO CHILENO E BRASILEIRO DA PRIMEIRA METADE DO

SÉCULO XX: NARRATIVAS PARA UMA REVOLUÇÃO

Na nossa vida, nunca nada foi reto.

Reto como para nós.

Na nossa vida,

nada se consumou até o fundo.

Até o fundo como para nós.

O triunfo, o aperfeiçoamento,

não, não são para nós.

(“Nós”, Henri Michaux)

BREVE EXPLICAÇÃO

O trabalho de tese que aqui quero apresentar para alcançar o título de Doutora em Letras

Vernáculas, área de concentração em Literatura Brasileira, surgiu a partir de diferentes

experiências da minha carreira literária que, em conjunto, permitiram que este se fosse

perfilando. No que se segue abaixo, gostaria de relatar quais foram estas experiências, com o

fim de dar a conhecer melhor minhas motivações como pesquisadora e os problemas que me

interessa enfrentar durante o desenvolvimento deste trabalho.

A primeira delas e, sem dúvida, a mais importante foi o estudo pormenorizado que fiz

da obra de quem considero o mais importante narrador chileno do século XX. Seu nome:

Manuel Rojas, Prêmio Nacional de Literatura (1957) e autor de uma extensa tetralogia

composta por quatro romances: Hijo de ladrón (1951), Mejor que el vino (1958), Sombras

contra el muro (1964) e La obscura vida radiante (1971). Estudei a obra toda desse escritor,

começando pelos seus contos iniciais, durante a minha monografia, passando pelos romances

recém-mencionados durante a monitoria que prestei ao professor e especialista neste autor,

Grínor Rojo; para terminar com a minha Dissertação de Mestrado, em que realizei uma

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análise especializada de Punta de rieles (1959), obra que não faz parte da tetralogia, mas que

tem uma clara continuidade com ela.

Estes estudos fizeram com que eu tivesse uma primeira aproximação com o gênero do

Bildungsroman ao ter que trabalhar uma obra inteiramente organizada em termos do que

Grínor Rojo chama de um “macroromance de formação” concentrado nas camadas

subalternas do Chile prévio aos anos 60, isto é, em personagens populares não obreiros:

itinerantes, pobres, com ofícios variados e irregulares (comediantes, jovens anarquistas,

sapateiros, mendigos, delinquentes, etc). Em termos gerais, este conjunto de obras

apresentava-se, nas palavras do crítico chileno, não como um Bildungsroman, mas como um

Anti–Bildungsroman, denominação que se refere, neste caso, à negação da ordem burguesa

que o final do processo formativo do protagonista descreve, para validar, assim, um modo de

vida pré-moderno e pautado pelos valores de uma ideologia anarquista.

Uma segunda experiência decisiva foi a minha participação no projeto de pesquisa

sobre literatura e cidade do professor Danilo Santos López, na Pontifícia Universidade

Católica do Chile (PUC). Durante o processo de tentar estabelecer os vínculos literários entre

romance e cidade, chegamos a um importante corpus de Romances de Formação

especificamente urbanos dentro da narrativa atual, dos quais tive que trabalhar dois: La vida

exagerada de Martín Romaña (1981), do famoso escritor peruano Alfredo Bryce Echenique, e

La ciudad sitiada (2006), da narradora jovem Alejandra Jaramillo (colombiana).

Do ponto de vista da maturação do meu projeto, esta experiência foi interessante, pois

me permitiu começar a vislumbrar as possibilidades e o dinamismo objetivo que apresentava

o gênero do Bildungsroman. No conjunto dos meus estudos anteriores, tinha já diante de mim

três variações do modelo. A primeira delas: a que descrevi nos parágrafos recentes (em termos

de Grínor Rojo, um anti ou contra-bildungsroman de personagem subalterno) e agora me

encontrava com mais duas variações. Um romance de formação especificamente de escritor,

no caso da obra do narrador peruano, que estabelecia relações explícitas com À la recherche

du temps perdu, de Marcel Proust; e um romance de formação feminino, no caso da narradora

colombiana. Em suma, três variações pautadas pelos diferentes sujeitos ou, para falar em

termos mais diretos, pelos diferentes personagens em formação que cada um dos romances

apresentava.

Mais tarde fui percebendo que estas variações eram, de fato, contempladas pela crítica

e usadas como portas de acesso para tratar casos isolados de Romances de Formação. É o que

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fui compreendendo na última das experiências que quero mencionar sobre a minha

aproximação com o gênero que pretendo estudar. Trata-se do seminário sobre Romance de

Formação, dado pelo professor Michael Bell (Universidade de Warwick), na PUC do Chile,

em que tive a oportunidade de participar durante o mês de janeiro do ano de 2009 e onde

recebi uma primeira aproximação mais ordenada do fenômeno do Bildungsroman, neste caso,

especificamente europeu. Pude conhecer, assim, alguns antecedentes não latino-americanos

do gênero e também dos conceitos envolvidos nele. Dentro do corpus filosófico, lemos

Rousseau (Emilio, ou da educação, 1762), Schiller (A educação estética do homem, 1795), e

um breve, mas contundente artigo de Verdade e método (1967), de Gadamer, onde o autor

situa o conceito de formação no contexto do romantismo alemão; para logo passar à leitura de

alguns exemplos literários mais concretos como Great expectations (1860), de Charles

Dickens, A portrait of the artist as a young man (1916), de James Joyce, To the lighthouse

(1927), de Virginia Woolf, entre outros.

Diante dessas três instâncias e ciente da riqueza que apresentava o assunto, tomei a

decisão de aprofundá-lo durante a minha tese de doutorado. Como é de se esperar, no entanto,

os fins da minha pesquisa não acabavam no estudo em si do Bildungsroman. Interessada em

desenvolver uma carreira com especialização em literatura, cultura e língua brasileira, o

gênero escolhido e o período traçado para a pesquisa se apresentava como uma excelente via

de acesso para conhecer e aprofundar num corpus relativamente amplo de autores de grande

importância para a literatura brasileira. Como veremos mais na frente, estou pensando em

Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Clarice Lispector, entre outros. A

perspectiva de ter que voltar ao meu país para ensinar e empreender projetos de pesquisa

sobre a literatura do Brasil, fez com que escolhesse o caminho – relativamente heterodoxo

para uma tese de doutorado – da pesquisa panorâmica. Carecendo de uma formação de base

sobre a literatura desse país, pareceu-me quase inevitável a necessidade de me desviar do

caminho de uma tese mais especializada e, poderia dizer-se, mais “correta”, com o fim de

evitar uma formação demasiado restrita sobre um campo em que eu era ainda uma

principiante. Em função de um preparo melhor para a carreira em que estava me iniciando,

decidi, então, assumir o risco de trabalhar um corpus relativamente vasto de autores: deixaria,

eventualmente, de fazer uma contribuição “científica” à crítica literária brasileira, mas

favoreceria a cooperação cultural, no nível do ensino superior e da pesquisa, entre o Chile e o

Brasil.

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Por outro lado, quis fazer compatível estes estudos com os que eu já possuía sobre

literatura chilena, e que ainda precisava aprofundar e aperfeiçoar. Por este motivo, inscrevi a

minha pesquisa no âmbito da literatura comparada: continuaria estudando a literatura do meu

país, desta vez favorecida pela distância cultural que, simultaneamente, iluminaria a literatura

e a cultura do país em que me estava formando.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho quer responder à pergunta sobre como se apresenta o gênero do

Bildungsroman nos contextos chileno e brasileiro da primeira metade do século XX. O estudo

deste tema é de extremo interesse e importância não só pelo estimulante que é o próprio

gênero em questão, mas também porque ele se oferece como uma via de acesso imensamente

sólida e nítida para compreender a configuração do universo literário destes dois países, no

período mencionado. Isto provavelmente mudou em manifestações mais recentes do gênero,

mas é praticamente um fato que, tanto nas suas origens europeias, quanto nas suas realizações

no Chile e no Brasil, o Bildungsroman é marcado pela canonicidade. O seu estudo permite,

portanto, entrar de maneira direta nas obras mais importantes do campo literário de ambos

países, criadas por autores poderosos e de grande impacto na construção da cultura em que se

inserem e de que participam.

No que se refere ao Brasil, as obras que analisaremos são: Memórias sentimentais de

João Miramar (1917), de Oswald de Andrade, O moleque Ricardo (1935), de Jose Lins do

Rego, Perto do coração selvagem (1943), de Clarice Lispector e, por último, Infância (1945),

de Graciliano Ramos. Já no que diz respeito ao Chile, trabalharemos com: Alsino (1920) de

Pedro Prado, Escritura de Raimundo Contreras (1929), de Pablo de Rokha, Soñaba y amaba

el adolescente Perces (1949), de Carolina Geel, e, por último, Punta de rieles (1959), de

Manuel Rojas.

Como é de se supor, esta pesquisa traz um problema recorrente no estudo da cultura e

do pensamento latino-americano, isto é, a relação entre o local e o internacional, entre o

próprio e o exógeno, questão que, aliás, foi especialmente discutida durante o período que

estamos estudando. Gostaríamos de fazer frente a essa polaridade, adotando o modelo de

“apropriação cultural”, proposto por Bernardo Subercaseaux, que compreende essa dialética

como um movimento fundamentalmente criativo, que implica “adaptação, transformação ou

recepção ativa com base num código distinto e próprio” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 181,

tradução nossa). Queremos, assim, evitar a aproximação dualista que vê este tipo de

fenômeno em termos de “influência”, “circulação” ou “instalação” e supõe, por um lado, a

existência de um centro cultural puro e intocado com os seus produtos culturais modelares e,

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por outro, a de uma periferia que se percebe como tal e que, portanto, restringe-se à imitação

inerte das manifestações desse núcleo (SUBERCASEAUX, 1988, p. 187). Ao contrário, anima-

nos a expectativa de ver o que há de original nessas obras compreendendo-as como textos que

participam vivamente da cultura ocidental, criados por autores que, a partir dos seus lugares

existenciais, espaciais e temporais de origem, encontram-se intimamente vinculados com o

todo dessa literatura. Em outras palavras, reformulando o que foi proposto no primeiro

parágrafo desta introdução, queremos ver qual é o “nosso Romance de Formação” e não

como é que se apresenta “o Romance de Formação entre nós”. Se, para isso, temos que nos

referir aos modelos europeus, é porque pensamos que eles formam parte importante desse

todo literário, e que, enquanto tais, são relevantes para a visualização do nosso Romance de

Formação, mas estamos longe de afirmar que tal parte constitua o todo.

Ora, certamente, um enfoque deste tipo precisa aceitar o papel da contextualidade no

processo de transformação e apropriação dos gêneros literários. Estamos fazendo o exercício

de localizar um modelo que é mais geral num período de tempo e num espaço determinado

supondo que essas coordenadas espaciais e temporais atuariam criativamente no processo de

apropriação do gênero. Vemos tal ação, em primeiro lugar, nos personagens que

protagonizam os romances escolhidos. Como pode ver-se já no corpus, o foco do trabalho está

dirigido àqueles textos que, publicados aproximadamente a partir da primeira década do

século até os anos cinquenta, mostram-se como manifestações de sujeitos em formação que

não se encaixam dentro do esquema do romance burguês que se desenvolve no século

dezenove e se estende, como tendência dominante, de modo geral, até a década de trinta. Ao

contrário, nosso interesse está focalizado naquelas obras que permitem ver um outro percurso

formativo, expressão da imensa transformação que sofreu a estrutura tradicional da sociedade

burguesa com a massificação das cidades da América Latina, que reconfigurou todas as

camadas do que poderíamos chamar o universo social anterior aos anos trinta. Os textos

centrais são, portanto, aqueles cujos personagens formam parte dessa nova configuração:

operários, pequeno-burgueses em decadência, negros emergentes, campesinos imigrantes,

mulheres, etc.

Em segundo lugar, interessa-nos a questão mais abrangente da relação entre história e

poética. O período que temos escolhido corresponde a um pedaço notoriamente extenso de

tempo durante o qual, como temos anunciado, se configuram, pelo menos, duas ordens sociais

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diferentes: a ordem oligárquica (ou República Parlamentaria, no caso do Chile, e República

Velha, no caso do Brasil) em fase ascendente e descendente, e a chamada ordem das classes

médias (ou Estado Novo brasileiro). Sem afetar a diversidade de textos literários possíveis

dentro de um período (que pode ser, certamente, infinita), estas ordens sociais cambiantes

colocam à literatura na situação de estar cumprindo funções também diferentes, o que

movimenta modos ficcionais, símbolos, arquétipos, mitos e gêneros distintos; como nos

ensina Northrup Frye no seu texto Anatomia da crítica (1977). Sem fazer do livro do autor

canadense uma metodologia única e rígida, gostaríamos de vislumbrar quais seriam, no caso

do Chile e do Brasil da época, as formas ficcionais que esse movimento histórico base de uma

a outra ordem social coloca em atividade. Isto, com o objetivo de chegar a uma descrição das

características e da evolução do Romance de formação chileno e brasileiro considerando o

plano histórico que está pressuposto na nossa pesquisa como fator que se imprime nos textos

de uma maneira poético-simbólica.

Por último, interessa-nos o lugar da contextualidade que se observa no diálogo que

estabelecem as partes do discurso ficcional, o autor, o narrador e o leitor; mas referido a um

tema particular que é do nosso especial interesse: o da revolução social. Uma singular

insistência neste assunto por parte dos romances fez com que quiséssemos ir no encalço desse

elemento cada vez mais recorrente na medida em que avançava a investigação, para tentar

articular conclusões a partir dessa categoria. Desviando-nos, assim, das ferramentas críticas

mais clássicas para a análise deste gênero, cujo foco central se localiza no problema da

adaptação ou inadaptação final do personagem ao conjunto das instituições burguesas,

decidimos enfrentar os romances com base neste outro elemento. Ficou, assim, como objetivo

específico deste trabalho o de ler os livros como textos em que se reflete, diferentemente,

sobre os níveis em que deve dar-se uma revolução, e em que se formulam caminhos e opções

variadas, que vão da articulação histórico-política, até desenvolvimentos mais subjetivistas,

como iremos detalhar nas conclusões.

Que nós saibamos, o tema da revolução ou da transformação social, como tema

central do Bildungsroman, não tem sido destacado por nenhum dos estudos teóricos

disponíveis, apesar da notável recorrência com que ele aparece nos próprios romances.

Só para oferecer alguns exemplos, é merecedor de reconhecimento o fato de o

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Bildungsroman chileno inaugurar-se, em plena literatura burguesa, com Martín Rivas (1886),

obra que tem por um dos eixos organizadores do enredo um episódio histórico de grande

alcance nacional no Chile da época: o chamado “Motín de Urriola”. Apesar do seu

protagonismo dentro do romance, este acontecimento é apresentado como um evento de

impacto limitado, dando conta, no parecer de Jaime Concha, da crise ideológica em que se

acha o universo político da época em que Alberto Blest Gana escreve Martín Rivas. Por este

motivo, o prestigiado estudioso recém-mencionado chegou, inclusive, a denominar a obra de

romance “pós-revolucionário”.

Ora, num outro extremo do período que estamos estudando, o Romance de formação

fecha a metade do século chileno com Hijo de Ladrón (1951), o volume mais famoso da

tetralogia de Manuel Rojas. Neste último caso, a importância pontual do assunto que aqui

queremos desenvolver já foi evidenciada por Grínor Rojo no seu estudo intitulado “La

contrabildungsroman de Rojas”. Descreve ali a situação enunciativa do romance: um homem

de aproximadamente 50 anos, já inserido nas instituições da vida adulta, que relembra um

período específico do seu passado em que teriam acontecido episódios especialmente

significativos. Qual seja: o “motín de Valparaíso” e os acontecimentos, personagens e valores

que giram ao redor desse evento em que Aniceto Hévia, o protagonista e alter ego jovem do

autor, vê-se envolvido logo depois de sair da prisão. A evocação desse período de juventude

anárquica não seria meramente temática, mas de alta relevância formal para este complexo

romance da nossa literatura moderna, pois é ele que estruturaria os diferentes planos

temporais e espaciais em que o texto se desenvolve.

De modo que tanto na sua abertura, quanto no fechamento do ciclo que percorre o

Romance de Formação da primeira metade do século XX chileno, a questão da revolução

aparece como central, inclusive entre autores de setores ideológicos e códigos literários tão

opostos como Blest Gana, o nosso mais emblemático e moderado narrador burguês, e Manuel

Rojas, a figura literária anarquista e de espírito antioligarca talvez mais destacada do Chile.

No caso do Brasil, como veremos mais à frente, o lugar de destaque deste tema não

deixa de ser igualmente notório. Conformando a linha mais político-ideológica, a questão

principal dO Moleque Ricardo, romance escrito em chave totalmente socialista (sem

necessariamente sê-lo) seria a de encenar, segundo as sugestões do livro, os sintomas que

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impediriam a realização da revolução proletária leninista no Brasil, denunciando sobretudo o

divórcio entre utopia e ação, entre consciência e prática. Ao tentar descrever os males

endêmicos à esquerda do Brasil, este sintoma foi reconhecido em termos quase idêntidos por

Caio Prado Júnior, no seu ensaio de 1966, intitulado “A revolução brasileira”.

O caso de Graciliano Ramos em Infância (cuja leitura, segundo nos parece, faz-se

mais proveitosa se realizada em conjunto e continuidade com Angústia) é bem mais sutil. No

entanto, resgatar a presença aparentemente periférica da “Revolução de Trinta” em seus textos

(e sobretudo em Angústia) não deixa de ser prometedora como chave de acesso ao

Bildungsroman graciliânico. No recém mencionado livro, o caminho da participação política

aparece como uma negação mal-resolvida no percurso dramático do protagonista. E, de fato, o

romance oferece chaves para interpretar que o crime de Luís da Silva adulto pode ser lido

como consequência de ter eliminado todo substrato utópico da sua existência. A vocação de

escritor que aparece anunciada e, de alguma maneira, conquistada em Infância, é substituída

em Angústia por um trabalho burocrático de funcionário público. E as preocupações políticas

aludidas neste último livro ao se referir à adolescência de Luís da Silva são contrapontadas

pela lógica privada do seu drama passional com Marina, ficando totalmente indisposto a

participar dos eventos revolucionários que o rodeiam.

Finalmente, queremos só anunciar aqui a modalidade proposta por Clarice Lispector

sobre o assunto, em Perto do coração selvagem, quem tematiza, numa linguagem muito

próxima do Bildungsroman alemão, a preponderância que deve ter a revolução interna e

subjetiva, por sobre a histórico-ideológica, sendo o percurso de Joana, a sua protagonista, um

claro exemplo de sua realização.

O nosso interesse por este tópico surgiu a propósito do estudo de Franco Moretti,

intitulado The way of the world, sobre o Romance de Formação europeu do século XIX, e

logo cresceu até o ponto de querer desenvolvê-lo, uma vez observada a sua persistente

presença nos romances que estavam na nossa agenda. Para fazer justiça ao contexto dos

romances que Moretti trabalha nesse estudo (um contexto altamente historicista e cientificista

como é o século XIX), ele escolhe como categoria textual a análise do enredo, sob o

pressuposto de que este representa, na narrativa, o nível da historicidade. O modo em que os

romances das diferentes nações europeias combinam as variantes básicas de enredo (o enredo

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regido pelo “princípio de classificação” e o enredo regido pelo “princípio de transformação”,

duas categorias de Juri Lotman) apresentar-se-ia como a formalização simbólica dos

diferentes modos de elaborar as mudanças sociais provocadas pela Revolução Francesa, por

parte de cada país. O autor associava, assim, as variações poéticas nacionais de

Bildungsroman à questão da cojuntura histórica revolucionária que deu início à modernidade.

Interessou-nos profundamente este aspecto que, na verdade, parece ser a coluna

vertebral do vasto estudo de Moretti. No entanto, a nossa pesquisa impunha requerimentos

específicos que nos fizeram desviar da corrente crítica deste autor, associada, segundo nos

parece, principalmente, aos “bildungsromanistas” que veem este gênero como instrumento de

socialização (Morgenstern, Hegel, etc.). A categoria textual do enredo, no nosso modo de

ver, muito bem justificada para a análise particular do crítico italiano, apresentava-se como

uma categoria insuficiente para nós que íamos estudar uma narrativa inscrita no século XX,

programaticamente orientada à criação de formas de expressão diferentes das da narrativa

tradicional do século XIX. Insistir nesse elemento, portanto, parecia não acompanhar as

mudanças e a evolução do discurso narrativo contemporâneo.

O marco cultural de um corpus literário, cercado e afetado pelas mudanças

promovidas pelo modernismo, de um lado, e, por outro, por um contexto social em

progressiva massificação, em que as vozes de novos sujeitos estão elaborando discursos, fez

com que nos deslocássemos ao outro polo da configuração narrativa. Isto é, com o perdão da

redundância, o polo da voz narrativa. Os escritores estão com maior intensidade

perspectivando as normas de escrita e do comportamento tradicional. O Brasil, principalmente

a partir da revolução de trinta, está pensando-se a si mesmo, não só mediante a ficção, mas

também mediante os escritos ensaísticos de ordem sociológica (Casa grande e senzala, de

Gilberto Freire; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda; Formação do Brasil

moderno, de Caio Prado Junior), e diferentes regiões do universo social estão se incorporando

à criação literária durante este período. Assim, e como uma maneira de fazer justiça ao

contexto cultural dos textos, antes que a investigação sobre como a revolução histórica se

imprime nos romances, de forma representacional, interessa-nos observar o modo com que tal

reflexão sobre a transformação social se materializa na configuração e interação das partes

que constituem o discurso ficcional e as poéticas dos livros estudados, incorporando todos os

elementos que participam do quadro comunicativo especificamente da narração (autor real,

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autor implícito, narrador, narratário, leitor implícito, leitor real). Interessa-nos, portanto, o

ponto de vista figurativo e conceitual que se realiza na voz narrativa que (coincidindo ou não

com o ponto de vista do personagem) da expressão à história de fora dela, e cuja visão de

mundo pode ser igual ou diferente à do seu personagem.

Usando a terminologia aristotélica, Northrup Frye denomina este nível da narração de

dianoia, que, por oposição ao mythos (a trama e a ficção interna do herói e da sua sociedade),

refere-se à ficção externa, à relação entre o escritor e a sociedade do escritor, que surge dos

vínculos entre o poeta e o leitor, relegando a um segundo plano a importância da história e

destacando o ponto de vista ideal, conceitual e figurativo do texto1. Certamente, de um ponto

de vista mais convencional, poderíamos dizer que existe, de um lado, a “literatura ficcional”

(o romance e o teatro), concentrada no mythos, e, de outro, a “literatura temática” (o ensaio e

a poesia, por exemplo). No entanto, sabemos que:

É evidente que não existe tal coisa como uma obra ficcional ou uma obra temática na literatura, já que os quatro elementos éticos (éticos no sentido de se relacionarem com o personagem): o herói, a sociedade do herói, o poeta e os leitores do poeta sempre estão presentes, pelo menos em potência. Dificilmente pode existir uma obra literária sem alguma classe de relação, implícita ou expressa, entre o criador e o seu público (FRYE, 1991, p. 78, tradução nossa).

Sem ir muito longe, os próprios textos que escolhemos como corpus são textos

híbridos (e o romance em geral, apesar de ter a sua poética, é originalmente informe), o que

invalida de um outro ponto de vista esta dicotomia. Infância é um romance autobiográfico,

Alsino, Escritura de Raimundo Contreras e Memórias sentimentais de João Miramar são,

claramente, escritos em prosa poética, a assim por diante. Porém, o que nos interessa da

terminologia de Frye, neste caso, é a distinção entre duas tendências dentro dessa literatura

temática (ou da literatura lida com ênfase no aspecto temático): a cômica e a trágica. Na

literatura temática trágica, que tende a isolar o herói da sua sociedade, “o poeta pode

escrever como indivíduo, batendo firme no isolamento da sua personalidade e na nitidez da

sua visão” 2, enquanto que na literatura temática cômica, cujo herói tende a estar integrado, o

“poeta pode dedicar-se a ser o porta-voz da sua sociedade, o que significa – já que não está se

dirigindo a uma segunda sociedade – que um conhecimento poético e um poder expressivo,

1 Talvez a melhor tradução de dianoia, segundo Frye, seja “tema”, e a literatura que possui este interesse poderia então ser chamada de “literatura temática”. 2 Ibid., p. 80.

12

latente na sociedade ou que ela precisa, articulam-se nele” (FRYE, 1991, p. 80, tradução

nossa). A primeira atitude produziria a maior parte dos poemas e ensaios, grande parte da

sátira, dos epigramas, e a composição de “églogas” ou obras de circunstância em geral, com

formas primordialmente descontínuas e temperamentos de protesto, queixa, ridículo e solidão.

Já a segunda produziria uma:

Poesia que é educativa no mais amplo sentido: epopeias do tipo mais artificial ou temático, poesia e prosa didáticas, compilações enciclopédicas de mitos, folclore, lendas como as de Ovídio e Snorri, onde, ainda que as histórias mesmas sejam ficcionais, sua disposição e o motivo que induziu a compilá-las são temáticos. 3

Na poesia que é educativa neste sentido, por último, “a função social do poeta figura

destacadamente como tema” 4 e, no que se refere à forma, tende a utilizar modelos mais

amplos e não descontínuos.

Uma tal escolha vincula esta pesquisa à linhagem crítica de estudos sobre

Bildungsroman que define este tipo de textos não só por seu conteúdo, mas também pelo

princípio poético que o organiza. É uma noção mais dinâmica de Romance de formação que,

no nosso modo de ver, aproxima a noção de gênero à da análise discursiva, o que permite

fugir do instrumento às vezes um tanto rígido dos conceitos genéricos. A principal

contribuição de uma tal compreensão do Bildungsroman foi feita, segundo Miguel Salmerón,

no seu artigo “El concepto de novela de formación”, por Blanckenburg, que, apesar de não ter

usado o termo que mais tarde (1813) Morgenstern cunhou, foi o primeiro a falar deste gênero,

ao tentar referir-se às qualidade específicas do romance em geral (cujo surgimento, é

importante sabê-lo, é inseparável do surgimento do Romance de formação), e o fez nos

seguintes termos:

Com uma ênfase muito aristotélica o autor assinala que o romance deve ‘unificar sob um ponto de vista os principais eventos que ocorrem a um homem e enlaçá-los num todo de causa e efeito’. Esta poética da causalidade tem duas condições prévias. A primeira é a onisciência do narrador. Todo acontecimento permite uma dupla consideração: como efeito dos anteriores ou como causa dos posteriores. Em consequência, o escritor não pode aparentar que não conhece o interior dos seus personagens porque ele é seu criador. Outro dos elementos formais exigidos pela fidelidade causal é o caráter central de um personagem sobre os outros. Essa fidelidade ao contínuo causal vai acompanhada do elemento ético do ideal de perfeição (SALMERÓN, 2002, p. 45, tradução nossa).

3 Ibid., p. 80-81. 4 Ibid., p. 81.

13

A reflexão sobre a revolução, a reforma ou a transformação humana é uma maneira

de elaborar, a partir do individual, opções e caminhos de superação coletiva, que envolvem a

comunidade mais ampla e, inclusive, a nação do indivíduo que a elabora (isto é, uma maneira

de unir o individual ao coletivo), indiferentemente da índole política, subjetiva, religiosa ou

poética da proposta. Considerando isto, usaremos tal categoria para estabelecer as

características e diferenças gerais do Bildungsroman chileno e brasileiro, nas conclusões deste

trabalho. A pergunta que nos mobilizará será, por fim: ¿quais são os modos em que o

Bildungsroman de cada país pensa a sua própria transformação, quais são as propostas sobre

os rumos reais e ideais que estes seguem e poderiam seguir? Chegaremos a uma reflexão

desse tipo após dois grandes capítulos em que procuraremos definir “internamente” os

Bildungsromane estudados, por país. Cada um deles, por sua vez, estará composto de duas

subpartes que pretenderão traçar e reunir as tendências principais do gênero no Chile e no

Brasil.

A nossa hipótese é que não existe um, mas vários Romances de Formação, os quais

surgem ao abordarmos historicamente este gênero. No caso do Romance de Formação chileno

e brasileiro da primeira metade do século XX, o gênero desenvolve-se principalmente no

contexto dos governos oligárquicos e se apresenta em romances de ruptura com as duas

dimensões dessa ordem social: com a sua base tradicional-patriarcal (no caso do Brasil) e com

o seu projeto de modernização (no caso do Chile).

Por outro lado, para compreender as manifestações concretas deste gênero no Chile e

no Brasil, não precisamos fazer refêrencia a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, nem

à definição clássica que se articula a partir da questão da integração-desintegração do herói na

sociedade burguesa. De fato, parece-nos que o interesse central do Bildungsroman é pensar a

questão da inserção social, mas em função de outro elemento que lhe é mais fundamental: a

formação, instância que é a grande busca do Bildungsroman e para cuja consecução cada

autor terá de achar o seu próprio caminho.

14

I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1. Formação

Do misticismo ao humanismo

Para apresentar de maneira introdutória o significado da palavra Bildung ou Formação

gostaríamos de nos focar num aspecto que consideramos fundamental para compreendê-lo: o

processo de secularização que este termo sofreu desde o seu sentido religioso original, até o

seu significado, poderíamos dizer, laico. Isto se iniciou durante as últimas décadas do século

XVIII, período durante o qual uma grande quantidade de escritores começou a redefinir o

termo Bildung, transformando-o de um conceito místico a um conceito humanístico (KONTJE,

1993, p. 1).

A palavra germânica Bildung teve “sua origem na mística medieval, sua sobrevivência

na mística do barroco, sua espiritualização fundada religiosamente pelo Messias de

Klopstock, que acolhe toda uma época, e, finalmente, sua fundamental determinação como

ascenso da humanidade com Herder” (GADAMER, 1992, p. 38, tradução nossa). Como o expõe

Todd Kontje, no seu livro The german Bildungsroman, history of a national genre, na fase

religiosa do significado da palavra, esta supunha uma visão teológica do homem. Segundo a

mitologia cristã, desde o pecado original o ser humano tinha quebrado a sua unidade com

Deus, tinha sido deformado, e, como tal, devia esperar passivamente a graça da divindade

para assim reconstruir a imagem de Deus em si mesmo e recuperar a unidade perdida com

ele5. A formação referia-se, assim, a esse processo não humano que se operava no homem

pela intervenção divina.

Por contraditório que pareça, a significação mística tinha como pano de fundo o

conceito antigo de formação como formação natural, inspirada na manifestação exterior das

mudanças do corpo ou da natureza. Nesse contexto formação designava, portanto, um

processo fundamentalmente externo que, como veremos, foi ficando à margem do conceito

5 Ibid., p. 1.

15

atual (que está vinculado, como veremos, fundamentalmente à vida espiritual do indivíduo e

da sua cultura). Contudo, tal significado de formação tinha um duplo aspecto, referindo-se a:

“a forma externa ou aparência de um indivíduo (Gestalt; latim: forma) e ao processo de dar

forma (Gestaltung; formatio)” (K ONTJE, 1993, p. 1, tradução nossa).

Fazendo parte da transformação geral que sofre a cultura ocidental durante as últimas

décadas do século XVIII, o conceito da Bildung muda radicalmente:

Em lugar de serem recipientes de uma forma preexistente, os indivíduos agora desenvolvem gradualmente seu próprio potencial inato, mediante a interação com o seu ambiente. O imaginário do crescimento natural substitui o modelo de intervenção divina. A transformação na perfeita unidade de Deus passa a ser o desenvolvimento de um único ser. Deus não mais se encontra separado do mundo, mas se transforma na força da natureza – de fato, a unidade panteística da natureza6.

Como já foi anunciado, o momento decisivo na história desta palavra começou com

Herder, no século XIX, e culminou com Kant e Hegel, os quais levaram a termo a cunhagem

feita pelo primeiro. Como diz Gadamer, o conceito de formação que atualmente utilizamos

vem determinado por este momento em que formação é quase inseparável do termo cultura

(desenvolvimento de capacidades e talentos), designando, assim, o modo especificamente

humano de dar forma a essas capacidades e disposições naturais do homem (GADAMER, 1992,

p. 39).

A visão de Herder sobre a Bildung encontra-se delimitada por três elementos: pela

importância da genética, do determinismo ambiental e, por último, do relativismo cultural.

Para Herder a Bildung envolvia, assim, o desenvolvimento de capacidades inatas potenciais

sob a influência de uma particular localidade geográfica e cultural, a qual, por sua vez, era

responsável pelas diferenças culturais entre os distintos grupos da espécie humana7. Esse forte

sentido do determinismo ambiental teve nele um desenvolvimento teórico positivo, pois

semeou um relativismo cultural dirigido não só às culturas do passado, mas também às do

presente, ao estabelecer que cada civilização tem o seu próprio topo de desenvolvimento.

Deste modo permitiu avançar no reconhecimento das diferenças culturais num momento de

6 Ibid., p. 2. 7 Ibid., p. 2.

16

duro imperialismo, baseado na ideia de que cada cultura, passada ou presente, possui o seu

particular espaço-tempo.

Kant, em particular, não utiliza ainda a palavra formação, mas fala de uma “cultura da

capacidade” enquanto ato de liberdade do indivíduo (GADAMER, 1992, p. 39). Esta “cultura da

capacidade” kantiana, no nosso modo de ver, expressa-se muito bem no texto “Resposta à

pergunta: que é esclarecimento?”, onde Kant desenvolve o que ele entende por iluminismo,

termo que pode ser considerado um antecedente do conceito de formação.

Certamente, o termo esclarecimento não é o mesmo que formação, pois o primeiro

aponta a uma saída da menoridade regulada e ativada pela incorporação da razão; e o segundo

não é uma saída da menoridade, mas, sobretudo, um processo. O esclarecimento refere-se à

passagem concreta de um estado a outro: de uma menoridade autoculpada a uma maioridade

em que o homem começa a pensar sem o auxílio de um tutor. Enquanto que a formação

poderia ser simbolizada como um “estado de trânsito” entre os dois pontos, como a região de

penumbra entre a escuridão da menoridade e a luz da maioridade racional. Como iremos ver,

no entanto, muito em comum têm estes dois termos.

Tanto esclarecimento como formação são conceitos que, em maior ou menor grau,

fogem da lógica dos conceitos técnicos, isto é, os que se articulam com base em meios e fins

específicos. Esclarecimento é uma saída da menoridade e, nesse sentido, visa a um objetivo:

a maioridade autoconsciente. Mas esta expressão, no ensaio de Kant, carece de um conteúdo

claro, e isto não é o resultado de um déficit na sua conceitualização, mas expressa uma

questão fundamental da natureza do termo.

Se o esclarecimento tivesse, no ensaio de Kant, um conteúdo explícito e, portanto, um

objetivo determinado estaria mais próximo de conceitos teleológicos como a pedagogia. Ao

contrário, o termo que ele está tentando definir visa, precisamente, à emancipação de tais

formas de educação com o fim de propiciar o autodesenvolvimento. No entanto, é preciso

reconhecer que, apesar de aberto, o esclarecimento parece cercado pelos limites dados pela

racionalidade e, neste ponto, afasta-se daquilo que entenderemos por formação.

Por outro lado, ambos os movimentos têm de dar-se não no espaço das grandes

tensões históricas, mas sim no âmbito do quotidiano e do privado, do dia-a-dia do cidadão

17

comum. Já o esclarecimento parte de um pensar por si sobre os interesses e espaços

particulares, mas visando, por meio do uso público da razão, o “público verdadeiro” que é a

grande comunidade humana leitora.

Hegel “ao contrário, fala já de ‘formar-se’, de ‘formação’, precisamente quando se

serve da ideia kantiana das obrigações para consigo mesmo” (GADAMER, 1992, p. 39, tradução

nossa). Segundo a apresentação feita por Gadamer em Verdad y método, Hegel usará o termo

formação para referir-se ao processo de “ascenso à generalidade” que o ser humano, em

virtude do seu lado espiritual, precisa empreender para chegar a ser o que deve ser, condição

que não lhe é dada por natureza. De modo que “a essência geral da formação humana é

converter-se num ser espiritual geral. Quem se abandona à particularidade é ‘inculto’, por

exemplo, o que cede a uma ira cega sem consideração nem medida” 8. Esta formação requer,

portanto, sacrifício da particularidade em favor da generalidade9, o que significa

“negativamente inibição do desejo e, em consequência, liberdade com respeito ao próprio

objeto e liberdade para a sua própria objetividade” 10. Nessa descrição “se pode reconhecer já

a determinação fundamental do espírito histórico: a reconciliação consigo mesmo, o

reconhecimento de si mesmo no ser outro” 11.

A formação prática realiza-se com base neste exercício de inibição do desejo que

permite ascender à generalidade e, ao mesmo tempo, voltar a si mesmo, em atividades muito

concretas como o trabalho, o cuidado da saúde ou a escolha profissional. Para Hegel o

trabalho forma o homem, que ao mesmo tempo só pode formar-se tendo consciência, e só

pode ter consciência trabalhando:

O trabalho é desejo inibido. Formando o objeto, e na medida em que atua ignorando a si e dando lugar a uma generalidade, a consciência que trabalha se eleva por cima da imediatez do seu estar aí para a generalidade; ou, como diz Hegel, formando a coisa, forma-se a si mesma 12.

8 Ibid., p. 41. 9 Ibid., p. 41. 10 Ibid., p. 41. 11 Ibid., p. 42. 12 Ibid., p. 41.

18

Algo de parecido acontece no cuidado da saúde: o homem mede-se a si mesmo na

satisfação dos seus desejos, visando a algo mais geral. Ou na escolha do seu destino

profissional, o que demanda do sujeito uma autolimitação ao exigir-lhe a realização de

atividades inicialmente estranhas para ele; mas que, uma vez superada a sua dificuldade,

passarão a formar parte do seu conjunto de capacidades.

Um movimento semelhante, e talvez ainda mais esclarecedor, observa-se na formação

teórica:

Pois comportamento teórico é enquanto tal sempre alheamento, é a tarefa de ‘ocupar-se de um não imediato, um estranho, algo pertencente à recordação, à memória ou ao pensamento’. A formação teórica leva para além do que o homem sabe e experimenta diretamente (...) precisamente por isso toda aquisição de formação passa pela constituição de interesses teóricos (GADAMER, 1992, p. 42-43, tradução nossa).

Para Hegel a formação significa a passagem de um estado natural a um estado

espiritual e isso acontece em cada indivíduo que “encontra no idioma, nos costumes e nas

instituições do seu povo uma substância dada que deve fazer sua de modo análogo a como

adquire linguagem (…) já que o mundo em que vai entrando está conformado humanamente

de linguagem e de costumes” 13.

A separação de significado entre cultura e formação só foi percebida, segundo

Gadamer, por Humboldt, ao afirmar: “quando em nossa língua dizemos ‘formação’, referimo-

nos a algo mais elevado e mais interior, ao modo de perceber que procede do conhecimento e

do sentimento de toda a vida espiritual” (apud GADAMER, 1992, p. 39, tradução nossa). É

com Humboldt, por outro lado, que o significado de formação desperta a velha significação

mística descrita nas páginas acima (o homem leva em si a imagem de Deus e deve reconstruí-

la), questão que, segundo Gadamer, explica o fato de em alemão ter triunfado a palavra

Bildung sobre a raiz Form, pois “em Bildung está contido ‘imagem’ (Bild), [enquanto que]

‘forma’ retrocede diante da misteriosa duplicidade com que Bild acolhe simultaneamente

‘imagem imitada’ e ‘modelo a imitar’ (Nachbild e Vorbild)” 14.

Já a partir de Herder pode-se observar como o modelo de intervenção divina é

substituído, principalmente, pelo imaginário orgânico do crescimento natural: “numa primeira 13 Ibid., p. 43. 14 Ibid., p. 40.

19

instância, Bildung se referia ao crescimento orgânico, à transformação da semente em fruto de

acordo com os princípios genéticos inatos” (KONTJE, 1993, p. 2, tradução nossa). A Bildung

passa, assim, a ser pensada com referência constante à genética (como vimos com Herder), ao

desenvolvimento das coisas da natureza e à dimensão física do ser humano, levantando

discussões sobre a relação que existe entre as disposições naturais do homem e a liberdade.

Em torno desse aspecto, de fato, é que podem ser reunidos os diferentes desenvolvimentos

dados ao conceito Bildung durante o classicismo de Weimar, momento em que este cumpriu

um papel central, com pensadores como Goethe, o já mencionado Humboldt e Schiller.

Goethe deu uma forma poética à teoria sobre o desenvolvimento orgânico, nos seus

livros A metamorfose das plantas (1799) e A metamorfose dos animais (1820), onde defende

a necessidade de o homem se desenvolver, também, de acordo com aquilo que lhe foi

destinado. Na sua autobiografia ele enfatiza a importância que a liberdade tem para tornar

esse desenvolvimento possível, dando, por outro lado, uma alta significação ética à realização

do cultivo pessoal 15. Por sua vez, Humboldt compartilha com Herder a crença de que a

genética teria um lugar predominante no desenvolvimento do homem e utiliza metáforas

orgânicas para falar do seu crescimento. No entanto, para ele o amadurecimento passivo da

natureza não é suficiente no caso do ser humano, a quem corresponde a responsabilidade de

desenvolver a “semente” inicial que esta lhe oferece. Assim, “a liberdade se transforma no

primeiro e essencial requisito para a Bildung pessoal” 16. Schiller, por último, entra no

diálogo afirmando que, à diferença dos animais, para os quais a Bildung é simplesmente

aquilo que a natureza faz deles, o ser humano livre deve atingir a sua formação por força da

sua própria vontade.

Na sua Educação estética do homem, mantendo esta opinião, Schiller, no entanto,

recua até certo ponto, vislumbrando a necessidade de manter um equilíbrio entre as demandas

éticas e as necessidades físicas do ser humano, equilíbrio que seria, por sua vez, umas das

tarefas centrais da educação estética 17. Como já sabemos, a proposta de Schiller foi um

esforço por reelaborar a teoria kantiana que, por sua vez, foi a que estabeleceu a noção do

campo estético como autônomo, sobre a qual trabalha, renovadamente, o poeta filósofo.

15 Ibid., p. 3-4. 16 Ibid., p. 4. 17 Ibid., p. 4.

20

Kant isola a questão do conhecimento científico no compartimento da razão pura, e

coloca as questões morais e estéticas (apesar de não ser pouco aquilo de que elas

compartilham), também, em âmbitos separados (ROJO, 2003, p. 11). Deste modo, atribui ao

“estético um libreto nada mais do que seu dentro da distribuição dos papéis que supõe a

moderna divisão do trabalho intelectual, administando para isso compartimentos separados

para a verdade, o bem e a beleza” 18. O lugar que Kant atribui ao juízo estético surge a partir

da questão central da sua epistemologia: a da incognoscibilidade das coisas em si. Para ele,

também o sujeito transcendental não é a classe de coisa que possa ser conhecida, pois não é

um objeto, senão o ponto de vista do conhecimento. Do mesmo modo, todos sabemos que,

para Kant, os objetos são tão incognoscíveis quanto o sujeito e que “a coisa em si kantiana

não é propriamente uma coisa, mas sim o vocábulo com que se designa a não disponibilidade

dessa coisa” 19. O estético apareceria, assim, como o ponto de vista que permitiria corrigir ou

dar uma saída a estas limitações da razão pura. Com respeito ao plano do homem e à

necessidade de buscar uma solução ao problema da sua integração social:

(…) obriga Kant a empurrar seu exame da relação que estabelecemos com nossos semelhantes para além da razão pura e, até mesmo, para além da razão prática, e a alojá-lo, por dizer assim, no último round da sua aposta filosófica, na figura do sujeito e nos sentimentos de ‘prazer’ e ‘desprazer’ que ele mesmo experimenta (Kant, 131). É lá onde os seres humanos nos reunimos efetivamente, onde uma certa estrutura de intersubjetividade faz-se por fim possível 20.

Já no que diz respeito aos objetos:

(...) de novo, o estético é capaz de ir ao socorro da filosofía, porque, na esfera do juízo estético, os objetos que se descobrem parecem reais ainda que estejam dados para o sujeito inteiramente, verdadeiros pedaços de Natureza material que, no entanto, são deliciosamente dóceis à atividade da consciência 21.

18 Ibid., p. 11, tradução nossa. 19 Ibid., p. 9-10. 20 Ibid., p. 8. 21 Apud ROJO, 2003, p. 10.

21

Em concordância com a estrutura kantiana geral, a experiência estética – para terminar

o nosso brevíssimo resumo – não pode ser equiparada nem à experiência de conhecimento

propriamente dita, que resulta das operações da razão pura submetendo o particular à

universalidade do conceito; nem à experiência moral que se refere a um ato subordinado a um

imperativo categórico, de validez universal. Compartilhando com esta o fato de não acontecer

dentro do domínio da razão pura teórica, a experiência estética possui, no entanto, um modo

próprio de proceder:

(…) diferentemente da experiencia moral, manifesta-se como uma ação desinteressada, como uma finalidade sem fim, que se concentra no prazer pelo prazer e se desentende dos dividendos mais altos que do lado oposto são alcançados, fazendo efetivo um desdobramento combinado da vontade e do dever com vistas a um cumprimento total do imperativo categórico. Por isso, a arte kantiana é o fruto agridoce da capacidade que os seres humanos temos para nos entregar a exercícios de complacência que não são nem podem ser ponderáveis desde o ponto de vista da sua utilidade ou da sua moralidade (ROJO, 2003, P. 10-11, tradução nossa).

Este é o ponto de partida das ideias que Schiller defende sobre estética, mas à

diferença de Kant – que busca dar uma explicação racional subjetiva – ele tentará oferecer um

fundamento objetivo para o belo22. Para Schiller, a arte tem, em última instância, a sua origem

no jogo, o lugar de confluência entre o impulso sensível e o impulso formal que, sem deixar

de dar prazer, acolhe a ação estruturante da forma, sobrepondo-se a si mesmo e conferindo

liberdade num sentido superior àquela oferecida pela total ausência de constrições. A

atividade estética, portanto, além de ser uma atividade natural, prazerosa e, até,

autocomplacente, tem nas suas raízes, em concordância com esse impulso sensível, um

impulso profundamente formal. Assim, quando o jogo físico consegue articular esses dois

22 Diz Schiller na carta de 25 de janeiro de 1793 dirigida a Körner: “É interessante notar que minha teoria é uma quarta forma possível de explicar o belo. Explica-se o belo objetiva ou subjetivamente; e, a rigor, ou de modo subjetivo sensível (como Burke e outros), ou subjetivo racional (como Kant), ou objetivo racional (como Baumgarten, Mendelsohn e todo o bando de homens da perfeição), ou, por fim, de modo objetivo sensível: um termo que decerto não lhe dirá muito agora, a não ser se você comparar entre si as três outras formas. Cada uma dessas três teorias anteriores detém uma parte da experiência e contém manifestamente uma parte da verdade; e o erro parece ser meramente que se tenha tomado essa parte da beleza, que concorda com ela, pela beleza mesma (...) Acho que a sua observação pode ter a grande utilidade de separar o lógico do estético, mas no fundo ela me parece perder inteiramente o conceito da beleza. Pois a beleza se mostra no seu supremo esplendor justamente quando supera a natureza lógica do seu objeto, e como pode ela superar onde não há nenhuma resistência? Como pode ela dar a forma à matéria inteiramente informe? Estou ao menos convencido de que a beleza é apenas a forma de uma forma e que o que se chama a sua matéria tem de ser simplesmente uma matéria formada. A perfeição é a forma de uma matéria; em contrapartida, a beleza é a forma dessa perfeição, que está pois para a beleza como a matéria para a forma” (SCHILLER, 2002, p. 41-41).

22

planos do sensível e do formal, do natural e do racional, este passa a ser um jogo estético,

lugar onde se reencontram, portanto, a esfera da arte, da verdade e da moralidade.

Este curto e sem dúvida parcial resumo das ideias de Schiller a partir dos conceitos

kantianos centrais, refere-se aos aspectos mais doutrinais da questão, pois os aspectos

políticos que certamente estão envolvidos gostaríamos de reservá-los para o final deste

capítulo. Por enquanto, importa-nos adiantar que os elementos envolvidos na visão

schilleriana da arte implicam uma série de disposições por parte do ser humano que seriam

educáveis (formáveis), pois se encontram à disposição de qualquer pessoa, sempre que a essa

pessoa lhe tenham sido oferecidas as oportunidades básicas e sempre que ela conte com a

energia necessária para desdobrar as suas capacidades, superando as limitações da Natureza

(ROJO, 2002, p. 24). O fim da educação seria, então, o de nos educarmos para entrar na

civilização, mas numa civilização que não pretende esmagar aquilo que faz com que o homem

pertença, também, ao mundo dos seres naturais, preservando a liberdade essencial do ser

humano, mas lhe oferecendo uma forma que “não só não a diminua, mas, ao contrário, a

expanda e a enriqueça” 23.

Após esta breve história do conceito de formação gostaríamos de utilizar um recurso

de contraste para chegar à definição que nos parece mais fiel ao espírito da palavra e mais

próxima do seu sentido humanista.

Quando falamos de formação não estamos pensando num processo técnico composto

por meios e fins, como acontece quando refletimos sobre as instâncias que compõem, por

exemplo, o processo pedagógico (para usar um conceito familiar a nosso assunto e, aliás,

muito discutido pelo Romance de Formação). Na concepção mais tradicional, este último

caracteriza-se por ser um processo educativo unilateral orientado pela figura de um tutor que,

em consequência, passa a ser o protagonista deste processo. Por outro lado, a educação assim

compreendida, encontra-se restrita a um âmbito institucional e nela a aprendizagem é

entendida como um uso específico e, poder-se-ia dizer, limitado da inteligência, que fica

reduzida à capacidade de assimilar um conjunto de técnicas e mecanismos para aquisição de

informação. A pedagogia, portanto, seria teleológica, já que tem uma finalidade clara: a

aquisição, por parte dos estudantes, de determinados saberes que não têm relação com a sua

23 Ibid., p. 24.

23

experiência pessoal e existencial, mas com o desenvolvimento específico das habilidades que

estes saberes possibilitam. Por último, pelo fato de ter um caráter institucional e acontecer

dentro do espaço limitado da escola, a pedagogia se desenvolve segundo o funcionamento e,

portanto, os interesses desta instituição. E o saber que nela se distribui é transmitido dentro de

uma rígida distribuição de papéis: o tutor ou professor é quem ensina, e o aluno é quem

aprende. O primeiro seria ativo e o segundo passivo, posições que, da ótica pedagógica

tradicional, não seriam intercambiáveis.

Ao contrário, “o resultado da formação não se produz ao modo dos objetos técnicos,

mas surge do proceso interior da formação e conformação, e se encontra por isso num

constante desenvolvimento e progressão” (GADAMER, 1992, p. 40, tradução nossa). Como na

natureza, a lógica da formação não conhece objetivos exteriores, motivo pelo qual esta

palavra parece-se muito com a physis grega. Assim, diferentemente da especificidade do

processo pedagógico:

Na formação, nós nos apropriamos por inteiro daquilo no qual e através do qual nos formamos. Nessa medida, tudo o que ela incorpora se integra nela, mas o incorporado na formação não é como um meio que tenha perdido a sua função. Na formação alcançada nada desaparece, mas tudo se guarda. Formação é um conceito genuinamente histórico e é precisamente deste caráter histórico da ‘conservação’ que se trata na compreensão das ciências do espírito 24.

Formação e transformação

A Bildung, especialmente entre os classicistas de Weimar, foi um conceito de fortes

implicações políticas. À violência da Revolução Francesa ela opunha outro caminho de

mudança social baseado numa transformação orgânica, estável e progressiva, vinda da

educação de cidadãos capazes de superar as deficiências da sociedade moderna mediante o

desenvolvimento da sua humanidade como um todo respeitando, ao mesmo tempo, o lugar da

lei. Neste marco é de especial importância o lugar que ocupa o projeto da educação estética

proposto por Schiller, cujos fundamentos eram compartilhados também por Goethe25.

24 Ibid., p. 40. 25 Esta concordância entre Schiller e Goethe não é evidente. Por isso apontamos a referência em que nos baseamos para afirmá-la: “A noção de Bildungs tem fortes implicações políticas para todos os três classicistas de Weimar. Cada um contrasta a violência da Revolução Francesa, com a estabilidade do crescimento orgânico” (KONTJE, 1993, p. 4, tradução nossa). “Este tema extrema-se no tardio romance de Goethe, Wilhelm Meister´s

24

Para Schiller, o aspecto constitutivo da Natureza é a sua tendência à liberdade, e a

natureza humana não pode permanecer alheia a esse princípio. A passagem do Estado natural

para o Estado moral deveria realizar-se, consequentemente, em conformidade com essa

premissa essencial. Sem embargo, ela mesma implica uma perda da realidade material no

homem e é desse problema político, que se extrai a importância do estético. Já que “à

liberdade se chega por meio da beleza” (ROJO, 2003, p. 14, tradução nossa) e que no desfrute

do belo o ser humano vive a sua liberdade, mas de uma forma que é natural e, ao mesmo

tempo necessária; o prazer estético constituir-se-ia num terceiro caráter, na região de trânsito

entre o Estado natural e o Estado moral 26. O seu cultivo promove, portanto, a constituição de

melhores instituições políticas que, tendo introduzido uma certa forma de convivência entre

os seres humanos, não só não obstaculizem mas também contribuam ao exercício da

liberdade27.

Para o autor das Cartas.... a arte, portanto, tinha um papel social e uma força

revolucionária capaz de resgatar o lugar sagrado da liberdade, mas sem desvencilhar-se do

império da forma. Por homologia, essa sujeição formal do ‘impulso sensível’ tem sido

associada pela crítica a um “limar-lhe as unhas ao potencial puramente transgressor da arte, a

um simultâneo limar-lhe as unhas à energia proletária que o próprio Schiller tinha visto

desatar-se no delírio da ditadura jacobina”, e vista como o ponto essencial e a determinação

última da proposta estética de Schiller 28. Aceitando a viabilidade dessa interpretação, o que

para esta introdução teórica nos interessa é a índole da utopia schilleriana. Baseada no papel

revolucionário da arte enquanto atividade capaz de levar o homem a um estado pleno em que

a Natureza não desconhece os logros da Razão e a Razão não violenta as prerrogativas da

Natureza 29; ela encobre um “ideal integrador para o qual a vida humana tende por si só (...) e

para cuja realização os indivíduos e os povos teriam que remontar-se (Schiller), ou de cujas

possibilidades não deveriam mutilar-se (Rodó)” 30

Wanderjahre [As viagens de Wilhelm Meister] (1821-1829). Num encontro com o personagem Montan (Jarno no Lehrjahre), Wilhelm Meister faz um sutil apelo ao optimismo do século dezoito, lembrando que uma Bildung multifacetada tinha sido alguma vez considerada vantajosa e necessária” (Ibid. p. 5-6). 26 Ibid., p. 14. 27 Ibid., p. 14. 28 Ibid., p. 14. 29 Ibid., p. 16. 30 Ibid., p. 17.

25

2. Sobre o Romance de Formação

O Bildungsroman: um gênero histórico.

A maioria da crítica dos séculos XIX e XX sobre o Romance de Formação, inclusive

grande parte da crítica progressista, tem trabalhado a partir do que Todd Kontje distingue

como a interpretação conservadora de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de

Goethe. Ela espalhou-se com Dilthey durante o período da unificação alemã e a crítica

nacionalista (1870), transformando-se no locus clássico da definição de Bildungsroman. No

entanto, trata-se de uma construção anterior que começou a se perfilar já com Blackenburg

(em 1774) durante a articulação da sua teoria do romance, e depois com Körner e

Morgenstern (entre 1803 e 1804), estando estreitamente ligada ao processo de canonização da

literatura alemã e à progressiva identificação do Bildungsroman com a imagem de um gênero

que expressava o caráter introspectivo e espiritual da nação germânica.

Segundo essa definição conservadora, o Bildungsroman seria um tipo de romance

culto orientado a fins superiores que não o do divertimento, mediante o retrato do crescimento

psicológico do seu protagonista (Blanckenburg), um “belo homem” (Körner) que vai tomando

forma gradualmente a partir da interação entre as suas prediposições naturais e as

circunstâncias externas com que entra em contato até atingir um estado harmônico de perfeito

equilibro e liberdade (KONTJE, 1993, p. 11). O percurso deste belo homem descreveria, assim,

um percurso exemplar e representativo capaz não só de mostrar a formação do protagonista,

mas também de induzir à educação do próprio leitor (Morgenstern) 31.

No entanto, como diz José Amícola 32, os gêneros literários não são entidades fixas,

“formas eternas” ou essências que possam ser abstraídas das condições históricas em que

estes se desenvolvem. E essa definição essencialista, ingênua, canonista, germanista e

31 Com o fim de favorecer a síntese e a clareza, organizamos esta definição reunindo os conteúdos acrescentados pelos autores mais representativos desta tradição crítica. 32

Amícola parafraseia Barrenechea: “‘Uma das novidades que a teoría literária do século XX vai introduzir nos estudos sobre os gêneros literários (…) consistirá na convicção de que as molduras genéricas são cambiantes e que elas têm sido analisadas com padrões a-históricos’” (AMÍCOLA , 2003, p. 127).

26

didática, na verdade corresponde a uma definição dentro de uma tradição crítica específica

que vem sendo revisada e transformada ao longo dos anos, não só mediante novas

interpretações do Wilhelhm Meister, mas também mediante a aparição de outros

Bildungsromane e da apropriação do tema por parte de diferentes escolas críticas. No seu

conjunto, essas circunstâncias, obras e autores têm ido historicamente “formando o Romance

de Formação”.

Já desde o primeiro romantismo, esse que pode ser compreendido como o dogma do

Bildungsroman foi questionado por diferentes pensadores que pareciam detectar na obra de

Goethe um fundo irônico dentro desse quadro harmônico, que não foi percebido pela crítica

conservadora (KONTJE, 1993, p. 8). Estamos pensando em Schiller, Schlegel e Novalis. Se a

primeira linha de intérpretes culminou com a crítica fascista que quis acentuar, mais uma vez,

o caráter profundamente alemão do gênero, esta segunda foi muito importante para os

comentadores de pós-guerra e os estudos recentes mais relevantes sobre o Bildungsroman 33.

Na opinião de Schiller, Körner tinha exagerado a importância do protagonista da obra

de Goethe, dando pouca atenção à totalidade estrutural do seu trabalho 34, a qual estava

marcada (segundo as suas próprias ideias estéticas) pela passagem da “‘leere Unendlichkeit’

[vazio infinito] da juventude, na sua carta número XXI sobre o conceito de educação estética,

à ‘erfüllte Unendlichkeit’ [infinito pleno] do seu ideal estético e antropológico (1795, 635)”35.

Neste mesmo ponto, por sua vez, concentrou-se Schlegel na hora de estudar Os anos de

aprendizado, propondo que o fundamental neste romance não consistia no retrato de carateres

e eventos, mas sobretudo na qualidade metaficcional e autorreflexiva da sua estrutura:

Schlegel argumenta que Goethe não retrata a Bildung de um determinado indivíduo. Na opinião dele, o princípio fundamental que Goethe ilustra com numerosos exemplos é o processo natural da Bildung em si mesma, reduzida a seus aspectos mais simples. Como resultado, Schlegel possui um afiado olho para perceber a ironia com que o narrador vê o desenvolvimento de Wilhelm. ‘Mas eles são também, no final das contas, anos de aprendizado em que nada é aprendido além de existir’ (141). Na visão de Schlegel, o romance não termina com a maturação triunfante de Wilhelm Meister, mas com a sua passiva aquiescência à vontade da sociedade da torre 36.

33 Ibid., p. 12. 34 Ibid., p. 11. 35 Ibid., p. 10. 36 Ibid., p. 11.

27

Novalis, por sua vez, situa-se numa posição fortemente crítica com respeito à obra de

Goethe, a qual considera mundana e hostil a tudo que fosse místico, poético, romântico ou

irracional. Ele antecipa também as futuras interpretações políticas do Wilhelm Meister, ao

criticar a entrada do protagonista ao grupo de nobres que conformam a Sociedade da Torre,

delimitando uma leitura alternativa à de Körner e uma posição descomprometida com respeito

ao Wilhelm Meister, que se materializou no seu próprio Bildungsroman: o Heinrich Von

Ofterdingen (1802) (KONTJE, 1993, p. 12).

Esta situação inicial da crítica sobre o Bildungsroman oferecida por Todd Kontje,

composta por tensões e interpretações variadas que, a partir de diferentes escolas filosóficas e

literárias, desafiam a definição tradicional, impõe a necessidade de desdobrar uma

compreensão histórica do Romance de Formação. Quer dizer, uma compreensão que não

depende de uma definição fixa, mas principalmente de um processo de significações que, a

partir de condições concretas irrepetíveis (temporais, geográficas, culturais e subjetivas), que

estabelecem condições expressivas e de comunicação únicas entre autor e leitor, vão

construindo um significado dinâmico e cambiante do gênero, composto por manifestações

sempre novas e originais.

Isso não significa, ainda assim, que falar em Romance de Formação seja um erro

epistemológico. Significa, bem antes, que quando queremos fazê-lo é preciso levar em

consideração o sistema todo em que este emerge, respeitando os limites dentro dos quais tal

manifestação do gênero se encerra. Do contrário, o risco iminente será o de universalizar

formas concretas, culturalmente circunscritas, estabelecendo-as como “as” formas, o que nos

levará, em última instância, à perda do gênero que se procura, na falta de uma realização exata

dessa abstração.

Exemplo deste modo de compreender o gênero é o próprio trabalho de Todd Kontje,

The German Bildungsroman: History of a National Genre (1993), o qual consegue levantar

doze definições de Romance de Formação de acordo com as diferentes fases da literatura e da

crítica ao redor do gênero. As definições mais significativas apresentadas por Kontje

estendem-se desde a publicação do Wilhelm Meister até a Primeira Guerra Mundial, momento

em que surge o cânone da literatura alemã, composto por Goethe, Stifter, Keller e Thomas

Mann. A partir da crítica de pós-guerra a tendência será basicamente a de questionar este

28

legado, processo que se dispara a partir da análise neorromântica de Karl Schlechta em 1953,

com que se começa a instalar a consciência da ironia reconhecida inicialmente por Shlegel.

Três momentos comporão este processo de questionamento na crítica de pós-guerra. O

momento imediatamente posterior, em que o espírito crítico vai codificar respostas ao passado

recente da Alemanha (KONTJE, 1993, p. 28). O momento da crítica dos anos sessenta, cujo

ceticismo oferecerá, também, análises textuais com um grau maior de sofisticação 37. E, por

último, a Crítica Ideológica e a Teoria da Recepção dos anos setenta em que “o desinteresse

por questionar a autoridade da herança clássica alemã coincidiu com as revoltas estudantis, as

quais submeteram o gênero a um afiado escrutínio” 38.

As primeiras definições de Romance de Formação que Todd Kontje oferece são as do

Primeiro Romantismo, representadas não só pela obra de Goethe, a definição conservadora

articulada por Körner e a resposta de Schlegel já referidas, mas também pelo Bildungsroman

de atmosfera decididamente mais “romántica”, de Novalis e Tieck (Franz Sternbald´s

Wanderungen, 1798), que vai se desenvolvendo paralalelamente às discussões levantadas por

esses autores. Articulado como uma releitura e uma resposta ao romance de Goethe, este se

caracteriza principalmente pelo seu corte místico e seu alto teor irracional, que intensifica a

importância do artista e o efeito poético da narração: “(Novalis) vai mais longe no tempo, à

Idade Média, encenar o seu romance, o qual fala da descoberta que um jovem faz dos seus

talentos como poeta. [Ele] intensifica o efeito poético do seu texto, incorporando vários

contos de fadas na narrativa, inclusive um da sua própria invenção” 39.

Após este Romance de Formação, teríamos também o do período “pré-revolução de

Março” (1815-1848), determinado por uma crítica liberal não acadêmica que tinha por

programa a democratização da cultura e da esfera pública. Este romance apresenta uma

significativa transformação em relação ao Bildungsroman romântico desdobrando duas

manifestações novas do gênero. Em primeiro lugar, o Bildungsroman satírico-paródico,

representado pelo romance de Joseph Freiherr Von Eichendorff, intitulado Ahnung und

Gegenwart (1815) 40, onde o cenário bucólico transforma-se numa amarga sátira à cultura

urbana de salão contemporânea ao autor, evidenciando “um nacionalismo pangermânico e um

37 Ibid., p. 50. 38 Ibid., p. 62, tradução nossa. 39 Ibid., p. 13, tradução nossa. 40 Pressentimento e presença.

29

estrito moralismo católico muito alheio ao espírito do romance romântico e do Lehrjahre”

(KONTJE, 1993, p. 15, tradução nossa). Dentro desta linha inclui-se, também, a sátira política e

social de E.T.A Hoffmann: Lebens-Ansichten des Katers Murr 41 (1819-1821), cujo herói

principal é um gato e que funciona como uma autobiografia que parodia as pretenções do

novo tipo social representado pela “formação do filisteu, que adquire cultura como símbolo de

status” 42. Em segundo lugar, está o Bildungsroman que se desdobra sob a influência dos

romances históricos de Walter Scott 43 durante a década de vinte, e o romance social de

Honoré de Balzac, George Sand and Eugène Sue, durante as décadas de trinta e quarenta.

Com o fim de repensar o papel da literatura, Goethe e o seu trabalho são relegados ao passado

pelos jovens críticos liberais, que começam a achar a “interioridade germânica” como um

elemento suspeito e a ver a popularidade dos textos como uma virtude e uma forma de sair

dos sistemas idealistas e especulativos para se dirigir à realidade contemporânea 44. O

romancista que conseguiu materializar este programa foi Karl Leberecht Immerman, com a

obra Die Epigonen 45 (1836), onde segue Goethe ao se concentrar numa figura central, mas ao

mesmo tempo usa o romance para fazer um panorama da sociedade germânica durante a

Restauração.

Entre 1948 (a Revolução de Março) e 1871 (a unificação alemã), surge um novo tipo

de Romance de Formação. A crítica volta a se academizar e os autores, filósofos e críticos da

época tendem a buscar uma despolitização do gênero para voltar a uma definição clássica que

foi pautada pela definição hegeliana de romance (baseada no Romance de Formação

goethiano): “(...) sua referência ao típico tema do romance moderno, isto é, o aprendizado ou

a educação do indivíduo contra as demandas da realidade existente revela claramente que tipo

de trabalho adota como modelo para o gênero” 46. Hegel focaliza-se na conclusão

problemática do romance de Goethe, captando a ironia ignorada pela definição acrítica

primeiramente produzida por Körner e seguindo a tradição de Schiller. Instala-se, portanto, a

ideia de que o tema do romance radica no conflito entre a poesia do coração e a prosa do

41 A vida e as opiniões de Tomcat Murr. 42 Ibid., p. 15. 43 Principalmente Ivanhoe, traduzido ao alemão em 1820. 44 Ibid., p. 18. 45 Os epígonos. 46 Ibid., p. 23.

30

mundo (KONTJE, 1993, p. 23), entre a vida interior e o rigor do mundo exterior 47, fórmula

que é atualizada diferentemente pelos autores deste momento: por Vischer, com a sua

Aesthetic (1957) e Adalbert Stifter, em Der Nachsommer 48 (1857) – ambos os quais acabam

extirpando a ironia enfatizada por Hegel e fazendo apologia da vida familiar –; e por Gottfried

Keller, em Der grüne Heinrich 49, (1854-1855) e Julian Schmith – que conformam a

contrapartida negativa dos primeiros, seja questionando o lugar da familia no romance, seja

questionando o próprio Goethe e o desejo de Wilhelm Meister de abdicar dos seus próprios

desejos para atender às demandas da sociedade 50.

Com a unificação da Alemanha em 1871 e a discussão sobre a identidade nacional que

o novo contexto propõe aos atores do campo cultural, o Romance de Formação volta-se a

focalizar na figura de Goethe, que passou a ser um dos “pilares espirituais” da nação e o ponto

de referência para toda a nova literatura que haveria de surgir. Estabelece-se um cânone de

autores que iria criar a identidade cultural do país e favorecer a união política. A literatura é

institucionalizada pelas autoridades, pondo-a ao serviço do Estado e os textos clássicos

passam a formar parte básica da educação primária e secundária 51. Neste contexto o

significado do Romance de Formação (e da formação) transfere-se do plano individual ao

plano coletivo, simbolizando a evolução da literatura nacional e do espírito germânico:

Deste modo, o Bildungsroman se transforma no gênero predileto da literatura alemã: o desenvolvimento orgânico do herói para a maturidade e para a integração social reproduz em miniatura o movimento da literatura alemã em direção à sua maturação, e esta literatura, por sua vez, inspira a unificação da nação germânica 52.

A definição de Dilthey apareceu várias décadas depois deste período, no seu livro Das

Erlebnis und die Dichtung 53 (1906) e, apesar de uma parte dela (a parte que teve maior

impacto na crítica de até a primeira metade do século XX) ter sido uma simples reprodução da

definição conservadora iniciada por Körner, ela trouxe novos significados para o Romance de

47 Ibid., p. 25. 48 Veranico. 49 O Jovem Enrique. 50 Ibid., 27. 51 Ibid., p. 28. 52 Ibid., p. 29. 53 Vivência e poesia.

31

Formação. À visão aparentemente afirmativa do Bildungsroman de Goethe ele acrescenta

uma contextualização histórica que identifica este romance com uma era perdida, “tocada pela

luz dourada da nostalgia, mas que registra a fútil batalha de heróis introvertidos por

afirmarem-se a si mesmos contra o Poder do estado militar e burocrático” (KONTJE, 1993, p.

30, tradução nossa). Ao mesmo tempo, ele historiza a questão do desenvolvimento interior do

protagonista, interpretando-o como uma compensação pela significativa falta de participação

que a burguesia de 1800 tinha dentro da esfera pública 54.

Com a publicação de Le Roman Experimental em 1880 começa uma nova fase dentro

do romance alemão, o qual assume uma posição de rejeição, mas também de assimilação das

novas tendências estrangeiras francesas (e inglesas). O Bildungsroman deixa de ser visto

como uma coisa do passado e passa a ser compreendido como um gênero que se estende para

o século XIX sob novas formas e novas preocupações. Todd Kontje toma como referência

para entender este momento o trabalho de Heinrich Driesmans, “Der alte und der neue

Erziehungsroman” 55 (1904), que detecta um progressivo interesse do Romance de Formação

“em aquilo que chama de ‘das genealogische Moment’ (249), uma espécie de interesse

darwiniano na questão da herança, da raça e da criação” 56, aproximando-se, portanto, do

Naturalismo europeu. “Os romancistas não mais retratam figuras típicas e saudáveis, bem

antes se concentram na psicopatologia do indivíduo subnormal que é visto como o produto de

‘eine hereditäre Verelendung und physiologische Verarmung’ [uma deterioração hereditária e

um empobrecimento fisiológico]” 57. Ele traça este processo passando por diversos autores de

pouco renome e conclui designando os Buddenbrooks, de Thomas Mann, como o típico

Romance de Formação trágico deste momento 58.

Seguindo a tendência da época, Georg Lukàcs, na sua Teoria do Romance (1920), não

só se serve das referências hegelianas que marcam a crítica de entre 1848-1945

(complementando-as com a visão romântica da ironia e com o pessimismo de Kierkegaard),

mas também atribui ao Wilhelm Meister Lehjahre o caráter representativo da leitura canonista

(KONTJE, 1993, p. 33). No entanto, ele nada tem a ver com as tendências nacionalistas da

54 Ibid., p. 30. 55 “O velho e o novo Romance de Educação”. 56 Ibid., p. 31. 57 Ibid., p. 53, grifo nosso. 58 Ibid., p. 31.

32

época, que mostram o romance de Goethe como o triunfo do espírito alemão, nem com os

excessos patrióticos do contexto da Primeira Guerra (KONTJE, 1993, p. 33). Lukács constrói

uma tipologia da forma do romance, organizando-a dialeticamente e propõe que o Wilhelm

Meister oferece um intento de síntese e de reconciliação entre o sujeito problemático e a

realidade social, mas um intento “que necessariamente não alcança o seu objetivo” 59.

“Goethe esforça-se por dar validez universal à experiência de um puro indivíduo, mas no final

não pode disfarçar o fato de que ele não habita ‘um mundo transcendente puro e estável’

(137); as fissuras da modernidade não podem ser disfarçadas” 60.

Por último, queremos fazer referência à definição de Thomas Mann, que conclui que o

Bildungsroman moderno só pode ser escrito como uma paródia da tradição passada, pois para

ele o contexto conservador do gênero tinha caído com o avanço da democratização e a

literatura estava se abrindo, progressivamente, a formas “não alemãs”; formas ideologizadas e

radicais representadas pelo romance social. Isto pressupõe uma visão despolitizada do

romance de Goethe que mais tarde ele mesmo questionou ao reconhecer a sua obra como uma

antecipação “do progresso alemão da interioridade à objetividade, à política e à

democracia”61, que se expressariam no tratamento de temas humanos como a locura e a

morte. Foi a estas novas ideias políticas que o próprio Mann tentou dar forma no seu romance

Der Zauberberg.

A historicidade dos gêneros, deste modo, é o pressuposto que permite e, por sua vez,

exige o reconhecimento de diversos tipos de Romances de Formação que podem e devem ser

delineados ao levantarmos condições históricas de diferentes índoles: estilísticas, temporais,

nacionais, continentais, de gênero, de classe, entre outras. A partir da crítica disponível,

assim, é possível constatar a existência de várias outras definições. Atendendo às variáveis

nacionais, fala-se de um Bildungsroman alemão (representado principalmente pelos Anos de

aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe), outro inglês (encarnado por Dickens nas suas

Ilusões perdidas) e outro francês (o famoso Vermelho e negro de Stendhal), só para nomear

os mais mencionados pela crítica; e nenhum deles, por mais que erga pretensões de

universalidade, pode ser coroado como “o” Bildungsroman. Ao mesmo tempo, no entanto, é

59 Ibid., p. 35, tradução nossa. 60 Ibid., p. 34. 61 Ibid., p. 36.

33

importante ter presente que, apesar dessas distinções nacionais, os estudos distinguem

também um Bildungsroman europeu, com as suas próprias características gerais e a sua

própria ideologia, como pretende demonstrar José Santiago Fernandez Vasquez em “Uma

aproximação à ideologia colonial europeia da óptica do Bildungsroman clássico”. Este

Bildungsroman europeu, por sua vez – como é de se supor já a partir do título desse estudo –,

não pode ser transposto sem mais para falar daquilo que configuraria o ainda extremamente

indeterminado Bildungsroman latino-americano, na sua fase pós-colonial. Por último, no

plano do sujeito, fala-se também e com justiça de um Bildungsroman especificamente

feminino, que se mostraria como uma virada radical à linhagem absolutamente patriarcal do

Bildungsroman clássico.

Para chegar a uma imagem daquilo que caracterizaria o Bildungsroman chileno e

brasileiro é importante, portanto, estabelecer com clareza os traços específicos de, pelo

menos, alguns desses tipos, com o fim de evitar a sua transposição arbitrária num universo

completamente alheio em termos geográficos, históricos, culturais e subjetivos. Antes de

entrar nessas definições, sem embargo, é preciso esclarecer que elas são articuladas por

autores que formam parte de uma terceira fase da crítica sobre o Romance de Formação. Uma

Crítica pós-moderna 62 focada em questões frequentemente ignoradas pelos estudos anteriores

do gênero que compreenderam o Bildungsroman como um tipo de texto principalmente

alemão, europeu e ligado ao cânone; aplicando o termo germânico ao estudo de outras

literaturas nacionais. Deste modo, em lugar de reconhecerem o Bildungsroman como um

gênero exclusivamente alemão, compreendem-no como um tipo de texto que, para além das

ligações nacionais, vincula-se com a modernidade em geral (KONTJE, 1993, p. 110-111),

dedobrando análises a partir da crítica dos elementos que lhe são constitutivos:

(...) a crítica do século XIX e de inícios do XX definiu o Bildungsroman como um gênero patriarcal e nacional que tinha a posição mais importante no novo cânone literário. [Em contrapartida] Muitos dos estudiosos atuais do Bildungsroman seguem pelas vias da crítica pós-moderna à modernidade: ela é feminista, internacional e questiona as distinções entre a ficção culta e a popular num esforço por

62 Fazemos referência a esta terceira fase proposta por Todd Kontje como uma maneira de reunir as definições que se desprendem do resto da crítica sobre Romance de Formação que temos consultado. No entanto, a partir daqui deixaremos o fio argumentativo oferecido por Kontje, a fim de articular as definições que nos parecem importantes de serem destacadas para uma aproximação ao gênero, sem seguir estritamente as questões da crítica pós-moderna propostas pelo crítico alemão (apesar de elas atuarem como fundamento das pesquisas de que se vale este estudo).

34

reabilitar trabalhos esquecidos, vendo a literautra como parte de um tecido social mais amplo 63.

Variedades nacionais europeias: O caso do Bildungsroman clássico alemão.

Antes de empreender qualquer estudo sobre o Romance de Formação, é preciso ter

clareza sobre o que queremos dizer quando falamos de Bildungsroman clássico alemão. Para

além das definições anteriormente mencionadas – que, apesar de reelaboradas, como iremos

ver, muitas vezes continuam operando, mas dentro de um discurso novo e contrário ao

conservadorismo da definição inicial – é necessário entender que com isso se está fazendo

menção ao modelo que, representado por Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,

formou-se a partir de um determinado contexto filosófico-cultural, literário, político e,

poderíamos dizer, discursivo. Assim, ele não pode isolar-se do movimento geral do

Iluminismo e da progressiva consolidação da estética como ciência, com a Crítica do juízo

kantiana (1790) e as Cartas sobre a educação estética do homem (publicadas no mesmo ano

do mencionado romance de Goethe: 1795). Questão que, de fato, tem levado críticos como

Hilldebrand, citado por José Amícola, à afirmação de que tal gênero: “é inseparável do

operativo ilustrado cujos porta-vozes são Herder, Schlegel e Madame de Stäel (Hilldebrand

1993: 124-134)” (AMÍCOLA , 2003, p. 148, tradução nossa).

Por sua vez, estas bases filosóficas e culturais, que funcionaram, em grande medida,

como fundamento daquilo que aparece representado no romance de Goethe, foram as que

permitiram a sua consolidação como gênero culto e prestigioso, espécie de “norma do

romance” (SALMERÓN, 2002, p. 22), que, ao mesmo tempo, começava a traçar a divisão de

águas entre o romance em geral e outros tipos narrativos, como o romance de aventuras e o

romance gótico; ambos considerados gêneros menores. Tal questão já estava sendo discutida

antes da aparição de Os anos de aprendizado... por Blanckenburg no seu Versuch über den

Roman (Ensaio sobre o romance, 1774), quem, sem usar ainda o termo Romance de formação

(cunhado por Morgenstern em 1813), via no Agathon (1767) de Wieland (considerado por

muitos teóricos o primeiro Romance de Formação, mesmo que não o de maior impacto) a

63 Ibid., p. 111.

35

manifestação de uma forma de narrativa que elevava o romance à categoria de um gênero

capaz não só de provocar “dispersão, mas que também tinha influência nos costumes e devia

conduzir à verdade” (SALMERÓN, 2002, p. 44, tradução nossa). Este caráter “prestigioso” e

“canônico” surgia, portanto, também, pela criação de um contraste com outros gêneros do

século XVIII que poderíamos chamar de populares, sendo a sua antítese mais direta o já

anunciado romance gótico. Orientado ao resgate obscurantista do passado medieval,

protagonizado principalmente por mulheres e interessado pela difusão do mal e a

apresentação das paixões humanas; este último configurava uma matriz totalmente oposta à

que podemos imaginar de um gênero que encaixava perfeitamente com os já mencionados

movimentos que colocavam a razão e o varão no centro da cena. Outro destes gêneros

populares com que pode ser contrastado o Bildungsroman é aquele distinguido por Mijail

Bajtín como “o romance de provações (em russo: roman ispitanii) que apresentava um herói

imutável na sua realização como pessoa com o pano de fundo de um mundo que o submetia a

provar a sua valentia” (AMÍCOLA , 2003, p. 131, tradução nossa). Ao contrário, no

Bildungsroman, “A ideia de mudança psicológica na personalidade do protagonista é, então,

essencial para a compreensão bajtiniana deste gênero (em russo: roman vospitanii)” 64.

Por último, segundo José Amícola, que, por sua vez, parafraseia Redfield, “a reflexão

sobre o nascimento deste gênero é inseparável (...) da virada burguesa que se dá com a

Revolução Francesa” 65. Em função disso, segundo o crítico italiano, a variante alemã do

gênero teria sido um intento por demonstrar que era possível evitar a Revolução Francesa

mediante um pacto entre a nobreza e a burguesia que fosse capaz de salvar a ruptura gerada

por esta última e “imaginar a continuidade entre o velho e o novo regime” (MORETTI, 2000,

viii, tradução nossa). Isto teria sido simbolizado através da realização de um processo de

formação e socialização por parte do protagonista que expressava um abandono do universo

burguês e um deslocamento ao mundo aristocrático representado pelas formas de socialização

próprias desta classe (principalmente no Wilhelm Meister, de Goethe): jornais, conversações,

música, dança, cultura humanística. Deste modo, a formação do Bildungsroman clássico

realizava-se não no terreno histórico, mas sim nas significações atribuídas aos eventos do dia-

a-dia, e representava o projeto de uma classe para a qual este se situava numa posição de

64 Ibid., p. 131. 65 Ibid., p. 131.

36

confiança (o que de modo algum acontecia com o já mencionado romance gótico):

Por este motivo, a aparição (esperada) de um subgênero “de aprendizado” implicava a narração de uma aculturação do eu, onde a integração do eu concreto na subjetividade geral de uma comunidade permitisse a passagem para a subjetividade geral de toda a humanidade. Ao parecer, Goethe teria dado esse passo, mas por trás estava a necessidade do “absoluto literário”: uma criação da burguesia alemã em espera da sua expressão (...) A própria formação da ideia de uma literatura nacional na Alemanha se explica a princípio pelo antagonismo político com a França, cuja cultura ocupava uma posição hegemônica na Europa” escreve Pascale Casanova (AMÍCOLA, 2003, p. 133, tradução nossa).

Ao se articular como uma resposta conservadora à abertura caótica e à desintegração

social que estupra a unidade do indivíduo no romance francês, o Bildungsroman goethiano

(segundo afirma Marianne Hirsch, em quem me baseio para desenvolver estes últimos pontos)

insiste na inviolabilidade do indivíduo e na necessidade de este manter o seu equilíbrio

transcendendo o conflito entre o sujeito e a sociedade mediante uma solução de “tendência

utópica”. Em sintonia com isso, a sociedade neste romance tem uma significação mais

simbólica do que real, refletindo a tendência a criar um espaço separado do social, em que o

conflito é removido e, em consequência, a possibilidade de um crescimento satisfatório

aumentada. Segundo Marianne Hirsch, isso explica-se pela teoria do romance alemã, cujo

objetivo era representar a saudade pela poesia e a harmonia mais do que um mundo real

fragmentado. Por sua vez, a natureza simbólica do Bildungsroman alemão corresponde à

noção de “Urleben”, um estado de ilimitada potencialidade e disponibilidade em que o

personagem em formação nunca entra definitivamente no particular para, assim, manter-se

sempre atual e individual.

Por último, é importante destacar o caráter “organicista” da concepção goethiana da

Bildung, para quem o ser humano seria como uma planta que desenvolve as suas capacidades

inatas, questão que explica a centralidade do indivíduo neste Bildungsroman. Um indivíduo

que ascende eticamente, “exemplarmente”, num processo formativo que corresponde a um

processo de autorreconhecimento: ele descobre o seu ser autêntico e realiza seu destino

pessoal na admissão da responsabilidade social, relegando o papel do dinheiro a um mero

meio, e colocando o valor estético dos objetos por cima do seu valor material. O narrador, a

partir de sua superioridade irônica, seria quem amarra esta progressão, observando os eventos

narrados do ponto de vista dos valores e dos significados que só ele conhece.

37

Bildungsroman e revolução: outros modelos nacionais

Neste ponto, o desenvolvimento de Franco Moretti resulta de particular utilidade. Para

ele, o modo como os eventos provocados pela Revolução Francesa foram elaborados pelas

diferentes nações europeias foi o que detonou as diferenças estruturais entre os

Bildungsromane de cada país. De fato, foi entre 1789 e 1848 – isto é, na cultura do período

entre a Revolução Francesa e o triunfo do capitalismo – que surgiram os grandes modelos

europeus, fundando-se, por sua vez, o gênero. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

(1795), de Goethe, na Alemanha; Grandes esperanças (1860-1861), de Charles Dickens e

Orgulho e preconceito (1813), de Jane Austen, na Inglaterra; As ilusões perdidas de Honoré

de Balzac (1839), e Vermelho e negro (1839), na França, para nomear só os livros mais

emblemáticos; todos eles, a partir de seus diferentes contextos, surgem na mesma cojuntura

histórica e, poderíamos dizer, em importante medida, graças a ela.

A maneira particular como estes romances se vinculam com essa realidade histórica

não segue, ainda assim, a fórmula que se esperaria de obras surgidas num contexto público tão

explosivo e publicamente chamativo como é o da “Era das revoluções” e isto fica patente em

três dimensões que caracterizam, de modo geral, o Bildungsroman do século XIX europeu.

Em primeiro lugar, o universo privado dentro do qual este se circunscreve, relegando a uma

“prudente distância” a esfera das “grandes ondas coletivas do século XIX. A Revolução

Francesa, as guerras napoleônicas, a industrialização, 1830, 1848” (MORETTI, 2000, p. vi-vii,

tradução nossa), que parecem ficar separadas do destino individual dos personagens. Por

outro lado, o caráter forte (e estranhamente) aristocrático que estes romances possuem, apesar

de seus protagonistas serem de origem social comumente burguesa. Isto se expressa, como

dissemos, num abandono do universo da burguesia e num deslocamento ao mundo

aristocrático, o que situaria o Romance de formação na beira de dois setores sociais, a

burguesia e a aristocracia, como um recurso orientado a suavizar a ruptura gerada pela

Revolução Francesa. Por último, está o caráter certamente apolítico do gênero, sendo Stendhal

a única hipotética exceção que, no entanto, Moretti descarta, pois encontra em Julien Sorel um

senso do dever tolo e geralmente subordinado a interesses pessoais, configurando um herói

estranho, mistura mal resolvida de radicalismo e ambiguidade.

38

A cojuntura revolucionária, por um lado, e o encontro do burguês com o aristocrático, por outro, têm uma explicação de longo prazo nestes romances: a burguesia do século XIX refuncionalizou alguns aspectos do modo de viver aristocrático para sua própria formação – e o Romance de formação, por sua vez, foi a forma simbólica que mais acabadamente refletiu este estado de afetos. Percebe-se nestes romances uma pergunta recorrente – afora o trabalho, o que é o burguês? O que ele faz? Como ele vive? – e a resposta que volta uma e outra vez: é uma estranha mistura do velho com o novo, com uma improvisada e cambiante identidade (MORETTI, 2000, p. ix, tradução nossa).

Apesar do Romance de Formação do século XIX europeu ser “aristocrático”,

“apolítico” e “a-histórico”, a importância que teve a Revolução Francesa na sua configuração

(e na do romance em geral) parece ser essencial. Seguindo as sugestões dos estudos mais

atuais sobre o gênero, pode-se dizer que foi em função dos modos pelos quais cada cultura se

apropriou das grandes transformações geradas por ela, que surgiram, de fato, as diferenças

poéticas entre os dois modelos de Romance de formação delimitados pela crítica: por um

lado, o romance familiar inglês (Dickens, Austen) junto com o do Bildungsroman clássico

(Goethe) e, por outro, o romance francês e russo (Stendhal, Balzac, Flaubert e Pushkin).

Seguindo as ideias de Moretti, com a Revolução Francesa, a Europa liga-se à

modernidade sem propriamente ter uma cultura ou um significado dessa modernidade, e tal

significado precisou ser procurado através de recursos simbólicos, dentre os quais se encontra

o Romance de Formação. O referido gênero seria, então, na visão do crítico italiano, uma

forma simbólica da modernidade que ofereceria uma imagem específica desta última,

convergente, por um lado, com os atributos juvenis de mobilidade e inquietude interna e, por

outro, com a noção filistéia de que essa juventude não pode durar para sempre; configurando,

assim, um gênero (e uma imagem de modernidade) intrinsecamente contraditórios. A

juventude seria a essência da modernidade, o signo de um mundo que percebe a tradição

como inútil e não pode se identificar mais nem com a maturidade nem com a velhice. Mas,

por outro lado, essa noção dinâmica deve inserir-se num outro marco que limite essas noções

para conseguir, ao mesmo tempo, representá-las e chegar a constituir uma forma. O

Bildungsroman seria um símbolo que reuniria essas duas forças contraditórias, forjadas com o

fim de conseguir organizar as mudanças geradas pela Revolução, as quais apareciam como

algo sem sentido para a cultura europeia.

A interação dessas duas forças são analisadas textualmente por Moretti através do

enredo, com o fim de fazer justiça ao caráter histórico-narrativo que ele observa na cultura

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europeia do século XIX (e que explica, também, a centralidade da história e da ciência neste

período). Auxilia-se, para isso, como já temos anunciado, de duas estratégias discursivas

propostas por Lotman, sob a suposição de que os diferentes modelos de Romance de

formação se perfilam a partir do modo como elas são moduladas por cada cultura, a fim de

organizar o cenário de mudanças.

Assim, no romance familiar inglês e no Bildungsroman clássico alemão primaria o

“princípio de classificação”, estratégia retórica de vocação teleológica e normativa, em que as

transformações narrativas têm sentido sempre que levem a um final particular e determinado.

Aqui se insere, de fato, o “romance de casamento”, ato classificativo por excelência, que pode

ser, aliás, simbólico e significar, por exemplo, o “casamento” com uma cultura

normativamente rígida. Os romances em que rege este princípio colocam a felicidade como o

valor mais alto, sempre que seja em detrimento da liberdade. E a juventude é subordinada à

ideia de maturidade: ela só tem significado se leva a um final estável. Quanto ao

Bildungsroman alemão, já o temos caracterizado nas páginas anteriores. Com respeito à

versão britânica do gênero, o central do argumento de Franco Moretti é que este se serve de

formatos especialmente conservadores e normativos (como o conto de fadas e o romance

cômico), pois na Inglaterra a revolução teria acontecido há mais de um século, motivo pelo

qual a cultura não teria a necessidade de difundir valores relativos a qualquer forma de

transformação.

Ao contrário, os romances francês e russo do período estariam regidos sob o

“princípio de transformação”: o que faz a história significativa é a sua narratividade, o fato de

ser um processo de final aberto. O significado devém não do fato de cumprir com uma

determinada teleologia, mas de rechaçá-la. O final, efetivamente, é pouco significativo e

apresenta-se sob formas arbitrárias, indeterminadas e inesperadas. Aqui se incluiriam formas

como o “romance de adultério”, tipo de relação totalmente inconcebível pela tradição anglo-

germânica. E o dinamismo juvenil é enfatizado, pois a juventude não quer abrir caminho para

uma maturidade que, na verdade, implica uma privação do significado da juventude antes que

um enriquecimento.

Apesar de cada cultura modular estes dois princípios de maneira diferente, dando

predomínio a um por sobre o outro (geralmente, em relação inversamente proporcional); uma

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condição sine qua non é que, no Bildungsroman, ambas as estruturas têm que existir. Os

princípios de “classificação” e “transformação” expressam a contradição central da

mentalidade moderna ocidental, para a qual o Romance de formação oferece uma solução

particular: o compromisso. Isto é, a possibilidade de seguir uma lógica que não é pautada pela

solução trágica de “ou um ou outro”, senão aquela mais comprometedora do “tanto um,

como...”. Há, no Romance de formação, uma evasão dos pontos de ruptura históricos; uma

evasão da tragédia e da ideia de que as sociedades e os indivíduos adquirem total significado

num momento de verdade. Neste sentido, ele deve ser compreendido como um gênero débil.

O Bildungsroman seria o gênero mais contraditório das formas modernas: com ele

descobrimos que em nosso mundo a socialização é a interiorização da contradição, é aprender

a viver com ela. Olha a normalidade de dentro, mais do que desde suas instâncias de exceção,

e produz uma fenomenologia que faz da normalidade algo interessante, significativo e

internamente articulado.

O Romance de Formação europeu em geral: forma e ideologia

Ora, além destas variações nacionais, é também importante reconhecer aqueles traços

que caracterizam o Bildungsroman europeu em geral. Marianne Hirsch, no seu artigo, “The

novel of formation as genre”, oferece uma interessante proposta sobre o que seria esta norma

europeia de um ponto de vista formal, mediante uma definição genérica do Romance de

Formação do século XIX. Propõe, primeiro, sete categorias para, mais tarde, passar a uma

localização da estrutura do gênero com respeito a outros dois que lhe são comumente

associados: o Romance Picaresco e o Romance Confessional. No seu conjunto, elas permitem

falar de um Romance de Formação europeu em geral, polemizando com certas opiniões que

defendem a hipótese de este ser um gênero exclusivamente alemão. Transcrevemos aqui as

referidas categorias, pois, além de úteis de um ponto de vista crítico, funcionam como uma

boa introdução ao gênero:

1. O Romance de Formação é um romance que se focaliza num personagem central, um Figurenroman. É a história de um indivíduo representativo que aprende e cresce, o protagonista é um personagem

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essencialmente passivo, um joguete das circunstâncias. Incapaz de controlar seu destino, ele é quem dá forma aos eventos sem, de fato, causá-los. O desenvolvimento do herói é explorado de várias perspectivas no romance de formação que visa à formação de uma personalidade total, física, emocional, intelectual e moral.

2. O interesse do Romance de Formação se orienta a ambos, o biográfico e o social. A sociedade é o antagonista do romance e é vista como a escola da vida, o locus para a experiência. Consequentemente, o romance de formação não representa um panorama da sociedade e deve, por isso, ser distinguido do romance social panorâmico.

3. O enredo do Romance de Formação é uma versão do romance de prova. Este retrata a busca de uma existência significativa, de valores autênticos que facilitem o desdobramento de capacidades internas. O enredo linear cronológico, de acordo com Scholes and Kellog, representa “o movimento geral para enfatizar o personagem em narrativa”, desde que este “permite um desenvolvimento livre e pleno do personagem, sem interferência dos requerimentos de um enredo de tecido apertado. O crescimento é um processo gradual que consiste num número de encontros entre necessidades subjetivas e uma ordem social inflexível. Já que este envolve a consideração de várias alternativas, o processo de crescimento precisa de erros e as buscas, de falsos guias.

4. O primeiro interesse do Romance de Formação é o desenvolvimento de uma individualidade, os eventos que determinam a vida do individuo, e não todos os eventos dessa vida: este tipo de romance é uma história de aprendizado e não uma biografia total. A sua solução projetada é uma acomodação à sociedade existente. Enquanto cada protagonista tem a possibilidade de aceitar ou rejeitar, cada romance termina com um posicionamento preciso, com uma avaliação de si mesmo e de seu lugar na sociedade.

5. O ponto de vista narrativo e a voz, seja na primeira ou na terceira pessoa, são caracterizados pela ironia com respeito ao protagonista, mais do que pela nostalgia da juventude. Há sempre uma distância entre a perspectiva do narrador e a do protagonista.

6. Os outros personagens do romance cumprem funções fixas e diversas: os educadores servem como mediadores e intérpretes entre as forças do si mesmo e a sociedade; os companheiros servem como reflexos do protagonista, presentes para diferentes objetivos e fins (por exemplo, Wilhelm Meister and Lothario, Emma Woodhouse and Jane Fairfax, Lucien de Rubemp´re e David Séchard); os amantes proveem a oportunidade de educar os sentimentos. (No romance de formação estas figuras são subordinadas ao protagonista, diferente de como acontece no romance social, onde todos os personagens possuem iguais centros de interesse).

7. O Romance de Formação é concebido como um romance didático, que educava o leitor retratando a educação do protagonista [tradução nossa]” (HIRSCH, 1979, p. 296-298, tradução nossa).

Um interessante complemento a esta visão do romance de formação europeu em geral

é o oferecido por Jose Santiago Fernández Vasquez, na monografia intitulada “La novela de

formación, una aproximación a la ideología colonial europea desde la óptica del

Bildungsroman clásico” (2002). Ele faz um esforço notável por estabelecer os vínculos entre a

forma do Romance de Formação clássico e a ideologia colonialista. Pressupondo, como nós,

que esta corresponde a uma variante específica do gênero e não à sua norma, Fernández

Vasquez analisa como a ideologia do colonialismo é absorvida pelo Bildungsroman das

grandes potências europeias, assumindo que “existe uma conexão entre as convenções

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narrativas do BR e determinados pontos de vista ideológicos, que foram utilizados para apoiar

as políticas colonialistas” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 84, tradução nossa). Assim, o argumento, a

figura do mentor, o tópico do deslocamento campo-cidade, a importância do individualismo, a

preponderância do público sobre o privado, a relação com o ideal humanista, o discurso em

torno da identidade que este gênero defende, a imagem de sujeito presente nele e a estrutura

linear historicista que o organiza seriam simbolizações de uma tal filiação.

Quanto ao primeiro, o crítico diz: “A passagem do herói do Bilsdungsroman da

ignorância ao conhecimento é paralela ao desenvolvimento que as populações colonizadas

teriam de experimentar graças ao projeto civilizador dos europeus” 66, e “A ideia da infância

como um estado de consciência primitivo em que se precisa da tutela de outros é uma das

imagens que tornaram possível a ocupação de territórios estrangeiros” 67. Na mesma linha

corre a função cumprida pelo mentor nos relatos do velho continente, figura que costuma ser a

expressão de um projeto pedagógico em que se pode rastrear a influência do pensamento

ilustrado. Na leitura de Fernández Vásquez, este último identifica a maturidade histórica com

o racionalismo, atribuindo, para aqueles que não alcançaram dito estágio, a necessidade de

manter-se sob a tutela de um mentor que, “como os colonizadores (...), justifica sempre suas

ações pelo proveito que delas pode tirar o protagonista, ainda que a sua atuação suponha

também, como acontece com a tutela colonial, um menosprezo da liberdade do indivíduo” 68.

Com respeito ao recorrente tópico da migração campo-cidade, o crítico espanhol detecta ali

uma contribuição ao sucesso da empresa colonial, unindo a iniciação do protagonista com a

exploração de uma geografia desconhecida. De outro lado, o individualismo tão característico

deste tipo de romances seria expressão do que se pode distinguir como um dos:

(...) fetiches da cultura ocidental e, sobretudo, uma das características que a diferenciam das culturas nativas das antigas colônias, para as quais a primazia da comunidade – ou dos habitantes do mundo sobrenatural – sobre o indivíduo é um dos traços principais que nos permitem distinguir as histórias pós-coloniais dos relatos ocidentais 69.

66 Ibid., p. 85. 67 Ibid., p. 85. 68 Ibid., p. 87. 69 Ibid., p. 92.

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O individualismo, por sua vez, vincula-se ao caráter privado deste tipo de histórias

que, como mencionamos, localizam-se num terreno sempre afastado dos pontos de definição

histórica, fazendo com que “o mundo colonial, que necessariamente teve de jogar um papel

fundamental nas sociedades em que floresceu o BR clássico, incorpore-se ao texto quase

sempre de forma indireta e simbólica” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 101, tradução nossa). É

inevitável, nesta linha de argumentação, não nos referirmos também à relação deste gênero

com o ideal humanista desenvolvido no século XVIII alemão, o qual possui uma contradição

de base que envolve, em última instância, conflitos de classe, gênero e relativos ao

colonialismo, pois, se, por um lado, este acreditava na existência de uma subjetividade

universal que se manifestaria de maneira diferente nas distintas culturas, “na prática, o

programa de aprendizado projetado pelos pensadores alemães ficou limitado às classes

superiores e dele foram excluídas as mulheres e outros grupos sociais minoritários” 70. Tal

visão da subjetividade, por sua vez, sustenta-se num discurso em torno da identidade,

caracterizado por três traços principais. Em primeiro lugar, por uma visão que flutua entre

duas concepções: a orgânica, a qual “implica que a sociedade se limita a ajudar o indivíduo a

desenvolver suas potencialidades inatas por si mesmo, sem interferir mais do que o

estritamente necessário” 71 e a construtivista, que:

(...) sugere que a sociedade não desempenha só uma função coadjuvante na formação do eu, mas que controla todo o processo de maneira ferrenha, dirigindo o indivíduo por um caminho estabelecido previamente, ao mesmo tempo que o faz conceber a ilusão de que atua por si mesmo 72.

Ambas as visões operavam também no discurso colonial, o qual “flutuou entre uma

defesa até a morte do essencialismo e a crença de que o entorno é o responsável último pela

construção do sujeito” 73. Em segundo lugar, este processo de formação do sujeito não é

realizado mediante a aplicação de um poder coercitivo, mas é o protagonista que se

transforma a si mesmo em sujeito, a partir de um “silêncio opressor” 74 que “pretende inculcar

no leitor a crença de um sujeito centrado, unitário, criado a partir da repressão de outras

70 Ibid., p. 94. 71 Ibid., p. 95. 72 Ibid., p. 95. 73 Ibid., p. 95. 74 Ibid., p. 99.

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formas de subjetividade, que ficam nas margens do romance” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 102,

tradução nossa). Por último, isto expressa-se na estrutura narrativa do Bildungsroman, a qual

se configura a partir de dois actantes principais: o “eu narrado” e o “eu narrador”, duplicidade

que ameaça introduzir uma cisão na identidade que o BR evita utilizando diferentes

procedimentos. Por exemplo, mediante a redução da distância entre os actantes e a recorrência

à memória, com o fim de dar unidade ao fluxo de impressões que este experimenta. No

entanto, segundo Fernández Vásquez:

(…) a imagem de unidade que se transmite ao leitor é uma quimera. A alteridade está sempre presente no relato ocidental, ameaçando a possibilidade do discurso hegemônico. Esta ameaça pode adotar formas diversas: desvio sexual, criminalidade, selvagismo (...). No Bildungsroman clássico, o protagonista rejeita todos aqueles que representam o outro, inclusive quando desempenharam um papel determinante na sua formação 75.

Um tal processo de “recalque do outro” 76 implica também uma negação de tudo

aquilo que está ligado ao mito e à fantasia, o que, seguindo os esquemas orientalistas

definidos por Said, é relegado, pelo discurso colonial, ao terreno das colônias, ficando para o

mundo europeu –sob a influência do positivismo e da ilustração- o domínio da racionalidade.

75 Ibid., p. 105. 76 Ibid., p. 108.

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II. O BILDUNGSROMAN BRASILEIRO: A POÉTICA DO MUNDO E A PROSA DO MUNDO, RUMOS

CONTRA A CASA-GRANDE.

As cinco obras que iremos analisar ao longo destas páginas são imensamente

diferentes entre si e constituem variantes singulares do Romance de Formação. Elas

distribuem-se na extensão de um período amplo que vai de 1888 até 1943 e fazem parte de

contextos históricos, culturais e literários também distintos, que lhes oferecem materiais

humanos e estilísticos novos, a partir dos quais potenciam a sua singularidade. Esse quadro de

diferenças que iremos desenvolver mais à frente dá-se, no entanto, dentro de uma

problemática comum que atravessa os textos e a partir da qual quisemos integrá-los. Trata-se

da questão do patriarcalismo e da polêmica que esses romances levantam contra a estrutura

social tradicional representada pela cultura organizada ao redor do homem, cuja elaboração

define, ao mesmo tempo, duas tradições. A primeira delas é uma tradição poética, composta

pelas obras de Pompeia, Andrade e Lispector, que aborda a problemática do patriarcado como

um problema subjetivo de emancipação espiritual. A outra, uma tradição prosaica, que

acrescenta a esses elementos vinculados ao sujeito, questões associadas à configuração social

do mundo em que cada uma delas se desenvolve. Esta tradição é erigida pelos romances de

Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

O patriarcalismo pode ser abordado de um ponto de vista cosmopolita, a partir do qual

os romances seriam lidos como relatos que propõem uma emancipação das formas ocidentais

de pensamento e socialização; ou de um ponto de vista localista que, sem desmerecer o

anterior, abre a possibilidade de compreendê-lo como um fenômeno que tem a ver com a

vivência particular e cultural da qual os próprios textos surgem.

No caso do Brasil, esta compreensão local do que seja o patriarcalismo nos é oferecida

pelo ensaio histórico-antropológico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1935),

particularmente pelos capítulos “A herança rural” e “O homem cordial”. Este ensaio, diga-se

de passagem, foi escrito na década de trinta, quer dizer, no coração da época que estamos

estudando, momento em que os estudos histórico-sociais voltam-se à compreensão e à análise

da “realidade brasileira”, formando parte do movimento geral de unificação, engajamento e

transformação da cultura que está experimentando o país nesse momento.

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Para Sérgio Buarque de Holanda, o patriarcalismo foi, antes de tudo, um legado

instaurado ao longo da colonização pela civilização de raízes eminentemente rurais que os

portugueses instauraram no Brasil. Surge da organização econômica fundada no trabalho

escravo e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura (BUARQUE DE HOLANDA ,

1973, p. 42), na qual o dono de terras, sem réplica, manda e domina. O eixo desta sociedade é

a família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico 77, a qual

se dilata para os escravos das terras e das casas, expandindo a autoridade da figura paterna

que a lidera, numa mistura de dominação e familiaridade:

Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da antiguidade, em que a própria palavra ‘família’, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi 78.

As relações que primam neste universo patriarcal são, portanto, relações particularistas

modeladas pelo trato entre consaguíneos, e dentre as quais se pode dizer que não há formação,

pois os seus vínculos são extremamente estreitos e, não raro, opressivos. A mulher, os filhos e

os trabalhadores encontram-se aqui fixos diante da obediência que devem render ao pai-

patrão; travando o seu desenvolvimento individual em função da manutenção do sistema

social em que estes se encontram inseridos.

A primeira ruptura desta ordem tradicional foi a abolição da escravidão em 1888,

momento que pode ser lido como o primeiro grande passo na formação do Brasil

independente e que, por uma feliz casualidade, coincide com a data de publicação de O

Ateneu, o romance que, até onde sabemos, funda o Bildungsroman no Brasil. A partir daí, o

domíno do rural entra lentamente em declínio com a implantação de um novo tipo de

produção com base numa mão-de-obra livre e numa nova cultura de tendência cada vez mais

urbana. No entanto, apesar da crescente e efetiva modernização que o Brasil começa a

experimentar nesses anos, a República Velha – momento histórico que abrange a grande

maioria do tempo que aqui estamos estudando 79 – foi um período eminentemente agrícola e,

77 Ibid., p. 49. 78 Ibid., p. 49. 79 Isto é, de 1888 até 1930.

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portanto, muitos dos fundamentos dessa sociedade tradicional encontram-se ainda vivos.

Um rápido olhar ao contexto econômico-político confirma-nos isto. Em primeiro

lugar, as atividades produtivas do país concentram-se na lavoura do café, eixo da economia já

desde 1850, momento em que passa a ser quase a única da balança econômica brasileira,

deslocando a primazia das velhas regiões agrícolas do Norte e provocando a decadência das

lavouras brasileiras tradicionais (cana de açúcar, algodão, tabaco) (PRADO JUNIOR, 1977, p.

157). Certamente, os próprios negócios do café lançaram as bases para o desenvolvimento de

uma indústria nacional, mas ele foi relativo e restrito a uns poucos produtos (têxteis, de

alimentação e vestuário), sem chegar a conformar uma indústria de base (FAUSTO, 2012, p.

163). Todas as cidades cresceram, principalmente São Paulo, produto da imigração

espontânea e de pessoas que tentaram sair das atividades do campo. E a infraestrutura de

portos e ferrovias orientada a integrar os mercados desenvolveu-se graças aos empréstimos e

investimentos da Grã Bretanha 80. Sem embargo, esse processo foi sustentado por uma

estrutura econômica primordialmente agrária, organizada ao redor da grande propriedade

monocultora de exportação, que estendeu-se até a década de trinta, momento em que entra em

crise por causa da Grande Depressão e a dívida externa com que esta surpreende o país 81.

Por outro lado, a centralidade do mundo rural reflete-se também na organização

política da República Velha, caracterizada pelo controle de uma oligarquia de grandes

proprietários que, junto com o poder econômico, monopolizava o poder político mediante

partidos republicanos (PRP, PRM, PRR) restritos a cada estado, a partir dos quais defendiam

os interesses da classe e da lavoura cafeeira. Eles decidiam os destinos da política nacional, já

que “a população não podia quebrar o poder das oligarquias, pois só 1,4% deles votavam,

encarando a política como um jogo entre grandes e troca de favores” 82.

Por último, a ordem tradicional expressa-se no nível administrativo e nas relações

entre os estados, mediante o sistema federal que se instaurou com a Primeira Constituição

Republicana em 1891. Com ele as oligarquias dos diferentes estados “ficaram implicitamente

autorizadas de exercer atribuições diversas, como contrair empréstimos no exterior e

organizar forças militares próprias” (FAUSTO, 2012, p. 140), atribuições que “eram do

80 Ibid., p. 165. 81 Ibid., p. 165. 82 Ibid., p. 149.

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interesse dos grandes Estados e sobretudo de São Paulo” (FAUSTO, 2012, p. 140 ), pois eram

vitais “para que o governo paulista pudesse pôr em prática os planos de valorização do café” 83, decretar impostos sobre a exportação das suas mercadorias e organizar uma justiça própria.

Em relação a este ponto é de grande importância o fenômeno conhecido como a política do

“café com leite”, expressão que se refere à aliança estabelecida entre São Paulo e Minas

Gerais, os dois estados mais ricos da época, com o fim de comandar a política nacional,

alternando entre um e outro estado o poder presidencial, a fim de fazer prevalecer os

interesses das oligarquias locais: do café (no caso de SP) e do leite (no caso de MG) 84. Isto

pressupunha a configuração de estados com um alto grau de autonomia em relação à União, o

que favorecia a realização dos seus interesses particulares, sendo o caso mais extremo o de

São Paulo que, apesar de receber apoio de dois governos (Afonso Pena e Artur Bernardes) em

duas operações valorizadoras do café, uma vez perdido esse apoio, ainda assim “tiveram

meios de garantir sua autonomia e até certo ponto levar seus planos econômicos adiante” 85.

Como veremos, a presença deste domínio do rural-tradicional 86 faz-se sentir no

Bildungsroman da época, o qual compreende a formação como o processo de libertação da

cultura patriarcal ou, para pô-lo em termos visuais, como a colocação em movimento desse

quadro rígido em que as partes dessa sociedade começam a entrar a se emancipar: os filhos, os

trabalhadores e, por fim, as mulheres. Nesse sentido, diante do cenário histórico em que eles

se situam, os romances orientam-se a promover a ruptura entre o velho e o novo mundo: entre

o mundo patriarcal-oligárquico e a modernidade, propondo para isso uma formação mediante

deformação, a qual surgirá de diferentes formas de rompimento com os papéis sociais

estabelecidos por ela.

A entrada de Sérgio – o personagem de O Ateneu – no colégio mostra-se como a

passagem do domínio do familiar para o terreno da escola, que já expressa uma abertura do

âmbito do patriarcal-particular ao de uma sociabilidade mais impessoal, representada por essa

83 Ibid., p. 141. 84 Ibid., p. 150. 85 Ibid., p. 152. 86 A partir da década de trinta começa um lento caminho de desvencilhamento desta configuração política, econômica e administrativa, com o processo de industrialização que se intensifica notoriamente a partir do governo de Getúlio Vargas. Sem embargo, por enquanto iremos nos abster de desenvolver estes aspectos ligados à modernização para favorecer o fio argumentativo desta primeira parte, cujo objetivo é articular a questão do patriarcalismo – que organiza, distintamente, o Romance de formação da época – com o contexto dominante em que este se desenvolve.

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“megaempresa” educativa que é O Ateneu 87. No entanto, o educador modelo desse universo

continuará sendo um homem que soberanamente se levanta representando a norma que os

alunos haverão de obedecer e reproduzir. Diante dela, como veremos, o Sérgio-narrador vai

desdobrar um relato paródico orientado a desmantelar essa identificação entre homem e

norma, perspectivando a figura de Aristarco e narrando a formação de Sérgio-menino em

oposição aos caminhos traçados por ele.

Em Memórias sentimentais de João Miramar, a polêmica sobre o patriarcalismo

desdobra-se sob a influência do modernismo e, particularmente, do futurismo. João Miramar

forma parte de uma típica família da oligarquia cafeeira paulista da qual tentará se emancipar

pelas vias da modernidade literária e urbana. Quer dizer, desdobrando uma formação de

artista que desafia as formas de sociabilidade do seu meio de origem. Segue os caminhos da

boemia e da viagem, ultrapassando os limites da escola e do internato; e desdobra uma visão

estética positiva do progresso representada pelo fascínio diante da cidade e outros ícones da

modernidade 88.

Com Graciliano Ramos, a questão do patriarcalismo aproxima-se das suas origens: o

mundo rural. Entre Angústia e Infãncia – romances que estudaremos juntos – vemos,

primeiro, o processo de decadência do Nordeste com o início da República velha (Infância) e,

depois, como um acontecimento sem processo, a passagem para um cenário totalmente novo:

a Maceió da década de trinta (Angústia) durante o seu precário processo de industrialização.

A história de formação que nos será narrada vai se focar no caminho de desvencilhamento da

lei do patriarca inculcada no menino Graciliano, o qual acontece não no nível do enredo (pois

ele reproduz a passagem sem processo que se dá na representação do tempo histórico), mas

pricipalmente no nível da narração e do exercício de memória que representa Infância. Este

exercício de memória será a grande experiência de formação proposta pelo romance e o único

87 Trânsito que fica explícito no célebre início do romance de Pompeia: “‘Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para luta’. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico; diferente do que se encontra fora, tão diferente que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso” (POMPEIA, s/d, p. 5). 88 “Mamãe queria que eu fosse o melhor dos alunos, mas na abertura esplanada onde os outros bolavam caía vida do tinir das forjas e dos bondes no recrote de apitos e pregões. A campainha era um badalo de sonoridades. A grita meridiana estourava bola de sabão na queda entre os goals dum último kick de altura. E recolhiam-se os retardatários às filas formadas para eu deixar de escutar a cidade última atrás da carranca em andor dos vigilantes” (ANDRADE, 1973, p. 28).

50

meio para se desvencilhar da mentalidade opressora do pai.

O romance de José Lins do Rego, O moleque Ricardo, segue um percurso familiar.

Este se insere dentro da saga que compõe o “ciclo da cana de açúcar”, o qual trata,

precisamente, da transformação desse universo patriarcal rural:

Um romancista nordestino, o Sr. José Lins do Rego, fixou em episódios significativos a evolução crítica que ali também, por sua vez, vai arruinando os velhos hábitos patriarcais, mantidos até aqui pela inércia; hábitos que o meio não só já deixou de estimular, como principia a condenar irremediavelmente. O desaparecimento do velho engenho, engolido pela usina moderna, a queda de prestígio do antigo sistema agrário e a ascensão de um novo tipo de senhores de empresas concebidas à maneira de estabelecimentos industriais urbanos, indicam bem claramente em que rumo se faz essa evolução (BUARQUE DE HOLANDA, 1973, p. 131).

O volume escolhido foca-se na história do moleque Ricardo, filho de trabalhadora de

engenho, que decide sair da fazenda e do mundo patriarcal em busca de novas perspectivas e

oportunidades de trabalho. Quem tenta se formar, portanto, é um sujeito emergente que vem

da parte de “baixo” da ordem hierárquica em que se organiza o mundo do engenho.

Por último, analisaremos o romance de Clarice Lispector que, de uma perspectiva

feminina, articula-se como uma grande polêmica contra o mundo organizado ao redor do

homem. Seguindo o caminho traçado por O Ateneu, de Raul Pompeia, a escritora insistirá no

esforço de quebrar a identificação entre homem e norma que representa Aristarco. Porém,

diante da perspectiva incendiária e niilista do escritor, Clarice Lispector vai propor uma nova

estrutura de pensamento capaz de resolver as dicotomias da cultura masculina, antes

meramente incendiadas por Pompeia, coroando, ao mesmo tempo, toda a tradição do

Bildungsroman brasileiro.

1. O paradoxo dos “grandes homens” em O Ateneu, Memórias sentimentais de João Miramar e Perto do coração selvagem.

O Ateneu, Memórias sentimentais de João Miramar e Perto do coração selvagem

51

configuram um dos dois sistemas observáveis no Bildungsroman brasileiro 89. No seu

conjunto, esses romances descrevem um processo que pode ser visto de forma unitária: o

processo de superação das subjetividades estabelecidas pela cultura masculina patriarcal,

configurando uma tradição em si mesma polêmica e de vozes narrativas fortemente

anárquicas. Esta tradição se inicia com o texto de Raul Pompeia, um texto eminentemente

masculino em que a lógica feminina (apesar da atuação de certas mulheres) é cruamente

eliminada do processo formativo do seu protagonista e do universo geral do romance. Mais

tarde continua com a obra de Oswald de Andrade, que apresenta um intento de superação de

tal estrutura, através da história de formação de um escritor de vanguarda; mas uma superação

fracassada no seu conteúdo, que acaba com a reintegração de Miramar ao esquema da

masculinidade oligárquica. Previsivelmente, tal processo culmina com a aparição de uma

mulher, Clarice Lispector, cujo romance descreve uma viva superação da cultura patriarcal, já

não de forma incendiária (como acontece em O Ateneu), mas oferecendo, além da negação,

uma nova estrutura de pensar, sentir, e posicionar-se no mundo que virá de um olhar

radicalmente feminino.

Uma vez traçada essa afinidade, o que surge é o desenho de um sistema que oferece

vários outros pontos de interseção. Em todos os textos que o compõem, a história de

formação relatada aparece inscrita dentro de um universo sumamente rígido e organizado, em

que a institucionalidade se erige como um dos atores principais dos romances. A

institucionalidade concreta da escola, no caso de O Ateneu, ou a institucionalidade cada vez

mais difusa (mais nem por isso menos atuante) da família oligárquica, em Memórias

sentimentais, e, finalmente, das relações intersubjetivas, em Perto do coração selvagem.

Por contraposição a tal rigidez, esses textos terão como protagonistas personagens ou

discursos narrativos especialmente singulares, e o relato da formação desses

sujeitos/discursos será mais central que o espaço em que se inserem, apesar do poder que

esses exercem. Talvez pela própria contraposição entre o marco excessivamente

institucionalizado em que acontece a formação nesses romances e a singularidade dos

89 Seguindo o critério cronólogico teríamos que ter deixado Clarice Lispector para a parte final do nosso estudo sobre o Romance de formação brasileiro. No entanto, pela afinidade que ela apresenta com Raúl Pompeia e Oswald de Andrade quisemos estudá-la em continuidade com eles e incorporá-la neste capítulo. Contudo, a sua obra continua sendo, para nós, o romance que coroa o Romance de formação brasileiro na sua totalidade, quer dizer, nas suas duas tradições.

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personagens que os protagonizam, a ação principal que neles vai-se desenvolver é,

precisamente, a da pugna, da confrontação e da entrada em conflito com tal institucionalidade.

Por último, algo em comum têm também as poéticas destes romances. Todos eles dão um

destaque especial à pesquisa formal, à paródia ou à sátira e, finalmente, às formas de relato

autorreflexivos ou autorreferentes, como são as memórias, de Andrade, a crônica de saudade,

de Pompeia, e, finalmente, o relato retrospectivo de Perto do coração selvagem. Acentuando

sempre o ângulo de visão subjetivo que deforma o narrado e destaca o caráter descontínuo e

fragmentário da tarefa autorreferencial, estes parecem, ao mesmo tempo, afastar-se de uma

narrativa “prosaica”, para aproximar-se de uma retórica fundamentalmente “poética” 90.

O Ateneu (1988), de Raúl Pompeia, e o mais tardio livro de Oswald de Andrade,

Memórias sentimentais de João Miramar (1917), conformam o que se pode reconhecer como

o Romance de Formação oligárquico do Brasil. Eles estão inscritos, respectivamente, no

universo da elite carioca e paulista de finais do século XIX e inícios do XX, situando-se,

portanto, no seio da cidade e da sociedade oligárquica. É importante destacar este dado, pois

ele dá conta de um forte contraste entre o primeiro e o segundo sistema (José Lins, Graciliano

Ramos) que delineamos para referir-nos ao Bildungsroman brasileiro, o qual sofre um claro

deslocamento para o decaído universo rural do decênio de 1920-1930. Pelo contrário, a

vertente “poética” do Bildungsroman que estamos querendo descrever aqui é, aparentemente,

uma afluente do gênero vinculada, sobretudo, ao universo urbano. Isto é evidente ao falarmos

de Raúl Pompeia e Oswald de Andrade, tornando-se menos claro no romance de Clarice

Lispector, em que o espaço parece sofrer um deliberado processo de indeterminação e

abstração. No entanto, não nos parece descartável que, num sentido menos direto, esse livro

possa ser compreendido como um texto de bases urbanas, tendo esse próprio processo de

abstração e interiorização do espaço como um dos argumentos em favor de tal hipótese.

90 Fazemos esta distinção entre retórica poética e retórica prosaica seguindo os fundamentos de Mikhail Bakhtin, isto é, atendendo ao grau de dialogicidade que cada uma destas tradições desenvolve: “Na maioria dos gêneros poéticos (no sentido estrito do termo), conforme já afirmamos, a dialogicidade interna do discurso não é utilizada de maneira literária, ela não entra no “objeto estético” da obra, e se exaure convencionalmente no discurso poético. No romance, ao contrário, a dialogicidade interna torna-se um dos aspectos essenciais do estilo prosaico e presta-se a uma elaboração literária e específica” (BAKHTIN , 1990, p. 93). Ao afirmarmos que esta tradição possui uma tendência fundamentalmente poética, não queremos dizer que careça de toda dialogicidade, mas que o grau de polifonia é significativamente menor. Eles se organizam praticamente em torno de dois eixos: o discurso do protagonista (e do narrador que, geralmente, é o mesmo personagem) e o discurso de um outro que representa a norma social. Seu foco central, por outro lado, será a articulação de um discurso próprio e não a abertura ao universo aberto das falas alheias, configurando-se como textos mais “centrípetos” do que “centrífugos”.

53

- Qual a pessoa que você mais admira? Além de mim, além de mim – acrescentou o professor –. Se você não me ajudar, não chegarei a conhecê-la, não poderei guiá-la.

- Não sei – disse Joana -, torcendo as mãos embaixo da mesa.

- Por que você não citou um desses grandes homens que rolam por aí? Você conhece pelo menos uma dezena deles. Você é excessivamente sincera, excessivamente – disse ele com desagrado.

- Não sei... (LISPECTOR, 1980, p. 49-50).

O romance O Ateneu e Perto do coração selvagem podem ser lidos, cada um à sua

maneira, como uma polêmica em torno de um tipo particular de figura social: a figura que eles

mesmos denominam de “o grande homem”. Tanto o texto de 1888, como o de 1943, levantam

esse tópico que se oferece como um ponto de conexão e um fio condutor fantasticamente

visível entre ambos os romances. Consequentemente, como veremos, de modo geral, essa

figura dos “grandes homens” vai corresponder à do “homem normativo”, isto é, aquele que

representa a norma social (masculina, racional e socialmente construtiva) que terá de ser, de

alguma forma, desafiada ou superada pelo personagem em formação: Sérgio, no caso de O

Ateneu, e Joana, em Perto do coração selvagem. No primeiro livro, esse “grande homem” é

atualizado pelo personagem Aristarco, “o homem que sofre a obsessão pela própria estátua”,

imagem do sujeito que, obsecado por encarnar a norma, se identifica plenamente com a

institucionalidade. Em Perto do coração selvagem, como iremos ver, a figura do “grande

homem” reaparece representada pela cultura patriarcal do pai e pelo tipo de masculinidade

encarnada por Otávio, assim como pelas relações sociais que estão imbricadas na cultura

masculina determinada por ambos os personagens. “Grande homem”, como se insinua na

cena da epígrafe supracitada, vai ser, no romance de Clarice, aquele sujeito que compreende a

formação e a experiência como fatos históricos, isto é, como um conjunto de ações e

acontecimentos que devem dar-se no âmbito das relações sociais. Na sua forma mais extrema,

tais “grandes homens” seriam os personagens heroicos, cujas ações se destacam na

coletividade, representando-a. No entanto, numa fórmula corriqueira, eles correspondem aos

sujeitos cuja inserção na dinâmica do comportamento social encontra-se tão enraizada, que

todos os seus atos privados, inclusive o ato singelo de, por exemplo, comer um bombom,

serão regulados pelas demandas da sociedade:

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Por que não? – perguntou-se de repente irritado. Quem disse que os grandes homens não comem bombons? Só que nas biografias ninguém se lembra de contar isso. Se Joana soubesse desse pensamento? Não, na verdade nunca mostrou ironia para...Teve um momento de raiva, apressou o passo. Antes de dobrar na esquina, pegou o saco de bombons e despejou-os na sarjeta. Angustiado, viu-os misturarem-se à lama, rolarem até um vão escuro cortado de raiva, apressou o passo (LISPECTOR, 1980, 118).

Com respeito a Memórias sentimentais de João Miramar, que também analisaremos

no capítulo que se segue, o tema aparece de forma muito germinal, restringindo-se (ainda que

com alta qualidade) à narração de uma(s) fracassada(s) história(s) de subversão que implicam,

mas que não conseguem nenhuma forma de destruição efetiva desse homem-normativo.

O referente brasileiro deste “grande homem” se pode encontrar, sem dificuldade, na

imagem do “homem cordial” proposta por Sérgio Buarque de Holanda, que, por sua vez,

pegou a expressão de uma das cartas do escritor Ribeiro Couto ao ensaísta Alfonso Reyes

(BUARQUE DE HOLANDA , 1973, p. 106). Através dela Sérgio Buarque quis se referir a “a um

traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a

influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados pelo meio rural e patriarcal” 91, em que a familiaridade, a sociabilidade e o fundo emotivo são a base das relações

interpessoais:

No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse ‘Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativerio’ 92.

De fato – e aproveitando a referência a Nietzsche –, a insistência no tópico do “grande

homem” em romances tão afastados historicamente abre a possibilidade de compreender as

partes desse sistema como expressões de uma mesma corrente espiritual que poderíamos

definir, em geral, como anti-humanista. Sem intenção de irmos muito longe na definição, essa

corrente espiritual opõe-se ao forte teor generalizante e racionalizante que articula o

pensamento humanístico e convida a sociedade à compreensão e ao desenvolvimento da 91 Ibid., p. 107. 92 Ibid., p. 108.

55

natureza humana como um todo que resiste ao entendimento esquemático das categorias

vindas do socratismo-platonismo, do cristianismo e do humanismo moderno. Talvez o mais

importante filósofo e o fundador desta linha de pensadores na modernidade seja Nietzsche,

sucedido mais tarde por Heidegger, Sartre, Kierkeegard, Foucault e Lacan, dentre outros 93.

Contra a noção de “homem” própria do humanismo, Nietzsche, de fato, utilizou em

diversos momentos a expressão “grande homem” para se referir ao que ele entendia por “o

humano”. No juízo dele, os ideais humanistas tentam se caracterizar “através dos conceitos

tradicionais dessa área de conhecimento, como substância, causalidade, poder, ação,

racionalidade, mente, corpo ou mesmo a noção geral de pessoa (...)”, palavras que, no

contexto do seu pensamento, soam “vazias e destituídas de qualquer sentido, porque partem

de uma desconjunção, ou seja, de uma compreensão dualista que distingue o humano das

características que lhe são próprias” (DE OLIVEIRA , 2012, p. 181); processo que resultou num

“adoecimento e enfraquecimento do homem” 94. Por oposição a esta perspectiva, ele articulou

a expressão “grande homem” como manifestação do humano capaz “de elevar a cultura por

promover uma potencialização das forças impulsivas que fazem dele uma expressão da

vontade de poder” 95, afirmando as características humanas mais próprias, ainda que

incluindo, no limite, “aquilo que se chama, no âmbito moral, de desumano” 96:

93 Mesmo participando claramente dessa corrente espiritual anti-humanista de que esses romances são expressão, Clarice Lispector ocupa um lugar singular. Esse lugar já foi explorado por Benedito Nunes no seu livro O drama da linguagem, um de cujos eixos principais é a análise dos motivos em que se cristaliza o arcabouço existencialista da concepção de mundo de Clarice Lispector. Para o crítico literário, ainda que a afinidade esteja de fato instalada na sua obra, o sentido global dela diverge tanto da filosofia da existência, que se centra na ideia de “existência como realidade fática” (NUNES, 1989, p. 101), quanto do existencialismo sartreano de O ser e o nada. E a divergência estaria “na perspectiva mística que prevalece afinal e redimensiona os nexos temáticos formadores da concepção do mundo de Clarice Lispector” – nexos que começam a ser repensados e desfeitos em O livro dos prazeres (...)” (Ibid., p. 101). De fato, Clarice Lispector é imensamente propositiva neste romance e parece querer resolver as contradições que lhe dão a sua organização mediante a colocação destes valores transcendentais. No caso de Raúl Pompeia, o vínculo mais importante entre ele e esta tradição espiritual é estabelecido por Alfredo Bosi, na descrição que este realiza da poética da obra, a qual expõe, segundo o crítico, uma contradição entre a lei (representada pela matriz naturalista que o romance apresenta) e o lugar do inconsciente e do desejo, que este superpõe: “Ao longo do século XIX a contradição entre a Lei (sustentada pelo prestígio da ciência) e o Desejo vai conhecendo expressões cada vez mais veementes. Descobre-se, afinal, que o inconsciente, lugar das paixões, se rege por movimentos próprios que perpassam as imagens do sonho e se traduzem nas mil e um figuras da arte. Este será o grande passo dado por Nietzsche e por Freud, para só lembrar os cimos” (BOSI, 2003, p. 78). “A poética de Pompeia é um dos muitos exemplos dessa passagem que envolvem toda a arte ocidental no último quartel dos Oitocentos. Do naturalismo ao impressionismo” (Ibid., p. 79). 94 Ibid., p. 181. 95 Ibid., p. 185. 96 Ibid., p. 186.

56

Nesse indivíduo, a força de expansão é muito maior do que a de conservação (no que se identifica a crítica de Nietzsche a Darwin), e é nisso que reside o seu grande valor (a sua genialidade criadora) para a espécie como um todo: esse tipo de indivíduo leva para a frente, e sua grande preocupação com o amanhã da espécie lhe dá direito a “tão extraordinário egoísmo” (DE OLIVEIRA , 2012, p. 187)

Como já há de se supor, os romances que analisaremos nas páginas que se seguem

tocam essa questão utilizando um paradoxo. Isto é, nos fazendo ver como “grandes homens”

personagens que, nos conceitos nietzscheanos, na verdade, não o são. Eles tentarão, portanto,

mostrar ao leitor que aquilo que comumente se apresenta como o “grande homem”, o homem

que está do lado do poder e das normas sociais são, na verdade, seres fracos: homens pobres e

frágeis, fixos no cumprimento da sua função. Do mesmo modo, a narrativa vai avançar com a

intenção de nos revelar que aqueles que estão fora desse espaço de reconhecimento, aqueles

que, no fundo, resistem a ser como esses aparentes homens superiores, são os verdadeiros

“grandes homens”: os que estão na missão de fazer-se e tornar-se humanos, de formar-se,

enfim, e não os que, providos do reconhecimento do público, ditam os valores a partir de cima

e defendem as grandes causas que interessam à civilização.

a) O Ateneu ou a formação do pequeno homem

O Romance de formação inaugura-se, no Brasil, com O Ateneu, de Raul Pompeia, no

significativo ano de 1888. Nasce sob a forma de um livro de espírito totalmente problemático

e cáustico que perpetuou-se ao longo de toda a tradição do Bildungsroman brasileiro poético,

definindo, portanto, muito cedo, o caráter forte e radical de uma parte importante deste gênero

no país.

No caso de Pompeia – o fundador desta tradição –, isto se explica pelo contexto

cultural e político da República em que lhe correspondeu desenvolver-se, e dentro do qual as

suas posições foram sempre polêmicas, até mesmo entre a intelectualidade liberal. As

principais figuras da inteligência do momento se unem à campanha abolicionista, liberal-

democrata e republicana, cujos tópicos principais serão “a atualização da sociedade com o

modo de vida promanado da Europa; a modernização das estruturas da nação, com a sua

devida integração na grande unidade internacional; e a elevação do nível cultural e material”

57

(SEVCENKO, 2003, 97), o que seria conseguido, segundo eles, mediante “a liberalização das

iniciativas (...) e a democratização, entendida como a ampliação da participação política.

Como se vê, uma lição bem acatada de liberalismo progressista” 97.

O pensamento político de Pompeia é um tema complexo que deve ser estudado

cuidadosamente e em profundidade. Mas é importante lembrarmos aqui do lugar singular que

ele ocupou dentro do campo ideológico desta época em que se estavam definindo os rumos da

nação, e dentro do qual os intelectuais tiveram uma função pública ativa que sem dúvida

afetou as suas produções literárias 98. Figura radical, Pompéia posicionou-se na esfera destas

discussões defendendo um jacobinismo que estava a favor do confronto com os senhores por

parte dos trabalhadores e que viu no militarismo de Floriano Peixoto a via de realização

desses ideais. A sua trajetória de homem público esteve, portanto, marcada por uma particular

ideologia em que conviviam o anarquismo e a crença numa ditadura de salvação nacional

(BOSI, 2003, p. 71) que haveria de projetar-se, sem dúvida, à sua obra O Ateneu.

Seguindo os caminhos traçados pela crítica, O Ateneu, de fato, parece ser indissociável

do momento histórico de transição entre o regime monárquico escravista e o início da

República em que ele surge (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 74). Este momento se fixa logo

na data de publicação do livro: 1888, ano da abolição que iniciou o desmoronamento da

ordem tradicional para dar lugar à cultura brasileira urbana moderna. Internamente, este

momento imprime-se também na ordem simbólica do romance, cujo desfecho tem sido

compreendido em termos alegóricos, como “a superação da ordem degenerada do Segundo

Império” 99, sendo o incêndio do internato por Américo, uma metáfora da destruição do

“velho” – o colégio – pelo “novo” universo da República vista como destino americano 100. A

própria composição da obra, e principalmente o final dado pelo seu autor, esteve fortemente

imbricada aos acontecimentos históricos mencionados. O Ateneu publicava-se diariamente no

97 Ibid., p. 97. 98 De fato, a produção cultural em si ganhou uma aceitação e legitimação inédita durante esse período que vai de 1875 a 1922, tendo o seu momento áureo entre 1880 e 1908 (CANDIDO; CASTELLO; 1966, p. 107). Mediante os diferentes gêneros modernos que estavam se desenvolvendo na época, os intelectuais escreviam sobre as questões locais em sentido acentuadamente crítico (Ibid., p. 110), dando continuidade a suas funções políticas e estéticas. Por este motivo, a indagação na interação entre as duas esferas parece ser uma condição crítica necessária para o estudo dos autores desta época.

99 Ibid., p. 75. 100 Ibid., p. 75.

58

jornal Gazeta, mas a partir do dia 14 de maio de 1888 foi interrompido para voltar com o

capítulo final quatro dias depois: “Durante a interrupção da narrativa, a Gazeta aparece

tomada pela notícia da abolição da escravatura. No dia 18, quando o romance volta às folhas

do jornal, apresenta-se o episódio em que Américo, um furioso aluno recém-matriculado,

incendeia a instituição prestigiada em solenidades pela princesa regente e outros

representantes do Império” (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 75). O nome do incendiário

seria revelador e expressaria, segundo Leila Perrone-Moises, em concordância com a morte

de Franco e a revanche de Américo, a oposição – corrente na época – entre Europa e

Monarquia e América e República 101.

Da nossa perspectiva, o lugar ideológico que Pompeia ocupou dentro do âmbito

público projeta-se também num outro aspecto do romance. Como iremos demonstrar, nele se

narra o desenvolvimento de um tipo de homem particularmente anárquico, cuja presença

literária inaugurará o gênero no país, num tom de clara oposição às elites oligárquicas da

época, muito diferente de outros romances do mesmo período, de viés liberal, reformista,

moderado e burguês (como o próprio romance chileno que iremos analisar no seu devido

momento). Utilizando as palavras da obra, este tipo de homem em formação chamar-se-á de

“pequeno homem”, configurado na trama romanesca por oposição à presença do Aristarco, o

“grande homem” que representa a norma, contra o qual o Sérgio narrador vai desdobrar a sua

corrosiva escrita.

Para começar a expor com mais detalhe as características deste romance, gostaríamos

de apresentá-lo como um texto configurado a partir de duas perspectivas que, por sua vez,

determinam a utilização de dois modelos literários: o já mencionado Romance de Formação e

o Romance de Escola. Da perspectiva deste último, a obra se focaliza na apresentação deste

internato, nos aspectos institucionais e nos elementos técnico-pedagógicos que nele se

desenvolvem, utilizando um repertório linguístico naturalista-darwinista que sustenta “uma

critica ao status quo monárquico, responsabilizando-o pelo cenário pessimista que se

diagnosticava no contexto nacional” (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 77). Já da perspectiva

do Romance de Formação, O Ateneu lê-se como o desenvolvimento do caráter específico do

protagonista, com suas reflexões e sucessivas transformações, e não somente como um

101 Ibid., p. 75.

59

romance de episódios escolares102. O repertório espiritual deste modelo liga-se à vertente

nietzcheana já mencionada e a uma estética impressionista que supera as condicionantes

estéticas anteriores no nível da narração103. No seu conjunto, esses dois modelos serão

colocados em movimento pela norma satírica que domina o texto e que corresponde, nos

termos de Northrup Frye, à “sátira da norma inferior”, da “fase segunda ou quixotesca”, cujo

tema central, como iremos reconhecer, “é a colocação de ideias e generalizações, teorias e

dogmas, em contraste com a vida que pretendem explicar” (FRYE, 1991, p. 302, tradução

nossa) e cuja posição principal consiste em “preferir a prática à teoria, a experiência à

metafísica” 104, sendo os seus alvos mais clássicos a filosofia, os sistemas de pensamento, a

religião, “a obsessão romântica que gira em torno da beleza da forma perfeita, na arte e onde

quer que seja” 105, dentre outros:

A sátira, segundo a fórmula útil, ainda que desgastada de Juvenal, interessa-se por tudo o que os homens fazem. O filósofo, por outro lado, ensina determinado método ou modo de vida; insiste em algumas coisas e despreza outras; o que recomenda foi selecionado cuidadosamente dentre os dados da vida humana; constantemente está emitindo juízos morais sobre o comportamento social. Sua atitude é dogmática; a do sátiro, pragmática. Por essa razão a sátira pode amiúde representar o choque entre uma seleção de pautas extraídas da experiência e o sentimento de que a experiência é mais ampla do que qualquer série de crenças que se tenha sobre ela 106.

Mobilizado pelo domínio desta norma, o mundo narrado será satirizado por meio do

Romance de Escola e complementado pela presença do Romance de formação que, para além

da lógica naturalista, vai nos trazer a presença de um personagem em efetiva

autodeterminação107. Como dissemos, e recolhendo as palavras do próprio texto, quisemos

102 Neste sentido, discordamos do trabalho de Marcus Vinicius Mazzari, “O ABC do terror: representações literárias da escola”, que considera que o estudo deste romance da ótica do Romance de formação é inadequado: “Os traços que impedem a consideração de obras como O Ateneu ou As tribulações do pupilo Törless enquanto Bildungsroman são inúmeros, começando com a ausência do amplo recorte temporal e espacial característico deste gênero. Se é verdade que a narração de um processo formativo costuma incorporar a etapa da infância (mas quase sempre através de breves flashbacks), enfocam-se sobretudo conflitos próprios da transição da juventude para a maturidade do herói (a rigor, apenas a velhice é excluída do processo formativo)” (MAZZARI, 2010, p. 181). 103 Cf. nota de rodapé número 22. 104 Ibid., p. 303. 105 Ibid., p. 307. 106 Ibid., p. 307. 107 Alfredo Bosi detecta uma série de momentos antitéticos que expressam a superação dos valores naturalistas na narração, no estilo e na ideologia deste romance. Em primeiro lugar, “o foco da escuta conhece a fundo e por dentro o caráter mutante e intercambiável da relação entre sujeito e objeto. O nexo assume, no discurso evocativo, a forma originária de um eu/outro. Não há pretensão de naturalismo impessoal que resista a esse

60

denominar esse caráter em formação sob o rótulo do “pequeno homem”. Ele corresponde à

imagem perfeita do sátiro na sua versão mais corrosiva, a uma espécie de “homem cupim”

que, através do seu discurso, procura e consegue “roer” a fachada da institucionalidade,

situação que é radicalizada no final do romance com o incêndio do Ateneu. Este “pequeno

homem” encontra-se cindido em dois “Eus”: o Sérgio-menino, que participa dos

acontecimentos narrados, e o Sérgio-narrador, voz discursiva que organiza a história e que

espalha a perspectiva satírica por todos esses acontecimentos. O relato mostra o caminho

formativo de Sérgio, as sucessivas etapas pelas quais ele passa até a metamorfose final em

que esse caráter fundamentalmente anárquico “coagula” no seu espírito. E a narração total

sobre o aspecto institucional, o romance enfim, será todo contado dessa perspectiva, tendo

como mecanismo central o sucessivo desmascaramento de Aristarco, o “grande homem”, e a

sua imensa obra pomposamente chamada de “Ateneu”; até o extremo de reduzir ambos a

cinzas.

O livro é quase metódico em fazer reconhecíveis as etapas que constituem o

desenvolvimento de Sérgio, distinguindo três períodos. O primeiro deles é o “Período de

iniciação no mal”, durante o qual o menino vai perder progressivamente o idealismo inicial

que traz de casa, alimentado durante as sedutoras festas oficiais do Ateneu que assiste com

seu pai antes de entrar definitivamente na escola. Como iremos detalhar mais à frente, esse

idealismo baseava-se principalmente em valores comunitários como a fraternidade e o

trabalho conjunto que, para Sérgio, enganado pela harmonia dos uniformes e a coordenação

das manobras ginásticas, parecem ter sido os bens espirituais que fundamentavam a

encenação acontecida durante as festas. Ao contrário, O Ateneu inicia-se como uma espécie

de experiência distópica, em que esses grandes valores coletivos que sobrepõem a

comunidade ao indivíduo são completamente dissolvidos e substituídos pela lógica da

autoridade e do interesse próprio. Do mesmo modo, os colegas reais, supostamente

tratamento de choque” (BOSI, 2003, P. 69). Em segundo lugar, ele destaca como formando parte do mesmo movimento a contestação ao poder que se articula a partir da interpretação histórica que o romance quer desdobrar através desta escola que parece ser tecida com “os mesmos fios que sustém a trama social do Segundo Império” (Ibid., p. 70): “Se apenas os mais fortes e os mais fracos devem cingir-se com os louros da vitória, o que autoriza ‘cientificamente’ a contestar o seu poder? O impulso anárquico parece, portanto, o contrário das leis darwinianas (...)” (Ibid., p. 72). Por último, o crítico brasileiro destaca a autodeterminação ética que Sérgio expressa em relação a Franco e mesmo o contraste que ela apresenta com a ideologia das relações sociais dentro do romance: “Mas ‘durante a conferência pensei no Franco’. Assim, abrupto, sem rodeios, levanta o narrador a ponte entre uma leitura cerrada do universo (sua ideologia explícita) e a matéria vertente, o fluxo das ações e reações que envolvem Sérgio e os meninos do Ateneu” (Ibid., p. 73).

61

representados pelo harmônico quadro de anjos a que Sérgio dirige constantemente o seu olhar,

passam na prática a conformar um conjunto de sujeitos extremamente caracterizados, quase

monstruosos na sua excessiva singularidade, inconfundíveis entre si neste universo onde o

que prima é o indivíduo e não a comunidade. O ritual de iniciação neste novo universo será o

sinistro episódio dos cacos e, enquanto tal, ele vai gerar no personagem posto a prova uma

mudança irreversível; marcando de forma drástica um antes e um depois na configuração do

personagem e interditando toda possibilidade de voltar ao seu estado originário:

Ah! Que se ainda me vivesse no ânimo a bravura audaz que trouxera de casa, sem dúvida nenhuma há muito tempo que eu tinha despachado o Sanches com a cartilha pelas ventas. Mas eu era outro [o grifo é nosso], e a vontade vegetava tenra e dúctil como um renovo, depois do aniquilamento da primeira decepção. Fui transferindo o conflito (POMPEIA, s/d, p. 47).

O Sanches será o primeiro mentor de Sérgio neste universo. Ele o fará incorporar a

retorcida lógica da confiança que opera no âmbito do colégio; uma confiança imbricada de

dominação e dependência. E os sentimentos dominantes de Sérgio durante este período serão

os da solidão e da letargia moral, da limitação pessoal, do acovardamento e da falta de

virilidade.

Para sair um pouco mais forte das provações do Ateneu, Sérgio começa a abrir-se à

religião, dando início, assim, ao segundo período do seu desenvolvimento, o “Período da

depressão contemplativa”, às vezes também chamado pelo narrador de “Período anagógico da

crença”. Esse caminho místico seguido por Sérgio (e que lembra as antigas formas de

religiosidade inaciana, em que o sofrimento e a autoflagelação corporal são partes

constitutivas da fé) aparece, no entanto, como mais uma via de martírio e ensimesmamento, e,

consequentemente, como uma nova forma de perpetuar a autoanulação que tinha se iniciado

com a entrada no colégio. Deste modo, a religião não serve a ele nem para elevar-se

espiritualmente, nem para comungar com alguma forma de comunidade através de rituais que,

aliás, renega; mas como um modo de espiritualizar o seu sofrimento. Apesar de suavizar o

mal do mundo descoberto no período anterior, tal finalidade o leva, mais uma vez, ao

enclaustramento, ao martírio e à decadência, agora sublimada pela presença da divindade.

62

Ao dia imediato saí da cama como de uma metamorfose. Imaginei, generalizando errado, que a contemplação era um mal, que o misticismo andava traidoramente a degradar-me: a convivência fácil com o Franco era a prova. O Ateneu honrava-me, por esse tempo, com um conceito que só depois avaliei. Eu não me julgava assim tão apeado, mas supus-me diretamente a caminho de um mergulho. Se a alma tivesse cabelos, eu registraria neste ponto um fenômeno de horripilação moral.

Fiquei perplexo.

O triunfo na escola podia ser o Sanches; em compensação, a humildade vencida era o Franco. Entre os dois extremos repugnantes, revelavam-se-me três amostras típicas à linha do bem viver: Rebelo, um ancião; Ribas, um angélico; Mata, o corcunda, um polícia secreta. Para angélico definitivamente não tinha jeito, estava provado, nem omoplatas magras; para ancião, não tinha idade, nem óculos azuis, nem mau hálito; para ser o Mata, faltava-me o justo caráter e a corcova... Onde estava o dever? Na cartilha? Na opinião de Aristarco? Na misantropia senil dos óculos azuis? Saltou-me nisto, às avessas, o relâmpago de Damasco: independência. (POMPEIA, s/d, p. 71-72, grifo nosso)

O sinistro episódio dos cacos em que Franco faz Sérgio participar leva-o à última e

mais decisiva transformação do seu caráter: “Chegava eu assim, por trajeto muito diferente do

que sonhara, à desejada personificação moral do pequeno homem” 108. Assim, os dois

períodos anteriores adquirem neste ponto da sua evolução a feição de um percurso um tanto

demonista, em que primeiro se nega a possibilidade da amizade e, depois, a existência da

divindade, para acabar afirmando a supremacia do ser independente que põe todo o valor da

existência na própria autonomia e todo parâmetro de comportamento no critério pessoal. A

religião escurece-se nele, torna-se ateu e anarquista, e põe-se em conflito com a autoridade,

transformando-se assim, nesse “pequeno homem” que, por definição, legitima-se só a partir

de si mesmo, renegando o valor que possa ter o reconhecimento de qualquer instância

superior, abdicando de todo desejo de exemplaridade e tornando-se antipático de tudo aquilo

que possa representar a norma social. O “pequeno homem” é, assim, a realização de um tipo

de homem autônomo, autossuficiente, “desumanizado” e, sobretudo, de um sátiro. Em outras

palavras, de um sujeito que, carente de qualquer tipo de idealismo, deposita, no entanto, toda

a sua fé no desmascaramento e na corrosão das instituições e dos seus discursos.

Seguindo esta linha de interpretação, dois episódios do romance que poderiam passar

como meras anedotas transformam-se em eventos de interessante significação. O primeiro

deles é o violento capítulo do assassinato do amante de Ângela que, mais do que trazer um

acontecimento impactante da infância escolar, cumprirá a função de mostrar, de forma não

discursiva, qual é a perspectiva deste “pequeno homem” em formação. Assim, na maneira

como Sérgio posiciona-se diante do cadáver – ou diante da morte, se quisermos ser mais

108 Ibid., p. 79-80.

63

generalizantes – vemos uma eloquente exposição da perspectiva deste sátiro anárquico que

quer ver a vida humana com o olhar que se encontra para além dos disfarces da

institucionalidade escolar ou religiosa, registrando os acontecimentos com toda a crueza e

tragicidade do real:

Isto não era ter visto um cadáver. Eu queria o cadáver flagrante, despido dos artifícios de armação e religiosidade, que fazem do defunto simples pretexto para um cerimonial de aparato. O que me convinha era o galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da existência, tal qual (POMPEIA, s/d, p. 85).

O segundo episódio que gostaríamos de resgatar para fixar a imagem deste caráter é o

da exposição de desenhos que, por sua vez, funciona como uma sorte de antecipação da

fantástica cerimônia em que Aristarco se encontra com a desejada escultura de si mesmo.

Interessa-nos esse capítulo do relato escolar, pois vemos nele mais uma instância em que se

ilustra, neste caso visualmente, qual é o modelo com que Sérgio se identifica. Por oposição

aos trabalhos dos seus colegas que decidem reproduzir a imagem do diretor (da autoridade),

transformando-se em alter egos de Aristarco, o protagonista trabalha com devoção no

desenho de uma cabra, ou seja, de um importantíssimo símbolo utilizado inúmeras vezes na

história da literatura, especificamente em textos de corte iconoclasta, para representar o

funcionamento das altas esferas da sociedade de uma perspectiva narrativa irreverente,

dirigida a enfatizar os aspectos excessivamente carnais, corruptos e deformantes dessas

classes. Isso se pode notar em famosos livros como El libro del buen amor (1330-1343), de

Juan Ruiz, Arzipreste de Hita, El libro de los gatos (1350-1400), de Odo de Cheriton, El

carnero (1638), de Juan Rodríquez Freyle (MORENO DURÁN, 1988, p. 3-21). Sérgio escolhe e

se autorrepresenta com esse símbolo da cabra, negando, assim, o modelo da autoridade

representado por Aristarco, o “grande homem”, e pondo no seu lugar uma figura de oposição

representando o seu caráter polêmico e controverso:

Quando os visitantes invadiram a sala notaram na linha dos trabalhos suspensas duas enigmáticas pontas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último capítulo, a história de uma cabra (...) 109.

Os retratos todos, bons ou maus, eram alojados indistintamente nas molduras de recomendação. Passada a festa, Aristarco tomava ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha-os já às resmas. Às vezes, em momentos de spleen, profundo spleen de grandes homens, desarrumava a pilha; forrava de retratos,

109 POMPEIA, op.cit., p. 130.

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mesas, cadeiras, pavimento. E vinha-lhe um êxtase de vaidade. Quantas gerações de discípulos lhe haviam passado pela cara! Quantos afagos de bajulação à efígie de um homem eminente! Cada papel daqueles era um pedaço de ovação, um naco de apoteose.

E todas aquelas coisas malfeitas animavam-se e olhavam-se brilhantemente. “Vê, Aristarco, diziam em coro, vê; nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!” E Aristarco, como ninguém na terra, gozava a delícia inaudita, ele incomparável, único capaz de bem se compreender e de bem se admirar – de ver-se aplaudido em chusma por alter-egos, glorificado por uma multidão de si mesmos. Primus inter pares.

Todos, ele próprio, todos aclamando-o. (POMPEIA, s/d, p. 131)

A perspectiva satírica deste pequeno homem cuja formação descrevemos será o

prisma através do qual serão apresentados os elementos principais que constituem o Romance

de escola, modelo que, sem dúvida, estrutura também O Ateneu. Esses são: Aristarco e o

próprio colégio. O discurso de Aristarco se nos apresenta como uma hipérbole do discurso

iluminista, uma defesa do saber e dos altos valores clássicos ligados à saúde física e espiritual,

no tom hipócrita que o Sérgio-narrador se preocupa em imprimir-lhe. Ao longo do romance,

a sua imagem vai evoluir da versão oficialista e monolítica que Aristarco procura projetar

sobre si e sobre o seu colégio a uma versão multifacetada, proveniente do desmascaramento

que o Sérgio-narrador realizará sobre a sua figura. Assim, sua imagem se desdobrará num sem

fim de facetas que irão deformando aquela imagem pública inicial, até destruí-la com a última

dessas facetas mostrada pelo livro: Aristarco tragicamente humano, desprovido de toda a sua

investidura e destituído de todo o seu poder.

O processo de desmascaramento que vai, ao mesmo tempo, multifacetando a imagem

de Aristarco é gradual. O leitor transita da imagem oficial do “grande homem”, do “homem

estátua” cujo lema é a “nobre e martirizante missão do ensino público”; do Aristarco “solene”

da primeira festa, “jovial” da segunda, “paternal” do encontro com os pais, até a imagem

satírica com que o narrador acaba por fixá-lo: a do “homem sanduíche”, essa indigesta

imagem que vem mostrar a verdadeira condição daquele sujeito normativo. Um ser estranho

que se caracteriza por conseguir fazer confluir e circular sem conflito nem dramatismo

valores, ações e posições que, para o leitor, são absolutamente incompatíveis: o pai e o

gerente, o levita e o especulador, o altruísta e o egoísta, o espiritualista e o materialista.

Apesar da multiplicidade desse seu caráter, semelhante figura parece cortar com a tradição do

personagem dramático, que se caracteriza, precisamente, pela incompatibilidade das forças

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contraditórias da sua personalidade. Ao contrário, ele é a representação de uma aliança, de um

consórcio, de um pacto, que parece natural do ponto de vista da norma e da autoridade, mas

que manifesta toda a sua estranheza quando alguém externo, como é o caso do Sérgio, deve

legitimá-lo:

Uma hora travejou-lhe a boca, em sanguínea eloquência, o gênio do anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por ocasião das festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com aterrado espanto) distendido em grandeza épica – o homem sanduíche da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. Às costas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a réclame dos imortais projetos (POMPEIA, s/d, p. 20)

No caso da escola, a sua apresentação será realizada através de um mecanismo de

desintegração classicamente satírico: mediante uma mudança de perspectiva a partir da qual

se mostrará a artificialidade e a falta de autenticidade dos valores e dogmas divulgados por

essa institucionalidade. Usando os termos do próprio romance que estamos estudando, este

mecanismo tomará a forma específica de uma contraposição entre a perspectiva

“macroscópica” e a “microscópica” 110; entre o “macromundo” configurado pelo discurso de

Aristarco e pela faceta pública do Ateneu, e o “micromundo” do internato que surge da

narração da experiência de Sérgio menino e da sua convivência íntima com a escola.

O recurso fundamental utilizado por Pompeia para a representação dessa imagem

macroscópica e pública do Ateneu será o da distribuição espacial de uma série de artefatos

simbólicos encarregados de fazer tangíveis os valores que a escola quer difundir portas afora.

O primeiro deles é a festa com que o livro se inicia e mediante a qual quer se projetar a

imagem de uma instituição saudável física e espiritualmente, em que os interesses individuais

são subordinados ao trabalho em conjunto, concretizados, no caso, pelas acrobacias da

110 Tal contraposição entre o “Microscópico” e o “Macroscópico” corresponde a um uso comum da sátira da terceira fase. Igual à quixotesca que estamos analizando aqui, ela pode “hacer uma defensa táctica de lo prágmático contra lo dogmático, pero aquí debemos renunciar incluso al sentido común ordinario como criterio” (FRYE, 1991, p. 308). Pompeia não chega a avançar tanto neste tipo de sátira, que chega inclusive a questionar a realidade dos dados da experiência sensível e a base das nossas associações habituais. No entanto, pela presença desse mecanismo podemos dizer que se encontra a caminho de fazê-lo: “El satírico no puede explorar todas las posibilidades de su forma sin ver lo que va a ocurrir si él pone en tela de juicio dichos supuestos. Esta es la razón por la cual tan a menudo él somete la vida ordinaria a un cambio de perspectiva lógico e intrínsecamente coherente. Nos mostrará de improviso, la sociedad por un telescopio, como pigmeos muy dignos que se pavonean; o por un macroscopio, como gigantes apestosos que apestan (…)” (Ibid., p. 309).

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representação ginástica que concentra o episódio. Em segundo lugar, temos o próprio prédio,

cuja melancólica arquitetura parece difundir a ideia de uma solene casa de meditação e

estudo, permanentemente cuidada, pintada e reformada, a fim de projetar, ao mesmo tempo, a

imagem de uma autoridade cuidadosa e preocupada por, através do patrimônio físico, amparar

o patrimônio espiritual da escola. Altamente eloquentes neste sentido são também os artefatos

decorativos distribuídos no Ateneu, aos quais o Sérgio menino dirige incessantemente o seu

olhar: os quadros dedicados à imagem do Mestre como mártir do saber; os objetos didáticos

que parecem encerrar a promessa de um conhecimento quase enciclopédico; os lemas morais;

e, principalmente, o já mencionado quadro alegórico (que faz lembrar os Frisos de Kaulbach)

e que, mediante a imagem de inocentes crianças unidas coletivamente, representa o consórcio

entre as artes, o estudo e as indústrias. Sobretudo este último objeto obseca intensamente o

narrador que, contrastando a imagem com a experiência posterior de Sérgio, parece ver nela a

concentração de toda a ironia que atravessa a indumentária escolar:

Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da antessala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-relevo; à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta simbólica - psicologia pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! Que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude! (POMPEIA, s/d, p. 11)

O romance todo será um sucessivo desmascaramento da perspectiva “macroscópica”

artificiosamente criada pelo mestre, e um progressivo aproximar-se à perspectiva

“microscópica” desdobrada pela experiência real, crua e nua de Sérgio na escola, e que vai

rapidamente descascar todo esse idealismo inicial: “Rebelo retirou-se e eu, em camisa,

acabrunhado, amargando o meu desastre, enquanto o roupeiro procurava o gavetão 54, fiquei

a considerar a diferença daquela situação para o ideal de cavalaria com que sonhara assombrar

o Ateneu” 111. Deste modo, o desmascaramento nos mostrará como é que, por oposição a esses

valores superiores, nos episódios que se desenrolam atrás dos bastidores do Ateneu, vai

111 Ibid., p. 28.

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predominar, de forma constante, a atuação de um valor inferior. Em primeiro lugar, a lei do

mais forte (“Olhe; um conselho; faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se”

(POMPEIA, s/d, p. 30)). Em segundo lugar (e invertendo diretamente os valores difundidos pela

“festa da ginástica” e pelo quadro alegórico mencionado) a lei do indivíduo, em detrimento

dos valores comunitários. Em terceiro lugar, o disciplinamento a qualquer custo, inclusive a

derrota total do aluno, como acontece com o Franco. A crueldade pedagógica de um sistema

que se serve de um esquema de vigilância e punição exercido não só pelas autoridades do

colégio (como a cafua e as punições corporais), mas também pelos próprios alunos,

configurando um universo em que todos se encontram em pugna, inclusive aqueles que são da

mesma condição. E, por último, a solidão moral em que se afundam os seus estudantes e a que

temos acesso pela narração de Sérgio.

No ano seguinte, o Ateneu revelou-se-me noutro aspecto. Conhecera-o interessante, com as seduções do que é novo, com as projeções obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; conhecera-o insípido e banal como os mistérios resolvidos, caiado de tédio; conhecia-o agora intolerável como um cárcere, murado de desejos e privações 112.

Assim, a partir desse desmascaramento que confronta a imagem “real” do Ateneu com

a imagem “ideal”, várias outras facetas desse colégio inicialmente monolítico irão se

desdobrando diante do leitor, destruindo, deste modo, todo o idealismo erigido por Aristarco

em torno da escola e corroendo já, de forma definitiva, a imagem oficial “macroscópica” do

colégio:

Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro polido, esperava, com os colegas, que aparecesse à porta o inspetor que devia ler o resultado do escrutínio, foi-me parar a vista aos quadros de alto-relevo, das artes e das indústrias, os risonhos meninos nus, fraternais, em gesso puro e inocência. Senti-me velho. Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas, desde que vira, à primeira vez, as ideais crianças vivificadas no estuque pelo contágio do entusiasmo ingênuo, ronda feliz do trabalho... Agora, um por um que os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as nádegas brancas com um reverso igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquele gesso das facezinhas rechonchudas coraria de uma sanção geral e esfoladora de palmadas. Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos, bons, imaculados, saudade inefável dos primeiros anos, tempos da escola que não voltavam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma

112 Ibid., p. 133.

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falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação, a covardia, a inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, a impotência, o colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do Mestre, confederação de instintos em evidência, paixões, franquezas, vergonhas, que a sociedade exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós que só vemos azul o passado, porque é ilusão e distância (POMPEIA, s/d, p. 128).

Como já foi dito, o processo corrosivo culmina com o incêndio que fecha o livro, final

fantasioso que vai radicalizar o registro satírico do romance, instalando um non sense

desconcertante para quem lê o texto só do ponto de vista do conteúdo sem atender às

convenções da própria sátira. Diante disso, Pompeia não proporá mais nada e isso é um dos

aspectos mais interessantes do seu texto. O romance apresenta o problema da norma e da

cultura patriarcal da forma mais, poderíamos dizer, pesada, concreta e autoritária possível,

encarnando-a na imagem desse imenso aparato escolar. Diante desse universo, a resposta será

proporcionalmente agressiva, baseada numa fórmula que não admite nem soluções

defeituosas, nem concessões ingênuas; numa fórmula que não aceita nenhum tipo de diálogo,

tão autoritária quanto a instituição que acabou por destruir. Em oposição a esta, no entanto, o

seu objeto será a libertação dos muros da escola e não a sua instauração.

b) Memórias sentimentais de João Miramar ou o fracasso de uma incipiente subversão

Com a chegada do século XX, os estímulos da vanguarda artística europeia como “a

velocidade, a mecanização crescente da vida em virtude do surto industrial de 1914-1918 que

rompeu nos maiores centros o ritmo tradicional” (CANDIDO, 2008, p. 129), assim como as

agitações sociais operárias e burguesas do momento 113; começam a se fazer notar entre os

escritores locais da época114, dando impulso ao processo de apropriação vanguardista que vai

se estender por todo o resto do período que estamos estudando. Diferentemente de outros

113 Ibid., p. 129. 114 “As agitações sociais trazendo ao nível da conciência literária inspirações populares comprimidas, esboçavam-se também aqui, embora em miniatura. No campo operário, com as grandes greves de 1917, 1918, 1919 e 1920, em São Paulo e no Rio, a fundação em 1922 do Partido Comunista. No setor burguês, com a fermentação política desfechada no levante de 1922 e, mais tarde, a revolução de 1924” (Ibid., p. 129).

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momentos do processo de importação cultural, o Brasil nesta fase situa-se numa posição

muito mais próxima do Ocidente, o que contribuiu para dar fundamentos regionais à

vanguarda internacional e ofereceu à história do Bildungsroman uma nova forma de

expressão, que conseguiu sintetizar os aspectos cosmopolitas com os locais, os europeus com

os latino-americanos, os modernistas com os brasileiros.

Memórias sentimentais de João Miramar 115 é uma das primeiras manifestações

literárias deste processo de apropriação vanguardista e, portanto, ainda não consegue imprimir

os elementos locais que virão com mais força no Romance de formação da década seguinte.

Ademais, ele deu-se num contexto ainda rígido e fortemente tradicionalista que, como iremos

sugerir, limitou o alcance da formação por ele proposta. No âmbito cultural, predomina o

academicismo (1900-1922), quer dizer, a rotinização das grandes figuras e movimentos da

fase anterior (Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo), que deram espaço a um

mundo artístico tomado por epígonos e estilos esvaziados da sua força e convicção original

(CANDIDO, 2008, p. 121). Acrescenta-se a isto o fato de o livro ter sido originado e

ambientado em São Paulo, cidade cujo panorama por esses anos era “como na província”

(CANDIDO; CASTELLO, 1967, p. 12) “menos rico e mais simples: (...) de um lado, uma

literatura oficial de pouca importância; de outro, os renovadores” 116. Clima que, do ponto de

vista urbano, foi também descrito pelo próprio Oswald de Andrade:

As lembranças que me restam dessa fase foram as últimas que tive da grande casa de esquina da Rua Barão de Itapetininga com a atual Dom José de Barros, que naquele tempo se chamava Onze de Junho. Ali está ainda hoje o mesmo prédio de minha meninice, transformado em farmácia. De suas janelas atualmente muradas, eu, pela primeira vez, espiava a vida.

São Paulo era uma cidade pequena e terrosa. Pouca gente. Um ou outro sobrado de um só andar (...) Nenhuma condução mecânica (ANDRADE, 2005, p. 25).

Esta situação de “atraso” e estagnação de que surge Memórias sentimentais de João

Miramar, em combinação com o espírito de vanguarda que anima a sua composição, fez dele

um texto fortemente cindido. Um texto que, se do ponto de vista da forma alinhou-se com

115 A primeira redação de Memórias sentimentais de João Miramar foi em 1916. Em 1923, sabe-se que o livro já estava pronto, mas é só em 1924 que ele chega ao domínio público. 116 Ibid., p. 12.

70

uma estética futurista, do ponto de vista do seu conteúdo, pareceu perpetuar as questões

próprias de uma formação quase totalmente inserida nos valores dessa sociedade tradicional,

apresentando-se como um romance que mais do que narrar a realização de uma formação

capaz de subverter a ordem patriarcal, pareceu retratar a história de um fracasso. O fracasso

de João Miramar e de toda a geração jovem incipientemente subversiva que o rodeia, nos

mostrando belamente esse processo.

Dentro da crítica que existe ao redor da obra de Oswald de Andrade, vemos que há um

consenso quanto a considerar as Memórias sentimentais como uma sátira paródica, na qual o

escritor critica e burla a sociedade paulista de 1912. A descrição e delimitação clara dos

modos como se apresenta esta sátira na obra de Oswald de Andrade é uma das tarefas

fundamentais do famoso ensaio de Haroldo de Campos, “Miramar na Mira”. Isso o leva a

destacar a importância deste escritor para a posterior realização da obra de Mário de Andrade

(invertendo o caráter de fundador do modernismo no Brasil que se atribui a esse último), e

também a estabelecer os vínculos entre ele e o Ulisses, de James Joyce. Em relação ao

primeiro, Haroldo de Campos compara a introdução das Memórias com o capítulo de

Macunaíma, intitulado “Cartas para Icambaia”. Após a sua análise, comprova que a escrita

desse famoso extrato não teria sido possível sem a realização da mencionada introdução que

satiriza a linguagem ostentosa do mundo intelectual prévio ao modernismo, procedimento que

Mario de Andrade teria aplicado quase ao pé da letra, mas se referindo ao linguajar dos

primeiros cronistas do Brasil. No caso da relação entre Andrade e Joyce, isto o leva a

demonstrar novamente o caráter textual que adquire a sua sátira em clara continuidade com o

autor de Dublin.

Este destaque da perspectiva satírico-paródica encontra-se em sintonia com a posição

que Antonio Candido estabelece para as Memórias dentro da produção geral de Andrade, a

qual, segundo ele, formaria parte de um segundo momento caracterizado pela:

(...) linguagem nua e incisiva, toda concentrada na sátira social, até a despretensão da atitude literária, despreocupada de aformasear a vida. Opõe-se ferozmente à primeira, com um tom másculo de revolta, sátira, demolição, subversão de todos os valores, esboçado nas admiráveis Memórias sentimentais de Jõao Miramar e culminado no fragmento do grande livro que é o Serafim Ponte Grande (CANDIDO, 1992, p. 19).

71

A importância dada aos procedimentos paródicos, se bem que compreensível e, sem

dúvida nenhuma, acertada, deixa de lado a análise do modo como se apresenta o modelo do

Bildungsroman neste romance. Em “Serafim: um grande não livro”, na página 148, Haroldo

de Campos o reduz a um simples fio condutor cronológico que organiza o relato nas etapas da

“(...) infância, a adolescência, a viagem de formação, os amores conjugais e extraconjugais, o

desquite, a viuvez e o desencanto do herói, o “literato” memorialista cujo nome lhe dá o

fruto” (CAMPOS, 1964, p. 148). O mesmo acontece no estudo de Antonio Candido, que

menciona a presença deste modelo só de passagem e para se referir à formação de Miramar

como um processo que se enquadra totalmente dentro dos roteiros da burguesia.

Ora, pensamos que a leitura deste romance da perspectiva desse gênero literário rende

muito para a compreensão do livro, principalmente porque ajuda a nos focalizar nos

personagens jovens e nos destinos que são traçados para eles, os quais são um pouco

esquecidos pelos estudos mencionados, por se fixarem principalmente nos procedimentos

satírico-paródicos, dirigidos aos personagens que representam as gerações anteriores à do

próprio Miramar117. Isto nos permite observar não só o satirizado, mas também o aspecto

dramático do texto, já que, como veremos mais adiante, os destinos desses jovens são, quase

todos, trágicos. Por outro lado, e como consequência, dá-nos a oportunidade de entender as

Memórias como um livro em que se retrata um primeiro momento na formação do artista

modernista, que poderíamos denominar de “prévio à semana de arte moderna” e que mostra a

frustração dos novos germes subversivos, em meio às instituições tradicionais que acabam por

esmagá-los.

Para nos referir ao livro de Oswald de Andrade queríamos começar por uma breve

descrição do modo como se desenvolve o processo formativo de João Miramar, o qual pode

ser divido em três ciclos. O primeiro deles se encontra marcado pela morte do pai, a qual abre

o livro e inicia o período de formação que se estende desde a mencionada morte até o final da

escola. O segundo começa com o ingresso do protagonista e seus colegas no espaço social, e

117 Esta divisão geracional é destacada por Oswald de Andrade na sua autobiografia: “Sinais dos tempos. A nossa geração integrara-se na consciência capitalista que gelara os velhos sentimentos da gente brasileira. Nos mantivemos, primos e primas, cautelosamente afastados, se não hostis, vagamente nos encontrando nos enterros da família e sabendo, por travessas vias, de doenças, partos e transações. Nossos pais vinham do patriarcado rural, nós inaugurávamos a era da indústria” (ANDRADE, 2005, p. 20).

72

sua abertura ao mundo urbano paulista, que se inicia com a cena 20, intitulada “Rumo

sensacional”, e termina com a volta de Miramar do seu périplo europeu. Assim como o início

do primeiro ciclo se acha marcado pela morte do pai, o final do segundo é delimitado pelo

falecimento da mãe - do qual o protagonista se informa ao pisar na terra brasileira - e pela

inserção de Miramar na vida adulta, ao casar com sua prima Célia. Este ciclo termina com a

entrada do protagonista na satírica “Sociedade Recreio Pingue-Pongue”.

O primeiro ciclo está composto de quatro eventos principais. 1) A já mencionada

morte do pai, 2) o ingresso do protagonista na escola mista de Dona Matilde, 3) a sua

posterior inserção na Escola Modelo só para homens e, por último, 4) a mudança da família

para a casa da tia Gabriela. Durante todo este ciclo, predomina a presença de um espaço social

domesticado pelos valores e pelas instituições tradicionais (a família, a escola, o internato),

mas, ao mesmo tempo, pela progressiva apresentação do surgimento dos valores da nova

geração de uma elite marcada pela sociedade industrial em formação. Esta nova geração é

composta pelo próprio Miramar, seu primo Pantico, sua prima Nair e os colegas de colégio

José Chelinini, o Pita, Gustavo Dalbert e o Bandeirinha, os quais, em conjunto, parecem

representar o surgimento de certo germe subversivo, mas que se acha sufocado pelas

instituições e pelos princípios retrógados: os valores católicos da castidade, da disciplina, da

intolerância religiosa (visível, por exemplo, na expulsão do professor ateu), dentre outros.

Assim, desde o início desta etapa que se abre com a morte do pai, parece predominar a

visão de um espaço social inteiramente desprovido de utopias, e onde os ideais carecem de

espaço e existência, questão que se reflete num vasto repertório de imagens sintéticas

apresentadas fragmentariamente pelo narrador. A imagem do “jardim desencanto” e do “circo

vago e sem mistério” (cena 2); a apresentação do infinito como mera morte, na cena 3; a

ausência de fantasia que sofre o próprio protagonista (“tive inveja da vontade de ter sido

roubado pelos ciganos” (ANDRADE, 1973, p. 25)); a cena da queima de livros por parte da

mãe, no episódio 5; e, por fim, a apresentação da própria mãe como quem vigia a relação de

Miramar com a cultura (“Na casa de tia Gabriela havia o espaço de meus livros num espaço

fronteiro para mamãe me olhar” 118).

118 Ibid., p. 28.

73

Por outro lado, e de maneira simultânea, vai se mostrando como surgem os valores da

imaginação, da cultura, da sensualidade e do espírito crítico, através de referências variadas

que se encontram em clara oposição às primeiras imagens mencionadas. Entre elas está a cena

de erotismo infantil de Miramar com Madô, que aparece no episódio 9 do livro e que surge

vinculada à imagem de exotismo, mistério e fantasia simbolizada pelos “mapas do segredo do

mundo” (ANDRADE, 1973, p. 26). Do mesmo modo, tem lugar o nascimento do que o narrador

chama da “Cidade de Rimbaud” 119, a qual vai se perfilando em clara antítese com respeito ao

espaço higiênico, branco, simétrico e extremamente restritivo do colégio, isto é, como um

lugar aberto, vital, estimulante visual e sonoramente como a própria poesia de Rimbaud, um

de cujos procedimentos poéticos favoritos é o da sinestesia, que mistura as ordens visuais,

sonoras e verbais da linguagem. Ao mesmo tempo, esta abertura para a cidade coincide com a

fascinação pelo surgimento da incipiente modernidade: “Mamãe queria que eu fosse o melhor

dos alunos mas na abertura esplanada onde os outros bolavam caía vida do tingir das forjas e

dos bondes no recorte de apitos e pregões” 120. Do mesmo modo, no momento em que a

família se muda para a casa da tia Gabriela, aparece o primo Pantico, que aparece como um

primeiro modelo formativo associado a este outro mundo do espaço público, da rua, da

vagabundagem e dos “servos”, a partir do qual se vai delineando esta formação do

protagonista em oposição aos valores do seu meio social: “Eu achava abomináveis as famílias

das nossas relações” 121. Em sintonia com esse paradigma de imagens e personagens, está a

referência à prima Nair, cujo discurso também parece mostrar o surgimento destes valores

transgressores, que se acham numa relação de antítese com os valores tradicionais. Assim, em

oposição ao espaço do internato, de onde ela escreve e manda suas cartas, o narrador põe na

sua boca episódios libertinos, como a referência às relações lésbicas que as meninas do

internato mantêm, e a precocidade sexual destas últimas: “E quando elas se encontram, se

beijam como noivos. Por mais que não se queira ficar com elas, inconscientemente fica-se. As

meninas de agora não são como as meninas de outro tempo” 122. Mesmo que em estado

incipiente, participam também desta formação “subversiva” o José Chelinini, representado

como o típico “perdido” do curso, o Pita, o Bandeirinha, e, finalmente, Gustavo Dalbert, que

aparece inicialmente como o modelo formativo verdadeiro, como o artista autêntico, que

119 Ibid., p. 12. 120 Ibid., p. 28. 121 Ibid., p. 29. 122 Ibid., p. 29.

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mostra a Miramar o preceito central do modernismo estético, e que o fará se reconhecer

definitivamente como poeta: “Gustavo Dalbert numa noite de cabelo e cigarro disse-me que a

arte era tudo mas a vida nada. Ele era músico e ia morar em Paris comigo, o amigo e jovem

poeta João Miramar. Havia um outro artista na vizinhança, o Bandeirinha barítono e outros

poetas na cidade” (ANDRADE, 1973, p. 30). Todos eles se reúnem ao redor da cultura (“E à

saída, juntavam-se narizes pernaltas com livros, face à carrocinha metálica esperando-o no

beco de sorvetes” 123), configurando uma “segunda sociedade”, a “cidade dos poetas”, que

surge como uma alternativa às instituições tradicionais que parecem imperar no início deste

ciclo: o colégio, a casa materna e a fazenda (esta última, através das cartas do Pantico, aparece

como o espaço do tédio, da solidão, dos vícios e do pré-moderno tradicional).

O segundo ciclo começa com a cena intitulada “rumo sensacional”, onde se inicia a

inserção dos partícipes desta geração no espaço social, através das novas profissões liberais (o

comércio, a advocacia, as finanças, etc.). Em outras palavras, começa-se a observar as opções

que cada um toma no mundo produtivo, em que medida são fiéis a essa vocação artística

inicial, e em que medida esta é relegada para seguir os caminhos traçados pela nova

burguesia. Jose Chelinini, “o perdido”, integra-se nas atividades comerciais, por oposição a

Gustavo Dalbert, que, em sintonia com a imagem do artista autêntico, continua fiel a seu

compromisso total pela arte. A imagem do artista inautêntico, pelo contrário, é dada por João

Jordão, que também viaja a Paris, não por vocação, mas por uma mera facilidade que lhe

oferece sua classe. Além disso, temos o caso do Bandeirinha, cujo itinerário se divide entre o

do burguês e o do artista: quer entrar na diplomacia, mas também se dedica à poesia, uma

poesia que parece responder aos princípios modernistas de Andrade: “Vagabunda mas cheia

de alma” 124. Pantico, por último, parte para um internato nos Estados Unidos. É nesta etapa

que começa a perfilar-se um certo tom sarcástico, mas também progressivamente trágico no

romance de Andrade, na medida em que a maioria dessas primeiras sementes de liberdade e

subversão, a maioria desses personagens “problemáticos” e criativos parece ser devorada

pelos caminhos traçados por sua classe: são, de alguma maneira, esmagados pelo meio social.

No caso de João Miramar, este também empreende a viagem à Europa, caracterizada pelo

narrador como uma experiência de vagabundagem, onde já parece desenvolver certo olhar

123 Ibid., p. 30. 124 Ibid., p. 33.

75

modernista dessacralizador, como acontece na cena intitulada “Vaticano” (“ – Faremos todos

com muito desgosto o que seu mestre mandar. – Cada qual pinte assim que nem Raffaello

(....) – It is very beautiful!” (ANDRADE, 1973, p.41)), ou nesses passeios a “visitar múmias no

British museum” 125. Ele também desenvolve certo olhar humorístico, como no jocoso

episódio “Costeleta milanesa”, e conhece algumas figuras do modernismo europeu (Picasso,

Satie, Jean Cocteau). Mas, finalmente, esta viagem não passa de uma experiência turística,

subsidiada pela família, e que se inicia e termina no momento em que a mãe o define: “E

minha mãe entre médicos num leito de crise decidiu meu apressado conhecimento viageiro do

mundo” 126.

Esta domesticação que os personagens vão sofrendo por causa da superposição das

instituições tradicionais (comerciais, educacionais ou religiosas) sobre esses primeiros

indivíduos “autônomos” é expressa no percurso de vários personagens, principalmente do

primo Pantico, como fica em evidência no comentário de uma de suas irmãs, alguns capítulos

mais adiante: “Os Estados Unidos e depois o Colégio Interno aqui deixou ele um besta

quadrado”. Sobre o próprio Dalbert (músico que era a imagem do artista modernista por

excelência), quando Miramar se encontra com ele em Paris, diz que estava “seco como um

chicote de Polainas”. Contudo, parece ser o Chelinini a mais eloquente imagem da degradação

desses personagens, pois acaba aparecendo como um pseudo-conde, que não só casa com sua

tia, mas também a engana e lhe rouba como um verdadeiro gangster. O Britinho, por sua vez,

morre atropelado no sertão.

Ora, no caso do protagonista, este processo começa com a sua integração no mundo

adulto, através do casamento com a prima Célia (o estereótipo da mulher tradicional,

provinciana, que gosta de ler romance naturalista –Eça de Queiroz), momento que, junto com

a morte da mãe, dá início a seu terceiro e último ciclo formativo. Ao longo desse ciclo,

Miramar parece lutar por manter a sua autonomia em relação à burguesia, através da rebeldia,

dos livros, da arte e, inclusive, por meio de seu romance com Mlle. Rolah, mulher moderna e

artista, com quem acaba fracassando. No entanto, o cenário tradicional ainda parece

prevalecer e sobrepor-se a essa luta, através do predomínio de personagens anacrônicos como

Machado Penumbra; a mãe da Célia, que começa seu romance com Chelinini; o pseudo-

125 Ibid., p. 43. 126 Ibid., p. 34.

76

erudito Doutor Pilatos; o afetado e de estilo parnasiano Fíleas; o Doutor Mandarin Pedroso,

entre outros personagens, muito bem descritos por Haroldo de Campos:

Esses personagens são mais ou menos reversíveis, e configuram, todos eles, uma mentalidade tipo, que confere sentido à paródia e lhe dá unidade e continuidade. Todas essas figuras são basicamente extraídas do ambiente em que circulava Oswald na São Paulo anterior e contemporânea à Primeira Grande Guerra” (CAMPOS, 1964, p. 30).

Com isto o protagonista acaba no empobrecimento (por causa da crise do café), na

burocratização (ele deve tentar manter, sem sucesso, a boa situação das terras), o desprestígio

(trai a mulher e é traído por ela) e, inclusive, a viuvez. Enquanto sujeito, quase desaparece,

chega a consagrar-se até certo ponto como escritor, mas participando daquela sociedade de

intelectuais que, como assinala Haroldo de Campos, é um símbolo dos retóricos e

ribombantes modelos intelectuais parnasianos. Quer dizer, acaba sendo engolido pela

sociedade tradicional, de que no começo parece emancipar-se. Deste modo, fecha-se a

formação de Miramar e daqueles amigos-parceiros que pareciam compartilhar, no início, um

certo espírito moderno. Como se vê, este processo culmina tragicamente, e todos esses

personagens acabam sendo esmagados pelas instituições tradicionais, as quais não parecem

oferecer opções para desenvolver os seus valores. Eles acabam, portanto, às voltas com a

morte, com a degradação, com o excessivo disciplinamento e a autotraição. A partir deste

final trágico, o autor propõe uma saída humorística, na qual burla aquela sociedade que

reprime e enquadra esses primeiros e abortados espíritos livres.

c) O Bovarismo e a trama das relações sociais em Perto do coração selvagem

Como já sugerimos ao longo destas páginas, Perto do coração selvagem (1942) faz

culminar toda uma tradição do Romance de formação brasileiro, pois, por um lado, retoma as

questões centrais que se desenvolvem nos textos de Pompeia e Andrade, mas, por outro, fá-las

evoluirem para um novo discurso narrativo que, além do fundo corrosivo, proporá uma nova

forma de pensar e de sentir. Esta surgirá do debate com a cultura patriarcal que já

tematizamos, e de um espírito tão anárquico quanto o de Sérgio e o de João Miramar. Mas,

77

como veremos, Clarice Lispector será menos radical, sobrepondo a essa tradição aquilo que a

crítica interpreta como uma estrutura epifânica de sentir, assentada numa sensibilidade

feminina que surge por oposição ao universo da cultura organizada ao redor do homem,

atualizada no romance pela trama amorosa que gira ao redor de Otávio127.

Perto do coração selvagem é um relato de formação feminino em que se mostra o

ascenso da protagonista ao que poderíamos chamar de um estágio superior de humanidade,

isto é, a uma efetiva formação que culmina epicamente e de forma triunfante no final do livro

com a imagem da viagem. Essa formação não corresponde à formação clássica conservadora,

a qual coincide com o conceito de socialização (o personagem se forma na medida em que se

integra positivamente na sociedade). Ao contrário, em Perto do coração selvagem, tal

processo ocorre quando a protagonista corta com as amarras que a vinculam com o universo

do pacto social, e consegue, aprofundando na sua singularidade, libertar-se das mediações do

universo histórico-normativo (as instituições concretas: familiares, escolares e ligadas ao uso

língua).

Ora, para nos mostrar este percurso, o romance faz dialogarem duas estruturas

literárias: uma estrutura realista e uma estrutura epifânica. A primeira delas, que é a que aqui

nos interessa, serve para retratar o modo em que se organiza a cultura entorno do homem,

assim como dos personagens que se integram ao esquema socialmente aceito de convivência

simbolizado principalmente pelas relações amorosas e pelo casamento. Esta estrutura atualiza-

se na presença de um fenômeno particular, próprio do Romance de formação dessa escola.

Trata-se do fenômeno do bovarismo, do personagem que atua de má-fé, aparecendo, por um

lado, como completamente integrado no universo social, cumprindo externamente com todas

as exigências da normatividade pública, mas tendo como base subjetiva um desacordo, que,

sem embargo, resiste-se a ultrapassar a esfera do íntimo para expressar-se no âmbito do

127 O novo contexto literário em que o romance de Clarice se insere favorece esta superação propositiva da cultura patriarcal. “Perto do coração selvagem representou um importante momento de ruptura em relação à literatura que vinha sendo feita no Brasil a partir de 1930, fato observado pelos primeiros críticos de Lispector e reiterado pela extensa crítica que existe sobre a escritora e sua obra. De 1930 até o momento de estreia de Clarice Lispector, sobressai na literatura brasileira uma ficção regionalista, na linha do “romance nordestino” de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado” (FERREIRA, 1990, p. 80). Clarice rompe com essa tradição, dando impulso a uma literatura de “anseio generalizador, procurando fazer da expressão literária um problema de inteligência formal e de pesquisa interior” (CANDIDO, 2008, p. 134). Isto abre uma nova porta para a elaboração da questão do patriarcalismo, a qual é resolvida, como veremos, precisamente pela via do subjetivismo, do trascendentalismo e do experimentalismo que a narrativa de Lispector atreve-se a utilizar. Ao mesmo tempo que a separa dos narradores de 30, isto parece vinculá-la com a literatura modernista (Andrade) e impressionista (Pompeia), com quem constitui uma tradição.

78

público128.

Diante desse esquema em que se estruturam os personagens que legitimam, de má fé,

o pacto social, o romance interessa-se pelo percurso formativo de Joana, personagem que

Clarice não se cansa de nos mostrar como um ser “íntegro”, “sincero demais”, que “nunca

mente” ou que “entra em todos os palcos”. Em outras palavras, alguém que não se ajusta à

lógica social do comportamento duplo do Bildungsroman realista129 em que, por um lado,

produz-se a obediência e, internamente, reserva-se o espaço da transgressão. Seria, portanto,

a história de um personagem “antibovariano” que, em determinado momento, deve passar

pela prova do casamento, cindir-se individualmente e lidar com a dinâmica das relações

sociais (baseadas nesse princípio da duplicação), representada pela trama amorosa que

articula a maturidade de Joana, para depois cortar definitivamente e seguir o seu caminho fora

dessa esfera, mas de forma unitária, em sintonia consigo mesma e com os valores

transcendentais (e não histórico-normativos) que a mobilizam.

Em oposição ao modelo realista de Bildungsroman o livro opõe uma estrutura

epifânica130 de significações, que parece provir não do universo social externo, mas do

processo semiótico ativado e vivificado pela própria protagonista. Contrastando fortemente

com o primeiro, ele surge nos momentos de maior riqueza existencial na vida de Joana, em 128 “O Bovarismo, que cresce ‘de acordo com o desenvolvimento da civilização, é a habilidade do ‘homem de pensar-se a si mesmo como algo diferente do que ele é’. O Bovarismo prolifera na divisão, no ‘vazio que existe, em cada indivíduo, entre o imaginário e o real, entre aquilo que ele é e aquilo que ele acredita ser’. É um ‘idealismo exasperado’ e, ‘sendo um intento por reformar a realidade coletiva de acordo com os sonhos individuais, carrega o princípio do fracasso’. Finalmente, na sua forma mais típica e difundida, o bovarismo está cheio ‘da crença em que toda a nossa civilização ocidental se funda: o homem pensa-se a si mesmo como livre’” (MORETTI, 2000, p. 88, tradução nossa). 129 O espírito de contradição: aqui jaz a verdade histórico-cultural destes sobressaltados enredos e destes inconsistentes heróis (...) muito mais do que no ‘progresso’, esta idade vê na contradição a essência oculta da história. Estes são os anos em que a dialética hegeliana adquire a sua forma final, e em que Goethe, abordando o tema da mudança histórica, decide utilizar não um, mas dois protagonistas: opção que lhe permite ‘resgatar’ a ‘parte imortal‘ do ser humano (...) A pergunta, para Pushkin e Stendhal, não é ‘como separar o anjo do demônio‘, mas: como fazer com que vivam juntos‘ (Ibid., p. 87)

130 Benedito Nunes descreve o que seria a epifania em Clarice Lispector analisando a palavra glória, cujos

significantes remontariam a ela: “Tais são os principais significantes dispersos que convergem, remontando ao significado fugidio de epifania, na palavra glória (...). A palavra glória – uma das mais frequentemente empregadas por Clarice Lispector – também marca, na concepção do mundo da autora, o limite do dizível, além do qual, como na errância de G.H., só se pode descortinar, no silêncio que o envolve, o ser indiviso, idêntico, inominado: “a mais primária vida divina”, “a glória divina primária” (...). Núcleo das coisas ou a própria coisa como a substância antes de seus atributos e modos, mas também vida imortal, como natura naturans ou energeia, esse ser “chão comum onde nós todos avançamos” (LE, 33), que não apenas suporta a existência contingente do sujeito humano, é, pois, a realidade da matéria viva, da qual G.H. participou na medida em que se perdeu a si mesma, despojando-se de tudo quanto era como pessoa e onde cessaria, depois de consumada, a ruptura com o mundo humano, a inquietude da “consciência infeliz” (NUNES, 1989, p. 125-126).

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que ela consegue por em movimento a sua faculdade estética e poética, dando unidade às

diferentes ordens da realidade, mediante um modo de refletir intuitivo e criativo que nada tem

a ver com a lógica separadora do real.

O romance surge, assim, de um debate entre duas estruturas que expressam um defeito

e um desequilíbrio intrínseco de nossa civilização: a contradição entre o que devemos ser e o

que somos, entre o lugar predefinido em que temos de nos classificar, e aquela dimensão

imponderável em que nos formamos e transformamos, mas sempre sob o signo dessa cisão

fundamental131. A consciência desta dualidade e a sua transposição literária para duas formas

de poéticas que entram em conflito articulando o romance são o que nos permite entender, por

outro lado, qual é o vínculo entre este livro e O retrato do artista quando jovem, de James

Joyce, de cujas páginas provém o título Perto do coração selvagem. Como bem assinala

Franco Moretti no final de The way of the world, a obra do escritor irlandês se estrutura a

partir de uma dualidade semelhante, definida por ele nos seguintes termos:

Flaubert e Rimbaud: uma possível matriz para a conhecida oscilação dO retrato entre ‘o tedioso’ e o ‘sensível’, entre o dia a dia sem significados (preferivelmente ao início dos capítulos) e as revelações cheias de sentido (preferivelmente no final). Flaubert e Rimbaud... Flaubert ou Rimbaud, deveríamos dizer. Sua compreensão da experiência era tão radicalmente incompatível que, ‘no final’ nenhuma reconciliação ou compromisso era possível (...). A opção dupla de Joyce era, então, o signo de uma dupla cisão: de uma contradição que inclusive o mais escrupuloso bricoleur do mundo (Joyce certamente o era) não podia esperar resolver. O mérito d´O retrato jaz precisamente em não ter resolvido o seu problema (...). O retrato é um bricolage; como bricolage manqué. Como um defeito estrutural. Afortunadamente (MORETTI, 2000, p. 242-243, tradução nossa). Mas se o texto de Joyce se apresenta como um bricolage em que tais estruturas se

juntam de maneira defeituosa para dar conta de uma contradição sem solução, Clarice

Lispector será, como já anunciamos, mais propositiva. Ela nos mostrará o triunfo da estrutura

epifânica de sentir, resolvendo a contradição positivamente com aquele final em que Joana

empreende sua viagem pessoal, pondo fim à luta contra esse pobre quotidiano organizado em

torno do homem. A solução será um tanto ingênua e fantasiosa (a aquisição de uma herança

por parte do pai que lhe permitirá se desvencilhar da lógica do real, sem anulá-lo). Ao mesmo

131 Dualidade particular que, na verdade, forma parte do conjunto mais amplo de divisões que conformam a nossa cultura: “Condenada ao duplo suplício de viver com o espírito, mas sem o corpo, no mundo inteligível, e com o corpo, mas sem o espírito, no mundo sensível. Com efeito, o denominador comum às imagens do tríptico é a separação (khorismós) do sensível e do inteligível, de que decorrem as oposições do corporal e do anímico, do material e do espiritual, do real e do ideal, e de todos os pares de dualidades irredutíveis, que se impuseram à tradição onto-teológica do pensamento ocidental” (MELO E SOUZA, 1997, p. 132).

80

tempo, porém, ela dará conta do grau de coerência que a autora alcança no uso ficcional

dessas duas estruturas e a sua capacidade de se manter dentro do registro do Bildungsroman,

gênero que exige a existência dos dois princípios que o articulam: o princípio de classificação

e o princípio de transformação132.

Maturidade e Bovarismo

A pesquisa sobre a norma social, inscrita na matriz realista do livro, surge durante a

narração da maturidade de Joana, momento em que aparece uma Clarice Lispector totalmente

imersa na lógica do mundo empírico representado pela mecânica do bovarismo. Essa

maturidade organiza-se através do enredo amoroso que articula mais da metade da obra:

Otávio é casado com Lídia e trai Lídia com Joana; depois se separa e trai Joana com Lídia,

com quem tem um filho. Por sua parte, Joana também, ocasionalmente, trai Otávio, mas no

final opta por ficar sozinha. De maneira indireta, o romance faz o seu próprio resumo: “Não

sabe que se eu abandonar você, você será uma mulher sem marido, sem nada... Um pobre

diabo... que um dia foi abandonada pelo noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto

ele casava com outra” (LISPECTOR, 1980, p. 117).

Apesar de não ter nada de novo nesse enredo, ele simboliza uma questão que convém

destacar: a norma de comportamento social que rege a história e de que Joana buscará escapar

mediante o triunfante e solitário final que encerra o livro. Concretamente, ela corresponde à

norma da obediência e da traição representada por essa trama amorosa baseada no esquema

casamento-adultério. Quem casa sempre estará num esquema de adultério porque o

casamento por si só parece não deixar espaço às dimensões mais complexas da personalidade

que, consequentemente, devem criar uma via de expressão na figura de um terceiro. Com

132 Essa seria, aliás, uma possível explicação para a incógnita colocada por Roberto Schwarz em seu texto sobre o romance de Clarice: “A falta de nexo entre os episódios torna-se um princípio positivo de composição. Experimentamos a sua existência, como espinha dorsal da narração, quando é desrespeitada; é de sua ruptura que resulta, a meu ver, a única passagem débil do romance: a explicação da viagem de Joana a partir de uma longínqua herança paterna, e a consequente ligação dos episódios. O apelo a uma causa exterior, plausível, impressiona como quebra e arbítrio precisamente porque um dos temas do romance é o hiato mediando as estações de vida. Reconhecemos que nada há mais razoável do que viajar depois de herdar; no caso, entretanto, a narração desmente o esforço que vinha fazendo” (SCHWARZ, 1981, p. 55). Por outro lado, Roberto Schwarz concentra a maior parte da sua análise nos elementos mais complexos do romance e da formação de Joana (vinculados ao que nós denominamos de estrutura epifânica), mas não observa que essa estrutura se encontra em debate e em interação com uma estrutura de lógica realista e que, visto assim, o final possui uma continuidade com o resto do relato.

81

efeito, o casamento aparece sempre como um quotidiano vazio, padronizado e sem

significados. Um quotidiano em que os gêneros discursivos, como, por exemplo, o gênero da

conversação, são altamente convencionais e em que a zona da comunicabilidade abrange

tudo: “Está chovendo, estou com fome, o dia está belo” (L ISPECTOR, 1980, p. 29). Nessa visão

do casamento, o único que resta é o óbvio, o que funciona quase por lei, aquilo que o homem

já sabe e conhece a priori, em detrimento da riqueza de significados que a protagonista intui

por detrás da casca rotineira das coisas:

Casou-se.

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava aos seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar...o que? – perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo embaixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia 133.

O excessivo convencionalismo que demandam e impõem as relações matrimoniais

sempre excluirá a dimensão mais rica do homem: o nível não normativo da sua singularidade,

aquilo que não é exprimível dentro do esquema extremamente comunicativo da

quotidianidade conjugal. Do mesmo modo, esse nível do singular que não se restringe ao

papel de marido-esposa, também não se resiste a si mesmo de forma isolada. Ele precisa de

restrição para exercer a liberdade, pois não suporta não ser adultério, isto é, transgressão de

uma regra. Diz Joana sobre a “mulher da voz”: “Uma vez dividiu-se (…) Ninguém sabia que

ela estava sendo infeliz a ponto de precisar buscar a vida (…)” 134. E diz também sobre o

amante: “Ele era dois, agora, mas aos poucos seu novo ser nascente crescia e dominava o

passado do outro” 135.

O personagem que melhor representa esse fenômeno é, sem dúvida, Otávio. Dividido

entre Lídia e Joana, entre a ordem e a autenticidade, ele ao mesmo tempo espalha a lógica do

casamento-adultério entre elas. Otávio organiza essa dualidade a partir de um esquema de

133 Ibid., p. 92. 134 Ibid., p. 70. 135 Ibid., p. 154.

82

ordem e concessão, que permite incorporar a sua dimensão individual dentro da organização

metódica da sua existência:

A verdade é que se não tivesse dinheiro, se não possuísse os “estabelecidos” se não amasse a ordem, se não existisse a Revista de Direito, o vago plano do livro de civil, se Lídia não estivesse dividida de Joana, se Joana não fosse mulher e ele homem, se... oh, Deus, se tudo...que faria? Não, não “que faria”, mas a quem se dirigiria, como se moveria? Impossível deslizar por entre os blocos, sem vê-los, sem deles precisar. (LISPECTOR, 1980, p. 111)

Otávio é um personagem muito interessante, que parece funcionar como o articulador

das ideias de Joana, através da palavra escrita que lhe é privativa dentro do romance. Por

momentos, de fato, ele mostra-se assustadoramente parecido com a protagonista 136: os dois

tem a mesma visão sobre a socialização, sentem repugnância pelas relações excessivamente

domésticas e cultivam um intenso desejo de elevar-se através do intelecto e de abstrair-se do

excesso de humanidade. Isso se observa, por exemplo, na concepção da música que Otávio

articula num dos seus textos, a qual se define por oposição à música de salão que praticava a

sua tia na casa de infância: música excessivamente humana, sem nenhuma distância do real e

cuja lembrança parece desdobrar uma desagradável comédia de costumes. Mas os dois –

Joana e Otávio – são personagens de natureza, no final, totalmente diferente. Além da

duplicidade que caracteriza o homem, a distinção fundamental que o livro quer estabelecer

entre eles é o caminho formativo que um e outro escolhem, o que é determinado pelo grau de

autonomia que cada um é capaz de manter a respeito da ordem social. Num excelente

parágrafo escrito por Otávio, essa distinção é posta em termos de uma oposição entre gênio

(artístico) e inteligência. O caminho do homem do romance corresponderá ao segundo, o qual

consiste na capacidade de pensar sem desajustar a relação com a ordem e a razão, ou, noutras

palavras, num raciocinar apoiado na segurança dos caminhos iluminados pelo logos. Da

perspectiva de Joana, essa é, sem embargo, uma vereda limitada, pois, apesar de articular o

pensamento com base na verdade, nunca vai permitir enxergar cara a cara essa verdade, pois

136 Faço alusão a uma das críticas feitas por Roberto Schwarz no seu livro A sereia e o desconfiado: “(...) o livro contém uma falha grave de perspectiva: nalguns pontos, a visão interior usada para mostrar Joana é usada também para mostrar outras personagens, que se tornam então irremediavelmente semelhantes à figura principal; ao que esta, por sua vez, deixa de ter um plano narrativo especificamente seu” (SCHWARZ, 1981, 57).

83

ela se encontra “nos caminhos obscuros do pensamento” não restritos à lógica, que surgem da

coragem para seguir um caminho pessoal:

É necessário certo grau de cegueira para conseguir enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes. Pensou um pouco. Depois, apesar de a concessão prolongar-se demais, anotou: “Não é o grau que separa a inteligência do gênio, mas a qualidade. O gênio não é tanto uma questão de poder intelectivo, mas da forma com que se apresenta esse poder. Pode-se assim ser mais inteligente que um gênio. Mas o gênio é ele. (LISPECTOR, 1980, p. 111).

Assim, a opção de Otávio será a de um pensador conservador que consegue se elevar

intelectualmente mas não de maneira totalmente autônoma, e a forma que vai possibilitar esse

estilo de pensar será a da reflexão racional, com certas, mas sempre privadas, escapadelas

imaginativas (restritas a um registro escrito que não chega a traduzir-se numa atitude vital).

Todos os gestos de Otávio se encaixarão dentro desse esquema (“Gostava dos pequenos

gestos e dos velhos hábitos, como vestes gastas, onde se movia com seriedade e segurança” 137). A ele importa mais o passado que o instante pessoal e singular e, por extensão, o acordo

com os outros – o pacto social – do que o acordo consigo mesmo, reservando para esta

dimensão só o espaço da transgressão. Seus atos, deste modo, estarão sempre restritos ao

percurso que vai do pesado cumprimento do dever à infração: “E de repente não compreendeu

como pudera acreditar em responsabilidade, sentir aquele peso constante, todas as horas. Ele

era livre… como tudo se simplificava às vezes” 138.

A visão que o livro apresenta de Lídia é também extremamente interessante. Por

contraposição a Joana, ela é a mulher que representa a ordem no livro, o bem-estar das

relações civilizadas: “Lídia. O conforto da Ordem” 139. A dualidade de Lídia é muito menos

acentuada que a de Otávio porque, neste último, o cultivo intelectual parece enriquecer e

engrandecer a região da sua interioridade. Digamos que em Otávio a relação entre

interioridade e exterioridade, entre o seu singular e a instância normativa do exterior estão em

perfeito equilíbrio. À força da normatividade histórica se contrapõe nele uma força intelectual

137 Ibid., p. 110. 138 Ibid., p. 118. 139 Ibid., p. 116.

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interna igualmente poderosa, mas nunca superior à primeira, e quando tenta superá-la é só

mediante a privacidade do pensamento escrito e o adultério.

Em Lídia esse equilíbrio desaparece. No caso dela, praticamente tudo é obediência às

leis externas e o que sobra para sua singularidade é só a transgressão orientada a realizar os

seus desejos amorosos (transformar-se em amante do Otávio para ficar do lado dele). Mas ela

– e este é o traço que o livro quer destacar com mais afinco – não possui poder nenhum de

elevação intelectual. Animal de baixo voô, Lídia tem o dom da beleza, a “bênção” da

legitimação social, mas não consegue desenrolar um só raciocínio. É a mais fiel representação

da mulher tradicional, num contexto em que as relações parecem ter-se modernizado. De fato,

Lídia não é alguém que se desenvolva bem na sociabilidade moderna, pois essa aparece no

romance como uma forma mais pública e “exterior” de integração social, enquanto que ela se

move melhor dentro do privado, dos salões e do interior doméstico. Ela, como Joana, é

também uma solitária, o que sugere em determinados momentos a ideia de uma autonomia,

mas o fato é que sua forma de realização pessoal é executada retomando um modelo de

socialização defasado, mas nunca mediante a articulação de um pensamento ou de um

sentimento singular:

E amava-o nesse instante. Sua feiura não a excitava, não lhe causava pena. Simplesmente ligava-se mais a ele e com maior alegria (...) Lembrava-se das antigas colegas – daquelas meninas sempre vivas, sabendo tudo, tendo ligação com cinemas, livros, namoros, roupas, daquelas moças de quem nunca pudera aproximar-se de verdade, calada como era, sem ter propriamente o que dizer. Lembrava-se delas e sabia que haveriam de achar Otávio feio naquele instante. Pois aceitava-o tanto que desejá-lo-ia pior para provar ainda mais seu amor sem luta (LISPECTOR, 1980, p. 119).

Joana simboliza a duplicidade de Lídia em termos plástico-geométricos.

Contradizendo a associação comum de que o personagem problemático 140 (neste caso, Joana)

é aquele que possui uma maior, poder-se-ia dizer, “profundidade”, para a protagonista de

PCS, será Lídia (a mulher que representa a norma no romance) o personagem de

140 A noção de “personagem problemático” é uma contribuição de A teoria do romance de Lukács, e refere-se ao sujeito ficcional que, provido de uma série de ideais, entra em confronto com os poderes que organizam o universo social. Segundo o crítico húngaro, no Romance de formação clássico esse sujeito rebelde acaba se inserindo harmoniosamente dentro do corpo social sob a forma de um acordo em que tanto o indivíduo, quanto a sociedade cedem, ficando ambos fortalecidos.

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“dimensões”: “Lídia tem vários planos. A cada gesto revela-se outro aspecto de sua

dimensão” (LISPECTOR, 1980, p. 134). Para nós, esta é uma representação visual do fenômeno

do bovarismo, pois a noção de dimensão e profundidade sugere um estar opaco, não

totalmente transparente, em que são sempre dois os planos que, no mínimo, estão operando

atrás das ações dos personagens. O plano do visível, ou do socialmente aceito, e o plano do

invisível que é, no caso de Lídia, o plano da transgressão manifesto no adultério e nesse filho

ilegítimo dela com o homem casado. Tudo isto parece nos dizer que aquilo que se chama de

“profundidade”, na verdade, encontra-se nos personagens mais simplórios e comuns, que,

impedidos de atuar de maneira transparente, devem realizar-se num registro de maior

complexidade ao terem que cindir-se para continuar se movimentando em harmonia com o

social. Por outro lado, Lídia é também apresentada em termos qualitativos, como alguém

“excessivamente real”, como uma mulher poderosa e “material”. No entanto, o “peso” dessa

“materialidade” não corresponde à substância que ela possui diante de nós como leitores, mas

à legitimação social que tem o modelo de mulher que ela representa, pois é um “peso” medido

com a balança das normas sociais: “Por que é que ela é tão poderosa? O fato de eu não ter tido

tardes de costura não me põe abaixo dela, suponho” 141.

Joana estará situada nas antípodas de Lídia e de Otávio. Ela não parece ter talento para

participar dessa encenação das relações sociais baseadas na cisão do eu, pois está marcada

pela integridade: “Vou continuar, é exatamente de minha natureza nunca me sentir ridícula, eu

me aventuro sempre, entro em todos os palcos” 142. Joana estará ou inteiramente ausente ou

inteiramente presente nas circunstâncias, mas nunca cindida. A sua lógica será, portanto, a da

sinceridade total:

Pobre Joana…poderia ele dizer se quisesse. Jamais saberia. Tão íntegra na sua altivez ignorante... Mas ele ferozmente a pouparia, ria ele, o coração batendo. Bem, amanhã escreveria algo definitivo sobre o artigo 143 (...) Você sabe que eu não minto, que nunca minto, mesmo quando…mesmo sempre? Sente? Diga, diga. O resto então não importaria, nada importaria…quando digo essas coisas…essas coisas loucas, quando não quero saber de seu passado e não quero contar sobre mim, quando eu invento palavra...Quando minto, você sente que eu não minto” 144. Continuando com o registro plástico, Clarice Lispector simboliza visualmente a Joana

com figuras que denotam simplicidade. Por contraditório que pareça, ela, a mulher mais 141 Ibid., p. 139. 142 Ibid., p. 107. 143 Ibid., 117. 144 Ibid., p. 159.

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“complexa” do romance, será representada pela singeleza de uma “linha”, em oposição a

Lídia, mulher pobre espiritualmente, mas cheia de planos e dimensões provenientes de fatores

externos a si mesma (da sua condição cindida e da sua inserção social). Assim, em contraste

com aquela que se forma tendo como base a legitimação de uma norma que, por sua vez, lhe

dá uma consistência que, na verdade, não possui; Joana vai se definir a si mesma como

alguém totalmente volúvel e carente daquela “materialidade” dada pela participação na lógica

das relações sociais normativas. Essa volubilidade será, no entanto, a que lhe permitirá atuar

de acordo consigo mesma, fazendo de todas as suas ações, atos acertados (“Eu não agasalho

meus erros, enquanto Joana não erra, eis a diferença” (LISPECTOR, 1980, p. 112)):

Comigo acontece o seguinte ou senão ameaça de acontecer: de um momento para outro, a certo movimento, posso me transformar numa linha. Isso! Numa linha de luz, de modo que a pessoa fica só a meu lado, sem poder me pegar e à minha deficiência 145.

As minhas mãos e as dela. As minhas – esboçadas, solitárias, traços lançados para a frente e para atrás, descuido e rapidez num pincel molhado em tinta branco-triste, estou sempre levando a mão na testa, sempre ameaçando deixá-las no ar, oh, como sou fútil agora compreendo. As de Lídia – recortadas, bonitas, cobertas por uma pele elástica, rosada, amarelada, como uma flor que vi em alguma parte, mãos que repousam em cima das coisas, cheias de direção e sabedoria. Eu toda nado, flutuo, atravesso o que existe com os nervos, nada sou senão um desejo, a raiva, a vaguidão, impalpável como a energia. Energia? Mas onde está minha força? Na imprecisão, na imprecisão, na imprecisão… 146.

A lúcida e grandiosa perspectiva da infância

Como vimos, para a Clarice Lispector de Perto do coração selvagem, nas relações

adultas nenhuma formação é possível, pois elas se regem pelo princípio classificatório do

bovarismo. A única fase da existência que permite esta formação é a infância, idade que, mais

do que um ciclo externo da vida147, consistirá numa perspectiva a partir da qual é possível

criar e atribuir significados próprios aos fenômenos do real: é possível, então, formar-se. A

grande busca da Joana adulta será, com efeito, a realização dessa perspectiva infantil perdida

com o casamento. E seu grande drama será o de não poder desdobrá-la dentro da lógica das

relações sociais, nem sequer sob a fórmula de uma negociação. De fato, quando o relato salta

145 Ibid., p. 134. 146 Ibid., p. 135. 147 Uma visão semelhante corresponderia ao romance cíclico, segundo o descreve Bakhtin: “Assim, no tempo cíclico pode-se mostrar a trajetória do homem entre a infância e a mocidade, e entre a maturidade e a velhice, revelando-se todas as mudanças interiores substanciais no caráter e nas concepções de mundo que no homem se processam com a mudança da idade. Essa série de desenvolvimento (de formação) do homem é de natureza cíclica, repetindo-se em cada vida (BAKHTIN , 2003, p. 221)”.

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à narração dos episódios da sua maturidade, os momentos de maior relevância não serão

aqueles ligados aos acontecimentos próprios dessa etapa (casamentos, traições, separações),

mas sim os instantes em que a Joana adulta triunfa sobre o quotidiano e consegue retomar a

perspectiva da infância, dando continuidade ao elo da meninice.

Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e cada papelão era um aluno. Joana era a professora. Um deles era bom e outro era mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E sempre nada vinha se ela…pronto (LISPECTOR, 1980, p. 11).

Como é de esperar, essa perspectiva infantil nada tem a ver com o registro do conto de

fadas contra o qual se dirige ironicamente o parágrafo supracitado e cuja finalidade principal é

a de fazer reconhecíveis as distinções entre bem e mal, associando a infância a uma

simplicidade espiritual e a uma lucidez moral perdida com a maturidade. Nas antípodas dessa

assentada visão, em Clarice Lispector a infância parece ser a idade de uma lucidez que não é

produto da obediência e do reconhecimento de categorias morais, mas de uma força intuitiva e

reflexionante, livre daquelas mediações. Este é o período em que a protagonista parece

encontrar-se totalmente entregue ao exercício da reflexão e à meditação de dilemas

filosóficos, projetando-se como uma criança “séria” e pensante. Uma menina em vários

sentidos “adulta”, que enfrenta perguntas fundamentais e que não se interessa por distrair-se

daquela intensa condição humana: “Não gosto de me divertir - disse Joana com orgulho” 148.

O episódio do roubo que a protagonista comete em companhia da tia é muito

eloquente em relação ao que estamos falando. “- Sim, roubei porque quis. Só roubarei

quando quiser. Não faz mal nenhum. - Deus me ajude, quando faz mal, Joana? - Quando a

gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste” 149. A menina não parece atuar de

acordo com as categorias de bem e mal apresentadas de maneira normativa. Além disso, ela

propõe que o que mobiliza o ser humano não são os padrões de correção ou incorreção, mas

os padrões psicológicos ligados ao prazer e ao desprazer (felicidade-infelicidade), os quais

reconhece, mas, ao mesmo tempo, desconhece. O que lhe interessa é a desumanização dos

seus atos, acentuando o valor que tem o vigor da vontade que vem de si mesma e não da

obediência a esquemas pré-definidos nem pela moral (bem-mal), nem pela psicologia (prazer-

148 Ibid., p. 26. 149 Ibid., p. 45, grifo nosso.

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desprazer)150.

Diante dessa postura, os dois únicos e fracos educadores que Joana tem durante a

infância – a tia e o professor – assumirão duas perspectivas. A primeira será uma perspectiva

totalmente exterior à realidade íntima da menina e desdobrará uma compreensão pejorativa

dessa desumanização, associando Joana com a imagem de uma “víbora”, isto é, de um animal

selvagem, letal, frio e calculista:

É uma víbora. É uma víbora fria, Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil gostar dela, inútil fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de matar uma pessoa...” (...) “É um bicho estranho, Alberto, sem amigos e sem Deus (LISPECTOR, 1980, p. 46)

A segunda delas será a do professor, personagem que parece capaz de assumir uma

perspectiva mais próxima à de Joana, evitando impor-lhe as categorias morais que funcionam

mais fortemente nos critérios da tia, e sugerindo a ela parâmetros subjetivistas de avaliação do

próprio comportamento:

O professor admitia-a de novo, milagrosamente. E milagrosamente ele penetrava no mundo penumbroso de Joana e lá se movia de leve, delicadamente. – Não é valer mais para os outros, em relação ao humano ideal. É valer mais dentro de si mesmo. Compreende, Joana? 151. Ainda assim, o próprio professor também assumirá mais tarde a tarefa de humanizar

Joana, perdendo, com isso, o acesso a esta menina impenetrável. Ao contrário da tia, que

acode a critérios moralistas para conseguir isto, ele tentará religar a conduta dela às categorias

psicológicas de prazer e desprazer que ela tinha negado com o roubo, no mesmo capítulo

intitulado “O banho”:

A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos intervalos. É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. 152

Para ele, o caminho de Joana leva a uma anulação da experiência concreta e, portanto,

150 Cenas como essa confirmam o colocado por Benedito Nunes: “No entanto esse romance de tão boa fortuna literária, que nos faz penetrar em tais labirintos, não é mais um romance de análise psicológica. Muito embora seja a experiência interior o seu âmbito, muito embora tenha no aprofundamento introspectivo o princípio mesmo de seu dinamismo, Perto do coração selvagem já se desliga da visão objetivista dos estados d´alma. Nele encontramos, sem dúvida, aquela minúcia da descrição de múltiplas experiências psíquicas (...) sem que isso signifique contudo que a narrativa vise, como o realismo psicológico do século passado, a análise de caracteres e a fixação de tipos” (NUNES, 1989, p. 12) 151 Ibid., p. 47. 152 Ibid., p. 47, grifo nosso.

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à negação da formação num sentido histórico. A interiorização da experiência buscada por

Joana permite, segundo ele, o acesso a instâncias sublimes e transcendentes, mas, em

contrapartida, ela enclausura a possibilidade de ter vivências inscritas no tempo, ao modo dos

“grandes homens”, cujos atos – que ele considera superiores – sempre estarão vinculados ao

âmbito do histórico. O professor defende, assim, a necessidade de um equilíbrio entre o viver

“linear” e o viver “interno”, ideia que Joana recusa:

– Não – disse ele –, não. Nem sempre. Às vezes possui-se o mais alto e no fim da vida tem-se a impressão... – olhou-a de lado – tem-se a impressão de que se está morrendo virgem. É que as coisas não são talvez mais altas ou mais baixas. De qualidade diferente, entende? (LISPECTOR, 1980, p. 117). Apesar do esforço destas duas figuras educadoras, Joana continuará firmemente

agarrada à sua própria perspectiva, provocando o afastamento final de ambos os mediadores

do seu processo de educação e humanização. A formação de Joana (que se torna possível no

final do livro) dar-se-á, portanto, fora dessas mediações institucionais (familiares e escolares),

a quem nega qualquer direito de intervir ou participar da elaboração da sua compreensão do

mundo.

Mas por que tão fraco, tão sem alegria? O que acontecera afinal? Há poucas horas chamavam-na de víbora, o professor fugia, a mulher esperando… O que acontecia? Tudo recuava… E de súbito o ambiente destacou-se na consciência com um grito, avultou com todos os detalhes submergindo as pessoas numa grande vaga… Seus próprios pés flutuavam. A sala onde já estivera durante tantas tardes refulgia no crescendo de uma orquestra, mudamente, numa vingança pela sua distração. De um momento para outro Joana descobriu a insuspeita potência daquele aposento quieto. Era estranho, silencioso, ausente como se nunca tivessem nele pisado, como se fosse uma reminiscência. As coisas haviam-se guardado até agora e então aproximavam-se de Joana, cercavam-na, brilhando na meia escuridão do crepúsculo 153.

O significativo para Joana menina radicará, assim, na consciência e na experiência da

vastidão e grandiosidade do mundo que se apresenta nos interstícios do tempo humano

cotidiano em que as coisas parecem formar parte de um esquema funcional. Isto é, nos

fugidios e epifânicos momentos em que esse tempo parece estar detido, abrindo espaço à

singularidade plena que “engrandece” e disponibiliza à visão tocar os objetos fora da

cotidianidade, soltos, ou, em outras palavras, esteticamente apresentados:

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a

153 Ibid., p. 54-55.

90

terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer. Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver (...). Então, subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. (LISPECTOR, 1980, p. 9)

Em sintonia com esta sensibilidade, a morte dos pais também será uma experiência de

grandeza para Joana. Em certo sentido, é um evento que a menina não lamenta, pois lhe

permite experimentar a imensidão da existência entre as filisteias relações humanas que a

rodeiam. Antes que a perda, o que fica no coração de Joana é a possibilidade de, graças a essa

experiência trágica, ter uma compreensão mais intensa do que é viver, causada pelo encontro

com a força da natureza. Ela tem, portanto, uma visão épica da morte, que contrasta com a

perspectiva estreita e lastimosa da tia. Para esta, a tragicidade da morte não deve ser encarada,

mas, ao contrário, adoçada e dissimulada com biscoitos. Já para Joana, a morte deve ser

vivida com toda a sua amargura, e assumida com a maior das consciências: deve ser bebida,

provada e sentida, como aparece simbolizado nas cenas de Joana perto do mar, no dia em que

aceita o falecimento do pai. O aprendizado que este lhe oferece é, por fim, o da união entre o

quotidiano e o transcendente, presente na cena seguinte que, como uma versão da madalena

de Proust, reúne o doméstico (o biscoito) com o épico-transcendente representado pelo mar:

Na casa da tia certamente lhe dariam doces nos primeiros dias. Tomaria banho na banheira azul e branca, uma vez que ia morar na casa. E todas as noites, quando ficasse escuro, ela vestiria a camisola, iria dormir. De manhã, café com leite e biscoitos. A tia sempre fazia biscoitos grandes. Mas sem sal. Como uma pessoa de preto olhando pelo bonde. Ela molharia o biscoito no mar antes de comer. Daria uma mordida e voaria até casa para beber um gole de café. E assim por diante 154.

O que se identifica na infância é, portanto, a era de uma integridade perdida com o

casamento e com o envolvimento de Joana nas imbricadas peripécias das relações sociais.

Como vimos, a menina aparece como um sujeito marcado pela resistência contra qualquer

forma de mediação normativa de comportamento e pela inabalável vontade épica de pensar e

viver a partir de si mesma, isto é, como um sujeito que tem uma visão órfã do mundo,

originada, inicialmente, pela morte dos pais, e perpetuada, mais tarde, por decisão pessoal. O

texto oferece o que poderíamos definir como a “causa profunda” dessa decisão: o desejo por

154 Ibid., p. 37.

91

parte de Joana de reencarnar a figura da mãe morta que o pai viúvo parece ter amado tanto,

revivificando essa que se mostra, nos relatos do progenitor, como uma magnífica figura

feminina. De fato, as referências que o livro oferece dessa mãe mostram-na muito próxima do

caráter de Joana. Mitificada pelo pai que a recorda situada num espaço imaginário – o areal –,

mais próxima do divino que do humano, as evocações falam de uma figura materna que, igual

à filha, atua de acordo com as suas próprias concepções de bem, expressando singularmente a

sua bondade. É o que se observa no capítulo “...Um dia...”, em que o livro, belamente, parece

expor estas causas para explicar o caráter de Joana, causas que não seguem uma lógica

superficial, mas que parecem obedecer ao profundo chamado da mãe (“das profundezas

chamo por vós”), com quem Joana tem uma evidente continuidade. Deste modo, ao contrário

do que acredita o professor, o decisivo na formação de um caráter, seguindo a linguagem do

livro, não seria uma experiência, nem uma ação histórica concreta, mas uma ausência: a

ausência presente da mãe que nem sequer conheceu. O caráter de Joana, consequentemente,

não seria uma mera rebeldia, uma simples oposição à norma representada por estes

personagens concretos, mas ela passaria, antes de mais nada, pela peneira desta ordem

familiar. Informa-nos o livro sobre a figura da mãe:

“- É o diabo, sim... - Tu não imaginas sequer: nunca vi alguém ter tanta raiva das pessoas, mas raiva sincera e desprezo também. E ser ao mesmo tempo tão boa... secamente boa. Ou estou errado? Eu é que não gostava desse tipo de bondade: como se risse da gente. Mas me acostumei. Ela não precisava de mim. Nem eu dela, é verdade. Mas vivíamos juntos. O que eu ainda agora queria saber, dava tudo para saber, é o que ela tanto pensava. Você, como me vê e como me conhece, me acharia o tipo mais simplório perto dela. Imagine então a impressão causada na minha pobre e escassa família: foi como se eu tivesse trazido para o seu rosado e farto seio – lembras-te, Alfredo? – os dois riram – foi como se eu tivesse trazido o micróbio da varíola, um herege, nem sei o que… Sei lá, eu mesmo prefiro que esse broto aí não a repita. E nem a mim, por Deus… Felizmente, tenho a impressão de que Joana vai seguir o seu próprio caminho” (LISPECTOR, 1980, p. 24)

Era fina, enviesada – sabe como, não é? –, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse. Não, ela não se entregava nunca. E mesmo aquela cor seca – felizmente a guria não puxou –, aquela cor não combinava com uma camisola... Ela passaria a noite a rezar, a olhar para o céu escuro, a velar por alguém. Eu tinha má memória, nem me lembrava porque a chamava de bruta. Mas não tão má que a esquecesse. Via-a ainda caminhando sobre um areal, os passos duros, o rosto fechado e longínquo. O mais curioso, Alfredo, é que não poderia ter existido nenhum areal. No entanto a visão era teimosa e resistia às explicações. 155

155 Ibid., p. 23.

92

O caminho traçado por Joana pode ser compreendido, assim, como um percurso

fundamentado numa visão arcaica e ancestral da formação, isto é, numa visão “pré-moderna”.

Tal estrutura se expressaria na busca e realização da unidade do indivíduo e na possibilidade

deste, ao mesmo tempo, dar continuidade à ordem dos seus antepassados, representados, neste

caso, pela figura da mãe de Joana e pela ordem matriarcal que, por sua vez, ela simboliza. A

visão epifânica que entra em pugna com o bovarismo realista, e que a protagonista consegue

reivindicar, formaria parte dessa mesma configuração.

Em sintonia com esse registro arcaico e ancestral, o relato de Clarice se preocupará de

que o percurso da sua protagonista, apesar da singularidade com que ele se reveste dentro da

ficção, não fique restrito a um discurso individualista, válido somente para ela mesma, mas

que também seja reconhecido e reconhecível por uma comunidade simbólica mais ampla.

Com essa finalidade, a autora incorpora, lucidamente, duas instâncias orientadas a legitimar o

percurso e a estrutura de valores da sua personagem. A primeira delas e a mais simples será

fazendo referência ao poder transformador que o discurso e o comportamento de Joana tem

sobre os outros personagens do romance, em outras palavras, à capacidade não só de

transgredir e de desconhecer a ordem social, mas também à de impactar e penetrar nessa

ordem, promovendo mudanças nos indivíduos concretos que a rodeiam. Isso se vê, por

exemplo, no quão instigante Joana é para Otávio, o qual, apesar de optar por um equilíbrio

inquebrantável entre obediência e transgressão, vai sentir-se profundamente seduzido pelo

senso de liberdade dela: “Sim, em breve ela se tornaria pesada a ele com seu excesso de

milagre. Como as outras pessoas, inexplicavelmente envergonhado de si próprio ansiaria por

ir embora. Mas uma vingança: ele não se libertaria inteiramente. Terminaria maravilhado

consigo mesmo, comprometendo-se, cheio de uma responsabilidade indefinida e angustiosa.” 156. Reação semelhante terá o amante de Joana: “Era assim: Joana o libertara. Cada vez mais

ele necessitava de menos para viver: pensava menos, comia menos, dormia quase nada. Ela

era sempre. E viria daqui a pouco” (LISPECTOR, 1980, p. 155).

A segunda e a mais interessante destas instâncias de legitimação acontece na aparição

do marco narrativo que o romance incorpora inusitadamente à narração:

Titia, ouça-me, eu conheci Joana, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca em relação às coisas. Tudo lhe parecia às vezes preciso demais, impossível de ser tocado. E, às vezes, o que usavam como ar

156 Ibid., p. 161-162.

93

de respirar, era peso e morte para ela. Veja se compreende a minha heroína, titia, escute. Ela é vaga e audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria notando-o como Lídia, outra mulher – uma mulher cheia do próprio destino –, observou-o. No entanto o que há dentro de Joana é alguma coisa mais forte que o amor que se dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se recebe. Compreende, titia? Eu não a chamaria de herói como eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão (...). Vejo teus olhos abertos, me olhando com medo, com desconfiança, mas querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha, agora morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por cima de minha aspereza. Pobre!, a maior revolta que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquela frase quase diária que ainda ouço, misturada a teu cheiro que não posso esquecer: “oh, não poder sair à rua na roupa em que se está!” Que mais te contar? Tenho os cabelos cortados, castanhos, às vezes uso franja. Vou morrer um dia, nasci também (...) (LISPECTOR, 1980, p. 163-164).

Como todos sabemos, já o uso deste recurso do marco é em si um arcaísmo que vem

das origens orais da narrativa e de onde surgiu, precisamente, a figura do narrador. Nos seus

inícios, este correspondia geralmente a um velho que contava um relato e ia simultaneamente

acrescentando considerações morais à história que estava sendo narrada. Mais tarde, é claro,

essa avaliação moral foi sendo deslocada devido ao caminho principalmente irônico que

assumiu o narrador moderno. Clarice Lispector, não obstante, volta a utilizar esse recurso

arcaico, levando à forma o que está em jogo também no conteúdo, e o faz com uma finalidade

extremamente interessante. Qual seja: a de pedir legitimação para o percurso da protagonista

do romance e conseguir que os atos e os rumos tomados por Joana sejam aceitos como

válidos, não só dentre os seus contemporâneos, mas agora, principalmente, dentro da estirpe

familiar feminina (quem narra é uma mulher se dirigindo a uma tia morta, que bem pode ser

reconhecida como uma autoridade). Se, no recurso anterior, procurava-se um reconhecimento

que poderíamos chamar de horizontal, busca-se agora um consentimento vertical, dirigido à

autoridade matriarcal – movimentos que expressariam a vontade de fazer do caso de Joana o

instrumento de um discurso transformador.

2. Decadência e emergência: Infância de Graciliano Ramos e O moleque Ricardo, de José

Lins do Rego.

Com Infância, de Graciliano Ramos, e O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, o

Romance de formação brasileiro desloca-se para outro tipo de universo. Seguindo o rumo

94

geral da narrativa dos anos 30 e da evolução do modernismo no Brasil157, das grandes capitais

da região centro-sul do país, ele dirige-se ao Nordeste, seja para os decadentes territórios

rurais, seja para as cidades menores em vias de modernização (Recife, Maceió). O gênero

volta-se, assim, em sentido contrário ao movimento histórico geral (o progressivo processo de

industrialização que faz a massa do campo migrar às grandes cidades), com o fim de examinar

a experiência e a significação dessas transformações naqueles territórios. Isto acontecerá

através de uma literatura escrita por autores que fazem parte desse processo; originários

dessas regiões a que farão referência, inaugurando um novo capítulo do modernismo e do

Bildungsroman brasileiro, o qual se abre à realidade local do país158 e a um novo repertório de

personagens. No nosso caso: um preto filho de trabalhadora de engenho (personagem

emergente) e um neto de fazendeiros, filho de pequeno-comerciante que passa a ser

funcionário público na cidade de Maceió (personagem decadente).

Em Graciliano Ramos, esta revisão do passado nordestino será feita através do

desenvolvimento programático de uma memória pessoal que surge em Angústia e realiza-se

plenamente em Infância. Já em José Lins do Rego, isso se dá mediante um romance de forte

teor experimental159, em que, mais do que falar de si, aventura-se a pensar sobre a condição

do proletariado do Recife e as possibilidades da sua emancipação. Em cada um deles, a

memória ocupará um lugar protagônico: a memória “artística”, “com preocupações

depuradoras e seletivas” (CASTELLO, 1946, p. 185) que, como iremos propor, é o modo como

acontece a formação em Graciliano Ramos; e a memória “primitivista”, “emocional e

espontaneamente recuperada, livre de reações e seleções posteriores” 160, em José Lins do

Rego, com a qual se evocará uma formação, a formação do Moleque Ricardo.

157 Segundo o mapeamento de Antonio Candido, aquilo que se esboçara nos anos vinte com a Semana de Arte Moderna assimila-se e generaliza-se durante a década de trinta. O antiacademicismo, a aceitação consciente ou inconsciente das inovações formais e temáticas, o inconformismo, o anticonvencionalismo e o alargamento da literatura regional adquirem alcance nacional. Esta última tem particular importância dentro deste quadro, cuja “extensão (...) e transformação em modalidades expressivas dentro da literatura nacional [desdobra] uma interpenetração literária de todo o Brasil que é uma visão renovada, não convencional do país visto como conjunto diversificado” (CANDIDO, 1984, p. 29-30). 158 Através do que Antonio Candido chamou de uma “ficção regional não regionalista” desenvolvida pelo “Romance do Nordeste”, o qual derivou do fato do país ter tomado consciência desses territórios (Ibid., p. 30). 159 Experimental no sentido naturalista, pois o romance se estrutura em grande parte em torno de uma tese que explicitaremos nas páginas que se seguem. 160 Ibid. p. 184.

95

O caráter centrípeto do Romance de formação poético será substituído, assim, por um

romance cuja tendência é a de abrir-se cada vez mais aos discursos que estão para além da

figura central. Nesse sentido, o principal neles não será só o personagem em formação, mas

também o mundo em formação e, sobretudo, o mundo subalterno das regiões mencionadas.

No caso de Angústia, essa abertura acontece mediante uma difícil mistura de solipsismo e de

consciência social, em que a narração centrada no eu focaliza-se, simultaneamente, na

experiência e na perspectiva dos outros: trabalhadores industriais, prostitutas, mulheres

maltratadas, sertanejos discriminados. Já em Infância, o relato se descentra por completo,

conformando uma riquíssima galeria de personagens, diante dos quais a figura principal e o

narrador parecem dissolver-se. Com O moleque Ricardo, a abertura social do autor alcança a

sua maior extensão, pois, apesar de a história do moleque e do Recife dos anos vinte fazer

parte da experiência do autor – já que naqueles anos ele fazia faculdade de Direito nessa

cidade161 –, ela vai para além da região da sua especialidade. Quer dizer, vai para além do

engenho e da casa grande que emolduram a história de Carlos e que se referem, mais

diretamente, à história pessoal de José Lins do Rego.

Aquele personagem cáustico, anárquico e, em muitos casos, satírico, que consegue

formar-se subjetivamente, seja anulando o plano narrativo que simboliza a história, seja

completando a formação no nível da escrita, sofre, nesta tradição do Bildungsroman

brasileiro, uma drástica transformação. Os protagonistas de Infância-Angústia e d O Moleque

Ricardo, mesmo sendo personagens radicalmente diferentes, terão a nota comum de serem

sujeitos marcados pela obediência à norma social, representada pela lei patriarcal, e pela

incapacidade de traçarem os seus próprios roteiros de crescimento, deformando-se a si

mesmos fora dessa lei 162.

161 “E é precisamente em Recife que vamos encontrar o futuro autor dO Moleque Ricardo, no início da década de 20, como estudante de Direito exercendo atividades jornalísticas” (PONTES DE AZEVEDO, 1946, p. 208). 162 Estas observações sobre o “Bildungsroman prosaico” estão em consonância com a descrição que Antonio Candido faz do romance de trinta. Caracterizado pelo movimento, ele amplia as suas perspectivas, ao mesmo tempo que dificulta as possibilidades de realização da formação do personagem: “Nesse tipo de romance (...) é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza. Raramente, como em um ou outro livro de José Lins do Rego (Banguê) e sobretudo Graciliano Ramos (São Bernardo), a humanidade singular dos protagonistas domina os fatores de enredo: meio social, paisagem, problema político. Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros de radicalismo da nossa história” (CANDIDO, 1984, p. 131).

96

No romance de José Lins, o personagem se encaminha a um processo de emergência

orientado a se emancipar do universo patriarcal e, nesse sentido, o seu percurso implica um

progresso em relação a sua posição inicial como trabalhador do engenho. No entanto, este

processo ver-se-á frustrado por motivos internos e externos que interditarão toda possibilidade

genuína de formação. Para o moleque Ricardo, como veremos, desenvolver-se significará, na

maior parte do tempo, seguir a lógica da ascenção social e, portanto, da integração que está

nas bases tanto do projeto oligárquico, quanto do projeto industrial. Nessa limitação radicarão

os motivos internos da sua incapacidade de formar-se, pois cada uma das fases desse

desenvolvimento estará pautada pela obediência e pela submissão a um novo patrão que, no

fundo, substituirá Zé Paulino, o senhor de engenho. Mas, no momento em que o moleque

decide tomar consciência da sua própria escravidão e da dos seus colegas de trabalho,

tomando coragem de participar da revolução, a lógica externa invade a história: o aparelho

repressor do Estado captura-os, impondo, assim, o estado de coisas oligárquico que domina o

Recife desses anos163.

O caso de Graciliano Ramos segue, em parte, a mesma lógica, só que esta é finalmente

superada pelas características textuais e discursivas dos romances que compõem o seu

Romance de formação. Como proporemos, o percurso de Luís da Silva será normatizado

pelas regras sociais pequeno-burguesas representadas por Julião Tavares, obediência que

também expressará a continuidade de uma submissão inconsciente às normas patriarcais

impostas ao menino Graciliano em Infância, e agora interiorizadas por Luís da Silva, em

Angústia. Tal submissão levará este último a uma deformação diferente da que mencionamos

anteriormente. Uma deformação que, por acontecer no interior da norma, adquire as

características de uma deformação neurótica e, portanto, patológica, que, no entanto,

encontrará uma saída através da memória, iniciada em Angústia e desdobrada

programaticamente em Infância.

Segundo esta mesma lógica, é interessante destacar, por último, o lugar que o artista e

o intelectual ocupam nesses romances. Situados em mundos complexos e inscritos numa

163 “O Estado de Pernambuco presenciava a luta oligárquica entre “borbistas” e “pessoístas”. No Jornal do Recife, onde substituíra Barbosa Lima Sobrinho em crônicas dominicais, José Lins posicionava-se a favor do senador Manuel Borba, na defesa contra as intenções intervencionista de Epitácio Pessoa em Pernambuco. E criticava a situação política do Estado, numa atitude polêmica que se tornará mais veemente ainda na revista Dom Casmurro, que ele funda com Osório Borba, em 1922” (PONTES DE AZEVEDO, 1946, p. 208).

97

esfera pública que os textos parecem incorporar intencionalmente à ficção, eles se apresentam

como sujeitos impotentes, incapacitados de exercer qualquer função dentro desse âmbito. No

caso de Graciliano, isto se faz visível no seu romance Angústia, mediante as referências ao

passado político do personagem; um passado afogado que parece não ter tido continuidade,

configurando-se como uma das causas da frustração que o romance como um todo busca

retratar. Em José Lins do Rego, observamos isso na figura de Zé Cordeiro, personagem que,

dentro do quadro de atores que o romance apresenta como fazendo parte do processo

revolucionário, simboliza a figura do intelectual. Apesar de ele explicitar e transparentar ao

leitor quais são os sintomas que impossibilitam a revolução, ele próprio não consegue intervir,

nem participar dos eventos internos ao romance. O seu papel fica, portanto, restrito a essa

função ficcional extratextual.

a) Angústia e Infância: deformação e formação

O ponto de partida deste estudo pode ser sintetizado pela seguinte citação de Ficção e

confissão – livro que Antonio Candido dedicou à obra completa de Graciliano Ramos:

De tal modo que a veracidade deste livro só encontra testemunho garantido nos outros de Graciliano Ramos, ou, para ser mais preciso, em Angústia. A ficção, neste caso, explica a vida do autor, ao contrário do que se dá geralmente. Muitas das pessoas aparecidas na primeira parte de Infância já eram nossos conhecidos de Angústia. E, penetrando na vida do narrador menino, parece-nos que há nela o estofo em que se talham personagens como Luís da Silva” (CANDIDO, 2006, p. 71).

O conteúdo do parágrafo é muito interessante e sugestivo, pois propõe uma leitura

biografista da obra de Graciliano feita “às avessas”. Ao mesmo tempo, ele oferece uma senha

de acesso a Infância (1945), estabelecendo uma continuidade entre esse romance e Angústia

(1936), texto ficcional prévio que, desafiando o critério cronológico, outorgaria sentido às

lembranças infantis narradas no livro de 1945.

98

É a partir desse vestígio, dessa conexão fundamental entre Infância e Angústia, que

gostaríamos de começar este trabalho. Compreendidos em conjunto, ambos os romances

funcionariam como um grande Bildungsroman de artista. Nele aparece elaborado

ficcionalmente o período da vida de Graciliano Ramos que vai de 1884 – data do seu

nascimento – até 1935, ano que marca o fim do período que o autor passa no nordeste

brasileiro trabalhando na instrução pública, antes de ser demitido do seu cargo de diretor e

preso pelas questões políticas que todos conhecemos164.

Outras obras poderiam ser acrescentadas ao par romanesco que aqui iremos estudar,

mas o vínculo que estas mantêm com Infância e Angústia é menos nítido165 que o que estes

romances possuem entre si. De fato, eles apresentam uma continuidade direta, um fio

condutor explícito que o estudo de Lamberto Puccinelli registra rigorosamente nas seguintes

linhas do seu livro:

Mais para comparar do que para glossar essas duas obras é necessário fazer um balanço dos fatos e dos personagens que se repetem de uma para outra. Desse cotejo, tem-se, para começar, que autor e personagem seguem um roteiro comum: ambos abriram os olhos para a vida numa propriedade rural; ainda pequenos, ambos mudaram-se para uma vila, depois, através da zona rural, o autor mais demoradamente, para ir a Viçosa, o personagem mais rapidamente, para ir para Maceió. E, para terminar, os personagens que surgem nas memórias e os que surgem no romance são, quase todos, não só os mesmos, como ainda se apresentam na ficção com os seus nomes reais, a ponto de poderem colocar-se lado a lado; José Baia, que em Angústia é o único amigo do personagem, é, em Infância, o único amigo do romancista; era, na realidade, risonho e expansivo, barulhento mesmo e se na ficção falava baixo contudo ria sempre; tanto na realidade quanto na ficção, tinha dentes alvos, dentes muito brancos; cantava na realidade e na ficção; aqui e ali, contava histórias de onças; aqui era amigo, ali era bom tipo; na ficção, assim como nas memórias, menciona ao menino as orações fortes, especialmente a da cabra preta, de enorme virtude, o avô paterno na realidade e na ficção, foi proprietário de terras e arruinou; na vida e no romance, por rabugice da enfermidade ou por bebedeira, quando endireitava o espinhaço, o antigo proprietário ressurgia; Amaro vaqueiro das memórias e Amado vaqueiro do

164 Esse período coincide com o surgimento, desenvolvimento e crise da República Velha na história do Brasil, e inclui os seis anos que se seguiram à Revolução de Trinta.

165 De fato, é difícil não reconhecer a estreita relação que existe entre muitos dos personagens de Caetés, de Vidas secas ou de São Bernardo. Eles atuam, muitas vezes, uns como reflexo de outros, funcionando, por sua vez, como diferentes alter egos da figura desse autor que aparece exposta em Infãncia. Jõao Valério, Fabiano, “o menino mais velho”, esse filho abandonado na escuridão que aparece em São Bernardo e, até mesmo, o Paulo Honório: todos eles têm, direta ou indiretamente, algo dessa contraditória e trágica criança que aparece em Infância, ou dessa fissurada figura adulta que reconhecemos em Luís da Silva. Em cada um deles vemos, de uma ou outro forma, a relação com o nordeste brasileiro, o sentimento de opressão vindo da natureza e da cultura representada por algum tipo de autoridade, e o sentimento de abjeção, de “pessoa ruim” e inferior, refugiada da hostilidade do meio na escrita.

99

romance está nos dois lugares enchendo cestos de mandacaru; o padre João Inácio das memórias é o padre Inácio do romance e, num como noutras, distribui sempre o mesmo insulto ao povo arreda, raça de cachorro com porco e é sempre a mesma figura austera, de sinistro aspecto, com olho de vidro, imóvel, num círculo negro, na órbita escura, que dirigia ou chefiava um partido político.

Assim, também, o cabo José da Luz canta, no romance, a mesma cantiga que canta nas memórias; seu Antônio Justino das memórias, vai ser o mestre Antônio Justino do romance; e Teotoninho Sabiá e seus filhos; e Acrísio, e André Laerte, e Rosenda e seu Felipe Benício desfilam, com seus nomes, suas característicase até suas funções, no romance e nas memórias” (PUCCINELLI, 1975, p. 61-62)

A continuidade entre estes romances é dada, assim, pela recorrência dos seus

personagens secundários, mas também, e sobretudo, pela história comum que possuem os

seus diferentes protagonistas, os quais funcionam, ao mesmo tempo, como distintos alter egos

da figura do autor. O primeiro desses personagens seria o trágico menino, filho do senhor

Ramos, que protagoniza Infância. O segundo seria o próprio Luís da Silva, figura central de

Angústia. Este último aparece como um homem já adulto, que abandonou a vila tantas vezes

mencionada no livro de memórias, instalando-se como jornalista em Maceió, e que volta

incessantemente ao seu lugar de origem através das lembranças do avô, do pai, do seu amigo

José da Luz, do padre Inácio, dentre outros, todos eles mencionados no livro de 1945.

Infância tem sido considerada uma das obras centrais que constituem o corpus do

Bildungsroman brasileiro da primeira metade do século XX. Mas a nossa impressão é que ele

por si só não chega a configurar a experiência total deste Bildungsroman de artista, que sim

se vislumbra incorporando os romances mencionados, pois, como diz Antonio Candido:

Em Infância o esqueleto quase se desfaz, dissolvido pela maneira de narrar, simpática e não objetiva, restando apenas uns pontos de ossificação para nos chamar à realidade. Para o leitor que não conhece a zona do autor, creio que esses pontos não passam de alguns nomes de cidade e de gente (CANDIDO, 2006, p. 70).

100

Com a inclusão de Luís da Silva, ao contrário, faz-se presente a figura de um homem

adulto que narra as recordações presentes em Infância, outorgando-lhes um sentido, mediante

a presença de uma subjetividade que regride e as observa desde sua maturidade166.

Visto assim, este romance pode ser considerado como um Bildungsroman composto

por três etapas. A primeira meninice, narrada principalmente em Infância, que vai dos dois ou

três anos do menino Graciliano até os onze, quando este tem a sua primeira experiência

amorosa com Laura, cuja narração fecha o livro. Em seguida, haveria mais dois períodos: o da

adolescência e o da maturidade, ambos referidos no romance Angústia, e que também

parecem estar pautados pelo tema amoroso e sexual que põe fim a Infância. A adolescência

seria apontada pelo romance de Luís da Silva com Berta, enquanto que a maturidade, pelo

dramático e frustrado romance deste com Marina, em Maceió.

Em Infância, o principal do relato seria mostrar como são impostos, no menino

Graciliano, os valores sociais externos representados pela moral dos senhores que encarna o

pai; mas também o modo como a criança consegue surgir dessa dominação e alcançar uma

efetiva formação mediante o cultivo de uma cultura literária. Essa conquista infantil se perde

durante a adolescência, como nos informa Angústia, romance em que os valores sociais

objetivos, que aparecem em Infância submetendo o menino, são efetivamente internalizados e

subjetivados por Luís da Silva, deslocando toda possibilidade de formação.

Após um percurso prático totalmente deformante, Luís da Silva iniciará um processo

retrospectivo que o narrador de Infância desdobrará de maneira programática. O sentido desse

voltar atrás será o de completar, mediante o próprio exercício de lembrar, a formação que foi

166 Graciliano Ramos terminou de escrever Angústia em 1936, quer dizer, um pouco antes de ser preso durante a ditadura de Vargas. Ele foi o desenvolvimento de um antigo conto intitulado “Entre grades”, que escreveu em 1924 e que também tinha como protagonista o personagem Luís da Silva, figura com que “começa a construir uma galeria de criminosos” (MORAES, 1993, p. 47). Desengaveta-o em 1935 e escreve o romance alternando com o seu trabalho na Instrução Pública. Mais tarde é preso durante um ano, e ao sair sai livre fixa residência no Rio de Janeiro, onde, em 1938 lança Vidas secas, livro que consolida o seu reconhecimento. A redação de Infância foi, primeiro, por partes e logo foi se consolidando como um projeto total cujo objetivo era, segundo o seu biografista, reavivar a meninice perdida no interior, ideia que tinha desde 1936, isto é, desde a publicação de Angústia. Isto oferece maior convicção na hora de compreender estes livros como um só projeto que foi interrompido ou talvez estimulado pelo quebre experimentado pelo autor por causa da prisão. Infância, deste modo, apareceria, em palavras do próprio romance, como uma sorte de “solução de continuidade” não só do impulso para as origens iniciado em Angústia, mas também da traumática cisão existencial sofrida pelo autor no cárcere.

101

negada a Luís da Silva no plano empírico. Ao mesmo tempo, a viagem interna para o passado

será uma busca do momento em que esta formação de fato aconteceu. Este momento é

finalmente encontrado pelo narrador nas páginas finais de Infância, quando a criança, como

dissemos, inicia-se no mundo literário.

A deformação neurótica de Angústia

Um aspecto significativo que pode ser observado em Infância e Angústia, vistos como

uma unidade, é a quase total ausência da idade que se considera fundamental para o

Bildungsroman clássico: a juventude. Reunidas, ambas as obras possuem, como diz Antonio

Candido, um tempo “tripartido”, composto pela infância, pela adolescência e pela maturidade,

mas o certo é que os únicos dois períodos realmente desenvolvidos são o primeiro e o último.

Sobre a juventude há escassas informações. Sabemos por Angústia que houve um

intento por parte do protagonista de dar continuidade a essa formação de escritor conquistada

nos capítulos finais de Infância 167. No entanto, ela foi totalmente fracassada pela falta de

facilidades materiais que obriga Luís da Silva a se dedicar a atividades exclusivamente

econômicas e não de formação. As poucas referências à juventude, assim, estarão marcadas

pela pobreza (sofre fome, ganha salário baixo, suas condições de moradia são sub-humanas),

e pela miséria afetiva (amor e dinheiro parecem ser indissociáveis na história entre o

protagonista e a neta de Dona Aurora).

Essa juventude “sem formação” e, portanto, sem espaço para elaborar e processar uma

identidade individual estará representada, em última instância, pela ausência dessa idade no

plano do relato. Como consequência de semelhante falta, o que restará ao protagonista será

continuar reproduzindo a moral que lhe foi inculcada no período da infância: a moral do amo

cuja violência será o Leitmotiv de Angústia.

167 Esse intento frustrado se corresponde, no biográfico, com a primeira viagem que Graciliano fez para o Rio de Janeiro em 1914, conhecida pelas imensas dificuldades de toda ordem que ele teve de atravessar.

102

Este aspecto é relevante também para compreender como é simbolizado no romance o

plano histórico. As duas idades desenvolvidas (a infância e a maturidade) são

contextualizadas por dois momentos: pela abolição da escravidão, em Infância, e pela

iminência da Revolução de Trinta, ou inícios do Estado Novo, em Angústia; isto é, por duas

instâncias que conformam os extremos do período conhecido como a República Velha.

Em Angústia, o primeiro desses momentos aparece simbolizado pela história de

decadência do avô Trajano, provocada pela crise do regime fazendeiro no Nordeste, e também

pela referência ao pai de Luís da Silva. Carente de todo o prestígio que possuía antes dessa

queda, ele não parece se integrar exitosamente no novo contexto, como o sugerem as imagens

de ócio e improdutividade a que se encontra entregue em todas as lembranças trazidas pelo

seu filho.

O segundo momento histórico será o tempo presente de Angústia e corresponde, como

dissemos, aos tempos da Revolução de Trinta e a um contexto de modernidade mais

avançada. Estamos na cidade (Maceió) e aqui “o senhor” já não é o fazendeiro, mas

principalmente a figura do burguês simbolizada caricaturalmente por Julião Tavares.

O livro se inicia mostrando este novo universo urbano em que se encontra o

protagonista, que irá retratando dialeticamente o desenvolvimento e a pobreza desta urbe

industrializada. Nela transitam, por um lado, os novos sujeitos ligados às profissões liberais,

que são os que têm acesso aos espaços de modernidade; e, por outro, o universo da miséria e

da massa urbana que se encontra fora desse desenvolvimento.

No entanto, entre um e outro ponto histórico, entre o fim da escravatura e a Revolução

de Trinta, entre o início da República Velha e o desenvolvimento de uma industrialização, não

parece haver um processo que os interligue: fala-se só de momentos de extremidade. O

passado histórico aparece como que remendado do lado do presente, o qual se mostra, ao

mesmo tempo, como o resultado de um processo defeituoso, ou melhor, como resultado de

uma falta de processo. O plano histórico e o plano individual do protagonista, serão, assim,

expressões de um mesmo desenvolvimento mal sucedido em que o presente (a maturidade)

parece determinado por um passado (uma infância) que o invade por falta de um momento

intermediário capaz de dar forma e sentido às mudanças trazidas pela cojuntura e pelas

circunstâncias pessoais atuantes.

103

O tempo presente de Angústia se subdivide em dois: o tempo pós-crime em que se

tenta reconstruir os fatos do segundo plano composto pelo passado imediato em que o

homicídio foi realizado, um ano atrás. É nesse segundo plano que se encontram os

acontecimentos mais significativos do relato: o tempo da maturidade de Luís da Silva, que,

após uma juventude determinada pela miséria, parece estar realizando um esforço de

integração adulta, seguindo o roteiro da nova norma burguesa. Tem um trabalho estável de

funcionário público que, embora lhe permita participar de uma espécie de comunidade com

Moisés e Pimentel168, não passa de um trabalho impessoal e de pura sobrevivência. Por outro

lado, Luís da Silva está começando um romance com Marina, a mulher fatal do relato.

Marina é uma mulher do povo que mora com seus pais – seu Ramalho e dona Adélia –

do lado da casa de Luís. Seu Ramalho trabalha numa usina de carvão, que fica próxima do

bairro, e dona Adélia é o símbolo da mulher popular, sacrificada, dedicada à casa e totalmente

entregue às necessidades da filha e do marido. O romance com Marina se inicia como uma

paixão meramente fisiológica e sexual, que parece ser coerente com as antigas experiências

amorosas de Luís da Silva: amores fadados ao fracasso e em que o dinheiro aparece como um

elemento indissociável ao jogo passional. Vemos isto, primeiro, na referida experiência de

Luís com Berta, a prostituta loira com que tem um romance durante a juventude, e, depois, na

já mencionada história entre Luís da Silva e a filha da dona da pensão onde se hospedava

durante seus anos no Rio de Janeiro. Em ambos os casos, o amor parece dar-se não como um

encontro direto entre homem e mulher, mas como um jogo de interesses mútuos, cujo fim é a

aquisição de algum tipo de propriedade. No caso da mulher, o capital que o homem possa ter,

e, no caso do homem, os prazeres que ele possa receber da parte da fêmea. Este tipo de amor

configura-se, portanto, fora do registro da parceria, de modo que o avanço nas intenções de

um implica um retrocesso nas intenções e no desenvolvimento do outro.

No caso particular do romance com Marina, apesar do contexto popular em que

acontece, ele adquire a feição de um amor totalmente pautado pela norma burguesa colocada

pelas exigências de uma mulher que, quanto mais avança nos seus propósitos, mais consegue

socavar a força e a potência de Luís da Silva. Esta mulher é claramente um pesadelo, o alvo

168 Ambos são personagens inteligentes, politizados, mas sintomaticamente fracos, que se encontram em oposição aos “machos” do relato, encabeçados por Julião Tavares e seguidos pelos maridos de Dona Rosa e Dona Mercedes.

104

dos temores de um homem que concentra e projeta todo o seu pavor pela modernidade na

figura de uma femme fatale que atua como uma espécie de bomba de tempo, cuja pólvora é o

consumo.

Ora, o domínio dessa deformante norma burguesa que está tomando conta e se

apoderando de todas as dimensões de Luís da Silva será representado pela aparição de Julião

Tavares, esse rival que parece espelhar os contraditórios desejos de integração e, ao mesmo

tempo, de liberação que atuam nele. Julião Tavares fala bem, se veste bem, se dá bem na vida

e tem um trabalho de comerciante legitimado pelo novo universo social. É, portanto, um alter

ego de Luís da Silva que simboliza, simultaneamente, o caminho em que ele se encontra mal

inserido e, ao mesmo tempo, a causa da sua progressiva frustração, pois esse caminho

desejado é, na verdade, um caminho de submissão.

Luís da Silva iniciará um longo duelo com Julião Tavares até matá-lo, atravessando

com isso a barreira da lei e da normalidade, o que dará origem ao clima psicótico deste

romance e ao estado dramático do seu narrador.

Quem protagoniza e narra os acontecimentos de Angústia, portanto, não corresponde

ao eu do Bildungsroman clássico, pois esse possui a imagem de um homem próximo da

ordem, em processo de autoconstrução. Ao contrário, em Angústia fala-nos um criminoso, um

outsider social, alguém que ultrapassou a barreira da normalidade e da legalidade e cujo eu

está mais próximo do eu psicológico, que daquele em formação. O personagem central atua

aqui de acordo com pulsões e determinações vindas de experiências infantis que ele repete

durante a sua maturidade. Ele não é, portanto, o indivíduo autônomo e autoformado do

Romance de formação, mas principalmente um reprodutor de experiências pretéritas e

ideologias impostas não elaboradas que fazem crescer um mal que explode no crime.

Como já anunciamos, lemos Angústia como um drama em que aparece interiorizado o

conflito entre a moral externa que funciona como norma e a própria moral. Em Infância,

como veremos, este conflito possui o caráter de um drama que atravessa as relações dos

personagens em geral e, portanto, como uma forma de intersubjetividade. Entrando nas

páginas de Angústia, esse drama persiste sob o mesmo regime, mas, neste caso, ele é

completamente interiorizado. O duelo entre uma e outra moralidade, entre a lei do senhor e a

do servo aparecerá como um conflito entre duas forças subjetivadas por Luís da Silva, isto é,

105

como um debate consigo mesmo, simbolizado pela rivalidade entre o protagonista e seu alter

ego, Julião Tavares.

O principal deste texto seria, portanto, o drama interno que gera a luta do indivíduo

com a normatividade social, a qual se encontra como que incrustada no comportamento do

protagonista. A história criminal subordina-se, assim, ao registro interior de um relato cujo

tema central não é o homicídio, mas, sobretudo, o debate privado de Luís da Silva consigo

mesmo. Este surge, por um lado, da frustração de todas as possibilidades de formação

intelectual, artística, afetiva e política para a sua vida. E, por outro lado, da sintomática

obediência, por parte do protagonista, ao roteiro de uma pequena-burguesia representada pela

imagem de Julião Tavares, que, por sua vez, funciona como o novo senhor da história.

A falta de uma instância que objetifique o delito cometido e a incorporação de detalhes

que quebram a lei de verossimilhança leva-nos a compreender este romance como uma

narração que se aproxima de um grande rito de autodestruição simbólica. Nele, Luís da Silva,

por meio do assassinato de Julião Tavares, tenta exorcizar de si a moral dos senhores que

parece não só ter regido o seu passado, mas também e, sobretudo, as ações da atualidade: “35

anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento” (RAMOS, 2003,

p. 44).

O drama descrito por Angústia consistiria, assim, na extrema obediência por parte do

protagonista aos valores sociais, transformando-se numa vítima deles. Este drama desemboca

no crime simbólico, que funcionaria como um desesperado e degradado ato de formação. No

entanto, a verdadeira formação não se daria no plano empírico. Interditada toda possibilidade

concreta de atuar segundo valores pessoais, ela surgirá, como veremos, do próprio exercício

de lembrar e reconstruir os fatos do passado. Este exercício começa em Angústia, desenvolve-

se plenamente em Infância e continua a se desdobrar na obra toda de Graciliano, definida, nas

palavras de Antonio Candido, como um grande movimento que vai da ficção para a confissão;

ou, para os fins da nossa leitura, da ficção para a formação.

106

Infância ou a formação pela memória

Tendo em mente o que foi dito acima, Infância pode ser lido como uma grande

experiência de “formação pela memória”, que acontece através do exercício sistemático de

reconstrução do passado. Nisso se encontrará, para além do conteúdo narrado, o sentido

fundamental deste livro, se compreendido em conjunto com Angústia: o de completar a

formação que foi negada no plano empírico através da reconstrução dos fatos passados, com o

fim de formar uma experiência. Como foi dito, esse exercício começa em Angústia, com

Graciliano/Luís da Silva, homem de uns 35 anos que se encontra instalado na cidade de

Maceió e que, dentre as condições opressivas da vida moderna desta cidade industrial de

província, é impelido involuntariamente a recordar:

Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó. (Ramos, 2003, p. 12).

[.....]

Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: - “Arreda, povo, raça de cachorro com porco.” Sento-me no paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado e os homens que iam para a cadeia amarrados de cordas. Lembro-me de um fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado e confuso. Em seguida os acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou 169.

Este perambular involuntário pelos meandros de uma memória vaga e difícil de

penetrar, que vai surgindo em Angústia com maior ou menor nitidez, talvez seja um dos

elementos centrais que aparecem na hora de lembrar, em Infância, o remoto período da

fazenda. Mas o que no primeiro livro se apresenta como uma força repentina, uma espécie de

pulsão que, mediante flashbacks, transporta Luís da Silva ao passado, transforma-se, no

segundo, num esforço programático. O narrador, neste caso, faz um esforço monumental por

169 Ibid., p. 14.

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recriar esse passado e lutar contra o domínio do esquecimento, representado pelo símbolo das

trevas e pelo estado de sonolência em que se acham, simultaneamente, o homem que evoca

essa idade e o menino evocado.

O primeiro passo desta grande missão pessoal de formar uma experiência por meio

das lembranças será o de invocar a memória, com o fim de elaborar os mais remotos instantes

da primeira infância e fazê-los significativos. Ao redor deste tópico, giram, de fato, os

capítulos iniciais do romance. O narrador começa fazendo referência a um universo composto

somente por coisas, em que o contato da criança com o mundo parece ser meramente

material:

Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas. Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta (RAMOS, 2003, p. 9).

Em seguida, das relações meramente objetais, a memória dirige-se a elaborar as

relações da criança com as pessoas. Estas aparecem por fragmentos, partes características dos

seus corpos com que o menino captura, ao mesmo tempo, traços psicológicos dos

personagens referidos e impressões afetivas pessoais170. O narrador continua invocando a

memória, desta vez, conectando objetos entre si e coisas com palavras. Finalmente, ele

triunfa, e os fragmentos antes meramente perceptuais integram-se em totalidades articuladas:

Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente. Às vezes as peças se deslocavam – e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se tornavam irreconhecíveis (...) (RAMOS, 2003, p. 17).

170 “Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos

clarões: os brincos e a cara morena de sinha Leopoldina, o gibão de Amaro vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes” (Ibid., p. 11).

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Vistas como um todo, as recordações deste volume podem ser divididas e organizadas

em três momentos, pautados pelos três espaços através dos quais transita o protagonista e que,

por sua vez, seguem a linearidade oferecida pelo evoluir real do eu biográfico. Esses três

momentos são: I. O período da fazenda (capítulos 1-5), II. O período da vila, ou de Buíque

(capítulos 6-24) e III. O período no município de Viçosa - Alagoas (do capítulo 25 ao 39).

Em cada uma destas fases e nos diferentes episódios que as compõem, veremos a

encenação de uma mesma tensão, gerada pelo conflito entre duas moralidades ou leis: a dos

opressores e a dos oprimidos, a dos que exercem o poder que socialmente possuem, e a dos

outros que carecem dele e o padecem:

Nesta narração autobiográfica, um dos traços mais constantes é o sentimento de humilhação e de machucamento. Humilhação de menino fraco e tímido, maltratado pelos pais e extremamente sensível aos maus-tratos sofridos e presenciados por toda parte, recordações doídas de alguma injustiça, de alguma vitória descasada do forte sobre o fraco (...). Em casa, na rua, na escola, vê sempre um indefeso nas unhas de um opressor”. (CANDIDO, 2006, p. 71).

Além da invocação memorialística que funde o passado e o presente do narrador, o

período da fazenda está constituído por mais um motivo: o do “aprendizado doloroso”: “Nos

quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa”.

(RAMOS, s/d, p. 32). Este tópico atravessa a grande maioria dos episódios da primeira parte,

onde se mostra o menino Graciliano sendo submetido a um processo educativo articulado em

base a torturas, em que o crescimento e o desenvolvimento são provocados por meio de

diferentes sacrifícios que ele deve realizar para se desenvolver. A tensão opressor/oprimido se

atualizará, neste momento da narração, principalmente na oposição pai/filho. No entanto, o

lugar de agressor será também ocupado pelos professores e pela mãe de Graciliano.

Os episódios desta primeira parte mostrarão cada um dos martírios que configuram

este “aprendizado doloroso” do plano moral, do intelectual e, por último, do social. O

primeiro deles dá-se no dramático capítulo “Um cinturão”, durante o castigo paterno, em que

o menino, mediante a tortura física, parece adquirir as suas primeiras e confusas noções de

bem e de mal, associando a “justiça” com a obrigação de o mais fraco ser punido pelo mais

forte. O segundo aprendizado surge da alfabetização, suplício ainda mais violento que o

109

anterior, pois se impõe como uma agressão persistente que causa uma dor permanente no

corpo e na autoestima do protagonista. Em lugar de educar, esta alfabetização aparecerá como

uma redução e um embrutecimento das faculdades mentais do menino171. A aprendizagem do

social, por último, acontece por responsabilidade da mãe, durante a primeira instância de

socialização do menino Graciliano. Nela, a criança (já oprimida pelos sapatos exigidos por

tais situações) é embriagada impunemente por um grupo de mulheres, como uma espécie de –

comum, mas macabro – ritual de iniciação no âmbito não familiar. A vida social aparecerá,

assim, não como uma instância de expansão do indivíduo, mas como um terreno a mais para

sua anulação.

Como já foi anunciado, este período da fazenda termina com o deslocamento da

família Ramos para a vila de Buíque, o qual significará dois tipos de mudança. Em primeiro

lugar, uma drástica transformação na relação homem-natureza experimentada pelo menino até

então. Em segundo lugar, uma significativa abertura para outras formas de moralidade

diferentes da representada pelo pai, mediante o encontro com os novos sujeitos sociais que,

com o início da Primeira República, começam a adquirir voz.

Apesar do clima de fatalidade com que a fazenda aparece na narração do autor, uma

vez acontecido o deslocamento, ela adquire um novo sentido nos sentimentos do menino. A

fazenda passa a constituir uma espécie de idílio perdido em que o personagem lembra de ter-

se vinculado com o mundo de maneira absoluta e de ter-se sentido livre e à vontade entre as

roupas desleixadas. Ao se separar da água, da terra, do céu aberto e, também, dos personagens

que antes davam orientação a sua vida, quebra-se a relação entre ele e o mundo como

totalidade: “Longe da fazenda considerei-me fora da realidade e só” (...) “O paletó feria-me os

sovacos, os sapatos mordiam-me os pés e tropicavam no tijolo. Senti falta da camisa e das

alpercatas” 172. O ingresso na vila de Buíque aparece, assim, como uma experiência de

desajuste, em que o personagem perde a liberdade da natureza e é obrigado a encerrar-se num

apavorante mundo mental de fantasmas e mitos, a partir do qual só pode contemplar a vida

por fragmentos, sem participar dela: “Observávamos pedaços de vida, namorávamos o oitão

171 Como aparece muito bem explicitado no capítulo 15: “Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentado num caixão, sem pensamento, a carta sobre os joelhos” (RAMOS, s/d, p. 96). 172 Ibid., p. 43.

110

da outra gaiola, aberta, e tínhamos inveja imensa dos Sabiás pequenos, desejávamos correr e

voar com eles” (RAMOS, s/d, p.55).

Por outro lado, o trânsito da fazenda para a vila de Buíque aparece também como um

salto do individual para o histórico-coletivo; isto é, do familiar e do particular, para um

âmbito de socialização mais rico, composto por um universo de valores cada vez mais amplo.

Observando a organização e as condições deste novo eixo espacial, o menino transforma-se

num leitor e num intérprete do momento histórico que atravessam: o ano de 1897, isto é,

inícios da República Velha, na história do Brasil. É durante esta passagem para o coletivo que

o menino começa a reconhecer e aprofundar-se no conhecimento de outras moralidades.

A moral dos senhores, antes representada unicamente pelo pai, amplia-se para outros

personagens. Ao mesmo tempo, a partir deste momento, o menino entrará em contato com a

moral dos servos, ou dos escravos (antes levemente vislumbrada no seu amigo José Baía),

abrindo-se, assim, a novas vozes sociais.

A visão e a lei dos poderosos estará agora representada pelo padre João Inácio (que

concentra, na sua figura, o poder político, religioso, social e urbano) e todo o desfile de

personagens vinculados à dominação do povoado de Buíque. Esta moral será a da civilização,

da corrupção, do controle e da mercantilização da vida e do homem.

Por outro lado, no entanto, começará a aparecer, também, a moral do servo e do

dominado, representada pelos personagens que passam a atuar como os modelos formativos

de Graciliano, e que vão adquirindo cada vez mais força ao se fazer sensível o início da

República. Casualmente, todos eles chamam-se José: o já mencionado José Baía, o Moleque

José, José da Luz e, por último, Leonardo José. Diferente dos senhores, sua moral estará

relacionada ao estoicismo, à integridade diante da dor, à humildade, ao acolhimento e, por

último, à sua vinculação e proximidade com o mundo do natural. Diz sobre o Moleque José:

Tomava-o por modelo. E, sendo-me difícil copiar-lhe as ações, imitava-lhe a pronúncia, o que me rendia desgosto. Esfriavam-me a ambição de melhorar e instruir-me, forçavam-me a recuperar a fala natural. Haviam obrigado o moleque a tratar-me por senhor, não admitiam que me reconhecesse indigno, me privasse voluntariamente daquele respeito miúdo. José, insensível às minhas desvantagens, perseverava na obediência, modesto, a proteger-me (...). José conhecia lugares, pessoas, bichos e plantas (...) senti o moleque próximo e infalível. Eu julgava a ciência dele instintiva e segura. Modifiquei o

111

juízo e alimentei a esperança de, com esforço, decorar nomes também, orientar-me em caminhos e veredas (...). Apesar do erro, o prestígio de José não diminuiu” (RAMOS, s/d, p.76 – 77).

Diante dessas duas moralidades, o menino optará por buscar e realizar cada vez mais a

moral dos servos, como fica ilustrado nos seus esforços por reproduzir (ainda que sem

sucesso) os atos e as falas do moleque. Tal orientação, porém, deparar-se-á com diversas

formas de obstáculos, que serão ilustrados em diferentes episódios do romance. Obstáculos

vindos de si mesmo, como filho de um autoritário patriarca pequeno-burguês, formado por

um sistema educacional totalmente alinhado com os seus métodos de ensino. E obstáculos

colocados pelos próprios personagens que representam o mundo (agora, relativamente

emancipado) dos “servos”, também deformados pela moral dos patrões. O livro fechar-se-á

com uma solução particular: a atividade literária, uma atividade inofensiva, que permite fugir

da dinâmica senhor/servo, além de revindicar poeticamente o universo dos desvalidos.

Os obstáculos consigo mesmo evidenciam-se em episódios como o do capítulo 12, em

que a criança sente-se impelida a dar chicotadas no próprio moleque que lhe serve de modelo,

reproduzindo instintiva e involuntariamente a moralidade do senhor que o educou. Uma

situação semelhante ilustra-se no capítulo 22, em que Graciliano realiza um comentário

ingenuamente racista sobre um negro que aparece na loja do pai, que, de passagem, sente um

orgulho descontrolado ao ver seu filho como uma fiel reprodução de si:

Foi por esse tempo que o negro velho apareceu, limpo, de colarinho, gravata, botinas, roupa camiseta, óculos. Estranhei, pois não admitia tal decência em negros, e manifestei surpresa em linguagem de cozinha (...) Mas negociante não tem os escrúpulos comuns das pessoas comuns. Tanto elogiara as mercadorias chinfrins expostas na prateleira que sem dificuldade esquecia as minhas falhas evidentes e me transformava numa espécie de fechadura garantida, com boas molas. O fabricante era ele. 173.

O personagem se autodescobre, assim, como um produto da moral do senhor, o que

determina sua primeira e mais forte transformação: “Tinham-me domado. Na civilização e na

fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A

B C” (RAMOS, s/d, p.108). Os instrumentos utilizados para isto foram, na época da fazenda, os

173 Ibid., 102, 103.

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golpes, porém, mais tarde, também os livros, a carta de A B C e o colégio em geral. Estes

últimos aparecem não como recursos educativos, mas como instrumentos de domesticação e

de propagação da moral das classes dominantes a que o personagem, para além da sua

vontade, acha-se totalmente submetido. “Fala pouco e bem, ter-te-ão por alguém”, “A

preguiça é a chave da pobreza”: é esse o tipo de conteúdo moral associado à alfabetização.

Sob a forma de inofensivos refrãos, eles divulgam um conteúdo claramente ideológico. Neles

a educação atua como instrumento de diferenciação social, reforçando a “superioridade” das

classes dominantes e mostrando a pobreza como um defeito individual e não como um

problema social.

Este conflito entre duas moralidades é desenvolvido, de um ângulo novo, em dois

episódios que fazem parte do terceiro período de Infância, quando a família Ramos abandona

o sertão de Pernambuco para se estabelecer no município de Viçosa – Alagoas. Trata-se dos

episódios sobre “Maria da O” e o “Professor mulato”, ambos os quais mostrarão o modo

como duas pessoas associadas ao mundo dos servos (Maria da O é negra e o professor, um

mulato filho de ex - escravos) assumem e praticam a moral do senhor. Maria da O faz isso

através das torturas e humilhações a que submete a prima Adelaide, até transformá-la numa

espécie de aluna-empregada. O professor mulato, por sua vez, descarrega a raiva contra a sua

própria raça de origem, através de golpes nos seus alunos, mostrando, de passagem, como a

moral do senhor adquire, no servo, a forma de um conflito consigo mesmo:

Às vezes, porém, o espelho nos anunciava borrasca. O desgraçado não se achava liso e alvacento, azedava-se, repentina aspereza substituía a doçura comum. Arriava na cadeira, agitava-se, parecia mordido de pulgas. Tudo lhe cheirava mal. Segurava a palmatória como se quisesse derrubar com ele o mundo.” (RAMOS, s/d, p.179).

Após isto virão os momentos talvez mais luminosos do romance e durante os quais se

vislumbra um início e uma promessa de formação para este menino maltratado pelas

diferentes formas de civilização e dominação a que é submetido desde os seus primeiros dias

de vida. Esses são a narração dos primeiros passos de Graciliano como homem de letras, os

quais serão dados fora do espaço controlado pelo pai, pelo avô e pela escola. No livro “O

menino da mata e seu cão piloto” e na biblioteca de Jerônimo Barreto, a criança começa um

caminho de libertação daquela opressão, o que aparece como uma possibilidade de ressurgir

113

da escuridão a partir da sua própria fraqueza, mas também como uma via para se adentrar e

reivindicar livremente o mundo dos desvalidos, questão que, mais tarde, constituirá

praticamente uma poética: “Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não

desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com as histórias tristes, em

que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes”

(RAMOS, s/d, p. 191). Este será, como anunciamos, o momento formativo “factual” que a

memória na sua formação subjetiva busca nos episódios evocados ao longo do livro até

encontrá-lo. A sua continuidade, no entanto, estabelece-se sob a fórmula de uma pergunta que

Angústia vai responder negativamente, mostrando que tal formação “de fato” não teve

verdadeira continuidade, instaurando, por isso, a necessidade da formação pela memória.

Entre Angústia e Infância haveria, portanto, dois usos da ficção. No primeiro livro, ela

estaria orientada a nos mostrar os aspectos deformantes de uma experiência concreta

destituída de qualquer forma de idealismo e, portanto, encenaria uma distopia, em que a

formação se distorce pela falta de um rumo próprio no percurso do protagonista. Em Infância,

ao contrário, a ficção estaria intimamente vinculada à formação, pois é ela que permite recriar

e renarrar o passado, auxiliando a memória e limpando a experiência.

b) O moleque Ricardo: a formação de um sujeito emergente

O moleque Ricardo (1935), de José Lins do Rego, faz parte da conhecida saga de

romances que compõe "O ciclo da cana da açúcar", escrita por José Lins do Rego entre os

anos de 1932 e 1936. Trata-se do penúltimo texto de um conjunto de cinco romances que têm

como base o mesmo universo: o mundo do engenho açucareiro no Nordeste brasileiro, nas

suas fases de crise e de decadência. O menino de engenho, Doidinho, Usina e Banguê, tendo

essa mesma base contextual, concentram-se na história de formação de Carlos de Melo, o

privilegiado neto do Coronel Zé Paulino, dono da Fazenda do Pilar. Eles narram a história de

um sujeito "em decadência", cuja formação descreve a passagem de uma esfera de

estabilidade, legitimidade e bem-estar a um estado de total futilidade existencial e desinteresse

por qualquer forma empreendimento pessoal.

114

Entre esses romances, O Moleque Ricardo se configura como um relato excepcional

em que o quadro da crise do engenho e a história contemporânea do Nordeste são narrados de

uma perspectiva diferente, focalizando-se numa outra classe social, desta vez, “emergente”.

O quarto romance da saga é a história de Ricardo, negro, filho de Avelina, servidora da casa-

grande, que, tendo se iniciado como trabalhador na bagaceira do engenho, "ainda quase

menino" (LINS DO REGO, 1956, p. 8), decide fugir do campo e estabelecer-se no Recife, em

busca de melhores oportunidades. O texto é, portanto, o Romance de formação de um "outro"

tipo de personagem. Um personagem socialmente desfavorecido que, a partir da crise do

engenho, começa um caminho de autoempreendimento.

Esta história de “emergência”, por outro lado, encontra-se vinculada a uma pergunta

que expressa a preocupação político-ideológica do livro. O romance quer dar conta de um

fenômeno sociológico geral (a imigração interprovincial do operariado às capitais do Brasil,

neste caso, à cidade do Recife), de um ponto de vista concreto, quer dizer, por meio de figuras

individualizadas, de "carne e osso" 174, como o próprio “Ricardo” (e não "João" ou "José",

nomes comumente utilizados nas narrativas sobre as massificações, e que designam antes

coletividades do que individualidades). O seu objetivo é revelar as condições de vida desse

operariado no Recife dos anos 30-35, mas submetendo a apresentação de tal universo a uma

questão: qual é o quadro em que se deve dar uma revolução proletária no Brasil para libertar

esse trabalhador da escravidão em que se encontra, apesar da mudança do sistema produtivo?

A resposta do autor, articulada em chave social, é formulada nos seguintes termos: existe, no

campo dessa luta, uma separação de base entre consciência e ação que deve ser superada. A

reflexão política deve encontrar uma via material de realização e, por sua vez, a ação política

precisa de uma consciência e de um ideal claro que a oriente.

Tal questão atualiza um problema estrutural do Romance de Formação: a relação entre

o ideal do indivíduo e o plano histórico, que, por sua vez, (como entende Lukács) coincide

com o plano normativo, ou a moral burguesa. Nesta narrativa de viés social, cuja intenção é

pensar a possibilidade de uma revolução histórica em favor das classes proletárias, essas

oposições são reestruturadas. O livro proclama, em favor da mudança, a necessidade de

distinguir o histórico do normativo, como um requisito base para que seja factível uma

174 Ibid., p. 21.

115

revolução (evidentemente, se se visa a mudança estrutural do mundo histórico, então ele não

pode ser compreendido como norma). Por outro lado, no entanto, as ações concretas dos

indivíduos em favor dessa mudança devem achar outro princípio de orientação no lugar

dessas normas. Esse princípio é chamado no romance de “consciência” e corresponderia à

aquisição de uma racionalidade e de um entendimento das circunstâncias contingentes que, do

contrário, reduzem-se a meros fatos de violência sem orientação.

Como todo romance de bases naturalistas, o livro organiza-se, portanto, em torno de

uma hipótese: as ações históricas dos personagens precisam ser complementadas por um

princípio regulador que ofereça à atividade política um sentido e uma orientação. Quem

formula essa hipótese é Zé Cordeiro, o personagem que, dentro do quadro de atores que o

romance coloca em ação, representa a classe estudantil e intelectual. Ele mesmo, no entanto, é

denunciado pelo narrador como mais uma manifestação desse divórcio entre consciência e

ação. Entregue à especulação e à reflexão política, Cordeiro é o esclarecido do romance. É ele

que ilumina o problema central do universo histórico e que domina as bases teóricas da

revolução (cujo modelo é a revolução Russa Leninista). No entanto, o narrador insiste em

mostrar este personagem como uma consciência excessivamente pura, quer dizer, como

alguém teoricamente comprometido com a causa revolucionária, mas que, no fundo, é incapaz

de realizar qualquer forma de materialização desse saber numa ação política concreta. De

qualquer forma, segundo o juízo crítico do narrador, comparado com Mario Santo e Carlos de

Melo, Zé Cordeiro seria o “mal menor” dentro da classe estudantil, pois ele pelo menos põe

todo o seu interesse na situação. Mario Santo não consegue nem sequer separar a revolução da

desprezível figura de Pestana. E Carlos de Melo carece de qualquer forma de discurso

próprio. Para o leitor, no entanto, Cordeiro é muito mais do que um “mal menor”: é uma

figura metatextual central, cujas convicções se transformam no princípio articulador e na base

reflexiva do conjunto de acontecimentos que, dispersos, constituem a anedota e o

Bildungsroman que aqui queremos estudar. O efeito da sua presença é, portanto, o de juntar

consciência e ação na instância da recepção e, portanto, de superar, no momento extratextual

da leitura, a fissura de base que estrutura o romance.

Tendo isto como fundamento, o relato sobre o moleque Ricardo pode compreender-se

de duas maneiras. Em primeiro lugar, pode ser lido historicamente, como o relato sobre um

campesino que migra para cidade do Recife com o objetivo de alcançar maior autonomia e

116

trabalhar segundo esquemas diferentes dos que se dão no engenho. Contada a partir de um

caso particular, essa seria a história geral do operariado que deve deixar o seu espaço de

origem, absorvido pela modernidade que demanda a sua mão-de-obra, para inserir-se nos

espaços produtivos dos centros urbanos, fora do seu entorno original. Por outro lado, no

entanto, a história do Moleque Ricardo terá um viés mais específico, configurando-se como

uma narração sobre a formação de uma consciência política.

O marco principal da formação de Ricardo não é o mundo aberto no qual o

protagonista se aventura, para viver uma “experiência" no sentido amplo da expressão. Ao

contrário, como é de se esperar de um romance sobre camadas desfavorecidas, a formação

estará sempre circunscrita e quase totalmente pautada por algum tipo de trabalho. Estes são: o

trabalho como moleque da bagaceira, no engenho, depois como menino de serviço na casa de

Dona Margarida, e, finalmente, o trabalho no espaço que será um dos eixos principais e

simbolicamente mais carregados do romance: a padaria de seu Alexandre, onde Ricardo

exerce o ofício de pãozeiro.

A passagem de um para outro contexto será pautada pelo progresso material que cada

uma das mudanças lhe oferece, o qual é intencionalmente detalhado pelo narrador através da

referência pormenorizada dos salários que em cada trabalho recebe. No entanto, o foco desta

formação prática não será a formação de uma consciência que devém do próprio fazer, como

o entenderia Hegel. Isto acontecerá só nas páginas finais do romance e será mais pela força

das circunstâncias que pelo poder formativo do trabalho em si mesmo. Ao contrário, o

emprego será para Ricardo uma mera fonte de progresso material que, na mesma medida em

que irá melhorando, irá ofuscando a consciência que ele tem de si, de seu lugar como

trabalhador e de seu pertencimento a uma classe. O narrador mostrará, assim, ironicamente,

este processo de aparente progresso para Ricardo, insinuando para o leitor o seu desacordo

com tal lógica e os riscos que ela significa para um sentido verdadeiro e não financeiro da

liberdade e da autonomia.

O primeiro trabalho de Ricardo como moleque da bagaceira caracteriza-se por ser um

trabalhar sempre para outro, sem nada para si. Ali ele é um “alugado”: não chega a ser um

escravo, mas tampouco um homem livre, pois, apesar de ganhar um salário, quem dispõe dele

é o patrão, que ocupa simultaneamente o lugar de pai (simbólico) e de dono de Ricardo. Este

117

universo de origem configura-se, assim, a partir do trio dono-mãe-filho, e o pontapé inicial da

formação será dado dentro desta particular organização. Se em outros Romances de

Formação mais próximos dos padrões burgueses, é a ausência ou a morte do pai que motiva o

personagem a começar o seu processo de crescimento, a estrutura deste romance será

diferente, pois quem ocupa o lugar do pai é o dono. A força inicial para o moleque começar a

se formar não virá, portanto, de uma relação filho-progenitor, mas sobretudo do

reconhecimento desse proprietário e da consciência de ser ele mesmo propriedade.

Durante esta primeira etapa, Ricardo será valorado de duas maneiras: como um mero

recurso de produção – “uma peça de primeira” – da perspectiva do dono, e como um sujeito

excepcional que merece educação e formação, da ótica da mãe e do povo da fazenda em

geral. Esses dois valores que giram em torno da sua figura conformarão, respectivamente, o

valor externo e o valor interno do moleque. Ricardo foge, pois questiona o preço que a figura

do dono lhe impõe – questiona o seu valor externo – e descobre que não corresponde ao

mérito interno que ele mesmo e os seus iguais lhe atribuem. Parte, então, com o objetivo de

relativizar o “preço” que o dono lhe coloca, e conseguir melhores condições de vida, que, por

sua vez, tenham uma relação de concordância maior com o valor próprio que ele, num

momento de lucidez, reconhece em si mesmo:

Não sei por que naquela noite ele teve vontade de ver o coronel. Nascera para ser menor que os outros. Em pequeno vivia pela sala com os senhores lhe ensinando graça para dizer. Os meninos brancos brincavam com ele. Mais tarde viu que não valia nada mesmo. Só para o serviço, para lavar cavalos, rodar moinho de café, tirar leite. Negro era mesmo bicho de serventia. Andava pelo mato, espetando os pés atrás do gado. Em casa mãe Avelina botava jucá e pronto. Não se falava mais nisto. E no entanto, quando Carlinhos ralava o joelho na calçada, corria gente de todo canto da casa. Davam água fria ao menino por causa do susto e passavam pedaço de pano pela ferida. Ricardo só podia sentir essas cousas. Ele tinha uma alma igual à dos outros. E sabia mesmo fazer tudo melhor. E apesar disso, quando o outro crescesse, seria o dono, e ele um alugado como os que via na enxada (LINS DO REGO, 1956, p.20).

O ato que ele realiza antes de partir é especialmente significativo se o lemos a partir

desses parâmetros. Ricardo dá um banho no irmão menor, descuidando, excepcionalmente,

dos deveres com o patrão. Sobrepõe, assim, o simbólico ao produtivo, dando predomínio ao

seu valor pessoal em detrimento da sua função dentro do engenho.

118

O segundo trabalho do moleque é o emprego na casa de Dona Margarida, onde

consegue um progresso material, mas sem ainda fazer valer esse sentido do valor próprio que

o levou a sair do engenho. Ali Ricardo recebe um salário melhor do que recebia na fazenda,

mas continua submetido à arbitrariedade de uma patroa cujo ânimo flutua segundo a sua sorte

nos jogo de azar.

Os dois anos que ele fica trabalhando para Dona Margarida constituem o primeiro

contato do moleque com o povo da cidade. Como sugere o nome da rua onde Ricardo mora

(Rua do Arame), esse período estará marcado pela aspereza de um clima popular rude que, no

entanto, agradará a Ricardo, pois o sentirá como um signo de força e vitalidade de que carecia

o rotineiro mundo do engenho:

Para Ricardo aquela rua era diferente daquela onde nascera e se criara. A velha senzala do engenho era muda. Só aquele bater de boca, de noitinha. A mão Avelina, Joana, Luiza e os moleques pelo terreiro, brincando. Também ali só faziam dormir e esperar os homens na cama dura. Agora a cousa era outra. A rua do Arame agachada, com as biqueiras encostando no chão, mulheres brigando com os maridos, falava outra língua mais áspera, mais forte. Ricardo gostava mais dela (LINS DO REGO, 1956, p.19).

Após esta experiência, vem o último e mais importante trabalho que o moleque realiza

na cidade do Recife: o emprego na padaria de seu Alexandre. Ali ele aumenta notoriamente o

seu salário, arrumando um esquema de vida em concordância com as suas expectativas

pessoais (como diz o narrador, começa ganhando 90$000 mil-réis e chega a receber até

140$000 mil-réis, incluindo cama e comida). A noção de progresso econômico continua,

assim, a sua tendência ascendente durante este terceiro emprego. Desta vez, no entanto, da

perspectiva do moleque (pois o narrador não pensa o mesmo), tal progresso significará

ademais um passo adiante na sua própria autonomia. O trabalho é árduo, mas, diferentemente

do emprego com dona Margarida, aqui tem liberdade, privacidade e, além do mais, conta com

o respeito do seu empregador.

A padaria, por sua vez, configura um espaço claramente alegórico, com que José Lins

do Rego parece querer representar, em pequena escala e através de personagens concretos, os

detalhes do ciclo da produção capitalista. Seu Alexandre seria o “novo patrão”, em

contraposição com o antigo “dono” do moleque Ricardo, Zé Paulino. Numa relação

119

semelhante àquela que o livro estabelece entre Carlos de Melo e o moleque Ricardo, Zé

Paulino é o patrão em decadência, enquanto que Alexandre é o patrão em emergência (de

mão-de-obra, de “besta”, diz o livro, ele passou a ser chefe). Segundo a perspectiva de

Ricardo, ele é a encarnação do capitalista puro: o único ponto que lhe interessa do ciclo

produtivo é a riqueza ganha. Nesse sentido, ele nada tem a ver com a imagem do “bom

empresário” que, sabendo que o seu produto e os ganhos que busca extrair dele dependem do

desempenho de todos os participantes do ciclo produtivo, cuida e procura o bem de cada um

deles. Seu Alexandre gosta apenas do dinheiro. Ele não tem o menor interesse em participar

do ciclo de elaboração da matéria-prima, aparecendo sempre como alguém externo que,

benefiando-se o máximo do rigor do trabalho alheio, mantém-se totalmente imune ao esforço

que implica. Sempre bem lavado e descansado, surge no espaço rude de elaboração do pão

para questionar o destino da sua matéria-prima, gerando, assim, uma dissociação total entre

ele e os empregados, cujas condições de trabalho e de existência pouco lhe interessam. Os

únicos pontos da produção com que Seu Alexandre se preocupa são a material que ele coloca

e o lucro que ela deve gerar. E para ele a qualidade do trabalho dos seus padeiros vai ser

sempre inferior à essa matéria-prima, o que, noutras palavras, significa um desconhecimento

total do objeto pelo qual os empregados se esforçam diariamente. Em outras palavras, uma

negação absoluta do seu valor externo (paga salários miseráveis), mas também do seu valor

interno, pois é nesse produto permanentemente desprestigiado por seu Alexandre que os

operários se avaliam a si mesmos:

Também o patrão era a impertinência em pessoa. Nunca chegou um dia ali para elogiar, fazer justiça ao suor que ele via correr em bica pelo corpo nu dos homens. Eles trabalhavam com uma tanga de estopa. Os masseiros gemiam em cima da farinha do reino com a cara de quem estivesse em luta com um inimigo rancoroso. A boca do forno era um inferno de quente. De noite o calor era menor, mas pelo dia queimava, tostava o couro de quem chegasse por perto. Seu Alexandre chegava de lenço no pescoço para examinar, para falar do trabalho. Que eles melhorassem o produto. Dava tudo muito bom, farinha de primeira, tudo de boa qualidade. A água era igual à dos outros. E por que o pão crioulo dele não se comprava com o das outras padarias? Era relaxamento, era descuido. (LINS DO REGO, 1956, p.34)

Para alegorizar as condições de produção capitalistas, José Lins do Rego utiliza uma

padaria, o que nos parece especialmente significativo. É nesse lugar que se produz o pão: o

alimento básico da sociedade que, portanto, simboliza o bem comum justa ou injustamente

120

distribuído entre suas partes.

Essa opção pela padaria como eixo espacial do romance sugere a ideia de que toda a

atividade econômica descrita em detalhe pelo autor está em tensão com um problema público

e um problema distributivo, quer dizer, com um problema político. E a participação de

Ricardo naquele esquema ficará sujeita à mesma tensão entre ambas as dimensões. De fato, o

trabalho de Ricardo não é o de padeiro – o que sabe produzir o pão –, mas o de pãozeiro, isto

é, de quem distribui o pão já fabricado. A continuidade entre o econômico e o político se

expressa, portanto, nas duas opções que tem Ricardo de distribuir esse bem: obedecer ao

sistema da padaria, vendendo o pão a quem tem dinheiro para pagar, e privando desse bem

àqueles que carecem de capital, ou deixar de ser uma parte funcional desse esquema, doando

o pão que deve distribuir, fora do sistema de compra e venda.

O romance, no entanto, é enfático na hora de caracterizar Ricardo como um

personagem que, durante grande parte do relato, carece de toda forma de conciência política

(teórica ou prática) e oferece para isso três explicações: uma psicológica, outra econômica e,

por último, uma explicação moral.

A causa psicológica dessa despolitização do moleque parece ser apontada pelo fato de

ele, desde as suas origens no engenho, identificar a figura do patrão com a figura do pai. Nas

lembraças que Ricardo tem de Zé Paulino, há sempre um fundo de admiração e afeto que,

apesar de não projetar totalmente no seu novo patrão, parece intermediar a sua relação com

ele, bloqueando os sentimentos de revolta (mesmo diante das expressivas circunstâncias de

exploração que ele testemunha). Nos dois patrões que o leitor conhece, Ricardo sempre verá

unicamente uma pessoa real (Seu Alexandre, Zé Paulino) e nunca associará essa pessoa real

com uma categoria econômica (o patrão). O papel social dos patrões que o comandam, assim,

achar-se-á como que nublado pelo fundo afetivo que o domina, dando prioridade à imagem do

pai que nunca teve, antes que à imagem do patrão. Assim, as diferenças no afeto que o

moleque sente por um e por outro serão de grau, mas não de natureza. Em Zé Paulino verá

mais o pai, por isso a sua admiração é quase absoluta, ainda que não total. Em seu Alexandre,

pelo contrário, ele verá um pouco mais o patrão, por isso não consegue amá-lo – mas também

não consegue odiá-lo por completo, pois o pai-Zé Paulino continua atuando como uma figura

de mediação.

121

O argumento econômico que o narrador utiliza para explicar a despolitização do

moleque é articulado por meio do questionamento do percurso de progresso material que

Ricardo segue. Da perspectiva do moleque, este parece ser expressão de uma autonomia cada

vez maior. No entanto, o narrador olhará com ceticismo tal avaliação, introduzindo

insistentemente a ideia de que esse progresso material, na verdade, obstaculiza a sua

libertação. Acomodado no seu salário, na poupança que cresce mês a mês, na facilidade de

uma vida de solteiro e na posição “privilegiada” que ele ocupa dentro da padaria, o moleque

parece não achar motivo para participar da discussão política e, menos ainda, dos movimentos

revolucionários. No seu comportamento, há uma base individualista que não lhe permite,

durante grande parte do romance, desenvolver um sentimento político. Suas condições

pessoais de trabalho e moradia não poderiam lhe parecer melhores: isto fundamenta a sua

resistência a participar da Sociedade. Observa a mísera situação dos seus colegas e se

considera um privilegiado, mas não chega, por causa disso, a fazer da causa dos outros, da

miséria dos outros, uma bandeira pessoal, nem tampouco a enxergar tudo o que há de pessoal

nessas aparentemente alheias circunstâncias. A descontinuidade entre o individual e o coletivo

será, assim, a causa do seu ainda não superado estado de escravidão. Isso fará com que não

consiga transformar o sentimento em ideologia, fazendo do mal-estar e do rancor que sente

por seu Alexandre uma causa de revolta social.

O moleque, em consequência, só pode realizar avaliações morais do seu patrão,

baseadas no seu comportamento imediato e visível, mas carece de visões abrangentes

oferecidas pela perspectiva político-social. Reconhecendo o rancor que sente por ele, o

motivo que o moleque se dá a si mesmo sobre tal antipatia não é político, mas,

principalmente, ético. Ele censura Alexandre sobretudo porque trai D. Isabel com uma

prostituta com que gasta frivolamente o dinheiro extraído do esforço dos trabalhadores e do

sacrifício da sua mulher. De fato, esse traço de seu Alexandre será a via fundamental da

discordância que Ricardo começa a sentir com respeito a ele. Mas Ricardo não o culpa por ser

um explorador, ou por ser o tipo de patrão que, na prática, é; nem por ser cúmplice de um

sistema. Essa descoberta será parte de um processo, mas, durante a maior parte do livro, tal

será o estado da questão. E se o julgamento que o moleque exerce é unicamente ético e moral,

isto é, particularizado, então a sua participação nas revoltas se transforma em algo totalmente

desnecessário, pois essas se estruturam em torno de causas coletivas, que nada têm a ver com

122

a lógica pessoal do seu olhar.

Mas aumentou dez-mil réis. Porém a raiva a seu Alexandre permaneceu. Era a primeira pessoa por quem sentia repulsa, mesmo ódio. No entanto o patrão o tratava bem, sem gritos, sem aborrecimentos. Também não dava por onde. Vivia com os outros aos berros. Os homens da padaria, até o patrício viviam com o patrão pelas goelas. Ninguém levasse pão para casa que ele visse. Chamava de ladrão a todo mundo. Não era o “ladrão” da boca do velho Zé Paulino. Era um ladrão que feria os outros com vontade de ofender. Seu Alexandre, porém, gostava de Ricardo. Até lhe falava do negócio. No dia em que botou fora um cobrador em que ele passou uma descompostura, chamou o negro e lhe deu o serviço. O balaio de pão saíra assim de sua cabeça. O serviço amaneirava-se. Era ele agora quem tocava a corneta e apontava nos livros os pães que deixava pelas casas. Se Guiomar visse como ele estava, a coisa era outra. (LINS DO REGO, 1956, p. 33)

Estes três níveis de causas farão do moleque um personagem sentimental, sensível ao

sistema de injustiça no qual está inserido, mas, por isso mesmo, incapaz de articular uma

ideologia. Sente raiva e compaixão diante das relações produtivas entre patrões e

trabalhadores, mas não é capaz de transformar isso numa convicção política e, menos ainda,

numa ação política concreta que faça dele um ator e não uma peça que “distribui pão”:

O moleque tinha vontade de bater na porta, de acordar aquele povo e dar-lhes os pães de que precisassem. Mas passava. Seu Carlinhos estava contra os operários (...). O moleque não demorava muito com esta convicção. O Santa Rosa era do coronel Zé Paulino. Só no dia de São Nunca passaria para as mãos dos cabras. Mentira de Florêncio e da gente da padaria. Ele só queria saber de vender seus pães e mais nada. Agora a corneta já não se exprimia com tanto entusiasmo. O sol já queimava. Não tinha mais pão para vender 175.

Por este motivo, a formação de Ricardo se concentrará principalmente em atividades

privadas: as suas sucessivas experiências como trabalhador que já referimos e os diferentes

relacionamentos amorosos que irá arrumando ao longo da história, os quais lhe parecem a

única forma de redenção social realmente convincente e satisfatória. O primeiro deles é com

Zefa Cajá (amor meramente fisiológico), depois com Guiomar, menina a propósito de quem

consegue identificar a figura da mãe com a da mulher reintegrando a cisão campo-cidade de

175 Ibid., p. 67.

123

que padece176. Mais tarde aparece Isaura, amor passional e movido por impulsos “baixos”. E,

finalmente, relaciona-se com Odette, mulher com quem destrói totalmente o percurso da sua

formação privada, e depois da qual Ricardo dará o primeiro passo para a sua curta libertação,

ao se deixar seduzir por Sebastião e a causa política.

Em termos gerais, o romance mantém uma visão bastante pessimista do amor nos

âmbitos populares que ele procura representar. Em primeiro lugar, em cada uma das histórias

amorosas de Ricardo nunca coincide paixão e amor, questão que marca uma cisão de base

entre o ideal e a prática da experiência afetiva: Zefa Cajá parece ser só corpo, Guiomar só

espírito. Isaura, corpo. Odette: nem espírito, nem corpo. No entanto, o mais importante é a

visão sociológica que José Lins do Rego desenvolve sobre o amor no interior da classe social

que ele pesquisa. Nas relações de Florêncio e dos outros trabalhadores da padaria, o mais

recorrente parece ser o fato de que o casamento reforça a exploração: quem tem família

cultiva a base que faz da própria exploração uma coisa aceitável. Ao contrário, quem não tem,

como acontece com Ricardo durante a maior parte do romance, parece ficar mais resguardado

dos efeitos do capitalismo. O esmagamento do sistema econômico, então, invade e destrói o

trabalhador, não só quando está inserido no esquema de trabalho capitalista, mas sobretudo

quando ele é complementado com a instituição matrimonial.

Ricardo, por sua vez, não parece ser a exceção dessa norma, pois o seu

desenvolvimento estraga-se precisamente quando decide casar com Odette. O seu matrimônio

com ela não é o resultado de uma vontade própria, mas, principalmente, consequência de uma

demanda externa: cumprir com a missão que Odette e sua mãe parecem ter-lhe adjudicado,

isto é, de fazê-las sair da Rua do Cisco e da sua miséria. Estar casado absorve-lhe tanto as

preocupações, que acaba destruindo os últimos restos de organicidade que ele mantinha com o

universo do campo, com mãe Avelina e com seus irmãos. Por outro lado, o casamento

também o afasta dos seus colegas de trabalho, com os quais mantinha relações de

fraternidade, de apoio e de intercâmbio político e espiritual. Resultado: o percurso no âmbito

íntimo o transforma numa cópia fiel do patrão a quem tanto questionou, demonstrando que,

mesmo no sujeito mais moral, a formação exclusivamente privada pode levar à imoralidade.

176 “Mãe Avelina perdia-se na distância. Guiomar estava mais perto. Guiomar ria-se para ele. A negrinha curava-lhe das saudades de casa. Se um dia tivesse alguma coisa, casaria com ela. Era com ela que gastaria o seu dinheiro todo. Depois seu povo viria morar com ele” (LINS DO REGO, 1956, p.29)

124

Diante desta situação, sugere-se uma conclusão: é impossível, na verdade, separar o impessoal

do pessoal. Sendo ético no particular é necessário sê-lo também no coletivo.

Fracassada a formação privada, Ricardo empreende então a sua participação nos

movimentos revolucionários, os quais são apresentados como um processo dentro do qual o

romance destaca dois momentos177. O primeiro momento corresponde aos movimentos

revolucionários liderados por Pestana, e suas causas são, por um lado, o pacto entre a classe

dos comerciantes e a dos operários, e, por outro, a autonomia de Pernambuco. Uma causa

procura atingir a cumplicidade entre as duas classes emergentes do livro (representadas, aliás,

pelo próprio moleque Ricardo e seu Alexandre), como se estas fossem complementares do

ponto de vista do seu processo de consolidação. A outra causa interessa-se por um motivo

administrativo que, na verdade, não se desenvolve tanto no romance.

Entre os trabalhadores da padaria, quem se apresenta como o ator principal do

primeiro momento é Florêncio. Ele é o personagem que melhor representa essa ação política

carente de consciência, que tanto preocupa Zé Cordeiro. De fato, o seu caso é a base empírica

que dá razão às teorias do intelectual. É a história de um sujeito do mais baixo povo que dá

tudo pela causa revolucionária, se entrega por completo a uma ação liderada por alguém

externo a essa causa, mas que, por fim, é totalmente abandonado pelos líderes que o guiaram.

O seu caso ilustra, portanto, como esse primeiro estágio da revolução, composto por causas

administrativas e ligadas ao pacto entre classes só atua em detrimento do próprio povo.

A indiferença de Ricardo em relação à política tem também a sua base nas

características deste primeiro momento da revolução, pois as circunstâncias imediatas

desmentem, de maneira demasiado palpável, as causas que a fundamentam. Conhecendo bem

a incompatibilidade que existe entre seu Alexandre e os trabalhadores da padaria, o pacto

entre os comerciantes e o operariado lhe parece absolutamente inviável. E o chamado a pegar

177 Além dos movimentos revolucionários, o romance dialoga com uma outra possibilidade de redenção do operariado: a religião. Esse caminho, no entanto, coloca-se como uma vereda aparentemente caduca, em comparação com o movimento histórico-político que aparece substituindo a lógica religiosa. Tal como apresentada pelo livro, esta opção tem por base a submissão coletiva e a aceitação das condições históricas. Ela baseia-se, portanto, na esperança de um socorro divino que supõe a imagem de um Deus assistencialista tão precário quanto o Estado. Quem representa este caminho é seu Lucas, figura honesta e pacífica que diz não pretender nada além do bem do povo e não aspirar a nenhuma forma de poder, nem mesmo o poder do operariado. O romance coloca este personagem em contraste com o Dr. Pestana, que, apesar de defender uma causa mais vigente dentro do universo do livro, é apresentado como uma espécie de antilider da revolução, muito menos admirável que o excessivamente cândido Seu Lucas.

125

em armas feito por Florêncio, observando as suas dramáticas condições, resulta aos seus olhos

num verdadeiro contrassenso:

O moleque no entanto chegou em casa pensando. Porque era que o seu Alexandre gostava da greve? O portuga não se cansava de elogiar o movimento. Greve assim valia a pena, dizia ele. Se fosse para servir operário, seu Alexandre não se enchia assim de tanta satisfação. Pareceu até ao moleque da bagaceira que o rapaz de olhos vivos estava com razão. (LINS DO REGO, 1956, p.53)

O segundo momento revolucionário se apresenta como fundamentado a partir de

reivindicações que expressam uma evolução na causa do operariado. Suas bandeiras têm a ver

com os interesses mais fundamentais dos próprios trabalhadores, e não com necessidades

externas, sejam políticas ou de classe. Essas são: a superação da fome e o aumento dos

salários. Nesse sentido, este parece ser o momento em que se vai realizar a revolução

teorizada por Zé Cordeiro. Há uma consciência mais refinada dos princípios que devem

liderar a luta, e, além disso, o próprio povo já tem líderes para dirigir a classe. A figura

representativa deste momento não é mais Florêncio, que funcionava, sobretudo, como

instrumento de interesses alheios; mas Sebastião, essa presença impressionante cujo dom e

propriedade sobre a palavra consegue cativar até Ricardo.

O livro, no entanto, interrompe violentamente este processo, dando-lhe um final

trágico no seu momento mais promissor, e cortando-o precisamente no ponto em que ele

parece se iniciar. O seu autor resiste, portanto, a entrar numa fase heroica da luta que faria do

povo um ideal. Abandona a possibilidade de dar sentido à história, dando a liderança aos

desvalidos e, assim, confirma o seu foco: falar da condição real do proletariado, descendo aos

detalhes da sua existência quotidiana, mesmo que isso contradiga os seus próprios sonhos.

126

III. O ROMANCE DE FORMAÇÃO CHILENO: POR UM LUGAR NO “OUTRO CHILE”

Apesar das diferenças geográficas, o Romance de formação chileno surge num

contexto econômico, político e social muito parecido com o que está vivendo o Brasil durante

a primeira metade do século XX. No entanto, como iremos ver, ele se focaliza e põe o acento

na “outra cara” desse contexto, isto é, no novo país e no novo cenário que progressivamente

se vai configurar ao longo do século. O Bildungsroman brasileiro se caracteriza por promover

a ruptura com a velha ordem tradicional, criando uma descontinuidade entre o universo de

bases patriarcais e o mundo moderno. Nesse sentido, de maneira geral, ele dirige o seu olhar e

busca simbolizar os universos sociais decadentes que vêm do passado. Ao contrário, o

Romance de formação chileno parece focar-se com mais intensidade no “novo Chile” que

começa a se desenvolver durante a República Parlamentar – e não nas bases tradicionais que

também o sustentam –, com o fim de buscar e construir simbolicamente um lugar dentro desse

atribulado e veloz cenário contemporâneo.

No Brasil, o episódio decisivo para a formação da sociedade urbana moderna foi a

abolição da escravidão, em 1888, a qual abalou as bases da economia tradicional. A inserção

no novo contexto capitalista mundial deu-se, portanto, mediante a transformação do sistema

de trabalho, pois o regime servil começou a se mostrar insuficiente para atender as demandas

de mão de obra necessárias à produção do café e à incipiente indústria manufatureira que

estava se forjando nesses anos (PRADO JÚNIOR, 1977, p. 174-175). No caso do Chile, a

passagem para o estado oligárquico (República Parlamentar) e para o que Bernardo

Subercaseaux chamou de “novo Chile”, que se estende de 1891 até 1920-1938, iniciou-se com

a primeira guerra moderna do país: a guerra civil de 1891, a qual foi expressão “de um novo

cenário social e político (...), com novos atores, novos sujeitos e novos discursos sociais”

(SUBERCASEAUX, 1988, p. 52, tradução nossa), “com uma emergência das camadas médias e

do povo real (...) e uma oligarquia plutocratizada, com novos problemas e com uma nova

mentalidade (...)” 178 e sintetizou “os traços fundamentais do futuro econômico e social do

país [durante uma década] de dobradiça, etapa-chave para compreender os processos de

articulação e de mudança” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 56, grifo nosso). Esta primeira guerra

178 Ibid., 56.

127

moderna no Chile, com um exército moderno e milhões de mortos, “foi um enfrentamento

que envolveu (direta ou indiretamente) todo o tecido social nas suas mais diversas tramas, e

que, por isso mesmo, teve causas e consequências de ordem política, econômica, social e

cultural” (SUBERCASEAUX, 1988, p.24, tradução nossa) que foram decisivas para as décadas

seguintes. Foi um conflito complexo, mas, dito em termos simples, deu-se como resultado de

uma reação conservadora por parte das oligarquias (representadas pelo congresso) diante das

políticas do presidente Balmaceda, as quais eram lidas como presidencialistas no político,

nacionalistas no econômico e mesocráticas no social, quer dizer, como opostas a cada uma

das partes do programa geral da elite ilustrada.

A partir da guerra civil de 1891, instaura-se no Chile um estado oligárquico que inicia

um processo de “modernização societal”179, o qual terá o seu final mais ou menos definitivo

em 1938, com o início dos governos mesocráticos. Como anunciamos, afora os episódios que

o inauguram, os fundamentos desse estado oligárquico possuem poucas diferenças

substanciais com os da República Velha, no Brasil, e com as outras repúblicas oligárquicas da

América latina180. No plano ideológico, caracteriza-se por um “afã modernizador de viés

positivista”; no econômico, pela “incorporação [do país] no mercado capitalista mundial”; no

social, “pela migração massiva e pela presença de novos atores”; e, no político, “pela

instauração de regimes teoricamente liberais, mas na prática fortemente restritivos” 181.

No Chile, esta fase passa por um período de transição entre 1920 e 1938, datas que

marcam o primeiro e o segundo governo de Arturo Alessandri, os quais, por sua vez, são

intermediados pela ditadura de Carlos Ibañez del Campo182 (1927-1931). Inicia-se então “um

proceso de retificação das condições políticas, sociais e econômicas que precipitaram as

mudanças [e a] ampliação das bases sociais do Estado que estava dando legitimidade à

179 Por “modernização societal”, Bernardo Subercaseaux compreende as transformações objetivas que experimenta a sociedade no nível econômico, social e político. “Modernidade” e “Modernismo”, no outro extremo, referem-se à experiência vital, aos valores e às ideias que acompanham essas transformações. 180 “Nos atreveríamos a afirmar que lo que es válido para Chile, lo es también para la mayoría de los países del continente, puesto que durante este período, en cada uno de ellos, se entrecruza un perfil endógeno específco (socio-económico o político-institucional) con un perfil compartido de modernización y de integración al mercado capitalista mundial en sus instancias de producción y consumo” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 18). 181 Ibid., p. 145. 182 Com respeito a esta ditadura e a outras que se deram na América latina durante o mesmo período (como a de Getúlio Vargas, no Brasil), diz Armando de Ramón: “As ditaduras surgidas nesta época podem ser lidas como uma resposta autoritária à problemática incorporação na vida política dos novos setores sociais, assim como das condições em que essa incorporação devia dar-se ” (RAMÓN, 2003, p. 120, tradução nossa).

128

participação dos grupos médios e começava a permitir a consciência dos seus direitos às

classes baixas (RAMÓN, 2003, p. 120). O primeiro governo de Alessandri Palma foi guiado

por um programa político que incluía o fim do parlamentarismo e da rotatividade dos

presidentes, mediante reforma constitucional e reformas sociais em favor da classe média e

trabalhadora 183, e compreendeu a necessidade das leis sociais sobretudo para deter o impulso

revolucionário que subjazia aos acontecimentos de 1917 184. No entanto, ele não foi capaz de

acabar com a oposição parlamentar.

É só no final da década de vinte, com a ditadura de Ibañez del Campo, que esse “novo

Chile” começa a adquirir verdadeira força, momento durante o qual se completou, em muitos

aspectos, a atividade reformadora de Alessandri 185. Certamente, esse governo significou um

retrocesso para as liberdades civis, pelos seus aspectos autoritários. Mas promoveu uma

modernização, que propôs um ambicioso plano de obras públicas e sociais, com base numa

ideologia pragmática que valorizava a eficiência sobre todas as coisas, desenvolvendo cada

uma das áreas públicas e criando novos e importantes organismos que tentaram conformar o

que Ibañez chamava, exatamente, de “Chile novo” 186. Em virtude dela, na década de vinte, o

país exibe uma feição nitidamente moderna:

É na década de 1920 que surgiram os primeiros edifícios em altura, os cinemas exibiam a filmografia importada e ensinavam as novas pautas de conduta que eram rapidamente assimiladas por uma população urbana que buscava modelos para imitar. O telefone se fazia automático e aumentava o número de aparatos numa proporção de quase três vezes entre 1924 e 1930. Os aviões das primeiras linhas aéreas apareciam sobre os céus, enquanto que as férias eram desfrutadas nos novos balneários da costa e da cordilheira. Apesar do país não ter petróleo, os carros, os caminhões e os ônibus se constituíam no novo meio de transporte. Para eles se asfaltavam caminhos, como a estrada que uniu Santiago a Valparaíso ou a mais pitoresca, que desde 1926 beirava as escarpas do oceano Pacífico, comunicando Viña del Mar com os balneários situados para o norte. Também o jogo entrava nesses planos e a fins de 1930 se inaugurava um cassino nesse mesmo balneário. 187

Após este período de aparente prosperidade, vem a crise social, política e econômica

de 1929188; e, finalmente, o segundo governo de Alessandri Palma, em 1932, um governo de

183 Ibid., p. 121. 184 Ibid., p. 123. 185 Ibid., p. 118. 186 Ibid., p. 118. 187 Ibid., p. 129, tradução nossa. 188 Ver capítulo sobre Manuel Rojas desta mesma tese.

129

compromisso com a direita, que trouxe estabilidade institucional, mas que ao mesmo tempo

foi marcado por graves acontecimentos sociais, como a matança dos colonos de Ranquil e a

tragédia do Seguro Obreiro (139). A transformação nacional completa-se, assim, entre os anos

de 1938 e 1973, período que Armando de Ramón descreve com as seguintes palavras:

Existiu no país uma verdadeira república onde as liberdades e ao mesmo tempo o respeito aos direitos das pessoas passaram a ser uma realidade sentida e exercida por todos os setores do país. Muitos pensamos que essa etapa constitui o período histórico que, ainda tendo muitos defeitos e carências, esteve mais próximo da definição clássica de “república”, quer dizer, a forma de governo dos povos emanada da plena participação popular, supremo ideal de todos os tempos (RAMÓN, 2003, 119, tradução nossa).

O Romance de formação chileno sente com força a presença das novas condições,

positivas e negativas, trazidas por essa modernidade que vai sendo progressivamente

absorvida pelo país. Talvez em correlato com o modo como esta se inaugura no Chile, quer

dizer, mediante um fato militar global de forte impacto social, elas parecem se impor ao

personagem em formação de maneira muito mais forte que as estruturas tradicionais

patriarcais com que os romances brasileiros polemizam. Surgidos de um processo social que

se iniciou com um acontecimento pontual e gradual, estes últimos parecem ter que ir ao

encontro da modernidade, colocando-se como agentes dela, dentro de um mundo simbolizado,

na maioria das vezes, como retrógrado e autoritário.

Apesar de fundamentados na mobilidade, no Romance de Formação chileno, esses

novos caminhos trazidos pela modernidade surgem tematicamente como roteiros rígidos e

pré-definidos: o roteiro da migração interprovincial, da mobilidade de classe (ascendente ou

descendente), da inserção nos novos modos de produção (do artesanato à indústria) etc. E, por

mais agitados e carregados de narratividade que pareçam, os protagonistas, por esses

caminhos, também não conseguem propriamente se formar, pois, ao segui-los, deparam-se

com um estreitamento das suas possibilidades e das suas expectativas. A formação surgirá,

assim, no momento em que, em meio à movimentação desse mundo e desse tempo novo, o

discurso consegue achar um lugar subjetivo próprio que estará para além ou para aquém

desses roteiros modernos dados pelo contexto.

Martín Rivas já possui traços dessa nova configuração, especialmente num dos

130

aspectos centrais do romance: a plutocratização da oligarquia, diante da qual o protagonista se

apresenta como um reformador espiritual. Em Alsino – segundo a leitura que iremos propor –

a modernidade irrompe, sobretudo, sob a forma de um acelerado tempo novo que faz o poeta

mudar exaustivamente de função. Diante dela, o autor propõe uma formação que se realiza na

busca de uma verdade capaz de justificar o doloroso percurso do protagonista: a verdade

sobre a sua própria condição histórica à qual, heróica e tragicamente, entrega-se. Em

Escritura de Raimundo Contreras, quem se desenvolve é um personagem que representa a

migração campo-cidade. Porém, no romance, a formação acontece principalmente no plano

da escrita. Em Punta de rieles – texto composto, na verdade, por dois Bildungsromane, o de

um burguês relegado da sua classe e o de um personagem subalterno –, a formação dá-se só

no início do percurso dos personagens, quando estes ainda não se integram às instituições

burguesas (no caso do primeiro), nem ao mundo industrial (no caso do artesão gremialista),

momento em que o sentido pessoal dos seus percursos (sobretudo deste último) se perde. O

romance de Carolina Geel é certamente mais difícil de encaixar dentro desta visão geral em

que quisemos englobar o Bilgunsroman chileno. Nele o mais destacável é a presença de um

outro olhar sobre a masculinidade, que surge de uma nova voz social: a voz feminina dos anos

quarenta, cujo foco foge da visão do homem ligada à produtividade e ao projeto de classe, e

apresenta um retrato baseado em elementos contínuos entre homem e mulher.

1. Alsino, de Pedro Prado, e Escritura de Raimundo Contreras, de Pablo de Rokha: poesia e tempo histórico.

Alsino (1920), de Pedro Prado, e Escritura de Raimundo Contreras (1929), de Pablo

de Rokha, são talvez os Romances de Formação mais particulares que já analisamos. Na

verdade, eles nem sequer são estritamente romances, pois as suas poéticas colocam-nos num

lugar intermediário: do lado da prosa, mas perto da poesia, no caso de Alsino; e do lado da

poesia, mas perto da prosa, no caso de Escritura de Raimundo Contreras. De qualquer forma,

como iremos ver, eles desenvolvem claramente a questão do crescimento, do

desenvolvimento e da formação, e o fazem de maneira a acrescentar ingredientes novos que

provêm, precisamente, desse lugar indeterminado e misto da prosa-poética.

131

Um dos pontos em comum mais importantes entre essas obras talvez seja o fato de

ambas se vincularem a uma tradição literária fortemente ligada ao tema da terra e da província

chilena, inserindo esse tópico dentro de uma preocupação estética, em que a questão do

regionalismo aparece entrelaçada com uma pesquisa formal e, fundamentalmente, com uma

pergunta pelo lugar do poeta e da poesia na modernidade.

No caso de Pedro Prado, esta relação estética com a natureza faz parte das

preocupações próprias do Mundonovismo, movimento que, na América-latina, teve a sua

gestação entre 1905 e 1919, e sua vigência entre 1920-1934189. O aspecto dominante deste

movimento, conhecido como a terceira geração do naturalismo latino-americano, foi a

representação cíclica da vida do país, com o fim de fixar as suas particularidades típicas,

mediante uma literatura autônoma que buscou a sua inspiração nas tradições nacionais, a

partir de uma visão do mundo e do homem como natureza (GOIC, 1968, p. 115). Compunha-

se, portanto, de interesses localistas, poéticos, nacionalistas e também de certos pressupostos

naturalistas ainda não superados190.

No caso de Pablo de Rokha, semelhante integração dá-se num momento cultural

totalmente diferente ao de Pedro Prado e, portanto, associado a buscas e interesses distintos

dos da sua geração. Instala-se com ele uma linguagem em que a integração do local-rural

submete-se à preocupação mais ampla de uma poesia “fixada num olhar social e na liberdade

vanguardista” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 132, tradução nossa). Esta buscará articular “o

nacional-popular numa perspectiva rabelesiana e épica [que se] caracterizará por um excesso

libertário capaz de esgotar o leitor, e não pela sugestão hermética de raiz simbolista, que

pressupunha uma recepção ativa, questão que foi premisa das propostas e buscas da

vanguarda europeia” 191.

Mas o traço em comum mais importante entre essas obras, que aqui nos interessa

189 Para a definição desta geração utilizamos como referência o livro Historia de la novela hispanoamericana, de Cedomil Goic, 1980, p. 152-156. 190 Prado inseriu-se certamente nesta geração e, ao mesmo tempo, fez parte de um momento de transição entre o modernismo e a vanguarda (entendendo modernismo como o movimento latino-americano liderado por Rubén Darío entre 1888-1894, que se insere dentro do período naturalista de 1890-1934). Este momento de transição consistiu numa renovação do modernismo de Dario que, dentro da vertente naturalista, era uma sensibilidade marginal, mas que consituiu uma das fontes literárias fundamentais dos vanguardistas da época (SUBERCASEUX, 1988, p. 119-127). 191 Ibid., p. 132.

132

destacar, é o fato de ambas se articularem como investigações que expressam uma intensa

preocupação pelas relações entre poesia e história.

Alsino materializa esta preocupação através de uma narração que pode ser lida

metaficcionalmente como uma extensa reflexão dedicada à figura do poeta – representado por

Alsino –, ao lugar que seu “canto” adquire dentro do ciclo da história e às diferentes funções

sociais nos distintos contextos que o fluxo do tempo coloca à voz do escritor. A relação entre

poesia e história concretiza-se, assim, num relato que busca criar um texto simbólico e

totalizante que, tendo por base esta visão temporal do homem e do escritor, vai nos falar sobre

o percurso geral do poeta ocidental, desde a sua fase mítica, até a fase irônica com que o livro

termina (e que, na verdade, permeia a obra inteira). A descoberta do lugar irônico do poeta,

quer dizer, a sua posição dentro da contemporaneidade, apresentar-se-á como a iluminação

central do livro, a revelação pela qual o percurso dramático do protagonista se justifica e à

que ele se entrega plenamente mediante a imagem do fogo prometeico que o consome. Dá-se,

assim, um contraponto entre o particular e o geral, entre a verdade histórica que dá sentido,

mas que, ao mesmo tempo, destrói o percurso completo de Alsino, e o esforço a-histórico e

reestruturante do livro que se concretiza na visão totalizante que o organiza.

Em Escritura de Raimundo Contreras, a relação entre poesia e história é também

fundamental, mas num sentido diferente. Neste caso, ela se coloca diante do escritor como a

busca de uma escrita capaz de integrar todos os universos simbólicos de um novo tipo de

sujeito historicamente definido: um sujeito culto e popular, urbano e rural, cosmopolita e

local, central e periférico, racional e psíquico, apolíneo e dionisíaco, abstrato e concreto,

vanguardista e crioulo, impessoal e biográfico. Quer dizer, um sujeito atravessado pelas

estratificações do tempo histórico: estratificações espaciais (continentais e nacionais),

psíquicas, temporais e estilísticas192.

Diferentemente de Alsino, livro em que se constata a condição histórica do poeta num

tom heroico, mas sobretudo dramático, o poema em prosa de Pablo de Rokha, escreve-se num

192 Em Alsino, algumas dessas estratificações também estão presentes, mas não constituem o elemento que consideramos central para ver as relações entre poesia e história que o livro apresenta. De qualquer forma, ele também é, simbolicamente, o relato sobre um artista, que utiliza recursos históricos e locais próprios de um país periférico, de uma região pré-moderna, estruturada por uma ordem fazendeira e com resquícios coloniais.

133

tom fundamentalmente épico. A consciência da condição histórica, neste caso, impõe-se sob a

forma de um desafio estilístico, a partir do qual será possível construir voluntariosamente uma

identidade poética, orientada a criar uma escrita capaz de representar tais condições históricas,

que são pessoais, mas também e sobretudo coletivas. Neste sentido, Escritura de Raimundo

Contreras constitui-se como um texto épico dirigido à formação de uma escrita forjada

“desde” e “para” as condições de um mundo periférico (latino-americano, chileno, popular,

rural, etc.), que, no entanto, resiste a se identificar completamente com esse lugar e propõe,

para eludir esse obstáculo, uma escrita em movimento, em permanente viagem pelos

universos simbólicos dos quais surge. Uma das causas desta tonalidade épica encontra-se no

fato de Pablo Rokha situar-se num outro momento literário do país, durante o qual se vive

uma consolidação e um reconhecimento da vanguarda, enquanto que Pedro Prado ainda faz

parte de um primeiro momento de recepção e apropriação das tendências renovadoras:

Pode-se dizer, como assinalávamos, que, a finais da década seguinte (1930 e depois), as novas tendências conseguem um certo reconhecimento e se instalam como movimento vanguardista e como uma opção estética disponível dentre outras. No entanto, tal como se depreende de alguns dos antecedentes assinalados, o processo de recepção e apropriação das vanguardas se concentra, no caso chileno, na década do centenário (SUBERCASEAUX, 1988, p. 75, tradução nossa).

Diante da historicidade, por último, ambos os textos propõem alguma forma de retorno

ao mito: Alsino, aos mitos de Ícaro e de Prometeu; Escritura de Raimundo Contreras, ao mito

de Sísifo. O primeiro funcionará como a imagem de um poeta que, apesar da corrosão do

tempo, justifica e valida religiosamente o seu percurso pelo valor que a revelação tem para si

e para os homens, para além do custo individual que a sua busca significa. O segundo, como

iremos ver, funcionará como a identidade poética que o narrador encontra para uma escrita

que se define pelo voluntarismo da busca, do movimento e da autoconstrução entre os

universos simbólicos que a constituem, e não pela fixação em algum desses territórios.

a) Alsino, de Pedro Prado: percurso simbólico do poeta ocidental

A leitura que iremos empreender aqui busca se focalizar no lugar que a figura do poeta

134

e da poesia tem em Alsino, de Pedro Prado. Ao longo do livro, inumeráveis são os momentos

em que o protagonista se refere a si mesmo como “orador”, “cantor” ou “narrador de

histórias”, quer dizer, em que se tematiza não só a sua condição particular de poeta, mas

também as diferentes modalidades que essa função adquire nos distintos momentos do livro.

Surgiu, por isso, o desejo de explorar exaustivamente esse traço do texto e de abranger a

totalidade de instâncias em que o tema do autor ou do poeta, assim como o da poesia nas suas

diferentes formas de expressão (oração, lenda, canto, narração, representação etc.), aparecem

ao longo do romance.

Como já foi anunciado, o nosso interesse por este tema surge da ideia de que Alsino

pode ser lido como um texto metaficcional em que se simboliza o percurso global do poeta

ocidental, funcionando como uma ficção que consegue totalizar as diferentes fases pelas quais

a figura do poeta e da poesia tem atravessado ao longo da história. Nesse sentido, pensamos

que esta obra faz parte do que Northrup Frye distingue como a literatura temática

enciclopédica, cujo foco não é “a ficção interna do herói e da sua sociedade” (FRYE, 1991, p.

77-78, tradução nossa), mas sim a “ficção externa que é uma relação entre o escritor e a

sociedade do escritor” 193. Do mesmo modo, seu elemento central não é o protagonista interno

da história, mas, principalmente, a figura do escritor e do poeta, cuja presença no horizonte do

relato estabelece “um vínculo com o leitor que atravessa a história e que pode ir aumentando

até que da história nada reste, apenas o que o poeta comunica ao leitor” 194 195.

O tema do livro de Prado seria, assim, as transformações de forma, função, lugar e

conteúdo que sofrem a imagem e o discurso do poeta dentro da história e, portanto, as

relações entre poesia e tempo histórico196. Isto é ficcionalizado, ao mesmo tempo, através de

193 Ibid., p. 78. 194 Ibid., p. 78. 195 A preocupação pelas relações entre o autor e a sociedade expressou-se também, no caso de Pedro Prado, no grupo “Los diez” que este liderou e “cuja ação se desdobrou fundamentalmente entre 1914 e 1918” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 124, tradução nossa). Este grupo foi um intento e uma proposta de liberação cujo Leitmotiv era “a beleza como alma do mundo”, e que teve claros elementos modernistas (no sentido hispano-americano) “como a espiritualidade, a preeminência do estético, a relação entre a beleza sensível e a beleza ideal, e a crítica à retórica” (Ibid., p. 124). “Na proposta d´Os Dez nos encontramos com uma sensibilidade fronteiriça, em que confluem elementos modernistas como os assinalados com traços de corte vanguardista, que se expressam na ideia de que, para os artistas verdadeiros, as tendências ou escolas são somente restrições inúteis; também gestos lúdicos e irreverentes” (Ibid., p. 124). 196 O foco deste trabalho concorda plenamente, então, com o afirmado por Guillermo Gotschlich sobre a poética do romance de Pedro Prado: “Nas narrações de Prado se outorga uma notória primazia à linguagem e aos meios de expressão, com o propósito de gestar um pensamento crítico não só sobre a narrativa e a poesia, mas também

135

uma forma literária totalizante, em que essas questões são tratadas de um ponto de vista

abrangente, atualizando, mediante a história de Alsino, cada uma das modalidades propostas

por Frye: o modo mítico, o modo do romance, do mimético elevado, do mimético baixo e do

irônico197. Descrevendo, assim, o drama do poeta e da sua narrativa dentro da nossa tradição,

que vai passar de porta-voz e instrumento dos deuses a cantor da condição trágica de um

poeta sub-humano, isolado da natureza, da sociedade e dos outros homens.

O exórdio profético e a transição para o poeta mítico

A primeira parte do romance vai do capítulo I ao capítulo V e consiste numa espécie

de prólogo profético que antecipa tudo o que será simbolizado ao longo dos outros capítulos

do livro. Ela funciona, assim, como uma espécie de estado latente do relato global que está

por vir, oferecendo, ao mesmo tempo, uma estrutura unificada mais ampla para esse relato,

mediante os próprios oráculos que nela aparecem e que mais tarde serão efetivados. Anuncia-

se a estrutura geral da narração: a elevação que será a representação do modo mítico na

história de Alsino, e a queda, concentrada no final irônico com que o livro se fecha. A

elevação é anunciada pelo sonho de Alsino, em que ele tem a experiência, futuramente

efetivada, de voar. A queda é prevista no capítulo III, durante o episódio com Poli, o seu

da arte e das suas variadas manifestações. Outro dos pontos nos quais Prado indaga com frequência é a situação do artista, fazendo parte de grupos ou tendências, ou enclaustrado na sua solidão devido ao olhar plural que tem sobre o mundo. Distintas cenas ou fragmentos de Alsino e Un juez rural nos chamam a refletir sobre assuntos que se convertem em temas de controvérsia, tanto grupal como interna e reflexiva, sobre a situação do escritor, dos gêneros literários e sobre a função do romance no momento histórico em que nosso autor escreve e publica as suas obras” (GOTSCHLICH, 2010, p. 7, tradução nossa). 197 1. O modo mítico: em que o herói é um ser divino e, como tal, é superior em classe aos demais homens. 2. O modo do romance (da lenda, do conto popular e dos Märchen), em que o herói é superior em grau aos demais homens e ao meio ambiente, realiza ações maravilhosas, mas ele mesmo se identifica como ser humano. 3. O modo mimético elevado da maior parte da épica e da tragédia, em que o herói é um chefe superior em grau aos demais homens, mas não ao meio ambiente natural. “Tiene autoridad, pasiones y poderes de expresión mucho mayores que los nuestros, pero lo que hace está sujeto tanto a la crítica social, como al orden de la naturaleza” (FRYE, 1991, p. 54, tradução nossa). 4. O modo mimético baixo (da comédia e da ficção realista), em que o personagem não é superior nem aos outros homens, nem ao meio ambiente, constituindo-se como mais um de nós: “Respondemos a um sentido de sua comum humanidade e exigimos do poeta os mesmos cânones de probabilidade que descobrimos em nossa própria experiência” (Ibid., p. 54). 5. E, por último, o modo irônico, em que o personagem é inferior em poder ou inteligência a nós mesmos “de modo que nos parece estar contemplando uma cena de servidão, frustração e absurdo” (Ibid., p. 55).

136

irmão, em que ele cai da árvore. Em sintonia com a imagem da elevação e da queda, prima

aqui o simbolismo dual, na oposição entre Alsino e Poli e, mais sutilmente, no contraste entre

a corcunda que Alsino parece estar cultivando nas suas costas após o acidente, e as asas que,

na verdade, estão nascendo nele. O par asas-corcunda instala uma oposição anjo-monstro que

traz, por sua vez, o apocalíptico e o demoníaco, que os dois extremos do relato também

parecem anunciar: a elevação mítico-paradisíaca e a queda infernal. Por último, aparece o

tópico de um mundo precário em processo de destruição: dunas que devoram o universo geral

da avó de Alsino, areia que come a casa, sugerindo a ideia de um mundo efêmero e trazendo a

presença visual da ação do tempo histórico, protagonista do percurso que mais tarde será

representado:

(...) Como ninguém as vê, as dunas avançam com mais pressa que a que tem quando o sol brilha (...). Essa noite, em cada casa também se escuta um ruído. É o crepitar fino e constante do grão de areia ao bater contra as folhas secas coriáceas. Nem por um segundo o tremor cessa; já é quase imperceptível, como uma fraca garoa que se côa e cai; já sobe de tom mais e mais até assemelhar-se ao ruído do óleo fervendo; já se atenua e cessa, quase não se escuta, mas é preciso perder a esperança de que alguma vez conclua, porque sempre há um grão de areia que escorrega (PRADO, 1983, p. 9-10, tradução nossa).

Após este primeiro exórdio, vem a parte II que estende do capítulo VI ao XII, onde se

narra o processo de transição para o terreno mítico que se instalará na parte III do livro. Esta

parte possui seis fases que parecem desenhar um percurso ascendente, mas ao mesmo tempo

marcado pela possibilidade da queda: é uma elevação, cuja condição de base é a condição

humana de Alsino. Começa pelo capítulo “Os tordos198”, momento que, simbolizado pela

imagem de pássaros adestrados, mostra um Alsino ainda limitado, mas, ao mesmo tempo, em

absoluto estado de disponibilidade e abertura mística: “ – Quer levá-los? Não vai ao povoado?

– Qual povoado? – Como assim? Ah! Sim. Você disse que não conhece essas regiões. Bem.

Então, me diz, o que buscas? – Nada – disse com tranquilidade Alsino” 199. As coisas

começam a transfigurar-se, ele vai abrindo-se ao canto humano e continua ouvindo “um

chamado”, mas um chamado “ruidoso” e “indecifrável”, cuja origem ainda não lhe é revelada.

O caminho continua em direção vertical durante o capítulo VII em que Alsino dá um

198 Deixaremos em itálico as palavras para quais não encontramos uma tradução em português. 199 Ibid., p. 35.

137

passo a mais no seu processo de elevação. Ele começa a realizar certas funções do poeta em

fase mítica: a função de dar esperança aos desvalidos, aos fracos e aos fracassados da região,

que se aproximam dele como de um oráculo: “Só as crianças e os garotos riem de mim e me

dirigem saudações sarcásticas. Mas os amantes melancólicos, os jogadores arruinados me

oferecem com os seus olhos cordial acolhida, enquanto se aproximam cautelosos a tomar o

que eles acham de bom agouro” (PRADO, 1983, p. 40, tradução nossa). Canta ao sol e a Deus,

e inicia as suas primeiras manifestações como poeta órfico, ao assumir, mesmo que

intermitentemente, a função de porta-voz da natureza: “E também posso fazê-los cantar,

matagais, arbustos e pequenas árvores! As trepaderas cantam, os boldos novos espremem a

seda, os maitenes simplesmente choram 200. Dá-se, assim, uma primeira mudança no seu

caráter, a qual é totalmente metaliterária: a transformação de ser individual a ser divino e,

portanto, de personagem a herói: “Ninguém gosta de mim por mim, mas porque eu faço

brilhar as suas esperanças” 201.

Em “Confissões de um homem livre” (Cap. VIII), o caminho ascendente do herói –

continuando com o simbolismo dual – surge como uma opção baseada na oposição

menino/velho, Alsino/ Nazarino, que pode ser interpretada como uma oposição entre os

caminhos da inocência (a que está se dirigindo o protagonista) e da experiência, que está lhe

apresentando Nazarino, o cínico do romance. O caminho da inocência é o caminho de uma

liberdade mística que leva Alsino em direção ao mundo mítico paradisíaco, onde, na verdade,

não há experiência. Experiência há só nas veredas do velho que representam os caminhos

demoníacos do mundo pelos quais se movem aqueles que dominam a arte do engano, regem-

se pelo pragmatismo e entendem a liberdade como a condição sine qua non para exercer a sua

lógica utilitária:

“Sabe converter moedas sujas em anéis brilhantes e brincos de prata? O que você deve fazer para que seu pássaro ganhe nas competições em que se aposta na ave que dá mais cantos ou repiques de chamadas, em menos tempo? Muitas outras coisas você poderia saber; coisas pequenas, sim, mas que bastam para que vivam pessoas livres, como nós, que se contentam com pouco.” 202

200 Ibid., p. 42. 201 Ibid., p. 40. 202 Ibid., p. 48.

138

Essa bifurcação de caminhos apressa o processo de elevação de Alsino. Após sua

primeira e efêmera experiência de voo (que surge de forma indissociável à experiência do mal

no homem, como fica ilustrado no capítulo “Revelação”), ele afasta-se do mundo dos seres

humanos e isola-se na natureza. Lá experiencia o caráter espiritual e vital do mundo natural e

começa, cada vez mais, a decifrar a origem do chamado. O ruído inarticulado que o tirou de

casa começa a adquirir o caráter de voz da natureza, e inicia-se o diálogo entre ele e o mundo

orgânico e, sobretudo, a sua função de “narrador” e poeta mítico, contador de histórias

maravilhosas e “relatos do infinito”:

Por que são tão tímidas? Todas mudas e inquietas. Nada farei a vocês. Como recuperar a sua confiança? Querem que conte a vocês uma história? – Sim, sim – dizem as inumeráveis vozezinhas das folhas. Os ventos reaparecem confiantes e se aproximam. Alsino, com voz clara e insinuante e gestos singelos, narra-lhes a história, de nunca acabar, que diz assim (...) ”(PRADO, 1983, p.58, tradução nossa).

Antes de empreender voo durante o capítulo XII, o mundo pugna por desviá-lo. É o

que se ilustra em “Vagando”, onde Alsino aparece esquivando a cidade, dentro da qual é

reconhecido como um monstro e não como ser em processo de divinização. Imagens de

pontes e caminhos que parecem querer traçar o destino a Alsino instalam-se no cenário como

o pano de fundo da elevação que está por vir. Instaura-se com essa imagem a ação do tempo

histórico, da “prosa do mundo” que será a protagonista da história de ascenção e queda a ser

apresentada.

Por fim, Alsino empreende voo no capítulo XII. O mundo, inclusive o mundo humano

da antes lúgubre cidade, transfigura-se por completo diante dos seus olhos:

Da planície sombria por onde ía Alsino, o espetáculo da pequena cidade era de uma magnificiência fantástica. Não podia ele reconhecer nesses castelos de ouros resplandescentes as torres da igreja paroquial, o moinho ruinoso e as casas vulgares e as pocilgas miseráveis. 203

Ele começa a dialogar já sem obstáculos com as andorinhas e sofre a transformação

definitiva. No entanto, e seguindo a lógica histórica livro, Alsino intuirá a verdadeira natureza

203 Ibid., p. 66.

139

desse voo cujo chefe é o tempo: “Minhas asas fatigadas me levam novamente para a terra.

Não precisaria delas para conhecer o caminho que à terra conduz. Quanto mais alto eu subo,

mais poderoso e difícil de seguir desdobrando sinto a forte mola que parece me unir a ela.”

(PRADO, 1983, p. 69).

O poeta como porta-voz dos deuses

A terceira parte de Alsino é uma espécie de utopia em que Pedro Prado, através do seu

herói, remonta-se à fase mítica da literatura ocidental. Nessa etapa, como dissemos, o poeta

caracteriza-se por ser um porta-voz dos deuses e, enquanto tal, ele mesmo uma criatura

divina. A sua função consiste em ser “um oráculo inspirado, entrega-se amiúde ao êxtase e

escutamos relatos sobre os seus poderes” (FRYE, 1991, p. 81, tradução nossa); sendo o seu

labor o de “revelar o Deus em cujo nome fala” 204.

Em diversos momentos dos capítulos que compõem a fase mítica de Alsino, o autor

vincula o momento do voo com o motivo do “canto” e “da vontade de falar”, transformando o

evento da “elevação” num tópico metaficcional: “Cantemos, oh! vozes, oh! sentimentos, oh!

desejos incompresíveis; me ajudem todos e cantemos juntos, ao compasso das asas e do ar

que vão tornando melodioso; cantemos esta necessidade de voar e voar!” 205. O autor refere-

se, assim, às origens do poeta, às suas funções primordiais e às particulares relações com o

mundo e com o tempo que em determinados contextos e sociedades lhe são atribuídas. Pedro

Prado recria (não sem romantismo) essa fase mítica, a qual será, dentro do livro, a experiência

primordial e o material essencial de muitos dos cantos futuros do poeta Alsino.

Nesta fase mítica, a poesia, como foi dito, adquirirá a forma de um “canto”, o que se

vê logo no título do primeiro capítulo desta parte (“O canto”). O símile deste canto será o

som dos diferentes pássaros com que Alsino convive durante o dia: choroyes durante a

madrugada, andorinhas durante a tarde. O seu canto, portanto, não se origina da civilização,

mas expressa a própria natureza e surge dela. Enquanto tal, ele está para além das condições

204 Ibid., p. 81. 205 Ibid., p. 73.

140

comunicativas da expressão humana: é um movimento de vozes sem fonte que surge do

próprio movimento do corpo206, que expressa desejos contraditórios e incompreensíveis, e

cujo fim não é comunicar, mas o próprio ato de cantar: “Cantemos, oh vozes! o desejo

primeiro: o desejo de cantar. Cantemos a liberdade que por meio dele encontra não sei qual

tirânico e oculto poder” (PRADO, 1983, p.73, tradução nossa).

O canto de Alsino terá também um tempo especial, pautado pelo ciclo diário dos

astros que, por sua vez, farão surgir formas poéticas particulares ajustadas às diferentes fases

do dia. Durante a alvorada, esse será um “canto oração”, acompanhado de “diálogos

monológicos” entre ele e Deus. Por meio deles, Alsino fala ao sol nascente como se fosse uma

divindade, descobrindo, ao mesmo tempo, a sua própria função sagrada. O canto estratificado

pelas fases do dia, assim, cria um ciclo de transfigurações: revela o Deus na natureza que, por

sua vez, confirma a função sagrada do poeta cantor. Do mesmo modo, o capítulo XV (“A

aurora”) em que este se insere, perde o seu caráter temporal e adquire a forma de um

momento simbólico no percurso do próprio poeta mítico: o momento em que o Deus

amanhece em si de forma definitiva. Durante a noite, por sua vez, o canto adquirirá a forma

de um “noturno” (capítulo XIX) que, por oposição a esse canto-oração, será a primeira

expressão do declínio da sua condição eterna.

A função de Alsino como poeta-mítico não lhe é revelada de forma imediata. É o que

se mostra no capítulo XVI do livro, onde o narrador relata as “aventuras” do herói, quer dizer,

já não as formas que compõem o canto do poeta, nem o tempo em que elas se inscrevem, mas

as ações próprias desta fase. Esses acontecimentos são, na sua maioria, periféricos, não

afetam o rumo das coisas e tem a particularidade de simplesmente retratar as diferentes

maneiras de o herói interagir com o meio. Dentro delas podem se distinguir as aventuras

adaptativas, que estão ligadas à luta pela sobrevivência que empreende Alsino dentro da

natureza, e as aventuras lúdicas (narradas, mais tarde, no capítulo XVI sobre os potros), em

que não há nenhuma lógica darwinista envolvida e em que Alsino joga desinteressadamente,

quase esteticamente, com ela.

Mas a aventura mais notável é a que tem a ver com a descoberta da função mítica de

Alsino: a cena do encontro entre ele e o velho que se ajoelha aos seus pés em busca de

206 “ (...) se as asas só com voar já fazem seu canto” (Ibid., p. 72).

141

libertação e perdão pelos seus pecados. Durante essa cena, o próprio herói descobre e de certa

forma rejeita essa função, pois ela tem a ver com um exercício moral da religião (a de redimir

o campesino), que não se ajusta às revelações de que Alsino é porta-voz. A cena contrasta,

portanto, com outro momento de autorreconhecimento de Alsino que já comentamos: o do

canto na alvorada, em que a sua função mítica foge dessas formas mais próximas das formas

católicas, e se ajusta a uma lógica panteísta207, dentro da qual o seu papel não é o de perdoar

pecados, mas o de transmitir uma visão de Deus como ser indissociável da natureza. Ambos

os capítulos, assim, podem ser lidos como complementares: sob a forma de uma antítese,

põem em jogo duas visões de mundo e duas formas de religiosidade, dentro das quais se

define, de passagem, o universo simbólico em que se apoia o autor de Alsino e os conteúdos

religiosos que ele quer transmitir mediante a sua história.

O final da fase mítica começa durante o capítulo XVIII, “No verão silencioso”, o qual

é dedicado à iniciação sexual do herói. Nele mostra-se o primeiro descenso do protagonista do

estado de poeta divino para o estado de poeta humano. A causa desse descenso é o chamado

da libido e dos impulsos “baixos” do corpo que sente Alsino, os quais são simbolizados pelo

clima de seca e calor extremo que toma conta do meio ambiente: “Quietos sob esta tarde

canicular, que nenhuma brisa percorre, há na sua imobilidade a atitude de uma espera

angustiante” (PRADO, 1983, p.92, tradução nossa). Como um reflexo dessa erotização de

Alsino, toda a natureza sexualiza-se:

Com os lampejos do diamante sobre a terra preta do seu leito, lambendo as raízes contorcidas e revoltas, como serpentes na luta por beber, brilha a linfa pura. As folhas secas caem, o arroio as acolhe e transforma em barquinhos que derivam, joviais, seguindo a louca e rápida corrente 208.

Por contraposição, a água representará a sede saciada pela mulher que emerge do

coração do rio. Após o encontro com ela – e continuando com o registro simbólico – parece

nascer um outro Alsino, o Alsino humano: “Ao olhar para baixo viu na água, agora quieta e

207 Esses dois episódios contrastados servem como casos que relativizam de forma concreta o que é proposto por Lucía Guerra, que vê na história de Alsino a influência de uma visão de mundo cristã proporcionada por Tolstoi “mediante a qual é possível encontrar o verdadeiro sentido da vida e da morte” (GUERRA, 1983, 32, tradução nossa), em meio a um cenário internacional de pós-guerra. 208 Ibid., p. 92.

142

dormida, outro ser a ele parecido que voava se afastando para as profundezas da terra”

(PRADO, 1983, p. 97, tradução nossa). O final deste tempo mítico é delimitado, a grandes

traços, pela tempestade do capítulo XX, que marca o fim de uma era e o início de outra,

fechando o ciclo das estações que pautaram esta fase (primavera, verão e outono; nascimento,

apogeu e declínio). Na verdade, ela estende-se brevemente para a quarta parte do livro (o

capítulo XX), onde o mundo mítico será observado de um ponto de vista humano, e a figura

divina do poeta será transformada em lenda. Pedro Prado põe em ação duas formas de lenda:

a oral, que corre entre os moradores da região209 e a lenda escrita, difundida pelos jornais do

país: “Um jornal de província comenta a história com tal ingenuidade, que os grandes jornais

das cidades a aproveitam vários dias para se burlar dele e aumentar o número de suas edições.

Por mais de uma semana é tema dos mais engraçados comentários” 210.

Do poeta romântico como recordador ao poeta irônico

A quarta parte de Alsino é como uma imensa antologia que consegue compilar quase

todas as fases da poesia ocidental, desde o modo romântico até o modo irônico, com que

fecha o livro.

Na poesia do modo romântico, Deus é tirado de cena e o poeta converte-se num ser

humano cuja função consiste essencialmente em recordar. A sua fonte de inspiração, portanto,

não será a divindade, mas a memória, a qual atua como expressão humana do seu caráter

divino. Iluminados por ela, os poetas recordam um sem-fim de assuntos: catálogos de reis e

tribos, mitos e genealogias de deuses, provérbios da sabedoria popular, tabus, dias fastos e

nefastos, sortilégios, façanhas de heróis tribais (FRYE, 1991, p. 83). A era desses heróis é, em

grande parte, nômade, e os seus poetas são, frequentemente, vagabundos. Mas, se o poeta não

se move, é a poesia que viajará, mediante contos folclóricos que seguem as rotas do comércio,

e baladas e romances que retornam às grandes feiras 211.

Em Alsino, esta fase dá-se entre os capítulos XXIII (“Prisioneiro”) e XXIV (“Vega de

209 “De boca em boca corre a notícia do anjo ou demônio que, voando pelo ares, visita a região” (Ibid., p. 118). 210 Ibid., p. 119. 211 Ibid., p. 84.

143

Reinoso”), e a função recentemente descrita distribui-se entre o herói e o narrador. Aqui o

poeta começa a ser visto e tratado já não como lenda, mas como homem: “ – Que significa

isso? – disse iluminando bem de perto o rosto de Alsino –. De onde você tirou essas asas? Por

que tem sangue? Você voa? – Sim, voava… cortaram-nas – resmungou Alsino” (PRADO,

1983, p.129, tradução nossa). Ao mesmo tempo, Alsino demonstra possuir uma nova forma

de expressão, a qual consistirá na lembrança pública das experiências primordiais da fase

anterior com que consegue comover a difícil audiência que o rodeia:

Com temor e reticências, depois mais tranquilo, ao se assegurar de que nada lhe faria, Alsino foi contando, contando, com voz entrecortada, algo da sua estranha existência. O curso do breve e maravilhoso relato serenava os incrédulos semblantes. Os policiais perdiam, com a sua tendência irônica, os últimos restos da sua ebriedade. Escutavam-se tosses sufocadas no quarto vizinho e suaves rangidos de um leito, em que, pesadamente, alguém se mexia 212.

A função recordadora do poeta romântico será complementada pelos relatos do

narrador, que vai exercer o papel de fazer “viajar a poesia”, oferecendo um impressionante

espetáculo da sua capacidade de mapear a região e desvendar, mediante a descrição, os

detalhes da paisagem e as potencialidades da província. Esse narrador contará também

histórias familiares com os mais pormenorizados detalhes, como acontece com a narração da

história de D. Xavier Saldías. Ele se identificará, por isso, com a imagem do viajante:

Seguindo o caminho para o portilho de Maltusado, na provincia de X, desde os primeiros fortes da cordilheira dos Andes, por verdes enseadas, aberturas estreitas, morros suaves e redondos, cobertos de retalhos de bosques indígenas, e outros altivos e nus, eriçados de rochas ameaçantes e de espinhosas plantas, se estende para a fazenda de Vega de Reinoso.

Escassa em terra de rega, férteis potreiros vizinhos aos barrancos do rio; rica em cachos trigueiros; com velhos vinhedos de fama local; abundante em montanhas virgens, e com léguas de serranias, aptas para o pastoreio de temporada, é um feudo valioso e pitoresco. Vindo do povoado, ao passar pelo porto, já desde a cruz de madeira ali plantada para lembrar um cruel assassinato, cruz a que sempre iluminam velas humildes que começam a brilhar mais e mais na medida em que o crepúsculo se obscurece, enxergam-se ainda distantes, na escura profundeza deste lado do rio, que nessa hora reflete o moribundo resplendor dos arrebóis, umas luzes que piscam amigas atrás dos confusos arvoredos. São as casas da fazenda.

O raro viajante que atravessa por essa solitária região, iniciada a noite, ao sentir nas suas carnes a primeira coçeira do ventinho gelado que se levanta, enquanto segue caminho adiante, contempla

212 Ibid., p. 130.

144

longamente, com olhos de inveja, a doce reclamação dessas luzes (PRADO, 1983, p.134, tradução nossa).

A partir do capítulo XX e até o capítulo XXXI, Pedro Prado situa Alsino num novo

contexto e com novas funções. De poeta recordador ele passa a fazer uma poesia centrada na

figura da mulher amada (XXIX “Canto do amor”), declarando a sua posição de poeta-amante.

O canto organizado ao redor de Abigail e o novo ambiente em que Alsino se encontra, ao

ficar como prisioneiro na fazenda de D. Xavier, vinculam este momento do romance com a

fase do mimético elevado. Nela, a poesia traz uma sociedade mais fortemente estabelecida em

torno da corte e uma perspectiva centrípeta substitui a força centrífuga do romance (FRYE,

1991, p. 85), sendo o seu tema central o olhar dirigido à amada, ao amigo ou à divindade, que

parece ter algo do olhar da corte sobre o soberano ou sobre o orador, ou mesmo do público

sobre o ator. O poeta nesta fase é eminentemente um cortesão, um conselheiro, um

predicador, um orador público ou um mestre de decoro, sendo o teatro o meio principal das

suas formas ficcionais 213, e o tema do mando social ou divino, um dos seus assuntos centrais.

Em Alsino a função literária da corte é cumprida por outra forma de organização

econômico-política: a da fazenda. Dentro deste universo a figura de mando será D. Xavier – o

patrão – que, de passagem, será o eixo político desta fase, por contraposição a Abigail: o

centro afetivo ao redor do qual se dirigem as palavras e os olhares de amor quase cortês que

Alsino lhe dirige. Se um dos tópicos principais desta fase é o do mando social ou divino, no

romance de Pedro Prado ele atualiza-se ao redor do tema da perda de legitimidade que o poeta

e o conteúdo místico do seu canto sofrem num mundo dominado pela técnica, pela

mecanização e pelos interesses mercantilistas. Essa situação parece provocar uma quebra na

ordem cósmica, simbolizada pelo clima de catástrofe retratado no capítulo XXVII do livro,

intitulado “Um ano triste”:

O ano ameaçava continuar pródigo em calamidades. Desde o outono passado, que se despedira com uns dias horríveis, as coisas íam de mal a pior (...) Quando chegou uma trégua de escassos dias, começaram a cair, como corvos sobre um campo de batalha, as notícias abrumadoras: as últimas pontes, que ainda resistiam, estavam quebradas; os caminhos, cortados por fendas e desmoronamentos, e quadras e quadras, das mais fecundas terras de ribeira, carcomidas e

213 Ibid., p. 36.

145

engolidas pela corrente do rio. A metade do povoado de Las Juntas, ali onde o Reinoso recebe a torrente de Las Loicas, tinha sumido. Faltavam duas crianças e alguns animais. Desolação caindo sobre misérias, caíram as águas e as ilhas, que formaram os braços do rio antes férteis e sorridentes, cobertas de arbustos, viam-se arrasadas e transformadas em pedregais estéreis e brancos como ossos (...). Quebradas as bocatomas dos canais de irrigação, entrada já a primavera, uma seca irremediável no primeiro tempo se deixou sentir. Mas ela bastou, junto com o retorno de um ardente sol, para que começassem as epidemias no gado (...). Não se detiveram aqui os açoites caídos. Não passou nem um mês quando uma epidemia de febres irreprimíveis começou a se espalhar entre os povoadores desses remotos campos (PRADO, 1983, p. 61-63, tradução nossa).

O domínio desses novos valores, em detrimento dos valores divinos de que Alsino era

porta-voz, expressa-se em três cenas: na cena dos jornalistas, na dos gringos e, por último, na

cena do aeroplano. Em todas elas, ao mesmo tempo, parece estar presente alguma noção

formal ligada à teatralidade. Com os jornalistas, o poeta cumpre a função de ator enquanto

impostor: “O ruim é que, cedo ou tarde, o público enganado dará a você um golpe, e à prisão!

Sim! À prisão! Com certeza!” 214 “ – Já te contarei, Gerônimo! Imagina, quis nos

enganar…mas eu o vi! É um fenômeno maravilhoso! Que coisas se podem contemplar nos

dias que se passam!” 215. Com os gringos, ele realiza a função patética e triste de ator

enquanto mercadoria: “ – Banegas, ¡que entre Alsino! – gritou o fazendeiro. O prisioneiro,

empurrando a porta, mostrou o seu rosto –. Adiante! Aproxime-se!– continou mal-humorado

dom Xavier –– O que você está esperando para tirar a manta? Alsino obedeceu com um pudor

estranho. Os gringos, para observá-lo, nem se moveram das suas cadeiras” 216. Por último,

temos a cena do aeroplano, em que o poeta cumpre a função de espectador e, mais tarde, de

vítima da sua própria caducidade e da falta de legitimidade que o seu voo poético de antigo

cantor mítico tem diante do voo técnico-mecânico do outro filho de Reinoso:

Os gritos, vivas e juramentos dos bêbados se silenciaram diante de uma exclamação enorme e jubilosa que subia da pradaria. O aeroplano empreendia novamente voo. Distraídos um instante, quando os bêbados quiseram continuar perseguindo Alsino, este, o corpo machucado e ensanguentado, deslizando-se entre as brenhas, fugia sem ser visto (PRADO, 1983, p.189).

214 Ibid., p. 176. 215 Ibid., p. 176. 216 Ibid., p. 180.

146

Um novo descenso no ciclo de Alsino produz-se após este espetáculo, no capítulo

intitulado “Um Sarau”. As figuras que simbolizavam a autoridade e a ordem fazendeira (D.

Xavier e o padre da igreja) saem de cena, abrindo passagem a um descolado ambiente de

vozes subalternas:

A reclusão do prisioneiro pouco a pouco vai se afastando. Banegas, diante do tácito assentimento de seu patrão, acabou trazendo Alsino com ele cada noite, quando, já tarde, chega a hora em que os empregados da fazenda, que a isso tem direito, vem com os empregados comer na cozinha das casas (PRADO, 1983, p.192, tradução nossa).

Do clima triste e gregário que domina a fase anterior, o poeta parece, mesmo que por

tempo breve, recuperar a sua centralidade e a sua legitimidade diante de um povo agora

totalmente caracterizado e vivo. O ambiente deprimente de ruptura da ordem cósmica pela

ordem mecânica é substituído, assim, por um festivo e alegre capítulo, em que o que

predomina é o canto, a poesia e a festividade dionisíaca em torno do vinho. Passamos do

morto ao vivo, do ordinário ao genial, acessando, portanto, uma nova fase: a do mimético

baixo. Nela as formas ficcionais tratam de uma sociedade fortemente individualizada e a

analogia do mito converte-se no ato de criação individual (FRYE, 1991, p 86). Identificamos

este traço logo nas primeiras páginas deste capítulo, um de cujos esforços principais é o de

caracterizar e descrever, em detalhe, cada um dos sujeitos da casa: O mordomo Régulo; a

cozinheira Candelária; o domador Calixto; Florêncio, o bodegueiro; Margarida, a mulher do

serviço; Dona Benta, a ama; e Don Santiago, o cego lírico vagabundo. Reunidos para

participar do sarau, todos estes personagens distribuem-se ao redor de Alsino, que, ocupando

o centro da cena, desdobra as suas histórias extensamente pela primeira vez ao longo do livro.

Seguindo as convenções do poeta romântico, Alsino fica aqui “invulnerável aos assaltos do

mal efetivo” 217 expostos na fase anterior, e transforma-se num ser “extraordinário que vive

numa ordem de experiência mais alta e imaginativa que a da natureza” 218, e num “construtor

de epopeias mitológicas” 219, baseadas nas diferentes façanhas vividas por ele durante o seu

período de poeta-mítico.

217 PRADO, op.cit., p. 87. 218 Ibid., p. 87. 219 Ibid., p. 87.

147

O tema episódico central do mimético baixo é “a apresentação de um estado mental

subjetivo” (FRYE, 1991, p. 88, tradução nossa). Se pensarmos na fase anterior como a da

objetividade, esta subjetivação se realiza no ressurgimento do poder da palavra dentro do

contexto festivo, em que tanto o poeta quanto os seus ouvintes transforman-se, sob o efeito do

vinho, em seres criativos e felizes, recuperando a pobreza perdida pelos valores do modo

anterior (poder, mercantilização, mecanização):

Diante dos olhos ávidos desses lavradores e montanheses, desdobrou-se a riqueza perdida nesse lugar oculto. Parece que veem os numerosos guanacos mortos, esvaziados por condores, conservar intactas as desejadas peles, devido ao ar rarefeito e seco da altura. Alsino começa uma nova história. (PRADO, 1983, p.197-198, tradução nossa).

Nesta fase, destaca-se também o potencial criativo do poeta e dos homens que o

rodeiam, os quais parecem adquirir um novo rosto diante das novas circunstâncias. Para além

da lógica social que coloca este público na parte mais baixa da sociedade, ele renasce aqui e

se transforma num conjunto de artistas: artistas do seu trabalho e artistas enquanto tais, como

vemos nas alusões ao pintor campesino, autor dos antigos afrescos da capela ruinosa pela qual

os personagens passam em busca de vinho220; e também no último personagem que entra em

cena:

Antes de que pedissem, o cego pegou o seu violão e, rasgando as cordas, começou a cantar entre o compassado coro de Florêncio e dom Ñico. “Ai! Ai! Que eu peço! / Ai! Ai! Que eu não ouso…/ Sempre, duvidando, de novo, / O tempo passou, / E, ai...! Sim! E, ai…! / Não! / Xingado o tonto ficou!” – Bem merecido o teve... Aprendam crianças! – gritou dom Ñico –. Mas não se apresse, compadre. Vamos, primeiro, limpando a voz. E voltaram a beber. “Há no campo uma erva / chamada de borraja… Reataram-se as canções. Mas logo começou a chegar o esquecimento, e logo subitamente a alegria e a boa liberdade.” 221

Fixa-se, assim, o último traço do poeta do mimético baixo: o seu “impacto social

revolucionário” 222. Após esta cena, a fase fecha-se e passamos à quarta parte, composta pelos

220 “Entre os enormes barris, apareciam, pintados nas paredes, atributos religiosos da antiga capela, e santos grotescos, obras de algum artista campesino” (Prado, 201) 221 Ibid., p. 203. 222 FRYE, op.cit., p. 88.

148

capítulos XXXIII e XXXIV (“Outono” e “Errante”), os quais funcionam como momentos de

transição para o estabelecimento definitivo do modo irônico. O principal acontecimento desta

parte é a morte de Abigaíl, a figura central do mimético elevado, pois ela acontece

ironicamente, anunciando a fase que está por vir. Alsino tenta salvá-la por meio dos curativos

naturais e, no entanto, é ele mesmo que apressa a sua morte. Aquilo que lhe ia dar vida a

mata; o remédio transforma-se em veneno; o bem, em mal.

Com o avançar das páginas, de fato, esta contradição irônica que estabelece relações

de continuidade entre o bem e o mal, entre a elevação e a queda, a sabedoria e a limitação vai

se instalar como perspectiva dominante, primeiro, das páginas finais do livro e, mais tarde, do

livro na sua totalidade. Isso explica, por sua vez, o fato de o romance estar atravessado do

início ao fim pelo símbolo da dualidade: Alsino-Poli, subir-descer, jovem-velho, Alsino-

Abigail, voo mítico-voo técnico, Rosa-Etelvina, etc.

No que se refere à última parte do livro, o modo irônico estabelece-se de forma pura.

Do ponto de vista do enredo, a sensação de estar acompanhando uma cena de “servidão,

frustração ou absurdo” (FRYE, 1991, p. 55) toma conta do leitor; mas, do ponto de vista

temático, vemos que o que há é a representação de uma nova imagem do poeta. Alsino não é

mais o ambicioso porta-voz dos deuses, nem a voz individualizada de uma sociedade de

homens, mas a figura humilde de um curandeiro cego, afastado dos humanos, rodeado de uma

natureza singela e protetora, e exercendo o papel de curador do corpo e da alma do povo. O

seu discurso é marcado pela sobriedade, pelo ceticismo diante dos próprios impulsos titânicos

e pela consciência humilde das suas limitações (simbolizadas pelo seu estado de cegueira). A

sua atitude é, portanto, totalmente nova: tem pretensões mínimas e seu tema central, como

acontece em geral com os poetas desta fase, será “o tema da visão pura, mas fugitiva, do

momento estético intemporal, da Illumination de Rimbaud, da Epifania de Joyce, do

Augenblick do moderno pensamento alemão, e do tipo de revelação não didática implícita em

termos tais como simbolismo e imaginismo” (FRYE, 1991, p. 88). Este tema se atualiza, no

caso de Alsino, em orações, delírios e cantos inspirados, que não repousam sobre uma visão

mítica total, mas em momentos de clarividência que surgem precisamente da consciência da

sua limitação:

149

“Permite, oh meu Deus!, louvar a limitada razão que você me deu, pois a proximidade dos seus mais estreitos limites é o que mais rápido a faz duvidar de si mesma, e onde ela duvida, uma vereda nasce; uma vereda que vai serpenteando na tua busca (PRADO, 1983, p.255, tradução nossa).

A esse instante de visão fragmentária e limitada tanto na sua forma, quanto no seu

conteúdo, o poeta entrega-se por completo. Isto é simbolizado pela imagem final de Alsino

transfigurado em fogo, imagem de entrega radical a uma verdade que justifica a totalidade do

seu percurso. Novamente, isto nos remete aos poetas da fase irônica, os quais viam na própria

obra o único e exclusivo objetivo da existência: “(…) renunciam à retórica, aos juízos morais,

e a todos os outros ídolos da tribo, e dedicam toda a sua energia à função literal do poeta

como fazedor de poemas” (FRYE, 1991, p. 88, tradução nossa), já que “têm mínimas

pretensões no que se refere à sua personalidade, e as máximas ambições no que diz respeito à

sua arte” 223. Por sua vez, o gesto final de se entregar por completo ao fogo de uma iluminação

e que lembra, inevitavelmente, o Prometeu, expressa mais uma tendência da poesia nesta fase.

Qual seja: a de retornar da ironia ao mito, do irônico ao oracular, como fez Rilke ao dedicar a

sua vida a escutar a sua voz oracular interna; ou Nietzsche, que proclamava o advento de um

novo poder divino no homem 224. Em Alsino, o gesto expressaria a vontade de contra-arrestar

os efeitos da história nas relações entre o poeta e uma sociedade em progressiva

secularização, resguardando o seu lugar de porta-voz de uma verdade que, mesmo subjetiva,

não abdica da possibilidade de se contatar com uma visão total, aliás, dada pelo próprio livro.

b) Escritura de Raimundo Contreras, de Pablo de Rokha: um retorno ao mito de Sísifo

A literatura de Prado, como vimos, fez parte de um primeiro momento de transição

entre o naturalismo e a vanguarda, forjado a partir da reelaboração do modernismo canônico.

Nela se encontram, portanto, variadas expressões das novas tendências estéticas do início do

século XX, como o espírito irreverente, o menosprezo pelas escolas literárias e o ludismo que

se concretizou em diferentes gestos e manifestos, como a “Somera iniciación al Jelse”, de

1915 (SUBERCASEAUX, 1988, p. 124). Ao analisarmos a obra de Pablo de Rokha, 223 Ibid., p. 88. 224 Ibid., p. 90.

150

comprovamos a veracidade desta filiação, pois vemos que as afinidades entre Prado e este

autor da vanguarda chilena são profundas, e que Escritura de Raimundo Contreras é, em

parte, uma radicalização das tendências poéticas que já estavam presentes em Alsino. O

impulso metaficcional intensifica-se: o enredo se perde e o drama poético-discursivo toma o

centro da cena. Por outro lado, a tendência popular-localista-latino-americanista aprofunda-se,

ao transformar-se numa difícil empreitada estética e estilística. Da prosa poética passamos a

um versolivrismo radical. E, por último, a busca por uma identidade mítica resolve-se, como

veremos, mediante a apropriação de uma figura, a de Sísifo, que não pretende esgotar os

significados do texto mediante um misticismo hermético (Icarista, Prometeico), mas expandi-

lo até chegar ao princípio da escrita como ação que o próprio De Rokha teorizava nesses

anos225.

Escritura de Raimundo Contreras é um poema em prosa que narra o processo de

formação de uma consciência mediante a escrita e de uma escrita mediante a consciência.

Como o título insinua, o seu foco é, portanto, a narração de uma escritura: a de Raimundo

Contreras, o qual surge diante do leitor como um sujeito totalmente novo, definido por

categorias que parecem querer extravasar e fazer colapsar as categorias que definem o sujeito

em formação do Bildungsroman clássico (masculino, burguês, urbano, racional, europeu).

Este processo de escrita apresenta-se como um duelo entre duas ordens simbólicas: a

vida, a natureza, a matéria e a saúde, por um lado; a morte, a cidade, a razão e a doença, por

outro. Quer dizer, dá-se como uma alternância de universos que se organizam, desorganizam

e reorganizam entre si pautados pelo ritmo dominante da sua mútua anulação, o que nos leva a

visualizar este poema como um retorno ao mito de Sísifo. Após a encenação desse processo

de construção e destruição, o autor parece atualizar esse mito como imagem de identidade

para esse sujeito diferente em classe, mentalidade, natureza, sexo e orientação (de “língua

obreira”, “imaginário difuso confuso”, “animal de inclinações derrubadas”, de “virilidade sem

caminho”, “sem caminho”) e que não deixa de ser representação do novo sujeito latino-

225 “Em Equação, se retoma a polêmica sobre a concepção da arte como cantar do aedo genial para seu povo, mas também como um modo de atuar sobre o mundo. Essa dupla articulação – autonomia e ação significativa – verte-se no texto poético Escritura, em que também coexistem antinomicamente as duas tendências” (NÓMEZ, 1988, p. 93, tradução nossa).

151

americano que se está formando por aqueles anos226. O seu poema sugere, assim, uma

identidade em movimento, cuja condição é o estado voluntarioso da sua autoconstrução e sua

capacidade de integrar o cosmopolita e o local, o abstrato e o material, o europeu e o latino-

americano, enriquecendo-se mutuamente, sem que nenhum deles se instale de forma

definitiva.

Esse sujeito, esse projeto de escrita e a oposição entre as duas ordens simbólicas

mencionadas anunciam-se já no primeiro capítulo do livro, em que são tematizadas as

condições de enunciação do canto que se desenvolverá ao longo do texto.

O narrador caracteriza Raimundo Contreras como um “ser incognoscível” e

“estapafúrdio”, lúgubre e contraditório (DE ROKHA, 1966, p. 23, tradução nossa), uma

identidade que ultrapassa o sujeito burguês”227, figura que, aliás, é sutilmente ironizada: “a

defenderia, Raimundo, a levantaria sobre as acéquias astronômicas para que não queimasse os

olhinhos”228.

O projeto de escrita e a oposição entre os campos simbólicos organizam-se aqui ao

redor do tema da memória, cuja presença divide a narração entre um passado e um “agora”,

temporalidades que, por sua vez, correspondem a duas espacialidades: a do campo (Pelarco) e

a da cidade; a do maternal, do erótico (história de Rosita), do familiar; e a do mecânico, do

enfermo, do fútil e do irracionalizável, onde o subalterno é visto como uma peça mecânica

sem experiência: “porque tudo anda louco nessas cidades sem medida e até o suéter dos

varredores é temível / no entanto, os tocadores de realejo não são pássaros mecânicos e

trazem outonos na garganta” 229.

226 Este sujeito, como diz Naín Nómez, “Tem características que se formam de 1) Traços pessoais e autobiográficos de Pablo de Rokha; 2) Alguns traços da figura real-mítica do loiro Carioca, mais uma abstração arquetípica do campesino chileno” (NÓMEZ, 1988, p. 97, tradução nossa). “O loiro Carioca é um personagem extraído da vida real e que reaparece várias vezes nos poemas. Foi um arreeiro que o autor conheceu durante a sua infância e que tinha características de contrabandista cordilheirano e herói romântico. Sua imagem persistiu na memória do menino e nos textos” (Ibid., p. 97). Podemos dizer, portanto, que este representa o novo sujeito latino-americano, provinciano e vinculado à terra – o pequeno proprietário a que de Rokha estava próximo, mas também o inquilino pobre que ele quis representar –, que se está emancipando, no âmbito nacional, da ordem oligárquica, e no âmbito internacional, da condição de periferia cultural. 227 “sublimidade que resplandece furiosamente por dentro das águas burguesas” (Ibid., p. 24). 228 Ibid., p. 24. 229 Ibid., p. 25.

152

A interação desses dois cenários, como já foi dito, realizar-se-á mediante o exercício

da memória, a qual adquire duas feições: a memória linear, sujeita a uma visão cronológica

do tempo; e a memória como totalidade. A primeira possui dois movimentos: do presente ao

passado (memória que se constrói e que adquire a forma de um obstáculo230) e do passado ao

presente (memória involuntária que invade o tempo atual231). O narrador anuncia, sem

embargo, o predomínio da memória como totalidade que funciona para além das coordenadas

presente-passado. Essa memória é o território a que Raimundo se dirige e para cuja definição

deve encontrar novos termos que não os temporais. É uma memória que se “olha em

redondo”, desde “a última ponta do globo”, quer dizer, que se observa como um todo em cuja

direção viaja-se de “corpo inteiro”, como a uma viagem cosmológica, e através de veículos

míticos tais como “o potro da noite”, que se apresentará como a ponte, durante vários

capítulos, entre ambos os universos.

Essas condições de enunciação definem um discurso bilíngue cuja natureza é

tematizada no capítulo II: “t o d o s o s c a m i n h o s”. Do tema da memória como

totalidade que organiza a primeira parte, o narrador passa a introduzir uma nova questão: a

condição bivocal da escrita que está em formação. O universo simbólico do urbano, do triste

e do artificial – do civilizado – 232 coloca-se numa situação de simultaneidade com o

imaginário do rural, do originário e do saudável – do natural –. Isto dá ao capítulo uma

estrutura de contraponto em que um e outro imaginário se alternam completando o seu

sentido, como um equilibrado duelo entre vida e morte. A passagem para o território do

natural é uma passagem intuitiva, sensorial e cheia de riscos (pois é uma viagem

experiencial): “mordendo e cheirando sombras”, “encurralado de terrores genitais” (32). Ao

entrar nos seus territórios, desdobram-se alegres imagens de virilidade, organicidade,

fertilidade e felicidade:

230 “(…) muralha de vidro oblíqua astronômica água de espelhos sobre os meninos dormidos acima de Raimundo que a prolonga contemplando-a encurralando-se contra seu destino” (DE ROKHA, 1966, p.22, tradução nossa). 231 Esta memória surge imediatamente após a instalação da memória-obstáculo-muro “a muralha que cresce enorme como a palavra incalculável esmagando-o arruinando-o / mas a galinha preta picava devagarinho a rosinha à Rosinha embaixo do pé de pera do parrón sozinhos tem o sorriso corado acima do moleque situações de diamante” (Ibid., p. 22). 232 “(...) mal lhe pendura o poema mesmamente que a doença aos terrenos”, “cheira a pêssegos artificiais” (Ibid., p. 31).

153

(…) velhos gansos vermelhos levantam voo a partir da cruz migram em situação de bandeiras difíceis içando os extenuados ocasos então e ademais têm toda a vida metida dentro do sexo oh! dentro do sexo de todas as mulheres ele Raimundo Contreras como uma dual língua crescida que anda lambendo o acontecer desse peixe alegre incandescente entrementes molhado o rosto em sucos de frutas grandemente pretos como quebrando-se ovos de tinta azul na espada indômita ou como impregnado de coisas viscosas redondas em redondez de vinhos em nudez que se repete de alegria incombustível (DE ROKHA, 1966, p..32, tradução nossa).

Dentro dele, o imaginário sexual surge num registro simbólico (representando a vida),

mas também biográfico, poético e social. Aparece em cena uma nova mulher, Corina

Gonzalez, mulher talquina popular, exuberante e grosseira que desperta uma linguagem

poética sinestésica: sensorial, táctil, gustativa e fisiológica. Em contrapartida, o território do

civilizado surge com força sob a forma de uma “doença metafísica”, uma enfermidade que

poderíamos chamar de “epistemológica”, em que o isolamento do indivíduo em relação ao

mundo, provocado pelas separações da racionalidade, configuram-se como o seu drama

central:

Digamos que advém carregado com pensamento com um poço ou com um buraco carregado com a ausência da carga e isso é infame carregado com abismos metafísicos com religão caída fé fedorenta a tumba abstrata com liberdade com solidão muito errante que abre cidades cortadas a pico de espanto em espanto horizontes verticais e lamentáveis que resolvem tanta situação a faca e não obstante oscilam como antenas 233.

Neste duelo bivocal, será a morte, desta vez, a triunfante, como nos parecem dizer os

últimos versos do capítulo: “Dentro da Capital desenfadado aeroplano de artista ferindo

outonos pintados de prostitutas completamente só” 234, anunciando-se, assim, o domínio,

total e sem contrapartida, da doença no capítulo seguinte, intitulado “á l c o o l / o medo e o

fogo / a loucura imaginária”.

De fato, a terceira parte de Escritura de Raimundo Contreras é o retrato de um estado

totalmente patológico em que a doença espiritual estabelece-se por completo. O imaginário do

civilizado e do mental toma conta inteiramente da escritura, destroçando os símbolos

saudáveis da natureza que se apresentam agora como totalidades desintegradas sob o peso do

urbano, em imagens como: “a laranja atropelada” 235, “o vento doente”, “entre as patas

veludas dos seus pneumáticos”, “lobo de sol podre” (DE ROKHA, 1966, p.40), “a fruta obscura 233 Ibid., p. 33. 234 Ibid., p. 35. 235 Ibid., p. 39.

154

com tontura premeditada de bonde” (DE ROKHA, 1966, p. 40), “esse vinho grande que se

quebra” 236, “cidreira em álcool” 237. Se no primeiro capítulo é a memória que organiza o

discurso, e no segundo, a estrutura do duelo entre ambos os imaginários, instala-se aqui um

novo eixo discursivo, a psique, simbolizada pela imagem desagregadora de uma “roldana

psicológica” 238, que funciona como o redemoinho que desorganiza os símbolos e as partes

que constituem Raimundo Contreras:

(…) parte do eixo psíquico e remonta à alma em confusão e alça punhados de coisas sem destino e anda chamando as últimas vozes estipuladas produzindo cataclismos organizando seus vaivéns contra Raimundo sobre Raimundo virando-o ou voando-o ou virando-o confundido como terremoto envergonhado alavanca em giro ao redor de suas ilhas fatais arestadas de perigos semelhança de sepulcro em aluguel na beira de um mar desterrado 239.

Este eixo psicológico que toma conta de Raimundo e da sua escrita é expressão de um

modo de estar incompleto (exógeno e periférico) dentro da civilização, que tem por referente

o sistema do “acontecer kantiano” 240, baseado na lógica de uma vontade organizada com base

a fins que parece excessivamente linear e coerente para este sujeito essencialmente psíquico,

cujo sistema volitivo é um sistema confuso, cambiante e contraditório241, de atos que se

anulam242 e se contradizem entre si243. O estado de doença representado pelo domínio de um

imaginário totalmente mental, assim, tem uma dupla origem: a perda do imaginário rural-

material – “da primeira natureza” – mas também a impossibilidade de se ajustar ao bem-estar

dessa “segunda natureza” representada pela estrutura racional. De qualquer forma, e seguindo

o ritmo de construção e destruição que organiza o livro, o próprio mal deste estado vai se

desfazendo nas páginas finais do capítulo, quando começa a ser anunciado o ressurgimento e

o reaparecimento da primeira natureza, e a segunda natureza racional vai perdendo terreno.

Neste momento, esse estar exógeno dentro da civilização transforma-se num lugar válido de

236 Ibid., p. 41. 237 Ibid., p. 41. 238 Ibid., p. 45. 239 Ibid., p. 40. 240 Ibid., p. 42. 241 “alavanca de fumaça quebrada da vontade” (Ibid., p. 39), “a volição falha o arrasta empurrando-o” (Ibid., p. 42) 242 “goza chorando”, “caminha retrocedendo”, “amontoando o andado” (Ibid., p. 42). 243 “se persegue perseguindo-se” (Ibid., p. 42).

155

produção de símbolos e no território específico desse poeta que sintetiza o natural e o artificial

e cuja visão do homem surge precisamente desse estar inacabado:

E ademais literato literato? literato quer dizer uma grande máquina quer dizer o que rega com pêssegos e o que semeia terrenos a dinamita e ara a chutadas ou tiros quer dizer o que esteriliza e produz aquela fruta egrégia do veneno: o poema grande química metafísica sim Raimundo Contreras o literato reencontra o poeta incendiando-se é inabordável o animal canta-se Raimundo o que sem aranhas isolado no limite determinável condicionado por espaços humanos (DE ROKHA, 1966, p. 43)

Dentro do caótico e doente espaço simbólico que organiza este capítulo, as condições

para o triunfo da vida e da saúde vão sendo criadas, até o momento da sua instauração total no

capítulo seguinte, intitulado, “a descoberta d a a l e g r i a”. A natureza triunfa, desta vez,

sobre a civilização, a primavera sobre o inverno, a vida, sobre a morte. A palavra poética se

organiza, novamente, em direção ao passado, à memória e à natureza; e do imaginário do

psíquico, do subterrâneo e do mental, passamos, sem contrapartida, ao imaginário do inocente

e do material: “arrebenta em Raimundo seu ovo de água saindo dos psíquicos cósmicos

subterrâneos como jato de inocência incontestável” 244. O espaço volitivo de Raimundo

também se esclarece. Ele “distingue água das águas” 245 e o modelo visual da escrita passa de

“roldana psicológica” a “significado de circunsferência brilhante” 246. De um universo em que

Raimundo ocupa um lugar exógeno e cujo eixo psicológico desarticula os significados, a

escrita desloca-se para um terreno poético em que os sentidos se esclarecem e outorgam a seu

personagem um lugar central. Desdobra-se uma linguagem de referentes naturais que

recuperam a sua integridade e tornam-se expressivos mediante uma adjetivação que atribui

cores, sentimentos, cheiros e sabores: “pássaros corados”, fungos doces”, “todas as matérias

sorriem”, “camarões entusiastas”, “louros de tinta”, “peras de gritos agrícolas”, “entusiasmo

de tomates” 247. A linguagem se localiza e traz expressões da cultura campesina. O ambiente

transforma-se numa festa dionisíaca com comidas, cantos e danças populares que se

244 Ibid., p. 51. 245 Ibid., p. 51. 246 Ibid., p. 51. 247 Ibid., p. 49-51.

156

transfiguram em elementos cósmicos248 dando passagem à nação não oficial, não glamorosa

do Chile:

então amadurecem os cogumelos para o sol nu prudentes vidros azul-celestes e um odor nacional a folha podre um odor genital a nora tranquila ou vinhedo transatlântico

solta a pipa das províncias a bola profunda do astrônomo e do acendedor de nações o globo do juiz teimoso e educa astros claros com esse fio forte para sempre que amarra mundos e mortos solta gargalhadas contra o céu e um mar antigo cinje a sua cintura alegremente como ideia de cadáver honorável alegremente dançando pelado Raimundo

nas horas tremendas Chile retumba nos bramidos nas alavancas de Raimundo Contreras o bruto 249.

O imaginário urbano-racional, no entanto, volta a instalar-se no capítulo “geometria do

racioncínio / k a n t / a lógica transatlântica”: “grandes planos que referem grandes

livros implantam seu eixo quadrado nas astronomias de Raimundo” 250. Diferentemente do

patológico capítulo “á l c o o l / o medo e o fogo / a loucura imaginária”, o

posicionamento de Raimundo nestes territórios será de uma perspectiva “saudável”.

“Roldanas de sonho [que] advêm no laboratório de Contreras” 251 substituem a “roldana

psicológica” que funcionava como a imagem visual e o modelo de organização dos símbolos

no capítulo anterior, abrindo passagem a uma escrita tranquila e apolínea. Raimundo

Contreras aqui não é um ser exógeno cujo lugar de enunciação é um espaço periférico que tem

por referente a estruturação kantiana, mas identifica-se com a figura do “sonhador”, de

“domínio astrológico” 252, “ansiedade parada”, “voz lograda” e “temperamento redondo de

epopeia” 253. O lugar do abstrato, portanto, deixa de ser o da oposição dramática entre o

racional e o psicológico, para transformar-se no território amável da produção e da construção

de poemas-sonhos. A sua função, portanto, parece ser antes a de complementar e dar uma

orientação254 ao imaginário do natural que ocupa completamente a escrita do capítulo

anterior; e não a de esmagá-la. Assim, à beleza do dionisíaco, do exuberante e do grotesco a

escrita contrapõe o plano da abstração que equilibra o texto, oferecendo uma outra forma de

beleza: a da matemática e da arquitetura: 248 “Cesta oceânica de tortilhas de rescoldo” (DE ROKHA, 1966, p. 50). 249 Ibid., p. 53. 250 Ibid., p. 57. 251 Ibid., p. 58, grifo nosso. 252 Ibid., p. 57. 253 Ibid., p. 59. 254 “leme grande leme de um país naufragado” (Ibid., p. 58).

157

parte a mãe linha matemática viola de Deus desde o homem esburacando o desproporcionado trilho de impérios chorado de signos e gritos pau de bandeira do mundo leme grande leme de um país naufragado em gargalhadas despidas (DE ROKHA, 1966, p.58, tradução nossa).

A criação desse sonho depara-se com a resistência do dionisíaco: “frequentemente os

tumultos despedaçam as amarras do limite (...) às vezes quebra todos os vidros e a partir de

todas as léguas usadas o delata um Deus assassinado”255. Mas o espírito de contenção que

luta por se estabelecer nesta parte do poema parece ganhar a batalha “elevando” a escrita do

puramente carnal256 ao transcendente, compreendido não como lei racional (que, enquanto tal,

só pode criar escritas exógenas), mas como lei da imaginação: “e tem som de lei a arquitetura

de Raimundo” 257.

Dentro deste território abstrato, no entanto, a natureza começa a surgir novamente,

relocalizando e ressituando Raimundo, no capítulo “adega de vinhos e cachaças”. O espaço

mental e “elevado” em que ele se apresenta como o pai da sua própria criação parece

desgastar-se e perder o seu potencial criador: “arruinado de pássaros pálidos Raimundo

persegue o galope das águias mortas flameando em aventuras de alumínio e a serpente

psicológica infunde seu destino ultravioleta” 258. As cores dos seus referentes empalidecem,

ele mesmo perde o rumo e, do centro deste desgaste, começa novamente a surgir o universo

simbólico da natureza, a qual parece reclamar um reestabelecimento das hierarquias e um

reordenamento das relações entre o poeta e o mundo. De um indivíduo solto, então, Raimundo

passa a fazer parte de uma genealogia259, e de pai da sua escrita, a imensidão do natural o

coloca no lugar menor (e maior) de filho: “assim como quillay como maitén como pé de

pera nascida de sementes esse grande castanheiro dá sombra a Contreras e o apequena

como o filho ao pai” 260.

Mas a natureza estabelece-se de forma total só no capítulo seguinte, “joguete de

diamante”. Em continuidade com o imaginário de província, surge a figura de Lucina, figura

híbrida que adquire a forma cambiante de filha, de amante e de obra de Raimundo. Por

255 Ibid., p. 58. 256 “cem mulheres indescritíveis lambem a sua vontade enchem de sexo o triângulo de energias educadas” (Ibid., p. 58). 257 Ibid., p. 59. 258 Ibid., p. 64. 259 “parente astronômico de Gumercindo Fuenzalida” (Ibid., p. 64). 260 Ibid., p. 65.

158

contraposição aos sistemas de pensamento que parecem se sobrepor de forma delirante sobre

o terreno do simbolismo do natural, Lucina representará o universo simbólico do endógeno,

daquilo que surge, organicamente, de dentro para a fora:

vezes de vezes lhe parece a Contreras que Ela não aconteceu de fora para dentro como maçã madura mas de dentro para fora como o caído e tremendo das coisas futuras que são o passado da esperança e como obra sua apenas crê que existe e enche-a toda de lamentos (DE ROKHA, 1966, p.69, tradução nossa).

A obra-mulher-filha que nasce na escrita será símbolo, portanto, não de uma

linguagem poética criada a partir da combinação entre dois imaginários, mas de uma

linguagem totalmente primordial que se projeta em dois sentidos: um individual e o outro

coletivo. O primeiro se relaciona com a experiência do próprio Raimundo que, por sua vez, é

projeção da experiência biográfica do autor. Ela expressa a ternura do homem pela mulher

amada e pela parceira delicada que o leva às origens261 representando uma forma doce de ser

natural que contrasta com o caráter excessivo, bestial, mas também sublime de Raimundo:

“alucinando-a de gestos de cantos de gritos que acontecem desde as eras soberbas e

elementais a menina de Raimundo assusta-se arranca-se e se esconde na própria ternura” 262.

O sentido coletivo, por outro lado, instala-se de imediato, ao identificar-se a figura de Lucina

com regiões da periferia mundial e com espaços pós-coloniais:

estilo de cerâmica lembra as ilhas do cacau e do flamenco – havaneira e jamaiquina – as morenas cafeteiras (...) lembra a sonoridade oceânica da borracha e da chancaca e do grão do entardecer do amendoim crioulo tão alegre e tão ardente lembra a alegria dos formosos louros tristes seu vaivém tropical de canoas e de palmeiras e o sol e o charleston e a flor preta das colonias e a barba loira do tabaco chorando os cantos da marinharia 263.

Isto atribui à figura da mulher-filha-obra o caráter de um projeto que ultrapassa o

privado e que se estende às regiões mais amplas do comunitário: o projeto da obra totalmente

261 “olha para Lucina e lembra do caqui profundo a barriguinha da panelinha de Talagante” (Ibid., p. 73) 262 Ibid., p. 71. 263 Ibid., p. 72-73.

159

originária, histórica, local, rural e periférica; desprovida de todos os ímpetos racionalizantes

do imaginário exógeno.

Essa perspectiva do quotidiano muda imediatamente no capítulo seguinte, intitulado,

“o homem que se esqueceu d e t o d a s a s c o i s a s antigo deus abandonado”. Como o seu

título anuncia, e retomando o ciclo de construção e destruição, a escritura aqui perde

novamente o seu caráter humano, anunciando um novo foco: “igual ao rangido da roda

aquela aquela névoa certa e aquele ademã vago e indescritível para Raimundo Contreiras /

tem a cara torcida para o outro lado do mundo” (DE ROKHA, 1966, p.77, tradução nossa). O

narrador identifica Raimundo com símbolos etéreos, mostrando o seu novo estado atual de

desmaterialização e desumanização264, mas o faz segundo uma lógica paradoxal, em que o

processo de abstração (e elevação) será, simultaneamente, um processo de concreção (e

queda): “pega Lucina em condição de lembrança sem material humano como um fato ou

como um sonho dela nele e a pega íntegra” 265. Isto é simbolizado através da imagem do som,

elemento central deste capítulo e que funciona, por um lado, como a gênese de todas as coisas

e, por outro, como a essência de cada uma delas; isto é, como expressão do um e do múltiplo,

do abstrato e do particular: “é como se à travessa que contém o vinho lhe perguntassem que

contém e repondesse pegando o cheiro verificando a verdade primordial desse alegre rumor

de anos fazendo vinho sendo isso: um som de abelhas formidável” 266. Deste modo, aquilo

que estava a se perder no processo de abstração é ganho pelo poeta que faz do seu próprio

canto, de seu próprio som, uma ficção sobre a origem das coisas e, em consequência, um mito;

acrescentando, assim, um novo elemento aos momentos “não materiais” do livro.

Primeiro, a abstração traz uma oposição entre racionalidade e psique. Depois, ela

instaura o sonho e a imaginação. Agora ela nos leva ao território do mítico, dentro do qual a

escritura consegue reunir harmoniosamente o universal e o material, triunfo que se expressa

no “reencontro infinito” entre Lucina (o quotidiano) e Raimundo (o imaterial): “caminharão

mil anos cem mil anos certamente Raimundo Contreras e Lucina” 267.

264 “esta grande fumaceira é Raimundo é Raimundo aquele incêndio sem fogo e sem lenha e sem aquele problema de fumo” (Ibid., p. 77) 265 Ibid., p. 78. 266 Ibid., p. 78. 267 Ibid., p. 79.

160

O método de escrita começa aos poucos a se definir. Explicitando o que já vinha sendo

feito na práxis do livro, o capítulo “cruz do único”, apresenta-se como um posicionamento

sobre os princípios que hão de reger a escritura:

já não será capitão de ladrões nem ferreiro nem pirata nem trovador-caçador de búfalos nos romances nem vagabundo de aventura já não será o bêbado que dorme nos palheiros cosmopolitas já não será o solitário e o sem-vergonha que agarra livremente a fruta sonora dos caminhos e sorri ai! Raimundo já não será nem assassino nem santo nem estrangeiro em todas as fórmulas (DE ROKHA, 1966, p. 83, tradução nossa)

Evidentemente, há neste parágrafo uma polêmica contra a literatura de divertimento,

em que os personagens interpretam papéis fixos e pré-definidos pelo formato em que se

inserem. O fundamental destas linhas, sem embargo, não parece ser os predicados, mas o

modo em que eles são formulados, isto é, a negação que estrutura as frases, e que será o

princípio poético central que irá surgindo da escrita: “é a ideia que dói e que arde não é a

ideia é a ferida que dói e que arde não é a ferida é o umbral troador” 268. Como se vê nos

versos supracitados, este rumo de negação tem, por sua vez, um movimento afirmativo, em

que o “não” serve para negar, mas também para anunciar algo que “sim é”. Instaura-se, assim,

o domínio do paradoxo e da escrita que se define não pelos seus achados, mas pelo

movimento, pela vontade e pela insistência infinita que alimenta a busca permanente e cujo

fundamento é a afirmação não tanto dos objetivos, mas da própria atividade que os fins

provisórios estabelecem: “estava doente do problema psicológico / agora lhe convém o

contrário do contrário” 269.

Nesse sentido é que Escritura de Raimundo Contreras pode ser lido como uma

reescrita do mito de Sísifo, mito que põe em relevo, principalmente, o voluntarismo da da

escrita como ação e não meramente como forma: “como homem que recolhe pedras assim

Raimundo reconquista seu estilo”, “edifício que se constrói e se derruba e se constrói e se

derruba e se constrói e se derruba como a epopeia oceânica ou o paradoxo desterrado” 270,

“construção de névoa arquitetura despedaçada há vontade naquela angústia desfeita” 271. A

268 Ibid., p. 84. 269 Ibid., p. 93. 270 Ibid., p. 84. 271 Ibid., p. 89.

161

fixação nesta figura de identidade em movimento é uma conquista da própria escrita, a escrita

de Raimundo Contreras que, passando pelo psicológico, pelo dionisíaco, pelo apolíneo, pelo

onírico e pelo mítico, assim como pelas estruturações básicas do urbano e do rural, do

racional e do concreto, do cosmopolita e do local, do natural e do civilizado, encontra o seu

estilo na reunião de todas e cada uma destas dimensões:

ele não é um conjunto de cachorros uivando nem um conjunto de éguas relinchando nem cem leões emocionantes rugindo dentro da noite não caramba não ele é um grande ademã educado num carro enorme e ardente de animais selvagens mas com governo essa imensa força do regido o trem que emerge desde o escuro para o escuro hasteando a luz escura das catástrofes por direção única e culminante egregiamente a bala que arde e range e vai lançada isso o férreo o geométrico a música pitagórica das matemáticas que são a liberdade dirigindo a liberdade o homem então (DE ROKHA, 1966, p.95-96, tradução nossa)

2. Novas perspectivas do romance burguês: Punta de rieles, de Manuel Rojas, e Soñaba y amaba el adolescente Perces, de María Carolina Geel.

Punta de rieles (1958), de Manuel Rojas, e Soñaba y amaba el adolescente Perces

(1948), de María Carolina Geel, podem ser lidos como obras que oferecem novas perspectivas

ao romance chileno burguês272 representado por Martín Rivas. Antes de entrar na análise

pormenorizada desses romances, iremos, nas páginas que se seguem, referir-nos (e não

estudar de maneira aprofundada) à obra de Blest Gana, para mostrar como é que nela são duas

as categorias que atuam de maneira simultânea na hora de avaliar o burguês: a de classe e a de

gênero. A primeira delas é desdobrada pelo mundo dentro do qual Martín Rivas haverá de se

272 Ao longo desta pesquisa, preferimos usar o termo “oligarquia” em lugar de burguesia, pois se ajusta melhor ao que há na América Latina durante esse anos. No entanto, no caso de Martín Rivas, decidimos conservar o segundo termo, para manter continuidade com a crítica, que já instalou a imagem de Martín Rivas como emblema do Romance de formação burguês chileno. Por oligarquia compreende-se “um regime político e social que implica um controle rigoroso do poder político por parte de uma minoria que possui também o poder econômico. Esta oligarquia não necesariamente se afirma em linhagens como ocorre no regime aristocrático, ainda que uma mesma família possa ser de uma oligarquia por mais de uma geração antes de desaparecer” (RAMÓN, 2003, p. 67, tradução nossa). Durante os anos em que transcorre Martín Rivas, ainda não há propriamente uma oligarquia, pois esta se consolida “só na terceira metade do século XIX, com a chegada do grande comércio britânico e com o desenvolvimento do porto de Valparaíso como primeiro porto no Pacífico sul” (Ibid., p. 67). No entanto, ela está certamente em gestação e em processo de elaboração do seu programa.

162

inserir: o da burguesia santiaguina de meados de século (1850-1851)273, em cujo interior terá

de se livrar dos preconceitos que, como provinciano, sobre ele recaem, até ganhar o seu

reconhecimento (particularmente, o de D. Dámaso e da sua família). No entanto, e como

iremos enfatizar, o romance Martín Rivas pode ser lido, até certo ponto, também como um

Bildungsroman feminino protagonizado por Leonor, a mulher que cumprirá a função de

legitimar o posicionamento de Martín e que para isso deve passar por diversos momentos de

transformação pessoal, até reconhecê-lo e aceitá-lo como homem e como membro da

burguesia da capital que ela representa; desdobrando, assim, junto com a perspectiva de

classe, a perspectiva de gênero.

Os dois romances que iremos estudar aqui oferecem novos pontos de vista para essas

duas categorias a partir das quais a figura do burguês é avaliada no romance Martín Rivas. A

mulher que no texto de Blest Gana cumpre a função de representar a classe, aceitar o

provinciano como membro legítimo dela e coroar o seu percurso encontra uma nova posição

em Soñaba y amaba el adolescente Perces. Na função de autora do romance, o seu foco não é

mais o de quem deve fazer reconhecíveis as continuidades sociais entre o protagonista e o

universo dentro do qual está se inserindo274. Em outras palavras, o seu dever não é o de

reconciliar harmonicamente o individual com o social (burguês), revelando a funcionalidade

do homem, ao iluminar os seus aspectos éticos, morais e racionais, a partir da ótica amorosa.

Pelo contrário, como veremos, o ponto de vista de Carolina Geel assumirá a orientação de

cortar os laços entre o privado e a funcionalidade pública, aprofundado-se nas dimensões mais

íntimas, ligadas aos aspectos psíquicos, sexuais, pré-racionais e, portanto, “desfuncionais” do

burguês em formação. Em segundo lugar, por esse mesmo caminho, a autora estabelecerá

outro tipo de continuidade: a continuidade de gênero. Mergulhando nos aspectos mais

radicalmente privados desse burguês chamado Perces, Carolina Geel mostrará a formação

desse homem fora da perspectiva cultural que separa o masculino do feminino através do

273 “A narração de Martín Rivas transcorre entre datas assinaladas com precaução pelo autor. Desde começos de julho de 1850 até fins de outubro de 1851 se desdobra uma peripécia romanesca que capta um momento político culminante da história do Chile. São os anos em que se gesta e se prepara a primeira revolução liberal, fenômeno coletivo de grande envergadura, que cresce a partir de motins e sublevações militares, até alcançar uma magnitude nacional” (CONCHA, 1985, p. XIX, tradução nossa) 274 Esta função se encontra em consonância com a missão político-social que está vigente na narrativa romântico-realista de Alberto Blest Gana: “A função social da literatura lhe parece inerente a sua condição moderna e é acompanhada do mesmo sentido edificante que é possível surpreender na origem da literatura moderna” (Goic, 1968, p. 46, tradução nossa).

163

estabelecimento de funções familiares, profissionais e públicas; desdobrando, assim, um

retrato a partir de questões míticas (complexo de Édipo) e, inclusive, pré-conscientes que

tendem a unificar as distinções entre os sexos.

O romance Punta de rieles, de Manuel Rojas, também se apresenta como uma

perspectivação do romance burguês, mas num sentido diferente, associado não mais à questão

de gênero, mas à questão de classe. Em primeiro lugar, ele mostrará um percurso totalmente

oposto ao que aparece em Martín Rivas. Em vez do processo de consolidação e

espiritualização de uma classe, representado por um protagonista em vias de inserção

burguesa, Manuel Rojas mostrará a figura de um burguês relegado do seu grupo social, que

fala a partir de um lugar subalterno, e que representará os sintomas dessa classe no contexto

de crise nacional (no ano de 1929) que o romance leva à ficção. Por outro lado, apesar da

perspectiva de classe ser de fato muito forte nesse romance, o seu autor desdobrará uma ótica

diferente. O burguês será retratado a partir de traços mais humanos que sociais, revelando os

aspectos que estabelecem continuidades entre ele e o outro ator do romance – o artesão em

vias de proletarização. Por último, é interessante destacar o novo espaço narrativo que o

burguês ocupa no romance de Rojas. Do ponto de vista dos personagens, ele terá de

compartilhar o cenário, equitativamente, com o artesão, a quem deve ceder a metade do

espaço narrativo, abandonando o lugar de narrador e de protagonista que tinha em Martín

Rivas.

Ambos os autores realizarão isto a partir da sensibilidade de uma literatura

superrealista275, que se define, em grande parte, pela renovação dos pressupostos narrativos do

romance de Blest Gana276. Interpretando os fatos a partir da sua própria experiência de vida,

275 Manuel Rojas participa da primeira geração desta literatura superrealista, a geração de 1927, sendo um dos seus pontos mais altos. Carolina Geel insere-se melhor na geração seguinte: a de 1942, ficando próxima de autoras como María Luisa Bombal. Vistos nos seus traços essenciais e abstratos, os fundamentos poéticos de ambos os autores são, no entanto, basicamente os mesmos. 276 Cedomil Goic define da seguinte maneira os traços gerais do romance moderno (romântico, realista e naturalista), que se estende, aproximadamente, de 1860 a 1934: “Se observarmos a história do romance chileno moderno podemos ver a estranha coerência de suas manifestações e a constância singular que os traços típicos expostos nas considerações precedentes mostram. Podemos notar a apresentação das narrações por um narrador pessoal cujos traços gerais, cujas atitudes, cujos métodos, cujas interpretações da realidade, cuja elaboração do tempo, cujo modo de narrar, em definitivo, são constantes, observados os matizes diferenciais que convêm à singularidade de cada obra e de cada momento diversamente condicionados. Esta figura de intérprete da realidade nacional que enfrenta o mundo com a atitude de um reformador, crítico e descontente; que defende com ingênua convicção a sua ideologia, seu saber precário; que invoca esse saber como crença fundamental para o aperfeiçoamento social é o narrador moderno. A incongruência com relação ao mundo narrativo designa o seu

164

as modalidades discursivas que utilizam partem da desconfiança em relação ao narrador

moderno que dá sentido à história apoiado na segurança da sua fé na ciência, no progresso e

na ideologia. Nos romances desses autores, ontologiza-se a existência humana, individual e

histórica, e a montagem se transforma numa imitação da condição superreal da consciência,

que revela a sua estrutura feita de reiterações, circularidades, continuidades e

descontinuidades, fazendo das suas limitações vantagens que revelam o desgaste das formas

tradicionais. Diferentemente da obsessão moderna pelo presente imediato, produz-se, nestes

romances, uma anulação do tempo, dirigida a recuperar a interioridade de que o narrador e o

personagem foram privados277.

a) Martín Rivas: Bildungsroman masculino e feminino

É incrível quão diferente pode ser a inauguração de certo gênero literário pela

diferença de uns poucos anos e pela mudança de espaço nacional. Tanto Martín Rivas (1862),

de Alberto Blest Gana, quanto O Ateneu, de Raul Pompeia, são referências obrigatórias para

todo aquele que se interesse pelo Bildungsroman chileno e brasileiro. Ambos são romances

que se inscrevem na segunda metade do século XIX. Cada um à sua maneira conta com o

traço comum de tratarem do tema da formação de uma perspectiva discursiva satírica. Os dois

desenvolvem narrativas em que se tenta fazer reconhecível a degradação dos valores que

movimentam determinado universo social (a degeneração monárquica, no primeiro; a crise

ideológica liberal, no segundo). No entanto, entre um e outro são muito poucos os elementos

que justificariam uma aproximação e nenhum desses eliminaria o abismo que há entre eles.

O motivo dessa imensa distância entre os dois romances que inauguram o gênero no

Chile e no Brasil é de origem ideológica. Pompeia foi um escritor que, dentro do contexto da

República e da intelectualidade liberal, ocupou um lugar periférico, e posicionou-se de forma

modo de narrar. Sua concepção do mundo é sobretudo uma concepção da sociedade. Por isso, sua concepção do tempo é pura historicidade, escatologia e soteriologia secular; é tempo que marcha para a racionalização social e para a liberdade como para o paraíso em que culmina a história humana num progresso natural irreversível. Esta é a forma adotada por esta teoria geral dos mitos degradados que, deste ponto de vista, o romance moderno constitui” (GOIC, 1968, p. 145) 277 Ver: GOIC, La novela chilena: los mitos degradados, 1968, p. 145-166).

165

decididamente antioligárquica, defendendo a revolta dos trabalhadores e mostrando com o seu

romance a degradação que os filhos das mesmas famílias que mais tarde continuariam

comandando o país sofriam no obscuro período da monarquia. Quer dizer, ele foi um jacobino

totalmente oposto a Blest Gana, liberal moderado278, em cujo texto, como veremos, pareceu

promover a reforma da classe dirigente279, de preferência a qualquer forma de insurreção

proletária280.

Um dos traços que eu considero mais marcantes d’O Ateneu é o fato de concentrar-se

num espaço eminentemente masculino, o que estrutura um desequilíbro de base no seu

universo simbólico. O mundo do feminino é violentamente deslocado: a partir da

descontinuidade total que o internato impõe ao menino com respeito ao espaço do lar

materno, a configuração do caráter sofrerá permanentemente essa separação estrutural entre

homem e mulher. De fato, o caminho formativo do personagem estará marcado pela excessiva

institucionalização e masculinização da vida infantil de Sérgio e pela carência total de um

espaço afetivo, baseado nos cuidados amorosos da mulher, cujas poucas aparições parecem

produzir o efeito de uma liberação do peso da escola, do Estado, da sociedade, do sistema

burocrático, etc.

Se tomarmos o Martin Rivas (1886), do chileno Alberto Blest Gana, o que

encontraremos é a construção de um universo totalmente diferente. Muito menos realista e

interessante que Pompeia, o seu romance parece estar configurado a partir de um equilíbrio

entre o feminino e o masculino, o que é visível já na temática central do livro: uma história

amorosa, em que se imbricam questões de classe, que acabam por alimentar a sua bem-

278 “Como sempre, Alberto Blest Gana se situa aqui de novo num ponto intermediário, equanimemente. Isso lhe permitirá juntar, em Martín Rivas e em outros romances, ambas as formas de conduta política, e mostrar sua contradição, refutando a moderação com a exaltação e vice-versa. Consegue, assim, sensibilizar com os seus relatos o que acontecia na realidade social do seu tempo e na sua própria família: que, no que toca aos liberais, os dois extremos se confrontam entre si, se embotam mutuamente. Ponto de vista superior, objetividade de romancista? Bem antes, cremos, arte do equilíbrio, da medida e das decisões prudentes. Tática de diplomata mais do que tato de narrador!” (CONCHA, 1985, p. XIV, tradução nossa). 279 Destacamos o seu caráter mais reformista do que revolucionário, apesar do seu romance remontar-se à época do Motim de Urriola com o fim de “ressaltar o heroismo atuante da burguesia” (Ibid., p. XXII) de meados do século, momento após o qual “a participação do herói e do povo não será mais um dinamismo histórico, mas, pelo contrário, uma reminiscência, algo que é necessário atualizar através de um processo de reconstrução romancesca” (Ibid., p. XXIII). 280 Os referentes desta forma de revolução, na época, foram “os dois episódios principais da luta de classes entabulada na Europa: a insurreção de junho de 1848 e a Comuna de París, em maio de 1871” (Ibid., p. XIV)

166

sucedida realização281. Em outras palavras, um “romance” em que o feminino e o masculino

parecem encontrar-se harmonicamente no final do livro, homogeneizando os valores do

universo criado, gerando um efeito de perfeito equilíbrio, que oferecerá o tom predominante a

esta narrativa. Em concordância com esta configuração das figuras principais, o fundo e o

cenário também variarão. Assim, do universo institucionalizado (escolar, uniforme e

masculino) de Pompeia, passaremos, com Blest Gana, a uma história privada, que, no entanto,

acontece no universo variado e socialmente caracterizado da cidade externa e interna (salões

de elite, praças e passeios públicos, prostíbulos de classe média, etc.) 282.

Sem dúvida, o personagem principal deste romance é um homem: Martín Rivas,

provinciano que migra para a capital a fim de cumprir com a vontade do seu falecido pai de se

educar e mais tarde levar o sustento à sua mãe e suas irmãs. No entanto, pensamos que, além

de ser um Romance de Formação masculino, há também no interior de Martín Rivas um

Bildungsroman de mulher, protagonizado pela personagem feminina que faz par com o

provinciano: Leonor, aquele fetiche da classe alta que, para se entregar ao amor que sente por

281 De fato, ambos os livros prestam-se a leituras alegóricas nas quais estas questões ligadas à masculinidade e à feminidade têm um significado simbólico, em que se imbricam as questões privadas com as públicas. No caso de O Ateneu, a focalização no universo masculino serviu para ficcionalizar uma tese de degeneração social que “emergiu na crise do Segundo Império, contrastando com as expectativas de progresso encarnadas no projeto republicano já em gestação após a década de 1870. A obra literária de Raul Pompeia é criada neste período, marcado por um contexto de declínio da ordem imperial e suas bases escravistas em meio à formação de centros urbanos com populações relativamente independentes dos setores senhoriais. Nesta linha, a categoria sexualidade funciona não apenas como criadora de identidades sociais, mas como categoria de conhecimento que se dirige também a instituições políticas. Daí afirmarmos que está presente em O Ateneu a “homossexualizacão” do Segundo Império, relacionando “imoralidade” e instituições monárquicas” (MISCOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 77). Da sua parte, Martín Rivas pode ser lido como um dos livros que compõem o “Romance fundacional” latino-americano, textos de cunho alegórico que “se desenvolvem mão a mão com a história patriótica na América Latina. Juntas despertaram um fervoroso desejo de felicidade doméstica que se transbordou em sonhos de prosperidade nacional, materializados em projetos de nações que investiram nas paixões privadas com objetivos públicos (...) ‘Estas ficções – nas palavras de Djetal Kadir – ajudaram, desde seus inícios, a história que as engendrou’. O romance e a república a ser desenhada com frequência estiveram unidos, como disse, através dos autores que prepararam projetos nacionais em obras de ficção e implementaram textos fundacionais através de campanhas legislativas ou militares” (SOMMER, 2004, p. 24, tradução nossa). 282 “Martín Rivas acontece num marco definidamente urbano. Todos os personagens se movem no espaço romanesco de Santiago, a capital do Chile. Isso contrasta poderosamente com outros romances do século XIX latino-americano, aos quais já aludimos nestas páginas. Isso se deve sem dúvida ao grau de desenvolvimento econômico e político do país, ao alcance centralizador das ordens da vida social que tinha logrado o Estado nacional” (CONCHA, 1985. XXXVI, tradução nossa). Este caráter urbano traz consigo a presença de um espaço socialmente variado, dentro do qual as situações amorosas serão articuladas: “A classe alta, por uma parte, que dita os valores configuradores do mundo, objeto da sátira do narrador e do desmascaramento da sua mísera realidade. A classe média, em seguida, descrita principalmente por sua tendência a imitar a classe alta em seus ideais exteriores de elegância e de dinheiro, traços imitativos que definem a sua condição de arrivista (...). O povo é apenas entrevisto no pitoresco da cena dos sapateiros da Praça de Armas – captado na sua linguagem vulgar e seus idiotismos –, nos vendedores dos passeios santiaguinos ou nos curiosos da revolução de abril” (GOIC, 1968, p. 59, tradução nossa).

167

Rivas, deve livrar-se do que aprendeu no círculo de elite onde nasceu, e desprender-se dos

preconceitos de classe que, mesmo sendo vistos como frívolos e inautênticos por ela,

continuam operando e mediando a sua atração. Ambos, assim, sofrem transformações antes de

unirem-se definitivamente. Os dois se formam para poder realizar a finalidade de exercer os

critérios da moralidade e não os da sociedade, mediante a realização desse amor

(supostamente) cheio de diferenças; configurando, assim, uma forma especial de

Bildungsroman misto. Trata-se de um gênero curioso que, apesar de ser protagonizado por um

homem, organiza-se a partir da ótica da mulher. O predomínio da lógica feminina se verá

reforçado pelo poder da temática amorosa, do formato e das tipologias próprias do folhetim,

em detrimento da temática política ou épica, representada pela história de Rafael San Luís. O

protagonista, de fato, será permanentemente comparado com uma espécie de ideal feminino:

“o tipo de herói que as mulheres aficionadas à leitura de romances se forjam na juventude”

(BLEST GANA , 1975, p. 183, tradução nossa).

O romance distingue dois momentos no percurso formativo de Leonor283. O primeiro

momento é o período chamado de “maquinal”, em que ela reproduz acriticamente a

identidade que lhe corresponde por gênero e classe. Durante esse período, segue e participa da

lógica do “olhar social”, do galanteio com homens ricos e elegantes, e da produção da própria

imagem. Assim que ela conhece Martín, no entanto, inicia-se o seu processo de

transformação-conscientização, o qual se dá de maneira paralela ao desenvolvimento do

sentimento amoroso pelo provinciano, a que ela vai cedendo de maneira gradativa. Assim,

Leonor, desejada pelos homens mais belos e ricos da cidade, vai passando do “orgulho”284 ao

mais total estado de paixão, aceitando, posteriormente, o papel de amante desdenhada “sob o

império da transformação operada em todo o seu ser” 285. Esta transformação dá-se

simultaneamente ao processo em que Martín transita da “desesperança”286 à “esperança”, uma

283 Esta formação a que queremos dar destaque aqui segue a lógica da teoria do amor de Stendhal. “O romance se propõe como um ‘estudo do coração’. O tempo da narração se ordena nas tensões e nos estágios do desenvolvimento do amor no coração de Leonor Encina. Tal desenvolvimento se cinje cuidadosamente à teoria do amor em Stendhal. As formas primeiras da admiração, unidas ao desejo e à esperança de ser amada, a cristalização seguida da dúvida e a segunda cristalização criam tempos diferentes para as partes principais da narração” (GOIC, 1968, p. 53, tradução nossa). 284 Um “orgulho” socializado, que denota o fechamento de uma classe que não quer se abrir ao que se mostra como aparentemente diferente. 285 BLEST GANA, op.cit., p. 179. 286 Esta palavra usada com muito cuidado pelo romance, fazendo referência a um sentimento também socialmente inscrito num meio rigidamente estamentado.

168

vez que, ao mudarem os valores de Leonor, ele pode, então, reconhecer-se como burguês,

revelando-se um amante legítimo para ela.

A história de Martin Rivas é a clássica e conhecida história do provinciano que vem à

capital para cumprir com uma série de missões (completar os estudos, realizar a vontade do

pai morto, sustentar a família) e, de passagem, funciona para o leitor como um espelho dos

usos e costumes que primam nas “grandes cidades” dos países ocidentais287. É um livro

ambíguo, que, por muito tempo, foi lido como a história de uma triunfante ascenção social,

versão segundo a qual Martín Rivas era um sujeito de classe média que, graças aos seus

valores pessoais, conseguia integrar-se nas “altas esferas da sociedade”.

Mas as interpretações dos últimos anos conseguiram instalar uma objetividade maior e

desmitificar este suposto “herói da classe media” chileno. Seguindo os estudos de Cedomil

Goic288 e Jaime Concha289, hoje sabemos que mais do que um ídolo dos setores médios, a

história de formação de Martín Rivas é a de um burguês proveniente da burguesia mineira do

norte do Chile, cujo percurso terá a função de reformar o comportamento moral da

plutocratizada sociedade burguesa urbana do Chile de meados do século XIX. Desta

perspectiva, ele simboliza a consolidação da ideologia, do espírito e da moralidade burguesa,

num contexto de consolidação exclusivamente material, configurando-se como um herói tão

burguês quanto a classe em que se insere, mas representando uma nova fase do seu

desenvolvimento.

Tal processo, no entanto, será o resultado não de um questionamento da norma

burguesa, mas, ao contrário, uma espécie de “sacralização” da mesma. Através da atribuição

de um elemento “mais elevado” a todas as atividades que implicam viver burguesamente, o

que será promovido não é a tranformação da classe, mas, simplesmente, a “elevação” dos seus

usos e costumes, tirando-lhes a sua mecanicidade e atribuindo a eles uma espécie de “alma”

287 “O ‘estudo social’ deste que se propõe como ‘romance de costumes politico-sociais’ começa com a chegada a Santiago num dia de julho de 1850 do jovem provinciano. Trata-se de um recurso fundamental do romance moderno. Julien Sorel ou Rastignac provocam com seu conhecimento da cidade as manifestações características da vida social e expõem o significado formador da sua experiência pessoal. A presença de um estranho no mundo é a maneira efetiva de promover a ilustração do mundo em que se penetra” (GOIC, 1968, p. 54, tradução nossa). 288 Ver: GOIC, La novela chilena, los mitos degradados, 1968, p. 45-46. 289 Ver: CONCHA, 1985, p. XXVIII.

169

ou “aura”. Esta alma não corresponde a uma “ética social” ou a um “senso de justiça”, mas,

sim, a uma espécie de estetização do burguês.

O modelo desta superposição de valores, que não questiona, mas simplesmente

sublima a trajetória burguesa, encontra-se no desenvolvimento da trama amorosa.

Inicialmente, Martín se deixa seduzir pelo luxo, pela riqueza e pela elegância da família a que

chega, desvalorizando a si mesmo. No entanto, uma vez que ele conhece Leonor, essa

admiração inicial pelo luxo e pela elegância é trocada por um ideal amoroso que,

supostamente, não é econômico. O amor que Martín sente e desenvolve por Leonor, será, ao

contrário, um amor baseado no desejo de felicidade e de sublimidade e não na troca

financeira, como acontece com a maioria dos casamentos que estão se projetando e

consumando no mercado matrimonial do romance. Para o leitor, no entanto, é claro que o

sentimento de Martín por Leonor não é tão puro quanto o narrador e ele mesmo o apresenta, e

que a paixão que ele sente por ela é, sem dúvida, uma forma de legitimar os valores de

mercado que primam no mundo externo e que, no corpo, nas roupas e nos modos de Leonor,

funcionam como elementos de sedução. Fica claro aqui que o importante não é a necessidade

de renunciar totalmente aos valores mercantis, mas, principalmente, evitar que a sua busca se

dê de forma isolada. À mercadoria – segundo nos diz o relato – deve ser acrescentado sempre

um “a mais”, um sentimento, um ideal: o amor. Sem negar o gosto pelos bens, é preciso

acompanhá-lo de um interesse que esteja para além do valor utilitário. Em outras palavras, à

lógica externa das relações deve se sobrepor a lógica do próprio sujeito em jogo: um princípio

subjetivo abstrato que, no caso da relação de Martín com Leonor, estará fundado no amor.

Seguindo este modelo, todas as tarefas realizadas por Martín estarão determinadas

pelo mesmo equilíbrio de prioridades. No trabalho, no estudo, o protagonista nunca deixará de

cumprir com as exigências do mundo burguês. No entanto, diante delas, ele irá sobrepor

sempre um valor: a inteligência, o dever de gratidão, o desinteresse. É o que fica explicitado

no fato de ele trabalhar de graça para D. Dámaso, deixando o seu protetor perplexo pelo

menosprezo que Martín demonstra por algo que, ao contrário, ele tanto valoriza. Mas, na

verdade, com esse trabalho ele sim está tirando um proveito, que consiste precisamente na

aquisição de um saber com respeito aos negócios próprios do burguês, saber para o qual, de

resto, ele demonstra especiais aptidões. Na linguagem do romance, contudo, o que ficará em

destaque será o ceticismo diante do dinheiro expresso por Martín, e o fato de ele ser bem-

170

sucedido nos negócios de D. Dámaso mais por inteligência que por experiência nos negócios

(BLEST GANA , 1975, p. 125). Em outras palavras, o protagonista será elogiado por realizar

muito bem esse aprendizado na dimensão comercial da classe a que chega, mas por motivos

elevados: seu talento e seu altruísmo.

O mesmo acontece nos estudos, dimensão na qual Martín procura ser reconhecido não

pela “elegância do vestuário” 290 ou pelo orgulho da roupa, mas pelas suas aptidões

intelectuais. Mesmo assim, não abdica da exigência de ser advogado, profissão que faz parte

indiscutível do roteiro da sua classe.

Martín também desenvolverá uma espécie de “aprendizado íntimo” dirigido ao

conhecimento da vida privada da elite. Se, no plano anterior, adquire o saber sobre a lei

pública e social (da qual não se fala uma palavra), neste último espaço terá a oportunidade de

exercer e difundir o valor da lei e da justiça privada, funcionando, dentro dos salões

burgueses, como a representação do juízo e do bom senso. Pelo fato de ser ele quem desfaz

todos os problemas que surgem no interior da família, ele acaba inclusive revertendo a dívida

econômica que tinha com os Encina. Essa dívida será paga através do merecimento (espiritual

e material) do amor de Leonor, por quem cultivava um amor “sem esperança” 291 – ou, nos

códigos do livro, um amor mediado por diferenças de origem.

Este espírito reformista, baseado na necessidade de sacralizar os costumes

extremamente materializados da burguesia, promovendo uma mudança espiritual (mas não

estrutural) da classe dirigente, contrasta com o espírito do seu melhor amigo, Rafael São Luíz,

que representará uma outra lógica de transformação.

Inicialmente, eles parecem compartilhar tudo. Ambos têm quase a mesma idade; os

dois sofrem de um amor “sem esperança” e, por último, tanto um quanto o outro se destacam

por contar com mais capital “espiritual” (se é possível juntar essas duas palavras) do que

material, com mais recursos internos do que externos 292. A verdade, no entanto, é que os dois

representarão lógicas totalmente opostas. Nas antípodas de Martín, Rafael San Luís atuará no

romance como o personagem que encarna a lógica histórica representada pela sua

290 Ibid., p. 74. 291 Ibid., p. 214. 292 Ibid., p. 78.

171

participação no Motín de Urriola, evento revolucionário de grande alcance na história do

Chile, mas que no livro é apresentado como um acontecimento fracassado e de limitado

impacto. Através da sua figura, portanto, configura-se a preferência ideológica do livro,

mostrando o destino trágico a que se dirige a excessiva politização, e convidando a seguir o

caminho feliz e bem-sucedido do insípido reformismo de Rivas. De fato, Rafael San Luís

fracassa em tudo: no plano amoroso, ao não poder casar com a mulher que ama, pois ela

descobre que ele é pai de um filho ilegítimo; e, no âmbito do político, durante o Motim de

Urrióla, evento durante o qual morre heroica, mas também pateticamente, num combate já

quase perdido. De modo que será a reforma espiritual de Martín a única saída viável que o

autor apresenta como válida para a transformação social e não a intervenção apaixonada,

reestruturante e revolucionária encarnada pelo malfadado amigo. Na linguagem do livro, será,

portanto, mais importante evitar e conter a decadência da elite enquanto classe dirigente, do

que promover o surgimento das classes populares.

b) Punta de rieles, romance de encontro entre mundos.

Com Manuel Rojas, o romance chileno supera, de forma definitiva, duas das escolas

narrativas do século XIX, que mantiveram a hegemonia literária do país até a década de trinta:

o Realismo e o Mundonovismo. Inicia-se com ele uma nova sensibilidade, que se afastou da

narrativa ideológico-política de Blest Gana, assim como dos fundamentos naturalistas que

ainda atuam, mesmo que de forma renovada, na literatura de Pedro Prado, instaurando uma

narrativa humanista tanto “em termos da relação do homem com o homem, em que o

princípio da fraternidade se contradiz e entra em pugna com qualquer forma de darwinismo

social, como na relação do homem com o seu meio, com a natureza, com a cordilheira, com a

máquina e o trabalho, este último não desprovido de densidade filosófica” (ROJO, 2009, p. 3,

tradução nossa). Vista como um todo, esta literatura desloca-se do universo eminentemente

burguês de romances como o Martín Rivas para:

(...) os setores subalternos da sociedade, entendendo por tais a classe baixa não obreira ou, pelo menos, a classe baixa de obreiros não organizados. É o “baixo povo”, como o denomina, seguindo uma nomenclatura de princípios do XIX, Gabriel Salazar (...) isso se deve a que o pessoal das suas narrações

172

está composto não tanto por obreiros como por trabalhadores independentes, que podem ser cabeleireiros, alfaiates, sapateiros, pequenos comerciantes, trabalhadores que são contratados para a realização de tarefas pontuais, como os estivadores, os obreiros da construção (pintores, pedreiros, carpinteiros, etc.) e os artistas pobres, quando não são desempregados sem mais (ROJO, 2009, p. 5, tradução nossa).

Punta de rieles (1959)293 é o quarto romance de Manuel Rojas e constitui uma

verdadeira exceção dentro da sua narrativa, tanto pela sua forma, como por alguns aspectos

essenciais do seu conteúdo. Em primeiro lugar, é o único romance deste autor que não faz

parte da tetralogia de Aniceto Hevia (que começa com Hijo de Ladrón (1951) e termina com

La oscura vida radiante), surgindo como uma interrupção estranha no meio da sua obra mais

importante (entre Mejor que el vino, de 1958, e Sombras contra el muro, de 1964). Em

segundo lugar, ela é o primeiro romance em que Manuel Rojas aposta numa estruturação

narrativa diferente: uma montagem de duas histórias de formação inspirada em Wild Palms de

William Fawlkner, livro que lhe serve de formato para organizar os discursos que compõem

Punta de rieles294. E, por último, encontramos nas suas páginas, de forma excepcional, a

presença de outro sujeito social antes ausente do seu universo romanesco: Fernando Larraín

Sanfuentes, membro em decadência da elite chilena da primeira metade do século XX.

O texto se estrutura como um romance de encontro entre mundos. Entre um membro

da elite tradicional e um membro do baixo povo em vias de proletarização, ambos

293 A data de publicação deste romance ultrapassa o limite temporal deste trabalho, mas mesmo assim, e por diferentes motivos, decidimos incorporporá-lo. Pensamos que, na hora de estudar o Bildungsroman desta época, Manuel Rojas é um autor imprescindível. No entanto, a sua obra mais famosa, a tetralogia de Aniceto Hevia, acabou de ser estudada de forma total por Grínor Rojo, o que contrasta com a situação deste romance sobre o qual existe apenas um estudo crítico publicado. Em segundo lugar, apesar de Punta de rieles ter sido publicado alguns poucos anos depois, ela se insere totalmente no universo da primeira metade do século, pois se passa no mesmo período de tempo em que se focalizou a narrativa geral do autor: “período da história pessoal de Rojas e a geral do Chile, de aproximadamente cinquenta anos, desde começos até meados de séculos XX, ainda que seu foco recaia sobretudo no primeiro quarto do século” (Ibid., p. 1). Por último, Punta de rieles nos permite completar o quadro de atores que temos querido criar, incorporando simultaneamente a história de um burguês em decadência e a de um artesão em vias de proletarização, num registro de romance social. 294 O único estudo que existe de Punta de rieles é o artigo intitulado “Presencia de Wild Palms de William Faulkner, en Punta de Rieles”, escrito por Mercedes Robles, e publicado na recopilação Manuel Rojas. Estudios críticos. Tal como o seu título o indica, o objetivo fundamental deste texto consiste em analisar em que medida o romance do autor chileno cumpre com o modelo narrativo que ele mesmo diz ter tomado da obra do autor norte-americano, começando por uma valoração negativa, nada generosa, dos resultados atingidos por Rojas: “Contrariamente ao que expõe Rojas, a técnica do seu romance não seria igual à de Faulkner. Trata-se, bem antes, da adaptação de procedimentos narrativos e de preocupações temáticas que acabam por transparecer que o autor chileno, como grande parte da crítica, não assimilou totalmente o alcance dos propósitos do norte-americano (...) Na realização da sua obra, Rojas só aproveitará os aspectos extrínsecos de Wild Palms” (ROBLES, 2005, p. 247, tradução nossa).

173

apresentados sob a forma de sujeitos em crise: o burguês relegado da sua classe e o

criminoso. O autor reúne os dois personagens num lugar e num tempo histórico determinado:

numa salitreira da Antofagasta de fins dos anos vinte e início da década de trinta, quer dizer,

num período crucial na história do Chile, durante o qual está em marcha uma crise em três

sentidos. Uma crise financeira internacional que, por sua vez, repercute no plano econômico

nacional durante os tempos da ditadura do General Ibañez del Campo, tempos de crise

também política295.

Ao contextualizar o encontro entre Fernando Larraín Sanfuentes e Romilio Llanca

neste espaço-tempo determinado, o romance parece dialogar com um fato específico deste

período histórico: a reformulação das relações entre as diferentes classes sociais do país que

está em curso durante esta fase. Em função disso, o autor elabora uma situação ficcional

composta por técnicas literárias e estratégias retóricas que, reunidas, compõem uma

narrativa drasticamente irônica. Por um lado, ela mostrará as relações entre esses dois

personagens de um ponto de vista que vai para além das relações de classe, tentando

desdobrar uma visão mais humana do burguês e do criminoso, dirigida a revelar as

continuidades que existem entre ambos. Por outro lado, no entanto (ainda que sem anular

totalmente a perspectiva anterior), as próprias técnicas e estratégias retóricas, assim como a

solução que Manuel Rojas dá ao enredo orientar-se-ão a mostrar a permanência destas

relações de classe tradicionais296.

295 Em relação ao âmbito econômico internacional, estamos pensando na queda de Wall Street em Nova Iorque, que não descreveremos neste trabalho por se encontrar vastamente comentada e estudada. O que sim é importante destacar é que esta queda é a que agravou a crise econômica nacional que o Chile viveu nos anos trinta, e que se iniciou como consequência da interrupção de duas atividades que tinham sido cruciais para o desenvolvimento do país durante pelo menos trinta anos. Referimo-nos, especificamente, à indústria mineira e ao crédito internacional. Trata-se, pois, da exportação de produtos primários, os nitratos e o cobre, e das importações de capital, crédito e investimento exterior; ambas destinadas a alimentar o desenvolvimento geral do país. A catástrofe que se gerou devido à dependência que o país tinha nestas atividades de comércio exterior, detonou a crise também política em que o Chile entrou durante esses anos. A Grande Depressão afetou o que se considerava um dos pilares do governo de Carlos Ibañez del Campo, quer dizer, a reativação econômico-administrativa que este tinha conseguido, após o conflitivo período parlamentar e da polêmica presidência de Alessandri. Ibañez, com efeito, deu ao Chile um período de quatro anos de certa prosperidade, que, para a população, justificaram a limitação das liberdades, à qual Ibañez tinha submetido o país. No entanto, quando a Grande Depressão derrubou aquilo que segurava a tolerância ao autoritarismo de Ibañez, produziu-se um processo recíproco em que, por um lado, as medidas do ditador iam-se tornando impopulares e, por outro, foram se intensificando as reações autoritárias (BETHEL, 1990, cap. 7). 296

Fernando Larraín sugere a Romilio Llanca entregar-se à polícia, apelando a um critério objetivo, apesar de ter ouvido a comovedora história do trabalhador e reconhecido as continuidades que a sua tinha com a dele.

174

Gênese de Punta de rieles

Antes de entrar na análise pormenorizada de como esses elementos se desdobram no

romance, gostaríamos de dar uma introdução a esta obra fazendo o esforço de integrá-la

dentro do corpus geral da narrativa de Manuel Rojas, para o que é preciso acudir ao

macroesquema que oferece o estudo de Grínor Rojo, intitulado La contra de Rojas.

Com o fim de dar uma explicação formal ao acesso autobiográfico que a obra do

escritor chileno sugere, Grínor Rojo distingue duas estruturas de conjunto referencial,

conceito tomado do teórico espanhol Tomás Alvadalejo, que se refere ao período da vida

selecionado e semantizado pelo autor através dos distintos segmentos do seu trabalho

narrativo. A primeira delas é a que vai desde 1912 a 1921 (na biografia de Rojas) e se refere

à “idade da inocência e da vagabundagem programática”, a qual é semantizada através das

obras “Laguna” (em Hombres del sur), “El vaso de leche” (em El delinquente), Lanchas en la

bahía, Hijo de ladrón, Sombras contra el muro e La oscura vida radiante. Todos esses contos

e romances, assim como esse trecho da vida de Rojas, possuem, segundo o crítico chileno,

certa unidade outorgada, fundamentalmente, pela figura de um jovem em processo de

formação, cujo estado característico é o seu nomadismo, a sua solidão, o seu desamparo e a

sua fome física e espiritual. Nas vicissitudes desse jovem podem encontrar-se chaves sobre a

identidade do homem adulto, da sua relação com os outros, com a mulher e com a maturidade

que “poderia consistir na sua integração ou não no sistema das instituições burguesas tais

como elas são” (ROJO, 2009, p. 8, tradução nossa).

A segunda estrutura de conjunto referencial que Grínor Rojo detecta é a que se refere

à segunda etapa da vida de Rojas, isto é, a etapa da “integração frustrada”, que se estende de

fins dos anos vinte em diante e será semantizada, dentro da tetralogia, pelo romance Mejor

que el vino 297. A unidade de ação e de sentido desta segunda metade da obra e da vida de

Manuel Rojas é dada pelo intento de integração de seu protagonista e do próprio escritor nas

instituições burguesas, intento marcado pelo esmagamento do indivíduo, pelo fracasso e pela

pobreza existencial.

297 Ibid., p. 24.

175

Tendo isto como esquema geral, podemos reconhecer as conexões que estabelece

Punta de rieles com o resto da obra de Rojas, para o que vale a pena abordá-lo como um

romance composto por três “sub-romances”, cada um dos quais se conecta com um ponto

distinto da sua trajetória narrativa.

O primeiro “sub-romance” que achamos necessário distinguir é o que poderíamos

chamar de “Romance de Formação de personagem subalterno”, em que se ficcionaliza a

história do obreiro sindicalista que chega ao escritório Fernando Larraín Sanfuentes. Pelo

período em que ela está ambientada (fins dos anos vinte, inícios da década de trinta), pelo tipo

de personagem que tem por protagonista (um sujeito subalterno que começa sendo artesão

gremialista, mas que termina como obreiro e dirigente sindical numa salitreira de

Antofagasta) e pela temática amorosa frustrada que o compõe, esse romance conecta-se com o

que Grínor Rojo distingue como a segunda etapa da tetralogia de Aniceto Hevia. Como já foi

dito, aquela etapa compreende o período de formação de Aniceto e Manuel Rojas que começa

no final dos anos vinte e que corresponde, segundo o crítico chileno, ao que seria “o futuro do

mal cálculo”, o da “integração burguesa frustrada” que, dentro da tetralogia, aparece

elaborado pelo romance Mejor que el vino, escrito um ano antes que Punta de rieles.

No caso de Punta de rieles, o personagem que corresponde ao de Aniceto Hevia leva o

nome de Romilio Llanca, realizando um intento de integração adulta mediante uma asfixiante

história de amor com Rosa, com a qual desenvolve uma anômala vida sexual, econômica e,

poder-se-ia dizer, familiar, no cenário das salitreiras chilenas, território industrial dentro do

qual Llanca, antigo artesão, começa a trabalhar. Tudo isso acontece após um longo processo

formativo que se poderia concectar com o que Grínor Rojo distingue como a etapa mais

importante na tetralogia de Aniceto Hevia.

A etapa anteriormente mencionada consta de dois momentos, que também estão

presentes na biografia de Romilio Llanca. O primeiro deles é denominado por Grínor Rojo

como “a idade da inocência”, e corresponde à etapa em que Aniceto dá seus primeiros passos

no mundo até que conhece Cristián e o filósofo, em Hijo de Ladrón. O segundo é denominado

pelo mesmo crítico como “idade da vagabundagem programática”, quando, após a separação

do trio “del Membrillo”, Aniceto, agora anarquista, inicia a sua busca de um destino não

burguês.

176

No caso de Romilio Llanca, essas duas etapas prévias apresentam-se sob a forma de

referências ao “pretérito perfeito” do protagonista. A “idade da inocência” estaria conformada

pelo período que vai desde que decide sair espiritual e fisicamente do seu meio, Cáhuil,

impulsado por “El milico”, até que conhece o seu verdadeiro modelo em Santiago, o

carpinteiro anarquista chamado de “mestre Pascual”, graças a quem se inicia, posteriormente,

na fase da “vagabundagem programática”:

Queria descansar um pouco da luta, apesar de ter partido para Valparaíso para sondar como andava o grêmio. Mas, em Valparaíso, sem saber como, nem por que, me vi, de um dia para outro, a bordo do vapor “Piragua”, embarcado como carpinteiro (...) Conheci toda a costa sul do Chile, Talcahuano, Lota, Puerto Montt, Corral, Ancud, Castro, Melinka, Punta Arenas; cheguei até Buenos Aires. Em outras viagens conheci Coquimbo, Taltal e todos os portos do sul, do norte e do Equador [tradução nossa] (ROJAS, 1974, p. 954, tradução nossa).

O segundo “sub-romance” que podemos distinguir em Punta de rieles é o “romance

de burguês relegado da sua classe”, representado pela história de Fernando Larraín

Sanfuentes. Tematicamente, este sub-romance mantém certas relações com distintos setores

da obra de Rojas, o que não impede que seja uma verdadeira novidade dentro do seu universo

narrativo e o elemento que empresta a sua singularidade a Punta de rieles como conjunto.

O primeiro antecedente é o recentemente mencionado terceiro período da saga de

Aniceto Hevia, cujo ponto de encontro seria o tema da “integração burguesa frustrada”, que se

apresenta na história de Fernando Larraín mediante o relato do seu processo de relegação

social, como consequência do seu fracasso no início da vida adulta, familiar e ligada ao

trabalho. O segundo antecedente seria o conto “La compañera de viajes”, que se encontra

recopilado na coleção intitulada El delincuente (1929). Este relato é o único texto no universo

narrativo de Manuel Rojas prévio a Punta de rieles, em que o autor se concentra no retrato de

personagens burgueses. Inspirado, segundo Grínor Rojo (ROJO, 2009, p. 4), na narrativa de

salão ou de clube da literatura europeia do XIX (Kipling, Conrad, Somerset Maugham), o

conto relata o encontro entre um homem e uma mulher que se conhecem por causa de um

problema técnico que obriga a dama a deixar o seu trem (“El expreso de París”) e subir

naquele mais singelo e barato onde viaja o cavalheiro. O último antecedente o encontramos

no personagem que aparece em Sombras contra el muro e que também é destacado por Grínor

177

Rojo. Trata-se de “El Checo”, o qual corresponde ao mesmo perfil de Fernando Larraín

Sanfuentes: “El Checo, que é um mal sujeito, é também um filho de “família decente” que

saiu do caminho reto e “corrompeu-se”, corrompendo no caminho às meninas mais pobres do

seu bairro” (ROJO, 2009, p. 20, tradução nossa).

Por último, teríamos que nos referir ao que aqui queremos denominar como o “sub-

romance de encontro entre mundos” que, em Punta de rieles, é constituído pela situação

enunciativa que faz interagir o solilóquio de Romilio com o monólogo interior de Fernando

Larraín. Essa situação é a que Rojas pega, quase ao pé-da-letra, da história do seu amigo Julio

Asmussem e com cuja ficcionalização reúne os dois tipos de mundos que antes se

encontravam separados. A narrativa do autor chileno apresenta para este sub-romance só um

antecedente, que é o conto “Poco sueldo” 298, recopilado na coleção intitulada Travesia

(1934). Apesar de carecer da temática criminal e erótica tão importante em Punta de rieles,

“Poco sueldo” estrutura-se a partir do mesmo choque entre dois mundos. O de um

personagem subalterno chamado Laureano, que trabalha como eletricista numa empresa, com

o seu superior, que cumpre o papel de administrador da mesma. Laureano vai ao escritório do

administrador para fazer um trabalho de rotina, mas de repente lhe ocorre pedir um aumento

de salário, a partir do qual, o administrador o descobre pela primeira vez:

O administrador levanta a cabeça:

— Que acontece? Não terminou ainda?

— Sim, senhor, é que...

— O quê?

— Eu quero aproveitar este momento para lhe fazer um pedido.

— Qual?

— Queria pedir ao senhor um aumento de salário. Ganho tão pouco aqui, senhor, que apenas me alcança para viver mal, e tenho mulher e dois filhos. Faz dois anos que aumentaram o meu salário em vinte cinco pesos, não voltaram a se lembrar de mim. E já vê que sou eletricista...

—Sim. Quanto você ganha?

— Ganho cem pesos por mês. Já vê, senhor, o que são cem pesos por mês para um homem que tem mulher e filhos?

298 “Pouco salário”.

178

— Cem pesos! O administrador dá uma olhada no obreiro. É a primeira vez que o olha detidamente, a fundo. Não tem costume de olhar com atenção os trabalhadores da empresa. Olha-os bem somente para contratá-los, para ver se são sãos, fortes, se denotam hábitos de trabalho. Uma vez empregados não os olha senão ao rosto e, rapidamente, ao comandá-los e ao cumprimentá-los. Ignora como vivem. Não tem tempo de se informar. Mas essa manhã olha para o homem que tem à frente, como se deve olhar os homem, de cima para abaixo, para saber deles não o que dizem ou pensam, mas também o que vivem e sentem. O exame lhe produz angústia; aquilo não é um homem, é um bucha. Nunca viu tanta pobreza nem tanto abandono.

— Bom — diz olhando para outra parte —; realmente não ganhas demasiado. Mas eu me ocuparei de você. Agora, vai.

O homem agradece e se retira, e quando a porta se fecha suavemente atrás dele, o administrador exclama:

—Que horror!

E continua estudando o contrato (ROJAS, 1973, p. 134-135, tradução nossa)

A causa do encontro (um aumento de salário) é diferente da de Punta de rieles, e o

caráter do personagem também: Laureano é um eletricista, que aprendeu o seu ofício por

acaso e que bebe o escasso capital que ganha. Porém, ambas as histórias coincidem ao

mostrar o encontro entre mundos sociais opostos, no contexto de um espaço vinculado à

modernidade. No caso de Romílio, uma gráfica numa salitreira de Antofagasta; no de

Laureano, “a empresa”. Daí o contraste entre suas respectivas dramáticas condições de vida.

Além do mais, e como aprofundaremos mais à frente, a reação do homem rico ou do

empresário também é parecida, pois em ambos os relatos dá-se uma “semirredenção” do

trabalhador. No caso de “Poco sueldo”, isto se reflete num mínimo aumento de salário que

funciona como uma esmola que não chega a impedir a morte de Laureano, mas, pelo

contrário, a acelera. Contudo, de fato esse antecedente é tomado de maneira praticamente

literal no começo de Punta de rieles, quando o autor se refere aos trabalhadores da gráfica em

que se encontra Fernando Larraín antes de Llanca chegar, como uma maneira de entregar aos

leitores o contexto da história:

—Senhor, poderia conseguir para mim um adiantamento para amanhã?

—Está bom, quanto você quer?

—Uma semana.

—Não será muito? O que acontece com você?

179

—Tenho que matricular a menina e ela precisa de uniforme, sobretudo e guarda-pó. Talvez nem dê.

—Sim, os pesos valem menos cada dia. Tá, falarei com o contador. Deixarei para você uma mensagem.

—Obrigado, senhor.

—Tudo em casa.

(Este é o que briga com “O Sebento”. Briga não; brinca só. O Sebento diz que ele é mesquinho e que por isso a filha não gosta dele. Se lhe pedir um beijo, ela não dá; então lhe oferece dinheiro. Como vive morta de fome, segundo O Sebento, pensa que se poderá comprar algo para comer e o beija) (ROJAS, 1974, p. 940, tradução nossa).

Para este “sub-romance de encontro” devemos sublinhar a importância que nele teve o

já mencionado casamento de Rojas com Valeria López Edwards, pois, de fato, esse foi um

encontro entre dois mundos: o de um escritor proveniente de uma classe social subalterna e

que agora tinha a oportunidade de conhecer os estratos mais exclusivos do país; e, de outro

lado, o da filha de uma típica família burguesa chilena.

Os dois mundos em encontro

Punta de rieles se inscreve dentro da grande tradição do romance da corrente de

consciência299. Narratologicamente, ele se estrutura a partir de duas formas de discurso: o

solilóquio e o monológo interior, cada um dos quais é grafado por distintos recursos

tipográficos (o uso do travessão que anuncia o começo e o final do solilóquio e o uso do

parêntese abrindo e fechando o monólogo interior). O primeiro corresponde ao relato de

Romilio Llanca; o segundo ao de Fernando Larraín Sanfuente. Através deles Rojas apresenta

pela boca dos próprios personagens as duas histórias aludidas, divididas em vinte e três

299 O primeiro elemento que permite identificar um romance da corrente de consciência, segundo Robert Humphrey, é o seu argumento: trata-se de obras cujo objetivo fundamental é relatar a consciência de um ou mais personagens, entendendo por consciência “o desenvolvimento completo da reflexão mental, desde os níveis anteriores à consciência mesma até os mais superiores da razão, passando por diferentes estratos mentais e incluíndo o mais alto deles, o do conhecimento racional comunicável. Deste último geralmente se ocupa o romance sociológico. E deste difere o da corrente de consciência precisamente porque trata daqueles níveis anteriores à verbalização racional: os níveis à margem da reflexão” (HUMPHREY, 1969, p. 12, tradução nossa). Nesse sentido, o seu fim fundamental é o de mostrar o homem interno, que se encontra sob a superfície da dimensão comunicativa, antes que as motivações ou ações do homem externo (as quais estariam relacionadas com o pensamento behaviorista e positivista, e com o romance experimental de escritores como Zolá e Drieser).

180

capítulos contrapostos, ao longo dos quais o autor intervém só três vezes: “No capítulo II para

introduzir o carpinteiro, no IX para dirigir o monólogo de um dos personagens e no último,

para terminar” (ROJAS, 1962, p. 240, tradução nossa). Ambos os discursos, o solilóquio e o

monólogo interior, entram no romance mediante uma montagem de espaço, situação que

mantém fixos os personagens num lugar, enquanto suas consciências viajam pelo tempo. As

coordenadas para realizar essa montagem são as seguintes: Como se assinala no capítulo I, o

romance abre às 2:30 da manhã, momento em que Fernando Larraín se encontra em

companhia de dois dos seus trabalhadores: Joãozinho e o personagem apelidado “o sebento”.

Às 3:15, segundo é indicado no capítulo II, aparece Romilio Llanca na gráfica. No capítulo

VI, assinala-se que são 4:00 da madrugada e que está começando a amanhecer, sendo o

amanhecer definitivo a última coordenada temporal que o autor nos fornece. Isto significa que

o encontro que dá contexto à história tem uma duração de aproximadamente três horas e meia,

se consideramos que deve ter amanhecido ao redor das seis da manhã. Neste plano do relato,

então, o romance acontece dentro de um número limitado de horas deliberadamente marcadas

pelo autor, a partir das quais entraremos no espaço e no tempo mais amplo dos dois mundos

em encontro.

O primeiro mundo que o romance apresenta é o de Fernando Larraín, o burguês

relegado da sua classe. Segundo os valores que ele mesmo expressa ao longo do seu discurso

– os quais iremos expor adiante –, este relegamento parece se produzir pela incapacidade que

Fernando Larraín possui de incorporar os valores ligados ao novos sujeitos sociais vindos das

classes médias (representadas, ironicamente, pelos Escalante – ou os “escaladores” –) e do

proletariado (Llanca), associados ao empreendimento e à iniciativa individual. A sua figura

parece ser, assim, a imagem com que se identifica uma classe social em crise, quer dizer, uma

situação coletiva da elite da época. Confirmamos isto ao observar o percurso dos outros

personagens jovens do romance que podem ser compreendidos como a terceira geração da

elite forjada no fim do século XIX. Fernanda, o primo Quico, o já mencionado Federico:

todos eles parecem se guiar pelas mesmas forças (e fraquezas) de Fernando. Fernanda se

caracteriza só por saber manejar o seu capital social, chegando inclusive à prostituição.

Federico é o típico afrancesado chileno de traços aristocráticos: distinguido, artista, elegante e

ocioso, “homem do mundo” e espécie de Dandy, sem capacidade nem ofício artístico, que

acaba morto por causa de uma nem um pouco elegante sífilis. Todos eles conformarão um

181

quadro geral de decadência da elite, vinculada a uma capacidade de empreendimento que vai

minguando com a passagem das gerações desta família empobrecida, que parece não se

identificar com o seu meio de origem, mas que, no entanto, segue confiando nos capitais que

este supostamente lhe deve.

O relato deste burguês relegado distribui-se em três eixos espaciais. O primeiro deles

corresponde ao conjunto de lugares associados à casa paterna: o sítio do tio Eugênio, onde se

inicia sexualmente; o prostíbulo “de segunda categoria” a que vai sistematicamente e onde

conhece Lya, prostituta com quem começa a sua primeira relação mais ou menos estável

durante um ano até contrair sífilis; e o banco, onde se inicia no mundo do trabalho com o

cargo de boy. O segundo eixo espacial pode denominar-se de o “próprio lar”. Este se inaugura

com o matrimônio de Fernando com Clara e rompe-se mediante um processo lento de

desintegração, que começa quando chega pela primeira vez bêbado em casa; continua com a

perda de seu emprego por causa do álcool e o abandono da sua mulher e dos seus filhos; e

acaba quando larga o trabalho que os Escalante lhe tinham oferecido. Rasgada fica toda

relação com o lar, todo vínculo com o espaço da casa, dando-se início, assim, ao período da

“vadiagem marginal”. Fernando reúne-se, então, com o que aparece como a escória de todas

as classes sociais: cocainômanos, morfinômanos, etc; e dorme pela primeira vez em cortiços.

No período ao redor deste espaço, ele tem breves momentos de recuperação, por exemplo,

quando Afonso lhe dá a oportunidade de trabalhar no seu sítio; mas em Valparaíso recai no

álcool. Inaugura-se, então, o terceiro espaço, correspondente ao cortiço em que Otília o recebe

e que funciona como uma recuperação marginal do lar. Pelo lugar em que se encontra, sabe-se

que o último espaço da história deste personagem é Antofagasta.

No que se refere à temporalidade, o relato de Fernando abrange em torno de oito anos,

apontados pelo começo do seu trabalho no banco aos dezoito anos; depois, pelo momento em

que “reconhece” o pai, aos dezenove; mais tarde, pela relação que mantém com Lya, a

prostituta; e, por último, pelos cinco anos que dura o seu casamento com Clara. A respeito

deste último período, só três desses anos – marcados, por sua vez, pelo nascimento de dois

dos seus filhos – correspondem a certo idílio burguês, e dois ao período da decadência e da

182

“integração frustrada”. Pode-se falar de um último período, cuja duração não se precisa, mas

que corresponde a sua relação com Otília, mulher do povo a quem engravida300.

O segundo mundo que o romance apresenta é o de Romilio Llanca, o carpinteiro

sindicalista em vias de proletarização (e criminalização). A sua história possui seis eixos

espaciais que são os que apontam o seu percurso formativo. O primeiro deles é o seu povo de

origem, Cáhuil, onde trabalha como carteiro e de onde surge graças à influência d’O Milico.

O segundo deles é Santiago, a capital, onde conhece o mestre espanhol e supera as limitações

que o meio lhe coloca: a ignorância e a fome, fundamentalmente. Em Santiago, Llanca vive

na casa de dois dos seus companheiros de serviço militar. Primeiro sob a proteção do mestre

Pascual; depois, de maneira independente, por alguns anos, durante os quais junta-se com

outros obreiros e se dedica a organizar o grêmio. O terceiro dos espaços é Valparaíso, onde

ele se dirige com o fim de “sondar” o estado da atividade gremial dessa cidade. O quarto é o

Barco Pisagua, no qual trabalha de carpinteiro e onde realiza três viagens: pela costa do Chile

até Buenos Aires, pelos portos do norte, Perú e Equador. Na terceira viagem desembarca, e

passa a habitar o quinto eixo espacial da sua formação, que se caracteriza pela passagem do

âmbito do mar ao âmbito terrestre. Chega ao porto, depois a La Ligua, e mais tarde a Taltal.

Aqui se inicia, primeiro, no trabalho de fábrica, depois no da construção e, posteriormente, no

do minério. Finalmente, chega ao espaço das salitreiras, o último a que acede Romílio e onde

se diz que começa a história que culmina na noite do assassinato.

Llanca permanece em três salitreiras do norte. Primeiro, em Santa Anita, lugar que

descobre como um espaço ideal para o trabalho e para conviver com homens solteiros, e onde

pode renunciar à tão difícil vida amorosa. Mais tarde, instala-se em Mantos Blanco, salitreira

nova, onde conhece Rosa, primeiro como mulher de Campón e depois como sua própria

mulher; momento em que Llanca começa a ser o que será até matá-la. Ademais, nesta

salitreira se frustra a primeira greve, motivo pelo qual parte a Antofagasta, onde consegue

trabalhar na salitreira Buena Ventura, menor que as anteriores, mas também melhor

organizada e mais antiga. Aqui começa a queda de Llanca, até que, no seu retorno a

Antofagasta, mata Rosa e, nessa mesma noite, chega ao escritório de Fernando. Em termos

300

É, mais uma vez, o recurso de marcar os anos através do nascimento dos seus filhos. Neste caso, trata-se do seu primeiro filho concebido fora da sua classe de origem.

183

temporais, esta história transcorre em aproximadamente cinco anos, desde que Llanca se

inicia sexualmente, aos vinte e cinco, até que mata Rosa, momento em que não se especifica a

sua idade.

A história de Llanca corresponde, assim, à fase que os personagens anteriores de Rojas

não chegam a concretizar: a da integração amorosa e no mundo do trabalho. No seu caso, isto

é realizado deixando de lado o seu ofício de carpinteiro independente para transformar-se em

obreiro, submetendo-se às atividades ditadas pela hegemonia econômica do capitalismo e pela

industrialização. Este trânsito implica para ele abandonar o modo de produção artesanal com

que tinha logrado sair da sociedade de subsistência, da qual era originário, para ingressar num

modo de produção industrial. Nele, como todos sabemos, o trabalhador já não cria mais o seu

próprio produto para vendê-lo, mas deve sair para vender a sua força de trabalho, ficando sem

orientação a força criativa que antes empregava na prática do seu ofício. O sentido liberador

que o trabalho tinha para Romílio no início, e que se achava enraizado no afazer artesanal que

implicava criatividade, inteligência, sensibilidade e contato com uma tradição e um meio,

transforma-se radicalmente quando ele se insere no modo de produção industrial. Ali o

trabalhador deve realizar uma labuta maquinal que não demanda um saber intelectual e

criativo, mas unicamente força e resistência física, e que o obriga a se desenraizar da sua

terra, entrar num meio estranho e desvincular-se das suas tradições.

A história de Romilio corresponde, assim, à do universo do baixo-povo em processo

de proletarização, que foi absorvido da sua condição pré-moderna pelas condições alienantes

do trabalho industrial, as mesmas que levam Romilio a transformar-se num criminoso. Sua

trajetória de personagem subalterno é a de um indivíduo que se acha capaz (e, no início, de

fato o é) tanto de dar forma à sua própria vida, como de intervir na institucionalidade do

mundo (primeiro no grêmio, depois, através das greves e do trabalho sindical). No entanto,

todo o seu percurso corresponde àquele que, na verdade, a modernidade lhe traça, mais

especificamente, o modo de produção salitreiro, através da sua própria necessidade de

trabalho.

Como vimos, este processo se inicia em Cáhuil, lugar que simboliza não só a

sociedade de subsistência que Llanca olha de forma depreciativa, mas também o típico espaço

rural marginalizado da modernidade. Diz-se que tinha só uma rua, e que ali nem sequer tinha

184

chegado um cinema; ademais, os habitantes são quase todos analfabetos. Como todo espaço

rural de tais características, simboliza também a segurança: o lugar onde a precariedade do

provinciano pobre não corre riscos e a sua fragilidade parece não ser sentida. Mais tarde,

integra-se à migração campo-cidade e vai para Santiago, lugar que para o resto dos

povoadores simboliza o medo, a vulnerabilidade e a fatalidade que advêm da sobre-exposição

de sua fragilidade no âmbito da urbe. Depois da migração para a cidade, Llanca passa por um

breve lapso de tempo, que poderia ser interpretado como um momento de conjunção

harmônica entre modernidade e pré-modernidade, simbolizada pela sua estada no Barco

Pisagua. Esse lugar representa para o protagonista um verdadeiro paraíso, porque ali o

moderno (o barco) não impossibilita nem esmaga o pré-moderno (o seu trabalho como

carpinteiro). Pelo contrário, parece dotá-lo de um espaço exclusivo para ele, e lhe oferece um

lugar estabelecido para a realização do seu ofício. Nisso radicam as conotações paradisíacas

que o personagem lhe atribui:

Foi um sonho de muitos anos, desde que, sendo criança, via passar, de vez em quando, muito longe, um barco. Nunca tinha visto um de perto e imaginava os maiores disparates (...). Quando pisei na coberta e me levaram para o meu beliche e me disseram que ali dormiria e trabalharia, pensei que tinha morrido e que estava no céu, e que Rafael Guerreiro, o contramestre, homem que, segundo ouvi depois, não podia dizer três palavras seguidas sem que uma delas fosse um insulto para alguém, um palavrão que lhe mantinha a conversa; era, pelo menos, o arcanjo Rafael, já que assim se chamava. O arcanjo, no entanto, era meu companheiro Miguel Trevinho, que não quis voltar a embarcar e conseguiu para mim o posto (...) sentia-me como se o barco e o mar tivessem sido feitos para me levar. Era o único carpinteiro e isso me dava uma segurança e um orgulho muito grandes. Na terceira viagem, no entanto, desembarquei (ROJAS, 1974, p. 975, tradução nossa)

Após estar no Pisagua, como vimos, Llanca desce à terra. Em termos simbólicos, essa

terra em Punta de rieles representa o espaço do trabalho, mas do trabalho baseado numa

estruturação trágica entre a vontade do sujeito subalterno e a produtividade industrial. Ao

descer do barco, Llanca abandona a harmonia prévia de maneira progressiva, sendo

praticamente engolido pelo terrestre, passando de uma indústria a outra, até chegar nas

salitreiras, lugar que é a antítese do Pisagua, quer dizer, o inferno mesmo, precisamente

porque nele a harmonia entre o pré-moderno e o moderno não é possível.

185

Mas como se relacionam estas duas histórias: a do “roto” 301 com a do “cavalheiro”?

Para dizê-lo de modo direto, observamos que este encontro entre dois mundos ideado por

Manuel Rojas está marcado pela ironia. Uma ironia que surge como consequência da

representação de dois personagens que não respondem ao paradigma dentro do qual são

apresentados, mas precisamente o contrário. Para isso, o autor divide o relato em quatro eixos

temáticos, ao redor dos quais cada um dos personagens expõe em contraponto as suas ideias e

experiências. No seu conjunto, eles dão conta de como cada um desestabiliza o seu respectivo

estereótipo, até se produzir a inversão final dos papéis. A consolidação desta ironia alcança o

seu ponto mais alto com o juízo final de Larraín Sanfuentes que articula a história, e expressa-

se em frases como a seguinte: “O que posso fazer por este homem, eu, que nunca fiz nada por

mim?” (ROJAS, 1974, p. 945, tradução nossa). Ou: “Vem pedir conselhos a um bêbado,

pensando que é um grande senhor. Poxa… as coisas que se veem é difícil de acreditar, mas é

assim” 302.

Os capítulos 3 e 4 giram em torno do crime: o evidente crime penal que corresponde

ao de Romílio Llanca, mas sobretudo o crime civil secreto de Larraín, sendo este o primeiro

elemento de desestabilização da figura do cavalheiro:

Poderia eu ter matado a Clara? Nem bêbado. Se só ao olhar para ela começava a chorar. E tão caralho que me comportei com ela. Não a matei, mas o que fiz foi pior. De que posso me admirar. Este cara matou a mulher e é mais do que possível que se coma seus anos no cárcere; aguentará como um homenzinho. Eu, filhinho de família, fiz algo pior e estou livre 303.

Os capítulos 5, 6, 7 e 8 giram em torno do tema da “origem” e as relações que cada

personagem tem com ela. No caso de Fernando Larraín Sanfuente, o primeiro que ele analisa

são os capitais que possui a elite e os tipos de sujeitos que se podem encontrar nas classes

301 Conservamos a expressão “roto”, pois ela é um chilenismo que não possui tradução em português. A palavra se refere às pessoas pobres de origem urbana e é utilizada, muitas vezes com conotações classistas, para falar pejorativamente de quem é visto como socialmente inferior. No entanto, a expressão “roto” pode fugir deste último sentido para fazer menção às pessoas consideradas mal-educadas, desavergonhadas, grosseiras, ou ingratas. Por último, “roto” também encerra certas conotações épicas, pois lembra a imagem das tropas chilenas (compostas por grupos de origem social pobre) que triunfaram na guerra entre o Chile e a Confedereção Peruano-Boliviana, em 1839. No caso de Manuel Rojas, ele joga com as duas primeiras acepções mencionadas aquí (a classista e a ligada ao comportamento moral). 302 Ibid., 985. 303 Ibid., 945.

186

altas, de acordo com o uso que esses escolhem dar-lhes. O principal capital que o narrador

distingue é o capital social representado pelos sobrenomes:

Mas, nem todo mundo sai igual, nem as posibilidades são enfiadas no bolso da gente. É preciso fazer algum esforço para conseguí-las. Há caras que tiram dos seus sobrenomes todo o suco que têm; uns tem mais do que outros. É questão de saber dirigir a teta. Outros não tiram nada deles, não tem garra ou são limitados. Alguns lhe dão mais brilho do que têm, outros lhe dão mais dinheiro. Outros os deixam na altura do betume (ROJAS, 1974, p. 951, tradução nossa).

Segundo Larraín, os membros da elite dividem-se de acordo com o uso que dão a seus

sobrenomes, capital que pode ser administrado com distintos níveis de eficiência. Em

primeiro lugar estão “os caras que tiram dos seus sobrenomes todo o suco”, quer dizer, que

administram esse capital com um nível de relativo sucesso. Em segundo lugar, existem

aqueles que “lhe dão mais brilho do que têm” ou “mais dinheiro”: não só se beneficiam do

sobrenome, mas também o melhoram. Há também, na elite, sujeitos que “não tiram nada

dele”, quer dizer, que desperdiçam os seus sobrenomes e administram-nos de maneira

ineficiente. Por último, estariam os que “deixam-no na altura do betume” ou aqueles que, não

contentes com desperdiçar esse capital, prejudicam o seu valor, quer dizer, pioram-no. Esses

diferentes modos de administrar o capital dependerão do “interesse”, da “garra” ou da

“inteligência” de quem o possua.

Fernando faz esta conceitualização a partir da sua posição de relegado social, a qual é

consequência não da sua incapacidade de produzir capital monetário – pois isso não constitui

causa de eliminação para a elite –, mas por ter desperdiçado o seu capital social – que é o

capital do grupo –, “jogando fora” o dinheiro e “comportando-se como um bruto” com os

seus. Em outras palavras, Larraín é relegado do seu grupo sobretudo por ter perdido a

“honra”, não respondendo pelos seus atos diante da família, e traindo os que o apoiaram e

confiaram nele (fundamentalmente, os Valdivieso e os Escalante). Utilizando as categorias

dadas pelo seu próprio discurso, o seu caso faz parte, portanto, daqueles que por “falta de

garra” deixaram o seu capital social “na altura do betume”, desperdiçando-o e piorando-o.

Por trás da sua relegação há, assim, algo que parece estar para além do capital social e

que depende, em última instância, do mérito pessoal. Neste sentido, ao contrário do que

187

Fernando pensa, antes que o dano a seu sobrenome, o que fez dele um relegado social parece

ter sido, sobretudo, o seu modo de compreender a sua própria posição social e a dos seus

iguais. Este modo se caracteriza pela desvalorização dos méritos individuais e pela

sobrevaloração das expectativas que ele tem nos capitais básicos da sua classe.

De fato, a história de formação de Larraín consiste no desenvolvimento de uma vida

em que a iniciativa pessoal tem um valor praticamente nulo, em comparação com as práticas

quase rituais que ele descreve como próprias do seu meio. Essas são: perder a virgindade com

as trabalhadoras da fazenda, casar-se com o modelo de mulher casta, submissa e virginal, ao

qual corresponde Clara. E, por último, trabalhar de boy num banco, como estratégia para

simplesmente esperar o sonhado cargo de gerente ou subgerente que a classe lhe promete304.

Em suma, uma concepção quase burocrática da existência, onde o sujeito não dá forma a sua

própria vida, mas recebe a que lhe entrega o seu meio, esperando que se cumpram os

desígnios da sua classe:

Comecei a trabalhar para ter dinheiro para deitar com as putas; continuei trabalhando porque estava casado e ía ter filhos. Alguma vez chegaria a ser gerente ou subgerente, pelo menos chefe de alguma coisa, apesar de muitos esperarem o mesmo (...) O que me faltava era ficar tranquilo em algum lugar. Eu gosto da mudança súbita e forte. Talvez por isso gostei do drink (ROJAS, 1974, p. 978, tradução nossa).

Ao contrário, a formação de Romilio até antes da sua queda final responde a uma

concepção geral da vida como desdobramento, o que se manifesta no tipo de vínculo que este

mantém com o seu meio de origem, na visão que desenvolve e materializa com respeito ao

trabalho e à política e no modo como concebe o amor.

Romilio encontra nesse percurso dois modelos: “O Milico” o “O Mestre Pascoal”. O

primeiro deles ensina-lhe a trabalhar pela primeira vez e acende nele o desejo de sair do

povoado, mas sem chegar a lhe transmitir o que para Llanca constituía o “verdadeiro

trabalho” e a verdadeira trajetória existencial. O Milico lhe ensina “a cortar com o serrote

intuitivamente e sem rumo, marcando os cortes com o prego” 305 e a sair do povo seguindo o

304 “Há de começar de alguma maneira: a primeira fêmea, uma empregada; a segunda, uma prostituta; primeiro emprego: boy” (Ibid., p. 964) 305 Ibid., p. 947-948.

188

roteiro da carreira militar. O verdadeiro modelo de Llanca, portanto, não será O Milico, mas o

Mestre Pascoal, a quem buscará definitivamente imitar, e cujo pensamento coincidirá com a

sua noção expansiva da existência. O Mestre Pascoal ensina a Romílio o que ele compreende

como o verdadeiro trabalho. Ademais, o põe em contato com as ideias anarquistas e o

empurra para uma vida de luta e itinerância. Graças à influência do Mestre Pascoal, o conceito

de trabalho que Llanca vai adquirindo e pondo em prática é o de trabalho como ofício, o que

implica conhecimento, método, criatividade e, junto com isso, permite um desdobrar-se do

indivíduo no âmbito do público. Será em defesa destas ideias que o personagem definirá o

tipo de luta política que lhe interessa:

Me interessa a luta nos grêmios, sem ânimo de mudar a sociedade, como querem os anarcos, nem de substituir os patrões na direção da coisa, como querem os socialistas e comunistas (...) Jurei que nunca mais seria obreiro. Nada de ser contratista ou patrão. Deixaria de ser o que eu gosto (ROJAS, 1974, p. 953, tradução nossa).

Romilio defende a luta gremial, porque ela se apresenta não como busca de poder, mas

como uma organização de trabalhadores cuja finalidade primeira é o cuidado com o ofício.

Para Romilio, o mais importante é realizar-se como artesão. Buscar poder, como ele observa

que acontece com alguns sindicalistas, ou com aqueles que aspiram a ser “patrões” ou

“contratistas”, seria deixar de fazer o que para ele é o mais importante: trabalhar, praticar um

ofício que materializa esse conceito geral da vida como desdobramento. Romilio quer

realizar-se e essa realização se opõe ao jogo de ser controlado e controlar. Controlar é exercer

a vontade, não é desdobramento de si porque o sujeito não é pura vontade, nem pura vocação

de controle. Ser controlado tampouco é desdobramento porque, neste caso, sempre haverá um

que se submete à vontade de outro:

A verdade é que nunca pude entender como um homem pode ter tanta vontade e tanta aspiração de mandar, de ter o pau na mão, de ser o chefe. Também não entendo por que os mais ambiciosos de poder são os que menos valem, enquanto que os que mais valem não se interessam por mandar 306.

306 Ibid., p. 953.

189

Do capítulo 9 ao16, a sexualidade é o tema predominante. Enquanto Larraín reduz o

sexo a uma prática depredadora que ele exerce, principalmente, com as prostitutas, para

Llanca a sexualidade será vista como uma expressão da natureza, sendo indissociável do amor

e da ternura, que ele sente inclusive pelas prostitutas com que se inicia: “(...) nunca pensei,

como a maioria dos homens, que há uma mulher só para deitar com ela e outra para se

apaixonar e casar-se. Eu gostava de todas, até das putas, e me pareciam iguais, mulheres todas

e merecedoras de tudo” (ROJAS, 1974, p. 982, tradução nossa). Por outro lado, segundo

Llanca, o amor é inseparável dos seus interesses políticos. Para ele, o privado (a intimidade) é

mais compreensivo que o público, pois esse é o lugar onde o sujeito se expõe por inteiro,

incluindo as suas ideias e os seus interesses ligados ao trabalho. De modo que, se no público

não se compartilha o privado, no privado sim deve compartilhar-se o público:

Quando falei das minhas ideias, me olhou como se estivesse bêbado, e quando tentei lhe explicar por que aconteciam certos fatos, as greves, as revoluções, por exemplo, pegou no sono. “Não me fale dessas besteiras. Não entendo nada. Me diga melhor o que vai fazer quando nos mandarem embora daqui” 307.

Finalmente, os capítulos que vão do 17 ao 22 referem-se à queda, tópico mediante o

qual o autor parece querer irmanar as experiências de Llanca e de Larraín. Assim, o que livro

parece sugerir é que tanto um quanto o outro caem por viverem inseridos num sistema

econômico que atua sobre eles de maneira idêntica: atacando as suas fraquezas, quer dizer,

aqueles pontos que estão fora do âmbito do aprendizado.

No caso de Llanca, a sua queda produz-se por motivos diversos que abrangem a

totalidade da sua pessoa. No entanto, a sua fraqueza no plano amoroso será como que a porta

de acesso para que todos os planos da sua existência colapsem, precipitando a sua

desintegração. Estes são: o plano do trabalho, o plano da política e, por último, o próprio

plano amoroso, a partir do qual a queda se inicia. De fato, o percurso total de Romilio pode

ser compreendido como o trânsito de um estado de organicidade, em que ele desdobra todas

as suas capacidades no que se refere a estes três níveis, a um segundo estado que podemos

caracterizar como de embrutecimento, alienação, humilhação e artificialidade que consiste,

precisamente, na frustração dos ideais que os articulavam.

307 Ibid., p. 1002.

190

No que se refere ao trabalho, ele é arrastado da produção artesanal ao âmbito das

salitreiras, atividade que não exige o conhecimento de um ofício e que, portanto, é uma

espécie de “não trabalho” para Llanca 308.

No plano político, a frustração se reflete principalmente no movimento grevista que

envolve a situação enunciativa da narração e na greve frustrada a que se faz referência no

capítulo XVIII. Como um salto do individual para o coletivo, mediante essas greves percebe-

se que o trabalhador em geral não está tendo a faculdade para exercer a sua vontade no

interior das salitreiras. Isso afeta especialmente a realidade de Romilio, se considerarmos que

o âmbito do público e do político constitui a dimensão mais forte da sua personalidade e a

única em que realmente desdobra o seu caráter, pois ela lhe permite materializar o seu

altruísmo, quer dizer, a sua vocação pelas causas que são, ao mesmo tempo, pessoais e

coletivas. A perda de um campo para o altruísmo e de um ser-para-outro que se faz visível na

situação individual de Llanca, mas que é generalizável a todo o conjunto de trabalhadores,

produz a morte do sentido épico deste grupo social e, portanto, a aceitação passiva das novas

condições de trabalho que as classes dominantes lhe impõem: “A greve fracassou.

Apareceram os que falavam segundo Engels e segundo Marx; brigaram os que falam de

qualquer jeito, enfraqueceram uns, entediaram-se os outros e a gente voltou ao trabalho quase

que antes de que o sindicato aceitasse o que a empresa lhe ofereceu” (ROJAS, 1974, p. 1003,

tradução nossa).

Por último, os ideais no plano amoroso se frustram na história de Romilio com Rosa

que, como foi dito, acaba no homicídio. Rosa obriga-o a entrar na dinâmica da exploração,

separando as dimensões afetivas e sexuais (“Não fazia ideia do que era carinho nem do que

era ternura” 309), o que o leva – usando uma metáfora vinculada ao trabalho industrial que está

exercendo – a se representar a si mesmo como uma máquina embrutecida: “Tinha a mania de

308 Este processo também foi descrito por Rojas no seu ensaio “Da criação no trabalho”: “O obreiro industrial não é um obreiro no sentido clássico da palavra, ao contrário, é a sua negação. A economia capitalista acabou com o obreiro, com o artesão que não pôde conservar a sua independência e foi absorvido pela indústria (...) Esta absorção determinou o fracionamento do trabalho do obreiro e, ao fracioná-lo, matou automaticamente a parte de criação que o trabalhador punha no seu labor. Daí em diante, este labor de criação foi exercido por um só indivíduo, o técnico, que desenha os modelos e que determina a forma como as máquinas, fracionadamente, o realizarão. Nesta realização, o obreiro não é mais do que uma peça, humana, da máquina (...). Pode-se dizer que a criação no trabalho não desapareceu, é verdade, mas não se pode dizer que a criação não desapareceu do trabalho do obreiro” (ROJAS, 1938, p. 160-161, tradução nossa). 309 Ibid., 1117.

191

fazer amor uma e outra vez e não havia nada que a detivesse. O ser humano é uma máquina,

como dizem alguns, mas não uma máquina que possa fazer a mesma coisa; tem que fazer

várias senão se embrutece” (ROJAS, 1974, p. 1145). Este embrutecimento se produz em

Romílio não só pela demanda sexual de Rosa, mas também pela experiência de estar ele

mesmo afundado numa intimidade que não lhe permite um desdobramento psicológico, já que

não pode fazer sua mulher participar na sua vida pública. Diante desta relação empobrecida

que ela oferece a Romilio – comparável à exploração que está padecendo o personagem nas

salitreiras – a experiência amorosa leva o homem numa direção totalmente oposta à realização

de si. Leva-o, como disse ele mesmo, ao embrutecimento, ao apequenamento e, finalmente, à

humilhação, que o crime final representa. Neste marco, Llanca aspirará sem sucesso a

dominar Rosa, não para explorá-la, mas para desdobrar os atributos que são próprios da

masculinidade, quer dizer, para poder cumprir com a sua própria natureza e, portanto, com a

sua liberdade originária: “Sonhava, sonhou às vezes, com noites assim, intermináveis. Nessas

noites, no entanto, o ginete era eu. Na noite passada não fui mais do que o gineteado. Bom,

bem poderia acontecer que fosse eu quem depois passasse a mandar o barco, que conseguisse

enfim ser o dominante” 310.

O ponto fraco de Larraín é a sua falta de disposição para o trabalho, carência que

parece ser substituída pelo álcool, causa principal não só da sua queda, mas também dos

outros dois “machos” da família: o seu pai e o seu irmão Frederico. Fernando (e todos os

homens que o rodeiam) não valorizam o trabalho como o próprio Llanca, que organiza toda a

sua vida em torno do desejo de desdobrar o seu ofício como carpinteiro. Isto fica em

evidência na sua opção (estratégica) de trabalhar como boy no banco, mas sobretudo nas

lembranças intercaladas que o autor integra dentro do discurso de Fernando: “O que houve,

Fernando, de novo você pegou no sono. ‘Poxa, de novo a senhora. Nem dormir a gente pode’.

‘Mas, filhinho, você só tem vinte minutos para chegar no banco. O que vai dizer o tio Chalo’” 311.

Já que Fernando e todos os homens da sua família repousam sobre os valores

tradicionais baseados na herança de capital social e monetário, eles desvalorizam o trabalho,

310 Ibid., p. 991. 311 Ibid., p. 955.

192

cuja ausência e vazio parece ser substituído pela bebida, elemento corrosivo que os leva à

decadência.

Dentro deste processo, a mulher de elite ocupa um lugar capital. De fato, as poucas

referências aos personagens femininos que aparecem no livro estão associadas ao controle que

elas tem da relação dos seus homens com o álcool. Tanto a mãe de Fernando quanto Clara, a

sua mulher, apresentam-se, cada uma a sua maneira, como mulheres totalmente

condescendentes com o alcoolismo dos seus maridos, mostrando uma total incapacidade de

cooperar para sua inserção social. Diz Fernando sobre Clara: “Não me fez censura nenhuma.

Me recebeu mais suave e mais tenra do que nunca” (ROJAS, 1974, p. 987, tradução nossa). Tal

atitude contrasta com a que mantém as mulheres populares com que Fernando se relaciona.

Trata-se de mulheres que sabem pôr um freio nos seus homens, pois, vulneráveis socialmente,

não podem permitir que os seus maridos caiam nesse vício que enfraquece a vontade de

trabalho, o único suporte de que dispõem. Nas últimas cenas do romance, Otilia aparece

expressamente protegendo Fernando do álcool:

A Otília conseguiu sei lá onde um frango mais ou menos magrelo e eles prepararam um peixe. Dom Vítor chegou com uma boa garrafa de vinho. Fiquei olhando-a, e quando a destamparam, e mestre fez um gesto de querer encher as taças, eu peguei a minha. ‘Não, você não’, disse inesperadamente Otília, afastando minha taça da garrafa. ‘Por que não?’, perguntei impressionado. Era a primeira vez que alguém me proibia uma taça de vinho” 312

A ironia se estabelece, assim, de forma definitiva. A distinção entre a história do

“roto” e a do “cavalheiro”, inicialmente baseada em critérios associados à origem social e

familiar das personagens, é desestabilizada a partir de novos parâmetros vinculados ao uso

que cada um deles faz do seu capital. Desta perspectiva, o “cavalheiro” de que Romilio se

aproxima para que julgue os seus atos vai lentamente se transformando aos olhos do leitor no

que, a partir das suas próprias colocações, corresponde a um “não cavalheiro”, quer dizer, a

um “roto”. Um “roto” que desperdiçou o seu capital social, transformando-se num bêbado, e

abandonou a mulher sem depois ter a “honra” de se responsabilizar pelo feito. Por sua vez, o

que vai acontecendo com Llanca é precisamente o oposto. Romílio tira um proveito

312 Ibid., p. 1015-1016.

193

miraculoso dos poucos capitais com que ele conta313, transformando-se no único personagem

que verdadeiramente empreende dentro do romance. E, o que é mais importante, ainda tem a

“honra” de se apresentar diante de Fernando Larraín para lhe confessar o seu crime. De “roto”

e de “assassino”, Romílio transforma-se no “cavalheiro” do romance.

É nesse sentido que a relação que se estabelece entre Fernando e Romilio é irônica.

Romilio, o verdadeiro cavalheiro da história, aproxima-se de Fernando porque vê nele uma

autoridade que o poderá julgar a partir da sua privilegiada e respeitável posição. Pelo

contrário, esse “cavalheiro” é um “roto”, que o julga de uma posição que realmente não

possui, mas apelando aos seus códigos: os códigos da honra e do capital social.

De fato, o que Fernando recomenda e promete a Romilio? Primeiro, sugere entregar-se

à polícia; depois, promete “ajudá-lo”. Em outras palavras: orienta-o a continuar fazendo

aquilo que ele mesmo não foi capaz de fazer, quer dizer, atuar com “honra”. Em segundo

lugar, Fernando lhe promete ajudá-lo, o que significa fazer uso do seu capital social. Estas

duas sentenças funcionam também de maneira irônica: um desonrado e “relegado social”

apela à honra e à sua classe para aconselhar e julgar outro que aproveitou os mínimos que a

vida lhe ofereceu e que está ali, precisamente, para se responsabilizar pelos seus erros.

Apesar de contar com a possibilidade de recorrer a uma lei subjetiva baseada na

empatia, Fernando apela em sua decisão a uma lei que ele considera objetiva, pois a sofreu em

carne própria. Durante todo o relato, Larraín estabelece pontos de união entre si mesmo e

Romílio: compara-se com ele, avalia-se a partir dele e, em certo sentido, estabelece uma

relação de empatia com ele. No entanto, como a narração de Romilio vai lembrando-o da sua

própria história, finalmente toma a decisão de abandonar tal empatia, propondo ao trabalhador

o que teria sido mais correto para si mesmo: conservar “a honra” em detrimento da liberdade.

Essa decisão adquire uma especial e, poderíamos dizer, cruel significação, se

considerarmos que o que Fernando está fazendo com Romilio ao enviá-lo (carinhosamente) à

prisão é excluí-lo da sua marginalidade, quer dizer, do lugar que, por definição, era o lugar do

que não podia excluir. Dessa maneira, ao enviá-lo ao cárcere, extirpa-lhe o mínimo com cuja

posse o personagem teria a possibilidade de continuar pertencendo a seu precário meio social.

313 Um capital cultural mínimo – “eu sabia ler” (ROJAS, 1974, p. 947, tradução nossa) – que ele vai fazendo crescer com o aprendizado de um ofício.

194

Marginaliza-o da marginalidade, “relega-o”, quer dizer, aplica a Llanca a sanção que a classe

alta aplicou a ele próprio. Em lugar de resguardar o mérito de Romílio, resguarda a sua honra,

quer dizer, protege-o de cometer o que falsamente reconhece como o seu próprio erro: falhar

na honra e não no mérito. Essa decisão encontra o seu contrário na atitude liberadora que o

povo – representado por Otilia – tem com Larraín. Dos dois únicos requisitos necessários para

ser acolhido por esse povo (a liberdade e a vida), Otilia preserva de Fernando não só o

primeiro, mas também o segundo: a vida, que Fernando põe em risco durante as suas noites de

farra. Salvando-o da morte, cumpre com todo o necessário para ser incluído.

Para terminar, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre o modo como estas

contradições se imprimem na forma de Punta de rieles. Como dissemos no início deste

trabalho, o romance dialoga com um fato específico deste período histórico, relacionado com

a reformulação das relações entre as diferentes classes sociais que está em curso,

especificamente durante a década de trinta. No entanto, ao mesmo tempo, ela também dá

conta da permanência das relações de classe tradicionais, fundamentalmente nas relações

entre a elite e o proletariado. No livro, entram em confronto, assim, duas tendências, uma

“revolucionária” e outra “conservadora”, as quais se refletem no uso do romance da corrente

de consciência que Manuel Rojas faz.

A primeira tendência faz-se visível no deslocamento que sofre, em Punta de rieles, a

figura desse narrador burguês, personalizado, que é quem dá sentido à história e à narração.

No romance de Rojas, ele se despersonaliza e toma o lugar de um personagem a mais, aliás

silenciado mediante o monólogo interior que põe o seu discurso entre parênteses.

Simultaneamente, cede-se a palavra oral – mediante o solilóquio – a outro membro do

espectro social. Há, portanto, uma certa tendência democratizante na forma do texto, que se

reflete na apropriação e na objetivação dos discursos dos distintos atores do romance.

No entanto, esta mesma estruturação narrativa que adquire a obra de Rojas pode ser

compreendida de um ponto de vista totalmente oposto. O solilóquio, além de “poder”, implica

vulnerabilidade, diante do discurso silencioso – do monólogo interior – de Fernando Larraín,

que, ao esconder os conteúdos da sua mente, preserva a autoridade que tem diante do

proletário. Em outras palavras, Llanca se expõe diante de Larraín, mas não Larraín diante de

Llanca, que, por isso, continua reconhecendo o “relegado” como uma autoridade,

195

perpetuando, sem querer, as relações tradicionais. Nesse sentido, a figura do burguês parece

reclamar um reposicionamento, uma recuperação do seu papel de doador de sentido à história,

o qual se vê ferozmente ilustrado na decisão de sugerir a Llanca entregar-se à lei, apelando,

inconscientemente, à lei da honra e do capital social.

Tal como dissemos, o contexto histórico que ficcionaliza o romance corresponde a um

momento de crise que, em importante medida, põe fim ao sistema de produção que tinha

predominado desde fins do século XIX até a Grande Depressão: o sistema de exportações

baseado na economia do salitre. Neste sentido, Punta de rieles pode ser compreendido como

um questionamento sobre as relações entre a elite e a classe proletária, durante todo este ciclo

do sistema econômico do Chile. Diante dele, o romance oferece uma resposta cética, em que o

autor parece sugerir que, apesar da desintegração de ambos os setores sociais, o “encontro” e

as relações entre ambos continuarão respondendo ao mesmo e originário sistema tradicional

inicial, mantido, aliás, pelas elites. Este seria um sistema de relações meramente

assistencialistas, que provisoriamente apoia os setores vulneráveis do país, mas que não

contribui para a sua integração real dentro da cidadania. Diante desta realidade, a única forma

de encontro que Rojas vislumbra como possível seria um encontro na disfuncionalidade, na

rua ou na prisão, espaços que assediam ambos os personagem no final do relato: a Larraín, na

possibilidade de reincidir no álcool, e a Llanca, mediante a iminência da prisão.

c) Soñaba y amaba el adolecente Perces: perspectivação feminina do romance moderno

Soñaba y amaba el adolescente Perces (1948) é, até onde sabemos, o primeiro

Romance de Formação escrito por uma mulher no Chile. Ele surge só no final do período que

estamos estudando e o faz com lucidez e grande consciência da tradição em que se inscreve,

retomando e desenvolvendo antecedentes literários centrais e tópicos fundamentais dentro da

história do gênero.

Na leitura que iremos propor, queremos apresentar este romance como uma

perspectivação feminina do Martín Rivas, realizada mediante a narração de uma nova faceta

do burguês em formação: a da iniciação sexual. Nele, os personagens, os espaços e o registro

196

narrativo que configuram o imaginário do romance de Blest Gana são ficcionalmente

deslocados. À figura de Martín Rivas, personagem cuja formação segue o percurso da

ascenção social e moral do cidadão socialmente aceito, Carolina Geel vai contrapor um outro

modelo para o retrato de Perces, simbolizado pela imagem do “homem subterrâneo”: “Me

atraiu desde o primeiro momento e me exaltou a ideia de viver nele como o homem do

subsolo” (GEEL, 1956, p. 16, tradução nossa). A autora dará relevo, assim, ao “cavernoso”, ao

“obscuro” e ao “privado” das paixões do burguês. Do mesmo modo, passaremos, no romance

da escritora, da cidade aberta e socialmente variada, do espaço público da praça e da Avenida

que prevalecem em Martín Rivas, ao espaço interno, psicológico e privado, representado pelo

quarto de Perces, eixo do livro. Por último, de um registro narrativo quotidiano-realista,

transitaremos a uma narração mais próxima do mítico e do simbólico, que se sintonizará com

o tom incestuoso da problemática iniciação sexual que será apresentada.

O texto se organiza a partir de um eu-narrador adulto de idade indefinida que relata o

seu próprio despertar sexual através da história de Perces, eu-personagem adolescente que

protagoniza o romance. O eu-adulto refere-se emotivamente a esse passado que compreende

como um processo de “desprendimento da adolescência” e uma espécie de hermenêutica

(“Desprendia-me como uma cabala de mistérios recônditos e agitações sombrias do mundo da

adolescência” 314), pautada por dois movimentos emocionais básicos: desgarro e languidez,

dolorosa vitalidade e indiferença diante daquilo que Perces sente como suprapessoal – isto é,

o ancestral:

O processo desgarrava-me até me alhear, e minha timidez acentuava-se, acossada por tanta inquietação inconfessável e tanto anseio envergonhante, tremendo no fundo se era tocado por qualquer detalhe do qual partiam, subitamente, possibilidades e fatos que esperava e não chegavam a se produzir. Mas às vezes também enlanguescia, e isso quando uma secreta emoção vinda de não se sabe qual ancestral e sem objetivo concreto deslizava-se de um curioso agrado físico para a minha indolência mental 315.

O romance consta de duas partes. A primeira, que vai do capítulo 1 ao 5, começa com

o aniversário de Perces e termina no dia em que o seu amigo Cristas se encontra com Violeta,

314 Ibid., p. 15. 315 Ibid., p. 15.

197

a tia com que ele mesmo está se envolvendo. Esta primeira parte está atravessada pela

contraposição entre o racional e o pulsional, e descreve o progressivo avanço do segundo

destes domínios sobre o primeiro. Narra-se, em outras palavras, o avanço do primitivo, do

sexual, do ritual e do ancestral sobre o iluminista-moderno-civilizado-racional.

A primeira expressão desse movimento encontra-se no modo como o evento inicial do

romance é apresentado: o aniversário de Perces (“Eu faria, ao entardescer, 18 anos” (GEEL,

1956, p. 15, tradução nossa)), data simbólica que, na linguagem do livro, deveria coincidir

com a passagem do protagonista à “maioridade” kantiana. Perces sente-se, nesse dia, em

pleno domínio de si, completamente iludido pela ideia de ser um sujeito íntegro, acabado e

sem fissuras, cujas experiências de formação estão restritas e, aparentemente, satisfeitas pela

política e pela educação:

Repetia-me que eu era um sujeito cabal e superior, que tinha lido imensamente e que sustentava a única ideia política digna e inteligente: o socialismo libertário. Gostava da denominação, tinha força, e ao pronunciá-la sentia-me como parte da sua sonoridade viril 316.

Diante dessa imagem, no entanto, o eu-narrador interferirá com outra perspectiva que

funcionará como uma ironia dessa visão “elevada” da identidade e desse sujeito autônomo,

porta-voz de um ideal de civilização que culmina de maneira simplória com a integração na

sociedade adulta. Como aparece no final do parágrafo supracitado, quem fala nos mostrará

que a base dessa autoimagem excessivamente compacta é, na realidade, produto de algo

inacabado: a formação sexual e a afirmação dessa virilidade que será o centro do relato.

Assim, por oposição a esse sujeito “redondo”, claro e resolvido, civilizado e publicamente

ativo, o narrador trará de imediato o terreno do primitivo e do pré-claro, “o de baixo” e “o de

dentro”, que ele mesmo simboliza através da imagem do quarto-caverna, eixo espacial do

relato317, descrito logo nas primeiras páginas do livro. Ao mesmo tempo, o narrador

316 Ibid., p. 16. 317

“Poucas quadras faltavam para chegar em casa e, dentro dela, na minha caverna. Ali vivia, ali odiava e almejava amar, coitado, e me consumia em terríveis fogos cuja escassa duração, é verdade, me salvavam. Tinha o quarto uma janela, bastante ampla, no mesmo nível da calçada, e dela eu via só as extremidades inferiores dos transeuntes, coisa que às vezes me divertia, mas que, na maioria das ocasiões, me era totalmente indiferente e até mesmo evitava fechando as persianas” (Ibid., p. 16).

198

inscreverá este acontecimento dentro de um registro claramente simbólico, fazendo coincidir

o aniversário de Perces com o funeral da tia, combinando vida e morte, par fortemente

associado à sexualidade que o narrador busca explorar: “Fiquei horrorizado com a ideia de

que me obrigassem a fazer presença, parecendo-me uma descortesia da minha parente

escolher meu natalício para abandonar a terra” (GEEL, 1956, p. 18, tradução nossa).

Em consonância com este predomínio da linguagem simbólica sobre a realista, e do

pulsional sobre o racional, os sonhos de Perces ocuparão o primeiro plano desta primeira

parte, deslocando, assim, o nível do diurno e do quotidiano.

O narrador traz dois sonhos que funcionam como uma “transposição onírica”, em que

os acontecimentos do quotidiano são elevados a uma significação mais profunda, próxima do

mítico e do ancestral. O primeiro deles é um sonho de comunhão e de convergência humana,

em que aparece uma imagem certamente tribal, simbolizada por uma sociedade de pessoas

avançando, unidas, na mesma direção. O personagem vive esse sonho como uma experiência

de repouso e de tranquilidade, apesar de ele mesmo aparecer como alguém que não consegue

se inserir dentro desse movimento de coesão e convergência espiritual. Nessas imagens há,

segundo pensamos, uma representação do processo formativo de Perces, em que a lógica

erótica das inclinações sexuais, que acentuam a individualidade do personagem, sobrepõe-se à

lógica político-religiosa, que o situaria como parte de um conjunto humano.

O segundo desses sonhos é uma premonição em que se encena o mito de Caim e Abel.

Nesta ocasião o processo de “transfiguração” busca retratar em linguagem onírica, e também

bíblica, a iminência do incesto que já está se anunciando na cena diurna de Perces com

Violeta (a sua tia) durante o funeral da parenta mais velha. Caim e Abel, no caso, aparecem

representando a rivalidade (ainda não revelada no nível da anedota) entre Perces e Cristas, o

qual também deseja secretamente Violeta. As imagens do sonho transformam, deste modo, o

laço de amizade num laço sanguíneo (de irmandade) e intensificam, por sua vez, a relação

parental que Perces já tem com Violeta, convertendo-a, simbolicamente, na sua mãe. Estamos,

assim, diante do registro simbólico do amor incestuoso que, para reforçar o tabu, transforma

os laços familiares em não familiares. Perces encarna primeiro Caim (o algoz), mas logo

passa a ser Abel (a vítima), representando-se uma premonição dos fatos que acontecerão no

199

final desta primeira parte (o encontro entre Cristas e Violeta) e na segunda (a consumação

sexual de Perces com a tia).

Este registro do incestuoso que está sendo elaborado inconscientemente por Perces

determina, por sua vez, a tipologia de personagens que o romance utiliza. Por um lado está o

mundo dos velhos: Violeta e as três tias que vivem com Perces, uma das quais morre no dia

do seu aniversário. Por outro, está o mundo dos jovens, que são os amigos de Perces: Cristas e

Ulisses, seu primo. A presença dos pais (Patrício e Florência) é quase nula. Mostra-se, assim,

um universo polarizado, conformado por uma metade feminina que funciona em bloco (todas

elas com nomes de flores) e que representa o “império do sangue”; e outra metade jovem que

parece estar restrita ao domínio e à regulamentação desse império sanguíneo representado

pelo conjunto de anciãs. O universo dos personagens masculinos jovens em processo de

despertar sexual encontra-se, assim, emoldurado por uma ancestralidade feminina que

representa o tabu, que deve ser respeitado, mas que, ao mesmo tempo, eles querem

transgredir.

Quando Perces descobre a sensualidade de Violeta, desdobra-se um novo retrato da

anciã. Se antes ela aparecia como parte do inseparável conjunto de velhas de ar beato, após o

despertar sexual de Perces traços de finura e sinuosidade começam a surgir da sua

gestualidade, revelando uma mulher cheia de traços singulares. O despertar sexual, portanto,

faz o protagonista individualizar isso que o tabu não lhe permitia ver: a atração física desses

seres completamente deserotizados que compõem o lado feminino da família:

Mas, eis que involuntariamente busquei os olhos de tia Violeta como se fosse encontrar neles algum reconhecimento e, não com pouco assombro, os encontrei... aveludados como a pele das pétalas, me pareceu que tinham uma inocência que lindava com o salaz. Me senti um tanto contrariado, mas bateu a curiosidade, estranhando grandemente não ter reparado antes nela. Sempre me pareceram as quatro um pouco como as quatro beatas medievais, calcada uma na outra, e agora, de repente, se individualizava (GEEL, 1956, p. 27, tradução nossa).

O desvio do iluminista-moderno-racional-realista ao primitivo-ritual-ancestral como

aparece retratada a formação sexual de Perces se expressa também no lugar que a cultura

letrada, representada pela amizade entre Perces e Cristas, adquire dentro romance. A “filia

200

filosófica” que definia a relação entre os amigos é destruída pela lógica erótica, a qual quebra

o entendimento mútuo em que se baseava a sua amizade e antepõe a rivalidade intelectual e

sexual entre ambos, elemento que entorpece e, finalmente, acaba com o diálogo.

Perces, de fato, representa-se a si mesmo se contrastando, primeiro, com Cristas e,

mais tarde, com Ulisses, ambos os quais parecem representar dois caminhos vitais. Cristas

representa o caminho da racionalidade e da rigidez moral que não aceita abertamente o

terreno da transgressão, apesar de estar disposto a pisar nele. Ulisses, pelo contrário, será o

vividor do relato, o personagem espontâneo, cômico, extrovertido, mundano e vitalista que

segue os ritmos modernos (dança rock and roll) e os gostos comuns da idade e do gênero

(principalmente futebol). Se Cristas é puro intelecto, Ulisses parece ser puro corpo: a

sexualidade resulta-lhe fácil, e a fluência física que ele possui expressa uma integração bem-

sucedida dentro da vida social.

O protagonista, ao contrário de Ulisses, é um personagem mais introvertido e

complexo, marcado por um peso psíquico que o seu primo não tem. Ele ainda reserva em si

um lugar para o espírito e, apesar de admirar o jeito descolado de Ulisses, possui uma

sensibilidade que resiste a tal simplicidade. Ao mesmo tempo, Perces está longe de ser puro

intelecto como Cristas. A sua opção vital parece se encaminhar, portanto, pela via da uma

síntese entre ambos os polos representados pelos seus modelos formativos: o corpo e o

instinto, de um lado, e a racionalidade e o espírito, de outro.

Este caminho da síntese vai se perfilando aos poucos, mediante um processo composto

por crises e transformações. É o que se compreende dos dois episódios centrais da primeira

parte do romance: o episódio do cemitério, em que Perces descobre a própria alma; e o

episódio do carro com os homens adultos, em que ele se encontra com a força da sua

corporeidade. O primeiro deles é uma experiência intensa e espiritual, em que o protagonista

experimenta vivamente a sensação do suprassensível e reconhece aquilo que está para além do

fisiológico: o intangível e misterioso que há em si mesmo. A cena concentra-se na visão de

um pássaro que o mira de maneira penetrante nos olhos, trazendo à consciência do

adolescente a noção da força daquilo que não se reduz à mera experiência sensorial:

201

Então me olhou com os seus olhos redondos de topázio e uma irremissível sensação do desconhecido, para onde eu transmigraria. Entrou como uma sombra até a minha consciência desolada (…) quando voltei a unir-me com os outros, um deles me olhou interrogante e eu baixei as pálpebras sobre a minha própria alma (GEEL, 1956, p. 32, tradução nossa).

Uma situação semelhante tinha acontecido no capítulo anterior, mas com o olhar

indecifrável de um cachorro. Nesse caso, no entanto, a função do olhar animal cumpriu a

finalidade de ridiculizar o ilusório antropocentrismo de Perces.

O segundo episódio importante desta primeira parte é aquele em que Perces se

encontra dentro do carro entre os velhos. O jovem sente que não está sendo reconhecido, nem

legitimado por esses adultos que o acompanham, mas em recompensa recebe o olhar

desejante de uma mulher do povo que, com uma mirada tão animal quanto a do pássaro, o faz

sentir a força da sua potência sexual. O episódio espiritual do cemitério, narrado

anteriormente, transforma-se assim, para o leitor, numa espécie de sublimação das “fúteis”

pulsões sexuais que se revelam a Perces aqui. Nesta sublimação, cuja causa direta é o episódio

do carro, ele descobrirá a coexistência entre o sexual e o espiritual, entre a alma e o corpo que

antes compreendia racionalmente como dimensões separadas. Após esta revelação virá a

febre, a crise e a transformação de Perces, que, de passagem, descobrirá a sua própria

perspectiva vital:

O renascer era lento, lentíssimo, e ia encontrando nessa minha nova maneira física, desconhecida, uma certa faculdade mental que antes não possuía: por exemplo, deter-me nas coisas e nos fatos, sem pretender enlaçá-los imediatamente com as coisas e os fatos seguintes; eles eram em si, um algo cabal que podia advir, ser si mesmo, e sumir 318.

A primeira parte termina com o encontro entre Cristas e tia Violeta, acontecimento que

Perces lê como uma afronta a sua masculinidade. Inicia-se, assim, a segunda parte do livro, a

qual começa com a aparição da prima Malva, com quem Perces dará continuidade ao registro

incestuoso do seu despertar sexual. Como o seu nome sugere, Malva (malvada) aparece como

um novo modelo feminino dentro do livro, associado ao obscuro, ao misterioso e ao doloroso.

E, diferentemente das outras mulheres do romance que se aproximam de uma sacralidade

318 Ibid., p. 39.

202

católica, a sua personalidade ficará mais perto de uma sacralidade profana. Malva demonstra

ter um caráter e um mistério que vem de si mesma, e isso a distingue de Violeta, figura que

parece estar, na maior parte do tempo, associada às anciãs da casa. É uma mulher de espírito

refinado e trabalhado que não age espontaneamente, traço que a Perces dá a impressão de ter

raízes ancestrais. Nela, portanto, parece conjugar-se de maneira intensa o individual e o

supraindividual:

Tinha um modo de falar devagar, quase dificultoso, como se precisasse de palavras muito exatas, que não lembrava de imediato. A impressão dominante e primeira que ela transmitia era a de um refinamento extremo, talvez criado por si mesma, mas que, com certeza, vinha também das velhas gerações, pois havia nele a força do concreto (GEEL, 1956, p. 73).

O tema central do segundo capítulo da primeira parte é a transgressão do tabu por

parte de Perces, mediante a consumação do incesto com a tia Violeta. Com isto se reafirma o

registro incestuoso que possui a sexualidade do protagonista, simbolizado através de imagens

edípicas (olhos e pés feridos) que irão surgindo cada vez com mais clareza com o avançar das

páginas: “Não obstante, com muito bom sentido, comecei a me preocupar também de

condicionar o meu olho avariado para apresentá-lo aos olhares profanos” 319. Este registro

incestuoso explica, por sua vez, o tom sagrado que a formação sexual de Perces parece

manter, e que novamente contrasta com estilo pagão de Ulisses, personagem cuja sexualidade

está sempre mais próxima do mundano (prostíbulos, festas etc). 320

Após o incesto, Perces entra num estado de desorientação e ausência de referentes.

Interna-se na cidade, e dirigi-se aos bairros populares, desviando-se dos seus percursos

habituais. Sai, assim, do estado fetal representado pelo quarto e, movido pelo fervor de viver,

contempla o espaço com novos e erotizados olhos. O caráter irreal e por vezes simbólico dos

lugares por onde passa, revela-nos, por último, o sentido mais interior do que exterior desta

viagem:

319 Ibid., p. 86. 320 Mais tarde se fará alusão ao Édipo através da imagem do pé ferido, o qual aparece como defeito tanto externo quanto interno: “Num deles, situado num prédio quase destruído, meti o pé num buraco do tablado, torcendo rudemente o meu tornozelo. Maldisse o meu descuido e a desídia do comerciante e tive que continuar o meu perambular coxeando um bom trecho e cheio de sentimentos envenenados. Burláva-me acidamente do meu ridículo passeio que qualificava de convencional, acusando-me de esnobe. Depois tive de aceitar que também não estaria bem em lugar nenhum, porque certa coisa coxeava também dentro do meu foro” (Ibid., p. 92).

203

E então, a rua acabou sendo uma daquelas fechadas como fundo de saco e só existiam nela quatro ou cinco portas míseras e outras tantas janelinhas tenebrosas, protegidas por grades, o todo pessimamente iluminado por um farol desbotado e poeirento. As religiosas tinham sumido. É que não existiram nunca? No ar quieto não vibrava toque algum” (GEEL, 1956, p. 40, tradução nossa).

O romance fecha reafirmando o abandono da formação moderna, em favor da nova

formação narrada, vinda do olhar feminino e matriarcal da sua autora:

Ah, como deixei formar-se esse enorme vazio, essa ausência? Parecia-me uma deserção indigna, um abandono, uma descortesia. Os acontecimentos que me tinham mantido afastado emagreceram-se, apareciam inofensivos, de uma finita futilidade. E não compreendia como puderam confinar-me tão facilmente no mundo da covardia e do desalento. Acelerava o passo, enchia o tórax e respirava fundo, reconhecendo-me vencedor do meu espírito e dominador de algo que, da mulher, viria até mim. O sol declinante mostrava-se gigantesco, como se estivesse se aproximando do meu próprio universo 321.

321 Ibid., p. 106.

204

IV. CONCLUSÕES

1.

Para além do problema da adaptação ou inadaptação do personagem em formação, que

está na base da definição clássica de Bildungsroman, um dos temas centrais deste gênero é a

reflexão sobre a revolução e sobre os modos como a transformação social deve ser

processada. As diferentes articulações que esta reflexão adquire no romance chileno e

brasileiro, respectivamente, servem para distinguir as características gerais que o

Bildungsroman possui num e noutro país, apresentando-se como uma valiosa categoria

comparatista que iremos resgatar para começar estas conclusões.

No caso do Brasil, é nítido que a questão da revolução é articulada em termos de uma

ruptura com o universo patriarcal. A transformação social elabora-se, assim, como um

combate contra o elemento tradicional que está por trás das modernizações da época. Nessa

luta, os romances buscarão promover a descontinuidade entre ambos os universos: o do

patriarcado rural e o da modernidade. O Bildungsroman brasileiro realizará isto, mostrando

este processo de um ponto de vista subjetivo-poético e social-prosaico, funcionando como

duas faces de uma mesma moeda. Assim, a emancipação subjetiva parecerá triunfar tanto

quanto fracassará a emancipação social.

A vertente espiritual principal de que se serve esse impulso antipatriarcal é

nietzscheana, mas, vistos em detalhe, cada um dos autores seguirá um curso particular. Apesar

de, em Memórias sentimentais de João Miramar322, a utopia antropofágica ainda não se

materializar, será por esta via que Oswald de Andrade promoverá essa ruptura, pois ela fez

parte do que ele compreendeu como o avanço geral do pensamento humano para323:

322 Como vimos, a revolução, particularmente neste romance, parece ser meramente formal, expressando uma contradição que não é nova dentro do modernismo: “Dessa contradição, inconformismo na forma, conservadorismo no conteúdo, vieram todas as limitações e contradições do modernismo; daí veio mesmo a castração do poder criador dos seus artistas” (AMADO Apud. MARTINS, MCMLXVII, p. 128). 323 É nesses mesmos termos que Antonio Candido define o espírito de Oswald de Andrade: “Oswald propuganava uma atitude brasileira de devoração ritual dos valores europeus, a fim de superar a civilização patriarcal e capitalista, com as suas normas rígidas no plano social, e os seus recalques impostos no plano psicológico” (CANDIDO, 1967, p. 16-17)

205

“as concepções do Matriarcado. A angústia de Kierkeegard, o “cuidado” de Heidegger, o sentimento do “naufrágio” tanto em Mallarmé como em Karl Jaspers, o “Nada” de Sartre não são senão sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral da vida que é devoração. Trata-se de uma compreensão matriarcal do mundo sem Deus” (ANDRADE, 2000, p. 216).

O Bilsdungsroman de Graciliano Ramos compartilha muitos aspectos do romance

social. No entanto, a superação do patriarcado realiza-se pela via subjetiva e hipotética da

memória, recorrendo, assim, a certos princípios da psicanálise. Este recurso fez parte de uma

das características estéticas principais do modernismo, muitos de cujos autores “na análise

psicológica, no lirismo, aprofundaram-se com um senso do que há no homem de infantil, mas

também de complicado e retorcido, utilizando as sugestões da psicanálise” (CANDIDO, 1967,

p. 11).

Acompanhando a progressiva politização do modernismo no Brasil324 e situando-se à

esquerda do campo literário da década de trinta, “cujo ponto de referência era a União

Soviética” (MARTINS, MCMLXVII, p. 134), José Lins do Rego aborda esta questão de uma

perspectiva socialista. O autor interessa-se pela emancipação dos trabalhadores, mas oferece

um diagnóstico pessimista, em que a saída do universo da fazenda leva a um mundo onde as

condições de produção, trabalho, distribuição e propriedade são extremamente restritas e

desiguais. Através do domínio oligárquico, essas condições refletem a manutenção da ordem

tradicional. Por outro lado, a revolução do proletariado, dirigida a promover a saída desse

novo estado de escravidão, apresenta-se como um sacrifício fútil que, sem tocar a estrutura

social, só consegue prejudicar a própria classe.

Por último, Clarice Lispector propõe uma superação da cultura patriarcal de um ponto

de vista epistemológico, mediante uma literatura feminina que busca romper com o

comportamento da vida social organizada em torno do homem, mas principalmente com os

modos de pensar que essa organização modela para o ser humano. A sua solução será uma

proposta de caráter instrospectivo, que se oferece como uma saída às contradições intrínsecas

324 “O esteticismo define a orientação modernista até por volta de 1926, quando as ondas do pensamento político começam a adquirir consistência e importância; entre 1928 e 1939, o político predomina nitidamente sobre o estético; com a guerra a situação perdura mais ou menos na mesma relação de forças, mas o frenesi propriamente político cede sutilmente uma parte dos seus direitos ao espírito crítico e ao ensaísmo; pela porta da crítica literária, o estético penetra de novo no mundo literário” (MARTINS, MCMLXVII, p. 128).

206

à civilização patriarcal vista como um todo e não como uma organização histórica concreta,

como acontece com o romance social de José Lins do Rego.

No caso do Bildungsroman chileno, a questão da revolução dá-se na busca de espaços

discursivos capazes de questionar os fundamentos de uma modernidade que parece invadir o

universo social representado pelos romances. Assim, mais do que olhar as organizações

tradicionais que vêm do passado, estes romances articulam as suas propostas em função da

potência com que o mundo contemporâneo se impõe, tentando achar opções e perspectivas

mais sensíveis e humanas, muitas vezes fora dessa modernidade. Nesse sentido, pode-se dizer

que elas mantêm uma grande afinidade com a “tese da perda de uma cultura comum”, de

Simmel:

Segundo Simmel, a modernização traz consigo uma cara regressiva indissoluvelmente vinculada ao progresso. Essa foi a causa do fato de que a cultura moderna fosse uma cultura cindida, que se caracterizou por um desajuste entre os sucessos materiais e técnico-científicos e os insucessos no campo do espírito. Essa tese do desajuste entre o corpo e a alma da sociedade foi frequente na época, e se encontra também, entre outros, em Nietszche, Husserl e Bergson (SUBERCASEAUX, 1988, p. 157, tradução nossa).

Em Alsino, de Pedro Prado, a proposta transformadora possui um fundamento místico,

que convida à recuperação do fundo divino do artista e do ser humano. Ela surge como

resposta à irônica condição histórica do poeta, e à secularização cultural que o seu autor

diagnostica ao longo do livro. Esse fundamento místico possui, por sua vez, uma orientação

“descendente” (icarista e prometeica), pois se baseia num aprofundamento da condição

trágica e temporal do homem contemporâneo a que é preciso se entregar a qualquer custo,

pelo valor de verdade que essa condição possui. O lugar da natureza é aqui também central,

pois oferece um contraponto a essa visão temporal do ser humano, que constitui o tema

central do romance.

No caso de Pablo de Rokha, o que se busca é a descoberta de uma escrita nova, capaz

de se ajustar à condição irredutível de um igualmente novo sujeito em formação: rural e

urbano, perifério e central, cosmopolita e local etc. A noção de transformação atualiza-se na

própria natureza dessa escrita, que pretende ser representativa, mas que ao mesmo tempo

resiste a se articular como um discurso de identidade. O autor propõe, assim, uma revolução

simbólica, que se daria na descoberta de uma poética que oferece para esse novo sujeito uma

207

figura de identidade em movimento, sintetizada pela imagem do mito de Sísifo. Esta poética é

um constante desafio e uma constante negação dos universos simbólicos entre os quais esse

novo sujeito se movimenta, instalando, assim, o princípio fundamental da escrita como ação

épica.

Manuel Rojas talvez seja o escritor mais crítico e mais consciente dos efeitos

corrosivos da modernidade, centrando a sua preocupação sobretudo em Romílio Llanca, o

personagem subalterno de Punta de rieles. Contrário à proletarização do baixo-povo, o que

ele parece propor é um anarquismo gremialista325, em que a libertação dessa classe social se

dá através do trabalho artesanal e da luta política orientada à proteção do ofício. Com esse

fim, o seu romance ilustra os efeitos alienantes que a inserção na indústria tem sobre o seu

personagem, a qual desintegra todos os seus ideais políticos, amorosos e vinculados ao

trabalho. A sua proposta é, assim, a manutenção de organizações pré-modernas, mas que têm

um pé na vida urbana, pois as sociedades de subsistência de onde provêm sujeitos como

Llanca também lhe parecem brutalizantes.

Carolina Geel, por último, propõe o que nos parece uma “feminilização do homem”. A

ideia de transformação que ela sugere corre pela via da liberação dos aspectos privados do

personagem masculino, mediante a aceitação dos seus traços impulsivos, pulsionais e pré-

racionais, os quais criam mais continuidades do que rupturas entre homem e mulher. Percebe-

se, então, um espírito de revolta que tende a questionar a legitimidade das funções públicas do

homem, exigindo dele uma autoanálise e uma revisão da sua identidade nos espaços que estão

para além do seu privilegiado lugar social.

2.

A tendência crítica destes romances expressar-se-á na dianoia dos textos, quer dizer,

no seu aspecto temático-discursivo. A função educativa da literatura temática cômica,

325 Apesar do romance estar ambientado num período posterior (1929), a assimilação destas ideias provavelmente aconteceu durante os anos que constituem o período formativo de Rojas: “ (...) este é também um período em que o anarquismo, depois do apagão que experimentara após o massacre de Santa María de Iquique, retorna: ‘Por volta de 1914 e 1915 os libertários tinham aumentado consideravelmente a sua influência no movimento obreiro e popular. A atividade ácrata era muito visível em algumas cidades, especialmente em grêmios como os dos pedreiros, estucadores, sapateiros, aparadoras, padeiros, carpinteiros e motoristas de bonde de Santiago e nos metalúrgicos, estucadores, pedreiros, pintores, curtidores, sapateiros, aparadores e portuários de Valparaíso e Viña del Mar’ (Los anarquistas, 262)” (ROJO, 2009, p. 22, tradução nossa).

208

formalizada por meio de um herói que tende a estar integrado na sociedade e de um poeta que

atua como porta-voz da mesma, dissolve-se com o avançar da primeira metade do século tanto

no Chile, quanto no Brasil. Instala-se, portanto, de forma predominante, uma literatura

temática trágica, que tende a isolar da sociedade tanto o herói quanto o narrador, e cujo

temperamento é claramente de protesto, queixa, ridículo e solidão.

Dentre os autores referidos, o único que ainda conserva traços da literatura cômica

neste sentido é Alberto Blest Gana. O seu personagem integra-se sem grandes conflitos dentro

da burguesia santiaguina, servindo a seu narrador como instrumento de reforma dessa classe,

mas sem deixar de representá-la. O viés didático nele presente atualiza-se mediante uma

literatura que tende a expressar os sintomas de um determinado círculo social (a elite de

meados do século XIX), com uma finalidade ideológico-política ulterior (denunciar o pacto

liberal-conservador que se está forjando na década seguinte). Porém, tanto o seu narrador

quanto o seu personagem reconhecerão um fundo de verdade nessa estrutura social (por

exemplo, na ordem classista), e isso manterá um fundo de bom humor na relação entre os

quatros elementos éticos da narrativa: o herói, a sociedade do herói, o narrador e o leitor.

Com o início das repúblicas oligárquicas, esta literatura encontra seu fim. O teor

didático destrói-se: nem o herói, nem o narrador atuam como porta-vozes da sociedade. Os

diferentes setores sociais que seus protagonistas e narradores representam resistem a

identificar-se com a ordem oligárquica, seja com os seus fundamentos tradicionais (no caso

do Brasil), seja com os seus projetos de futuro (como acontece no Chile). Para eles, todos os

males diagnosticados serão causados por essa ordem social: a destruição dos germes criativos

juvenis (Oswald de Andrade), a perda da organicidade mediante a irrupção de um avasalador

tempo novo (Pedro Prado), o drama psíquico-simbólico que Pablo de Rokha aproveita

positivamente, a neurose (Graciliano Ramos), a miséria urbana e a perpetuação da escravidão

(Lins do Rego), a pobreza existencial e intelectual (Clarice Lispector), a hipocrisia masculina

(Carolina Geel) e a alienção das classes trabalhadoras (Manuel Rojas).

3.

Assim, as propostas de formação que os romances estudados oferecem dar-se-ão fora

das relações internas entre o personagem e a sociedade, e passarão a se abrir às outras

instâncias éticas do romance (o herói, o narrador e o leitor) propondo novas interações, das

209

quais surgirão diferentes caminhos formativos. Em Oswald de Andrade e Pablo de Rokha, a

formação dar-se-á principalmente no plano da escrita e, portanto, nas relações entre o

narrador e o leitor. Isso se mostra na sátira que organiza discursivamente o conteúdo do

primeiro e no processo de escritura que centraliza a atenção do segundo. Em Alsino, de Pedro

Prado, a formação acontece com a destruição e a dissolução mística do personagem, quer

dizer, no momento da conjunção entre o personagem e uma ordem transcendente. Nos

romances de Clarice Lispector e Carolina Geel, a formação dá-se na relação do personagem

consigo mesmo: nos momentos epifânicos que permitem conectar o real com o transcendente

e no descenso aos meandros da psicologia, de onde surgem crises e transformações profundas

a partir das camadas mais interiores do homem. Em Angústia e Infância de Graciliano Ramos,

é a memória que forma, quer dizer, a relação do narrador consigo mesmo através da

reconstrução do passado. Por dar-se em chave exclusivamente social, O moleque Ricardo é

único romance em que não há nenhuma proposta de formação e nenhum momento

genuinamente formativo. O registro marxista da sua narrativa não oferece saída para o

indivíduo fora da dialética entre o homem e a rígida estrutura social que a narrativa aspira

reordenar. Finalmente, em Punta de rieles será a relação do personagem com uma segunda

sociedade (anarquista, gremialista, pré-moderna) que guardará o segredo de uma formação

que acaba perdendo o seu sentido após o personagem se inserir no mundo industrial.

4.

Estas propostas de formação serão articuladas por diferentes tipos de sujeitos e

expressarão, portanto, o progressivo plurilinguismo social que se está desenvolvendo na

época. Em geral, os romances que conseguem descobrir e promover algum de tipo de

formação serão aqueles em que o personagem simboliza a região do autor, e em que as

relações entre narrador e herói são equivalentes às de um “eu” com outro “eu”, quer dizer,

quando existe alguma continuidade entre o eu-biográfico, o eu-narrador e o eu-narrado. Nesse

sentido, apesar da formação dar-se fora das relações internas entre o personagem e a

sociedade, ela sim dependerá da legitimade que o personagem tenha no espaço social, a qual

será representada pela sua projeção na figura do autor.

Os textos de Oswald de Andrade, Pedro Prado, Pablo de Rokha, Clarice Lispector e

Graciliano Ramos expressam essa continuidade de que estamos falando, e em todos eles há

210

alguma modalidade de formação. O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, e Punta de

rieles, de Manuel Rojas, porém, são histórias sobre “outros”, em que o autor encontra-se

afastado, em diferentes graus, do personagem de que fala. Nestes textos, ou não há formação

(José Lins), ou ela se verá dramaticamente interrompida (Rojas).

Assim, mesmo que em diferentes graus, existe formação em quase todos os tipos de

sujeitos representados pelos romances: no artista modernista de elite (Andrade), no poeta que

representa o mundo rural latino-americano (Prado), no escritor vasguardista de classe média

(De Rokha), no filho de pequeno-comerciante em decadência (Ramos) e na mulher

(Lispector). Porém, não se pode dizer o mesmo dos romances que representam as classes

trabalhadoras, cuja falta de consolidação histórica ainda não parece criar as condições para

uma apropriação cabal de todas as instâncias do discurso literário.

5.

A continuidade entre eu-biográfico, eu-narrador e eu-narrado, que parece ser mais

frequente entre os romances onde há formação, faz com que o Bildungsroman da época tenha

um forte componente autobiográfico. Este ingrediente, no entanto, apresentar-se-á não como

um problema de simples autorreferência, mas como uma questão indissociável do desafio

estético que a escrita impõe para se referir aos novos sujeitos sociais que protagonizam e

escrevem esses romances.

É o que acontece com a sátira social memorialística de Oswald de Andrade, texto

que, antes de tudo, é a busca de uma ruptura estilística com o academicismo, por parte de um

burguês que procura emancipar-se das formas de socialização e expressão da sua classe. Do

mesmo modo, o poema metaficcional versilibrista, de Pablo de Rokha, será um árduo desafio

estético orientado à construção de um universo poético capaz de integrar as diferentes ordens

simbólicas de que o seu autor é originário (o campo e a cidade, o cosmopolita e o local, o

culto e o popular, etc). Perto do coração selvagem, por sua vez, é um drama espiritual

inseparável do drama verbal e expressivo que vive a sua protagonista. E por último, não

podemos esquecer de Infância, romance autobiográfico, cujo esforço memorialístico será

permenantemente auxiliado pela ficção.

211

No entanto, o Bildungsroman da época adquirirá várias outras feições além da

autobiográfica. Em Alsino, o seu autor recuperará a tradição do Romance de Formação

romântico representado por Novalis326, mediante uma história que não deixa de ter

ingredientes do conto de fadas, e em que o tema do poeta e da poesia é o assunto central da

ficção. No extremo oposto, temos o romance de José Lins do Rego, O moleque Ricardo, texto

que, seguindo as tendências neonaturalistas da narrativa dos anos trinta, aproxima-se do

romance social de tese. Finalmente, próximo deste último, temos Angústia, texto que começa

dialogando com o Romance de Formação naturalista327, ao representar os estados

psicopatológicos do seu protagonista, mas que termina vinculando-se (em Infância) com

manifestações mais contemporâneas do romance, como Em busca do tempo perdido, de

Proust.

6.

Para terminar, gostaríamos de, brevemente, contrastar os modos como se dá cada tipo

de Bildungsroman no Chile e no Brasil, pois isso pode oferecer luzes interessantes para a

compreensão dos campos culturais de ambos os países.

O Romance de Formação de artista modernista (Oswald de Andrade e Pablo de

Rokha) surge em fases muito diferentes do desenvolvimento cultural de cada país: Memórias

sentimentais aparece num primeiro momento de apropriação das vanguardas (1917), enquanto

que Escritura de Raimundo Contreras surge numa fase de consolidação do modernismo no

país (1929). Isto torna o romance de De Rokha um texto mais acabado, que integra melhor os

elementos cosmopolitas com os locais, e cujo sentido da formação é mais genuíno do que o

de Oswald de Andrade. Este último ainda valoriza, extrema e até ingenuamente, a

modernidade urbana e os referentes europeus que o romance de De Rokha coloca como um

elemento a mais, dentro de um universo simbólico maior e mais diverso, que inclui

referências à natureza e à cultura popular chilena. O Romance de Formação proletário, por

sua vez, adquire feições muito diferentes no Brasil e no Chile. Representado pela obra de José

Lins do Rego, o Bildungsroman de trabalhador brasileiro encontra-se muito mais perto do

romance social: seu foco é, sobretudo, a representação de cenários e quadros de pobreza,

emoldurados por uma narração que ainda parece estar organizada pela ideologia. Isto 326 Vide página 26. 327 Vide página 30.

212

contrasta com o “sub-romance de personagem subalterno” que aparece em Punta de rieles, o

qual se concentra na representação da interioridade do trabalhador, e não no retrato social do

ambiente, fazendo um uso mais explícito dos avanços técnicos do século XX

(particularmente, do romance da corrente de conciência) e tornando quase invisível a presença

do narrador. Poderíamos estabelecer também uma comparação entre, por um lado, os

romances Angústia e Infância, de Graciliano Ramos, e, por outro, “o sub-romance de burguês

relegado da sua classe”, que oferece Punta de rieles, de Manuel Rojas, pois ambos os autores

tratam de personagens “em decadência”. Apesar destas histórias serem, na prática,

extremamente diferentes, os romances, de fato, possuem muitos traços em comum, pois

ambos são obras de autores que escrevem de maneira periférica às vanguardas, mas que, ao

mesmo tempo, conseguem fazer confluir um alto domínio da técnica do romance com

histórias de forte teor crítico e local Finalmente, o Romance de formação de mulher distingue-

se fundamentalmente pelo modo como cada uma das autoras se posiciona diante da cultura

patriarcal. Carolina Geel focalizar-se-á nos elementos de continuidade entre o homem e a

mulher, enquanto que Clarice Lispector desdobrará um discurso de clara e profunda ruptura

com a cultura patriarcal.

213

BIBLIOGRAFIA

Literatura brasileira

Bibliografia primária

- ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: coedição Livraria J. Olympio, Editora Civilização Brasileira, Editora Três, 1973.

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- LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. São Paulo: Círculo do livro, 1980.

- POMPÉIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Círculo do Livro. Edição cotejada com a terceira edição definitiva, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro (sem data de publicação).

- RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. ---------------------- Infância. Rio de Janeiro-São Paulo, Editora Record, (não aparece ano de edição).

Bibliografia secundária

Crítica e livros auxiliares

Sobre Clarice Lispector

- CANDIDO, Antonio. “Uma tentativa de renovação”, em Brigada Ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 1992.

- CAMPOS, HAROLDO DE. “Introdução à escritura de Clarice Lispector”, em Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.

- COSTA LIMA , Luiz. “A mística ao revés de Clarice Lispector”, em Por quê literatura. Petrópolis (RJ), Vozes, 1969.

- MELO E SOUZA, RONALDES DE. “A poética dionisíaca de Clarice Lispector” em Revista Tempo Brasileiro, Núm. 130-131 (1997), pp. 123-142.

- NUNES, BENEDITO. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989.

- SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.

- SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

214

Sobre Graciliano Ramos

- CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

- CARVALHO , Lúcia Helena. A ponta do novelo. Uma interpretação de Angústia de Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1983.

- COUTINHO, Afrânio (Diretor). Coleção Fortuna Crítica 2. Graciliano Ramos. Selecção de textos Sonia Brayner, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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